ID: 53676805 30-04-2014 | Cultura Corte: 1 de 4 Uma mente ... · A oratória e a retórica também...

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Tiragem: 8500 País: Portugal Period.: Ocasional Âmbito: Regional Pág: IV Cores: Cor Área: 26,04 x 32,59 cm² Corte: 1 de 4 ID: 53676805 30-04-2014 | Cultura Hipátia (também conhecida por Hipácia) de Alexandria nasceu por volta do ano 355 d. C. e foi uma “neoplatónica” grega e filósofa do Egito Romano – a primeira mulher documentada como sendo matemática. Como chefe da escola platónica em Alexandria, também lecionou filosofia e astronomia. Como neoplatonista, pertencia à tradição matemática da Acade- mia de Atenas, representada por Eudoxo de Cnido e era da escola intelectual do pensador Plotino, que a incentivou a estudar Lógica e Matemática e a estudar Direito em vez de Ciências da Natureza. De acordo com a única fonte contemporânea, Hipátia foi assas- sinada por uma multidão de cristãos depois de ser acusada de exacerbar um conflito entre duas figuras proeminentes de Ale- xandria: o governador Orestes e o bispo Cirilo de Alexandria. Kathleen Wider propõe que o assassinato de Hipátia marcou o fim da Antiguidade Clássica, enquanto Stephen Greenblatt observa que o assassinato “efetivamente marcou a queda da vida inte- lectual em Alexandria”. Por seu lado, Maria Dzielska e Christian Wildberg notam que filosofia helenística continuou a florescer nos séculos V e VI, e, talvez, até à Era de Justiniano. Hipátia era filha de Téon de Alexandria, um renomado filósofo, astrónomo, matemático, autor de diversas obras e professor em Alexandria. Criada num ambiente de ideias filosóficas, tinha uma forte ligação ao pai, que lhe transmitiu, além de conhecimentos, a forte paixão pela busca de respostas para o desconhecido. Diz- se que ela, sob tutela e orientação paternas, submetia-se a uma rigorosa disciplina física, para atingir o ideal helénico de ter a mente sã num corpo são. Hipátia estudou na Academia de Alexandria, onde devorava co- nhecimento: matemática, astronomia, filosofia, religião, poesia e artes. A oratória e a retórica também não foram descuidadas. Alguns autores pensam que, quando adolescente, viajou para Atenas, para completar a educação na Academia Neoplatónica, onde não demorou a destacar-se pelos esforços para unificar a matemática de Diofanto com o neoplatonismo de Amónio Sacas e Plotino, isto é, aplicando o raciocínio matemático ao concei- to neoplatónico do Uno. Ao retornar a Alexandria, tornou-se professora na Academia onde fizera a maior parte dos estudos, ocupando a cadeira que fora de Plotino. Aos 30 anos já era di- retora da Academia, sendo muitas as obras que escreveu nesse período. Um dos seus alunos foi o notável filósofo e bispo Sinésio de Cirene (370-413), que lhe escrevia frequentemente, pedindo-lhe conselhos. Através destas cartas, sabemos que Hipátia desen- volveu alguns instrumentos usados na Física e na Astronomia, entre os quais o hidrómetro. Sabemos também que desenvolveu estudos sobre a Álgebra de Diofanto (“Sobre o Cânon Astronómico de Diofanto”), tendo escrito um tratado sobre o assunto, além de comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu. Em parceria com o pai, escreveu um tratado sobre Euclides. Ficou famosa por ser uma grande solucionadora de problemas. Obcecada pelo processo de demonstração lógica, quando lhe perguntavam a razão por que não casara, respondia que já era casada com a Verdade. O seu fim trágico desenhou-se a partir de 412, quando Cirilo foi nomeado Patriarca de Alexandria, título de dignidade eclesiástica usado em Constantinopla, Jerusalém e Alexandria. Ele era um cristão fervoroso, que lutou toda a vida em defesa da ortodoxia da Igreja e combatendo as heresias, sobretudo o Nestorianismo, que negava a Divindade de Jesus Cristo e a Maternidade Divina de Maria. M. de Mello Quem Quem foi foi Hipátia Hipátia de de Alexandria? Alexandria? Revoluções e guerras marcam a História. Mentes brilhantes marcam épocas. O poder da influência das mentes brilhantes ao longo da histó ria reside na extraordinária capacida- de de essas mentes fazerem com que as suas ideias transcendam o tempo real que as cinge e, assim, tornam-se dádiva para todas as épocas subsequentes. Tais pensa- mentos únicos têm sido os pedes- tais espirituais para a percepção da complexidade do universo e da natureza humana, incorpo- rada nas sociedades de origens múltiplas e de diferentes períodos históricos. Contudo, muitas dessas mentes, condenadas pela liberdade de espírito, não sobreviveram às lâminas das ideologias no poder, no momento da sua existência. As mais nobres ideias e obras dessas mentes, continuaram, porém, a in- fluenciar as gerações em demanda de ciência, filosofia e liberdade. Um dos mais brilhantes espíritos do século IV, no Egito, no cruza- mento entre a Antiguidade e a Idade Média, simbolicamente mar- cado pelo encerramento da Aca- demia de Platão em Atenas, foi o de Hipátia, a primeira matemática que a histó ria regista, filó sofa pagã , de filiação neoplatónica, e astrónoma que ensinava, para além de matemática, ontologia e ética na Academia de Alexandria. Hipá tia foi a ú nica mulher que dirigiu a Academia de Alexandria e a única cientista numa sociedade dominada por homens. O seu pai, Théon, bibliotecário da Biblioteca de Alexandria, era um estudioso da Academia de Alexandria, conhe- cida pelos célebres matemáticos, entre os quais: Euclides (século IV a.C.), Eratóstenes de Cirene (século III a.C.), Arquimedes de Siracusa (século III a.C.), Apolónio de Perga (c. de 250 a.C.), Aristarco de Samos (c. 310-230 a.C.), Hipsicles (c. de 150 a.C.), Héron de Alexandria (c. de 50), Menelau de Alexandria, Nicómano e Ptolomeu de Alexan- dria (por volta do ano 150). Embora poucos fragmentos ori- Uma mente sublime: Uma mente sublime: Hipátia Hipátia de Alexandria de Alexandria numa peça de Armando Nascimento Rosa numa peça de Armando Nascimento Rosa POR TATJANA MANOJLOVIC CENTRO DE INVESTIGAÇÃO EM ARTES E COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE DO ALGARVE

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Tiragem: 8500

País: Portugal

Period.: Ocasional

Âmbito: Regional

Pág: IV

Cores: Cor

Área: 26,04 x 32,59 cm²

Corte: 1 de 4ID: 53676805 30-04-2014 | Cultura

Hipátia (também conhecida por Hipácia) de Alexandria nasceu por volta do ano 355 d. C. e foi uma “neoplatónica” grega e fi lósofa do Egito Romano – a primeira mulher documentada como sendo matemática. Como chefe da escola platónica em Alexandria, também lecionou fi losofi a e astronomia.Como neoplatonista, pertencia à tradição matemática da Acade-mia de Atenas, representada por Eudoxo de Cnido e era da escola intelectual do pensador Plotino, que a incentivou a estudar Lógica e Matemática e a estudar Direito em vez de Ciências da Natureza.De acordo com a única fonte contemporânea, Hipátia foi assas-sinada por uma multidão de cristãos depois de ser acusada de exacerbar um confl ito entre duas fi guras proeminentes de Ale-xandria: o governador Orestes e o bispo Cirilo de Alexandria.Kathleen Wider propõe que o assassinato de Hipátia marcou o fi m da Antiguidade Clássica, enquanto Stephen Greenblatt observa que o assassinato “efetivamente marcou a queda da vida inte-lectual em Alexandria”. Por seu lado, Maria Dzielska e Christian Wildberg notam que fi losofi a helenística continuou a fl orescer nos séculos V e VI, e, talvez, até à Era de Justiniano.Hipátia era fi lha de Téon de Alexandria, um renomado fi lósofo, astrónomo, matemático, autor de diversas obras e professor em Alexandria. Criada num ambiente de ideias fi losófi cas, tinha uma forte ligação ao pai, que lhe transmitiu, além de conhecimentos, a forte paixão pela busca de respostas para o desconhecido. Diz-se que ela, sob tutela e orientação paternas, submetia-se a uma rigorosa disciplina física, para atingir o ideal helénico de ter a mente sã num corpo são.Hipátia estudou na Academia de Alexandria, onde devorava co-nhecimento: matemática, astronomia, fi losofi a, religião, poesia e artes. A oratória e a retórica também não foram descuidadas.

Alguns autores pensam que, quando adolescente, viajou para Atenas, para completar a educação na Academia Neoplatónica, onde não demorou a destacar-se pelos esforços para unifi car a matemática de Diofanto com o neoplatonismo de Amónio Sacas e Plotino, isto é, aplicando o raciocínio matemático ao concei-to neoplatónico do Uno. Ao retornar a Alexandria, tornou-se professora na Academia onde fi zera a maior parte dos estudos, ocupando a cadeira que fora de Plotino. Aos 30 anos já era di-retora da Academia, sendo muitas as obras que escreveu nesse período.Um dos seus alunos foi o notável fi lósofo e bispo Sinésio de Cirene (370-413), que lhe escrevia frequentemente, pedindo-lhe conselhos. Através destas cartas, sabemos que Hipátia desen-volveu alguns instrumentos usados na Física e na Astronomia, entre os quais o hidrómetro. Sabemos também que desenvolveu estudos sobre a Álgebra de Diofanto (“Sobre o Cânon Astronómico de Diofanto”), tendo escrito um tratado sobre o assunto, além de comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu. Em parceria com o pai, escreveu um tratado sobre Euclides.Ficou famosa por ser uma grande solucionadora de problemas. Obcecada pelo processo de demonstração lógica, quando lhe perguntavam a razão por que não casara, respondia que já era casada com a Verdade.O seu fi m trágico desenhou-se a partir de 412, quando Cirilo foi nomeado Patriarca de Alexandria, título de dignidade eclesiástica usado em Constantinopla, Jerusalém e Alexandria. Ele era um cristão fervoroso, que lutou toda a vida em defesa da ortodoxia da Igreja e combatendo as heresias, sobretudo o Nestorianismo, que negava a Divindade de Jesus Cristo e a Maternidade Divina de Maria. ◗ M. de Mello

QuemQuemfoifoi

HipátiaHipátiadede

Alexandria?Alexandria?

Revoluç õ es e guerrasmarcam a Histó ria.Mentes brilhantes

marcam é pocas.

O poder da infl uê ncia das mentes brilhantes ao longo da histó ria reside na extraordiná ria capacida-de de essas mentes fazerem com que as suas ideias transcendam o tempo real que as cinge e, assim, tornam-se dá diva para todas as é pocas subsequentes. Tais pensa-mentos ú nicos tê m sido os pedes-

tais espirituais para a percepç ã o da complexidade do universo e da natureza humana, incorpo-rada nas sociedades de origens mú ltiplas e de diferentes perí odos histó ricos. Contudo, muitas dessas mentes, condenadas pela liberdade de espí rito, nã o sobreviveram à s lâ minas das ideologias no poder, no momento da sua existê ncia. As mais nobres ideias e obras dessas mentes, continuaram, porém, a in-fl uenciar as geraç õ es em demanda de ciê ncia, fi losofi a e liberdade.Um dos mais brilhantes espí ritos

do sé culo IV, no Egito, no cruza-mento entre a Antiguidade e a Idade Mé dia, simbolicamente mar-cado pelo encerramento da Aca-demia de Platã o em Atenas, foi o de Hipá tia, a primeira matemá tica que a histó ria regista, filó sofa pagã , de filiação neoplatónica, e astró noma que ensinava, para alé m de matemá tica, ontologia e é tica na Academia de Alexandria. Hipá tia foi a ú nica mulher que dirigiu a Academia de Alexandria e a ú nica cientista numa sociedade dominada por homens. O seu pai,

Thé on, bibliotecá rio da Biblioteca de Alexandria, era um estudioso da Academia de Alexandria, conhe-cida pelos cé lebres matemá ticos, entre os quais: Euclides (sé culo IV a.C.), Erató stenes de Cirene (sé culo III a.C.), Arquimedes de Siracusa (sé culo III a.C.), Apoló nio de Perga (c. de 250 a.C.), Aristarco de Samos (c. 310-230 a.C.), Hipsicles (c. de 150 a.C.), Hé ron de Alexandria (c. de 50), Menelau de Alexandria, Nicó mano e Ptolomeu de Alexan-dria (por volta do ano 150).Embora poucos fragmentos ori-

Uma mente sublime:Uma mente sublime:

HipátiaHipátia de Alexandria de Alexandrianuma peça de Armando Nascimento Rosanuma peça de Armando Nascimento Rosa

POR

TATJANA MANOJLOVIC

CENTRO DE INVESTIGAÇÃO

EM ARTES E COMUNICAÇÃO

DA UNIVERSIDADE DO ALGARVE

Tiragem: 8500

País: Portugal

Period.: Ocasional

Âmbito: Regional

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ginais sobre a vida e obra de Hipá tia tenham chegado até nó s, a partir do sé culo XVIII, a lenda de Hipá tia começ ou a inspirar poetas, romancistas e fi ló sofos. Em 1720, Hipá tia surge pela primeira vez na literatura europeia moderna, num ensaio histó rico de John Toland, intitulado Hypatia or, The History of a most Beautiful, most Virtuous, most learned and in every Way Accomplished lady; Who was torn to pieces by the Clergy of Alexandria, to Gratify The pride, Emulation, and Cruelty of the Archbishop, Commonly but Undeservedly titled St. Cyril. Voltaire descreve Hipá tia no Dic-tionnaire philosophique como a professora que “ensinava Homero e Platã o em Alexandria durante o reinado de Teodó sio II, tendo sido os acontecimentos conducentes à sua morte instigados por Sã o Ciri-lo, que lanç ou a turba cristã contra ela.” (Dzielska 2009:16)

Muitas outras obras do sé culo XVIII apresentaram Hipá tia como uma fi ló sofa pagã , martirizada no con-fl ito provocado pela dominaç ã o religiosa e polí tica entre as socie-dades cristã e pagã , no sé culo V, em Alexandria. Uma fonte antiga

que deu origem a essa lenda, ex-plorada na literatura europeia, foi a versã o de Só crates escolá stico do sé culo V, que revela:“Foi entã o que a inveja irrompeu contra essa mulher. Sucedia que ela passava muito tempo com Orestes, o que deu azo a calú nias que a condenavam entre gente ligada à Igreja, como se fosse culpada de Orestes nã o estar em termos amistosos com o bispo. Com efeito, alguns homens que proferiam iradamente contra ela a mesma acusaç ã o, e entre os quais se contava um certo Pedro (que desempenhava funç õ es de leitor), seguiram em certa ocasiã o os movimentos da mu-lher que voltava para sua casa. Arrancaram-na da carruagem e arrastaram-na para o interior da igreja chamada Cesarion. Rasga-ram-lhe as roupas e mataram-na depois com cacos de cerâ mica [ostraka]. Quando acabaram de a esquartejar, dilacerando-a mem-bro a membro, levaram o corpo para um lugar chamado Cinaron e aí o queimaram.”(Ibid.: 32)

Em 1847, o poema Hypatie de Leconte de Lisle, que admirava a cultura clá ssica, chamou a atenç ã o

para a fi gura de Hipá tia como “uma ví tima simbó lica da transformaç ã o das circunstâ ncias histó ricas”. Já na segunda versã o do seu poema, que Leconte de Lisle publicou em 1874, os culpados pela morte de Hipá tia sã o os cristã os. Vá rios au-tores do sé culo XIX inspiraram-se em ambos os poemas de Leconte de Lisle, cujo verso “O sopro de Platã o e o corpo de Afrodite” eter-nizou a imagem de Hipá tia até aos nossos dias.

No entanto, Maria Dzielska ba-seou o seu estudo sobre Hipá tia nas fontes antigas, a partir da correspondê ncia entre a fi ló sofa e os seus discí pulos, e publicou, em 1995, Hipá tia de Alexandria, uma biografi a diferente da lenda adotada e explorada na arte. Dziel-ska identifi ca Hipá tia como uma mulher de 60 anos no momento da sua morte, e nã o com 45 anos ou menos, como, tradicional-mente, vá rios ensaios e estudos referem, numa leitura de datas que, segundo a autora polaca, é equívoca. Estabelece-se assim o nascimento de Hipá tia no ano 355 d.C., e nã o por volta de 370. Hipá tia residiu sempre em Alexandria e a sua educaç ã o estava sob a tutela

do seu erudito pai, Thé on. Para alé m da matemá tica e da astro-nomia, Hipá tia interessava-se pela fi losofi a, e, no chamado Museu de Academia, ensinava essas discipli-nas aos seus discí pulos leais que vinham até Alexandria, de Cirene, de Constantinopla e da Sí ria. So-bre a sua postura é tica, Dzielska escreve:“Hipá tia detinha uma grande au-toridade moral; todas as nossas fontes concordam em descrevê -la como um modelo de cora-gem é tica, rectidã o, veracidade, dedicaç ã o cí vica e elevaç ã o inte-lectual. A virtude mais venerada nela pelos contemporâ neos era a sua sophrosyne, que informava tanto a sua conduta como as suas qualidades interiores; aquela ma-nifestava-se atravé s da abstinê ncia sexual, no trajar modesto, na moderaç ã o do modo da vida, e na dignidade da atitude que manti-nha tanto perante os seus alunos como perante os que ocupavam o poder. (ibid.: 32)

Um dos seus discí pulos e amigos mais pró ximos, Orestes, era pre-feito de Alexandria e o maior rival polí tico do patriarca de Alexan-dria, Cirilo. Dzielska afi rma que a

morte de Hipá tia aconteceu em consequê ncia do conflito entre Orestes e Cirilo. Como Hipá tia apoiava Orestes nessa luta polí tica, os partidá rios de Cirilo encontra-ram modo de fazer parecer Hipá tia – já social e intelectualmente afastada do alexandrino comum –, aos olhos do povo, uma feiticeira. “Matar uma feiticeira era pura e simplesmente fazer a vontade tan-to dos cristã os como do pró prio Deus.” (Dzielska: 108) Depois do crime, Orestes abdicou das suas funç õ es pú blicas e deixou Alexan-dria, ato que pacifi cou a cidade.

O amor pela diversidade,a liberdade do espí rito

Ao introduzir este tema na drama-turgia e literatura portuguesas em 2004, Nascimento Rosa cria um espaç o ú nico para as duas é pocas, a nossa e a do sé culo V, onde se cruzam a imaginaç ã o dramá tica com os factos biográ fi cos sobre Hipá tia. A ú ltima liç ã o de Hipá tia, ao reunir personagens histó ricas com outras inventadas, dramatiza o ú ltimo dia da cientista antes da sua morte brutal, e coloca a questã o do poder do espí rito

Hipátia “meditando”, vendo-se ao fundo o célebre Farol de Alexandria

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Corte: 3 de 4ID: 53676805 30-04-2014 | Culturaquando confrontado com interes-ses de outra natureza. A primeira versã o da peç a, em trê s atos e com quarenta personagens, e publicada em 2004, foi revista pelo autor, na preparaç ã o da versã o cé nica para a sua primeira apresentaç ã o mundial, em lí ngua inglesa (numa traduç ã o de Alex Ladd), que teve lugar na Universidade de Cornell, em Ithaca (EUA), em Agosto de 2010, numa leitura encenada sob a direç ã o de Susan Rowland. A aná lise proposta aqui debruç a-se, por isso, sobre esta segunda versã o, menos extensa e em ato ú nico, do texto dramá tico de Nas-cimento Rosa, datado de 2010 (peça disponível para leitura livre, em tradução inglesa, na edição eletrónica do volume 8 da publi-cação Teatro do Mundo – Tea tro e Censura, do CETUP – Centro de Estudos Teatrais da Universidade do Porto). Partindo do seu poema sobre Hipá tia, que encerra a peç a, o dramaturgo procura dar vitalidade à memó ria deste espí rito nobre da Antiguidade tardia:

Hipá tia é agora plena estrela viva Centelha divina em regresso à morada celeste Situada para alé m deste cosmos de ilusã o e morte Nada deixou de maté ria sua na vil prisã o do mundo Somente a lembranç a dela em nó s que a amá mos de amor puro.

(Nascimento Rosa 2004: 45)

A sinopse da peç a emerge da ima-ginaç ã o de Lucinda, uma estudante fas cinada pelo destino da cientista alexandrina. Na Nota de abertura, o autor escreve:“A personagem de Lucinda refere explicitamente a coexistê ncia de versõ es divergentes do episó dio da morte de Hipá tia, presentes na peç a e no poema. A fi gura possí vel de anima que é Lucinda foi uma má scara juvenil para a autoria da peç a, que me concedeu a liberdade criativa e um distanciamento de olhar de que necessitava, no sentido de me afastar de uma reconstituiç ã o ditada apenas pela documentaç ã o histó rica.” (ibid.: 4)

Tal como acontece em outras peç as de Nascimento Rosa, onde as vidas passadas dos protagonis-tas sã o revisitadas pelas memó rias dos fantasmas e dos vivos, també m A ú ltima liç ã o de Hipá tia nos leva numa aventura intelectual e afe-tiva, imaginada pela jovem estu-dante “visitada” pelo espí rito de Hipá tia, que a incentiva a escrever a sua histó ria. Num ú nico ato sur-gem as personagens histó ricas, tal

como o bispo Siné sio de Cirene, o governador Orestes, o patriarca Cirilo, a imperatriz Pulqué ria e a pró pria Hipá tia. Com estas cruzam-se personagens inventadas que beneficiam a dramatização dos dados oriundos da historiografi a: a atriz Demé tria, mulher de Ores-tes; jovens estudantes de Hipá tia, Karió tis, Ebâ neo e Nazá rio, e ainda a fi lha de Siné sio, Estela.

Na sua primeira fala, Siné sio, sem esconder a admiraç ã o pela sua mestra, revela-nos as virtudes de Hipá tia, o seu “amor pela diversida-de” e “a liberdade do espí rito”:“Hipá tia acolhe no seu fó rum alu-nos de todas as confi ssõ es religio-sas, desde que mostrem o desejo natural de conhecer. Só em Alexan-dria isso é possí vel, cidade fundada pelo heró i macedó nio para juntar povos e crenç as em convivê ncia universal.” (ibid.: 8)

Embora Hipá tia tenha tido estudan-tes de diversas origens e de ambas as religiõ es – cristã e pagã –, todos eles eram homens. O espí rito de Siné sio apresenta-nos també m a sua fi lha, Estela, que veio estudar com Hipá tia, na Academia. Nestas duas personagens, a de Lucinda e a de Estela, encontraremos a sublimaç ã o

e a continuaç ã o do espí rito e da é tica de Hipá tia, que pela primeira vez, “ensina” discí pulas, e ainda as do sé culo XXI.

No teatro de Nascimento Rosa, segundo Eugé nia Vasques, “existem caracterí sticas identifi cadoras des-ta poé tica teatral, duas das quais constituem a marca de estilo que demarca Armando Nascimento Rosa dos outros dramaturgos da sua geraç ã o: o uso do fabulá rio mitoló gico em enquadramento rea lista, misturando, heré tica e po-pularmente, tragé dia com comé dia, e o uso de um imaginá rio gnó stico, elevado a palco agó nico do incons-ciente colectivo ou mesmo lugar psicanalí tico”. (Vasques 2005) Este teatro, repleto de personagens femininas dominantes e inten-sas, sejam elas mí ticas, histó ricas ou inventadas, frequentemente desafia o estigma só cio-cultural da supremacia masculina. Assim, nã o surpreende que a escolha de Hipá tia seja uma jovem. Na “sua peç a”, Lucinda vai fazer o papel de Estela, e essa dualidade espiritual enuncia a perenidade da presenç a da fi ló sofa antiga. A peç a abre com Lucinda imersa entre livros, à pro-cura da inspiraç ã o, quando aparece Hipá tia (ibid.: 7):

“Hipá tia:Lucinda, eu quero que escrevas a minha histó ria. As histó rias sobre-vivem aos lá bios que as ditaram. A minha precisa de ti para nã o cair no esquecimento. De que me serve os livros falarem de mim se estiverem fechados nas estantes, nos cd’s sem uso? O teatro, sim, é um livro vivo para quem vier com vontade de o ler. Chamo-me Hipá tia, dou aulas em Alexandria, e morrerei todas as vezes que a peç a for jogada. Mas hei-de ressuscitar nas tuas palavras. (Lucinda abre o portá til e escreve, com entusiasmo, no teclado.) Escreve, Lucinda, escreve. A partir desta noite serei hó spede do teu computador. [...]”

Estela revela coragem para se opor a Karió tis, aluno de Hipá tia e espiã o de Cirilo, que trairá a sua mestra e indirectamente a levará à morte. Do confl ito entre Estela e Karió tis, inicialmente apenas verbal, radicará, em ú ltima aná lise, o ato de coragem por parte da fi -lha de Siné sio. Pressentindo a sua morte, Hipá tia incentiva a jovem a nã o desistir e continuar a estudar. Depois da morte de Hipá tia, é Es-tela que, juntamente com outros dois discí pulos, Ebâ neo e Nazá rio, tenta salvar os escritos da fi ló sofa

da Biblioteca; embora seja Karió tis que levará todos os pergaminhos consigo, para os destruir. Na ú ltima cena da peç a, os atores, reunidos, leem o poema que deu origem ao enredo d’ A ú ltima liç ã o de Hipá tia. O cí rculo imaginá rio de Lucinda fecha- -se com o epí logo, quando ela, como no iní cio, está acompanhada pelo espí rito de Hipá tia (ibid.: 45):

“Lucinda:A aç ã o da peç a termina assim como este poema assustador. Mas eu queria saber mais sobre quem foste, Hipá tia. Recriei contigo o teu ú ltimo dia de vida e o que eu queria era ouvir uma liç ã o tua, assistir ao espectá culo do teu pensamento. Nã o cheguei a conhecer-te...

Hipá tia:Nã o te importes com isso, Lucinda. O que juntas inventá mos já é sufi -ciente para que o teatro me lembre. E depois, é bem melhor que cada espectador imagine a sua Hipá tia. A partir de agora, há um fantasma de mim que fará companhia à solidã o de todos os que estiveram hoje aqui connosco.”

Esta passagem revela uma sin-gularidade que já caracteriza o teatro do dramaturgo, e que se estabelece no fenó meno de fazer com que o pú blico nã o só partilhe a aventura espiritual proposta na escrita/encenaç ã o, mas que esteja igualmente envolvido no proces-so de leitura/ espetá culo. Nã o há barreiras intelectuais e criativas entre o palco e o pú blico, nem mesmo a distâ ncia que sepa-ra os espetadores/leitores dos atores/personagens e dos acon-tecimentos cé nicos. Essa é uma grande qualidade dramatú rgica de Nascimento Rosa, que, a meu ver, prosperará no tempo. Julgo que essa qualidade trará um equilí brio artí stico desejado pelo pú blico teatral, cujos gostos e olhares, há mais do meio sé culo, tê m sido ha-bituados ao teatro do absurdo, da solidã o, do vazio, e do afastamento dos sentidos vitais da existê ncia humana. Num diá logo com a sua esposa Demé tria, Orestes, amigo de Hipá tia, fala-nos da mundividê ncia partilhada com a sua mestra: “O que fez de Alexandria uma cidade ú nica foi a tolerâ ncia pelas crenç as e pelo pensamento, a mistura entre mun-dos diferentes. É no prazer do teatro que podemos aprender de novo o que a cidade esqueceu.” (ibid.: 12)

Heranç a

A vida espiritual de Alexandria nã o se apagou com a morte de Hipá tia. Filó sofos pagã os e cientistas con-tinuaram os seus estudos na Anti-

A Doutora Tatjana Manojlovic, autora deste artigo sobre Hipátia

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Corte: 4 de 4ID: 53676805 30-04-2014 | Culturaguidade tardia. Muitas mulheres dessa é poca dedicaram-se à fi losofi a, e, entre elas, Sosí patra foi a fi ló sofa mais infl uente da Antiguidade tardia, que ensinou fi losofi a em Pé rgamo, no sé culo IV. Já no sé culo V, muitas outras pagã s e cristã s sá bias viviam em Alexandria, entre as quais: a filó sofa Asclepigé nia, filha de Plutarco; Edé sia, fi ló sofa e mã e de filó sofos; Santa Teo-dora, Eugé nia e Santa Maria egipcí aca. (Dzielska 2009: 134)

O nosso tempo é també m a continuaç ã o da heranç a espiri-tual que cientistas e pensadoras da Antiguidade e outras é pocas desenvolveram nas sociedades pouco favorá veis ao “saber com rosto de mulher”. Nenhum sé culo antes dos sé culos XX-XXI conhe-ceu tal liberdade de expressã o em mulheres nem exigiu tais esforç os e alcances da sua cria-tividade. No cinema, Hipá tia foi protagonizada pela atriz Ra-chel Weisz no drama histó rico “Ágora”, dirigido pelo cineasta espanhol Alejandro Amená bar em 2009, filme que recria os ú ltimos dias da cientista, bem como o confl ito polí tico entre cristã os e pagã os e a destruiç ã o da Biblioteca de Alexandria.

A Ú ltima liç ã o de Hipá tia é uma homenagem teatral à fi lósofa e matemática alexan-drina. A sua lucidez e a sua mundividê ncia, revividas no palco através da obra de Nasci-mento Rosa, ultrapassam inte-lectualmente o tempo real da pró pria é poca em que Hipá tia viveu, manifestando a criati-vidade feminina na sua forma mais sublime, isto é , o poder do espí rito e do saber. ◗

Referências:

– DZIELSKA, Maria (2009) Hipátia de Alexandria. Tradução de Miguel Ser-ras Pereira. Lisboa: Relógio D’ Água.– ROSA, Armando Nascimento (2004) A última lição de Hipátia seguido de O túnel dos ratos. Porto: Campo das Letras.– (2013) «Hypatia’s last lesson. A one-act play». Translated by Alex Ladd. In MARINHO, Cristina, TOPA, Francisco, e RIBEIRO, Nuno Pinto (orgs.). Teatro do Mundo. Teatro e Censura. Vol. 8. Porto: CETUP – Centro de Estudos Teatrais da Uni-versidade do Porto. (pp. 269-320) [Publicação disponível em: http://web.letras.up.pt/cetup/wa_fi les/11584.pdf ]– VASQUES, Eugénia (2005) A. Nascimento Rosa: Cinco anos de Teatro Representado (disponí-vel em: http://www.triplov.com/teatro/eugenia_vasques/arman-do_rosa.htm)