Lei Das Políticas Públicas é _Estado Social a Golpe de Caneta_

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11/02/2015 ConJur Lei das Políticas Públicas é "Estado Social a golpe de caneta?" http://www.conjur.com.br/2015fev10/leipoliticaspublicasestadosocialgolpecaneta?imprimir=1 1/5 COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS 10 de fevereiro de 2015, 6h52 Por Lenio Luiz Streck e Martonio Mont'Alverne Barreto Lima O Projeto de Lei 8.058/2014 de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT/SP) institui processo especial para o controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário e dá outras providências. Eis um debate que necessita ser aberto com a sociedade; sobretudo com os Poderes do Estado brasileiro envolvidos. Num primeiro instante calha a interpelação que fez o Senhor Deus ao Diabo, segundo Machado de Assis, quando o Diabo comunicava ao Altíssimo a fundação de sua “Igreja do Diabo”: “Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires”. Com efeito, com a devida vênia ao ilustre deputado Paulo Teixeira — que tão bem conduziu o projeto do novo Código de Processo Civil (CPC) na Câmara — o PL 8.058/2014, além de não se constituir em novidade alguma, apenas repete o moralismo infelizmente presente na maior parte do Poder Judiciário, a pensarem resolver todos os problemas de efetivação de política de educação e saúde por meio de decisões judiciais. Se vingar o projeto, a partir de agora, as faculdades de Direito de todo o país não deverão mais formar juristas, porém bacharéis-versados-em-“políticas públicas” (restamos a pensar qual seria a política que não é pública...). Em outras palavras: se aprovado o PL 8.058/2014 o Judiciário deixará de ser somente Judiciário. Executivo e Legislativo estão destinados a desaparecer diante da competência do Poder Judiciário. Basta que se leia os artigos iniciais do mencionado PL. Coisa bem “jabuticaba”, como poderão perceber. Já de pronto, o artigo 2º afirma que o controle das políticas públicas reger-se-á pelos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, garantia do mínimo existencial, justiça social atendimento ao Lei das Políticas Públicas é "Estado Social a golpe de caneta?"

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Artigo sobre as Políticas Públicas e o Estado Social

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    COMPETNCIAS CONSTITUCIONAIS

    10 de fevereiro de 2015, 6h52

    PorLenio Luiz StreckeMartonio Mont'Alverne Barreto Lima

    O Projeto de Lei8.058/2014 de autoria do deputadoPaulo Teixeira (PT/SP)institui processo especial para o controle e interveno em polticas pblicaspelo Poder Judicirio e d outras providncias. Eis um debate que necessita seraberto com a sociedade; sobretudo com os Poderes do Estado brasileiroenvolvidos.

    Num primeiro instante calha a interpelao que fez o Senhor Deus ao Diabo,segundo Machado de Assis, quando o Diabo comunicava ao Altssimo afundao de sua Igreja do Diabo: Tudo o que dizes ou digas est dito e reditopelos moralistas do mundo. assunto gasto; e se no tens fora, nemoriginalidade para renovar um assunto gasto, melhor que te cales e teretires.

    Com efeito, com a devida vnia ao ilustre deputado Paulo Teixeira que tobem conduziu o projeto do novo Cdigo de Processo Civil (CPC) na Cmara oPL 8.058/2014, alm de no se constituir em novidade alguma, apenas repete omoralismo infelizmente presente na maior parte do Poder Judicirio, apensarem resolver todos os problemas de efetivao de poltica de educao esade por meio de decises judiciais. Se vingar o projeto, a partir de agora, asfaculdades de Direito de todo o pas no devero mais formar juristas, pormbacharis-versados-em-polticas pblicas (restamos a pensar qual seria apoltica que no pblica...). Em outras palavras: se aprovado o PL 8.058/2014o Judicirio deixar de ser somente Judicirio. Executivo e Legislativo estodestinados a desaparecer diante da competncia do Poder Judicirio.

    Basta que se leia os artigos iniciais do mencionado PL. Coisa bem jabuticaba,como podero perceber. J de pronto, o artigo 2 afirma que o controle daspolticas pblicas reger-se- pelos princpios da proporcionalidade,razoabilidade, garantia do mnimo existencial, justia social atendimento ao

    Lei das Polticas Pblicas "Estado Social agolpe de caneta?"

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    bem comum, universalidade das polticas pblicas e equilbrio oramentrio.Que todos estes princpios (sic) j esto na Constituio e nas Leis, no surpresa. Que todos estes j so, infelizmente usados como bem entendequalquer juzo, tambm no traz nada de novo, infelizmente. Alis, por falarem polticas pblicas, o que tem funcionado mesmo em terrae brasilis apoltica da fabricao de princpios, o que provocou o fenmeno do pan-principiologismo, pelo qual se institucionalizou aquilo que se chama deativismo judicial. Chegamos ao cmulo de o Ministrio da Sade trazer emseu site um roteiro de como entrar em juzo contra o Estado. Parece que ogoverno vai se acostumando a transferir o seu dever de fazer polticas emdireo ao Judicirio.

    Pois parece que o ilustre deputado Paulo Teixeira, em vez de combater oativismo, resolveu regulament-lo. Ou seja, j que no podemos solucionar umproblema, melhor institucionaliz-lo.

    O projeto eivado de inconstitucionalidades e de incongruncias com ademocracia. A primeira flagrante violao da Constituio aparece expressano artigo 6, inciso IV em dilogo com o artigo 18, inciso II. Consta que noprazo de 60 dias a autoridade responsvel ser notificada pelo juiz paraprestar informaes detalhadas que devero contemplar os seguintes dadosda poltica pblica objeto do pedido, os quais constaro: (...) IV em caso deinsuficincia de recursos, a possibilidade de transposio de verbas (artigo 6,incisoIV). Veja-se: Aps a deciso do juiz, este poder determinar ao PoderPblico que inclua crditos adicionais especiais no oramento do ano em cursoou determinada verba do oramento futuro, com a obrigao de aplicarefetivamente as verbas na implementao ou correo da poltica pblicarequerida.

    Como assim, deputado? Causa espanto que o Poder Legislativo, responsvelpela elaborao das chamadas polticas pblicas por intermdio do debateentre a heterogeneidade das tenses sociais, tenha tido a iniciativa de talProjeto de Lei. Para sermos bem simples: O projeto nada mais do que oprprio Legislativo reconhecendo sua incapacidade de debater, de formular,de cumprir a tarefa que a Constituio lhe imps. Votar para qu, se oLegislativo transfere seu poder ao Judicirio?

    A inconstitucionalidade relativa a estes dispositivos evidente. O artigo 48,inciso II da Constituio da Repblica no deixa dvidas: da competncia doCongresso Nacional, com sano do Presidente, a aprovao do oramentoanual. O mesmo Congresso o responsvel pela fiscalizao do oramento(artigo 70, CF), sendo crime de responsabilidade do presidente atos que

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    atentarem contra a Constituio e especialmente contra a lei oramentria(artigo 85, inciso VI). Por fim, dos artigos165 a 169 esto explicitados todos oslimites dos Poderes Executivos e Legislativo na elaborao do oramento, dalei de diretrizes oramentrias e dos planos plurianuais,

    Assim, de que modo podemos imaginar que uma autoridade pblica poderinformar um juiz a possibilidade de transposio de verbas, cujosoramentos forma aprovados por leis complementares e leis ordinrios do PoderLegislativo?

    Como imaginar que uma deciso judicial altere estas leis no mesmo oramentoou imponha determinaes financeiras de gastos a oramentos futuros osquais no constam das leis de diretrizes oramentrias e planos plurianuais aque esto obrigados todos os Entes da Federao?

    O que surpreende que o prprio Poder Legislativo tenha tido a iniciativa deliquidar suas competncias constitucionais, como se isso fosse possvel. Trata-se de um haraquiri institucional. Assusta-nos tamanho espontanesmo aliado perverso completa de uma separao de poderes presidencialista, como aquela estabelecida pela Constituio de 1988.

    A quase unanimidade dos intelectuais da rea de sade coletiva, por exemplo,condenam fortemente o conhecido fenmeno da judicializao da sadepblica, com decises individuais a desorganizarem qualquer planejamentooramentrio e, principalmente a conceber o direito sade ou educaocomo individuais e no coletivos[1].

    O Sistema nico de Sade tem sua origem na realizao das confernciasnacionais de sade. Tais conferncias possuem sua origem no governo deGetlio Vargas, com a Lei378, de 13 de janeiro de 1937, a qual reorganizou oMinistrio da Educao e Sade. Era espao estritamente governamental, areunir autoridades deste Ministrio e autoridades setoriais dos Estados e doento Territrio do Acre. A primeira conferncia nacional de sade ocorreuem junho de 1941, sob a organizao de Gustavo Capanema e dopresidenteGetlio Vargas. De l para os dias atuais, tivemos 14 confernciasnacionais, sendo a ltima realizada em novembro/dezembro de 2011, emBraslia. Chama a ateno a oitava conferncia nacional de sade, realizadaem 1986. Realizada j sob a redemocratizao brasileira, foi a primeira acontar com participao popular. Precedida pela realizao de pr-conferncias estaduais, reuniu cerca de 4 mil pessoas em Braslia, os quais mileram delegados. Teve como principais metas: a) sade como direito de todos;b) reformulao do Sistema Nacional de Sade; e c) financiamento do setor. O

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    ncleo mais miltante8 da 8 Conferncia foi sua resoluo de 13 A garantiada extenso do direito sade e do acesso igualitrio s aes de servios depromoo, proteo e recuperao da sade (...)9. Na Resoluo 1, do Tema 2,l-se o seguinte: (...) Universalizao em relao cobertura populacional, acomear pelas reas carentes ou totalmente desassistidas; equidade em relaoao acesso dos que necessitam da ateno.

    Que, de pronto, seja arquivado o projeto!No difcil de ser comprovada a origem coletiva do direito sade que tantogoverno como sociedade tinham quando da concretizao deste direitoprevisto no artigo 196 da Constituio Federal, distante da noo de direitoindividual, como a concepo das decises judiciais atualmente.

    Para alm dos aspectos constitucionais, O PL 8.058/2014 simplesmente ignoraeste acmulo histrico vivido pela rea de sade pblica, remetendo o poderde deciso sobre to importante poltica para juzes os quais no so formadospara tal.

    Ser um servio ao pas e poltica democrtica brasileira o prontoarquivamento de tanto atraso materializado em to poucas linhas. Temos acerteza que o deputado Paulo Teixeira revisar sua posio. Comoparlamentar e democrata, sabe a diferena entre polticas pblicas strictosensu e o incentivo e/ou institucionalizao do ativismo judicial que seuprojeto representa. Judicirio no faz polticas pblicas. Ele atua apenascontingencialmente. Por isso a necessria diferena entre ativismo ejudicializao, como temos explicado de h muito. E no se faz welfare state agolpe de pena. Mormente utilizando princpios pelos quais se pode decidir dequalquer maneira. Incrvel como no nos livramos dos fantasmas dosocialismo processual do sculo XIX (redivivo mais de uma centena de anosdepois). E, o pior: em pleno Estado Democrtico de Direito.

    Recorre-se por fim, a um sbio que j andou literalmente em terrae brasilis, opadreAntnio Vieira, que to bem enxergou o perigo de um Poder do Estadoquerer se mais que os outros:

    (...) nenhum se contenta com crescer dentro da espcie: a andorinhaquer subir a guia; a rmora quer crescer a baleia; a formiga quer inchara elefante; (...) Desenganemo-nos que o crescer fora da prpria espcie,no aumento, monstruosidade; ao menos beno no [2].

    [1]Ao leitor mais curioso, sugerimos uma rpida busca dos seguintes nomes darede mundial, que so cientistas com estudos fortemente baseados em

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    pesquisas por suas equipes e publicados em excelentes peridicos, como aRevista Sade Pblica, Cadernos de Sade Coletiva, Cincia & Sade Coletiva:Ana Luiza Chieffi, Cludia Garcia Serpa, Daniel Wang, Eli Iola GurgelRodrigues, Felipe Ferr, Fernanda Loureiro de Vasconcelos Barbosa, Fco. deAssis Acrcio, Luciana Simas, Mriam Ventura, Octavio Ferraz, OrozimboHenrique Campos Neto, Rita de Cssia Barradas Barata, Vera Lcia Edais,Tatiana Arago Figueiredo.

    [2]VIEIRA, Antnio. Sermo da Terceira Dominga do Advento, in: ObrasCompletas do Padre Antnio Vieira, Sermes, v. : Porto I: Lello & IrmoEditores, 1993, pp. 265-266.

    Lenio Luiz Streck jurista, professor, doutor e ps-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

    Martonio Mont'Alverne Barreto Lima professor titular da Universidade deFortaleza (Unifor), doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt.

    Revista Consultor Jurdico, 10 de fevereiro de 2015, 6h52