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Adroaldo Cezar Araujo Gaya

AS CINCIAS DO DESPORTOINTRODUO AO ESTUDO DA EPISTEMOLOGIA E METODOLOGIA DA INVESTIGAO CIENTFICA REFERENCIADAS AO DESPORTO

Pela amizade, pela orientao acadmica, pela convivncia fraterna, pelo privilgio de ter estudado na Universidade do Porto e pela saudade que me acompanha deste outro lado do Atlntico, dedico este ensaio com um profundo sentimento de gratido aos meus amigos: Jorge Olmpio Bento Antnio Texeira Marques Adalberto Dias de Carvalho Alfredo Faria Jnior

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SUMRIO

AGRADECIMENTOS:.............................................................................................................................5 INTRODUO EPISTEMOLOGIA E METODOLOGIA DA INVESTIGAO CIENTFICA REFERENCIADAS AO DESPORTO.............................................................................7 APRESENTAO............................................................................................................................7 CAPTULO 1.............................................................................................................................................10 1- SOBRE O SIGNIFICADO DA EPISTEMOLOGIA.....................................................................10 2 - SOBRE O FENMENO DO CONHECIMENTO.......................................................................12 1.1- O CRITRIO DE AUTORIDADE............................................................................................................14 1.2- O CRITRIO DA EVIDNCIA OU DA CORRESPONDNCIA...........................................................................14 1.3- O CRITRIO DA UTILIDADE..............................................................................................................15 1.4- O CRITRIO DA INTERSUBJETIVIDADE.................................................................................................15 CAPTULO 2.............................................................................................................................................16 SOBRE A POSSIBILIDADE E A ORIGEM DO CONHECIMENTO.............................................16 2.1- Sobre a possibilidade do conhecimento....................................................................................17 2.2- Sobre a origem do conhecimento...............................................................................................27 CAPTULO 3.............................................................................................................................................36 SOBRE A DEMARCAO DO CONHECIMENTO CIENTFICO................................................36 Os postulados da cincia ou as regras do jogo cientfico.................................................................36 CAPTULO 4.............................................................................................................................................40 AS PRINCIPAIS CONCEPES METODOLGICAS DA INVESTIGAO CIENTFICA .......40 Introduo...........................................................................................................................................40 4.1- AS CONCEPES METODOLGICOS PREDOMINANTEMENTE NOMOTTICOS ....................................................43 4.2- CONCEPES METODOLGICAS PREDOMINANTEMENTE IDEOGRFICAS OU INTERPRETATIVAS...........................44 4.3- CONCEPES METODOLGICAS PREDOMINANTEMENTE DE INTERVENO SOCIAL..........................................46 CAPTULO 5.............................................................................................................................................47 PROCEDIMENTOS GERAIS DA INVESTIGAO CIENTFICA: ESCOLHA DO TEMA, ESPECIFICAO DOS OBJETIVOS , FORMULAO DO PROBLEMA , CONSTRUO DAS HIPTESES E A DEFINIO DAS VARIVEIS .............47 Introduo...........................................................................................................................................48 5.1- ESCOLHA DO TEMA .......................................................................................................................48 5.2- ESPECIFICAO DOS OBJETIVOS........................................................................................................50 5.3- FORMULAO DO PROBLEMA...........................................................................................................51 5.4- FORMULAO DA HIPTESES...........................................................................................................52 5.5- ESTUDO DAS VARIVEIS.................................................................................................................56 5.5.1- Definio das variveis...........................................................................................................56 5.5.2- Classificao das variveis.....................................................................................................57 5.5.3- Nveis de medio das variveis - Escalas de medida-..........................................................58 CAPTULO 6.............................................................................................................................................62 POPULAO E AMOSTRA.......................................................................................................................62 Introduo...........................................................................................................................................62 6.1- TIPOS DE AMOSTRA.......................................................................................................................62 6.1.1- Amostras probabilsticas ou aleatrias...................................................................................62 6.1.2- Amostras no probabilsticas..................................................................................................66 6.2- SOBRE O TAMANHO DA AMOSTRA.....................................................................................................69 6.3 TIPOS DE ERRO E NVEIS DE SIGNIFICNCIA..........................................................................................72

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....................................................................................................................................................................75 ....................................................................................................................................................................75 CAPTULO 7............................................................................................................................................76 MTODOS DE PROCEDIMENTO: DELINEAMENTOS DO TIPO EX POST FACTO.........................................................76 Introduo...........................................................................................................................................76 7.1- ESTUDOS DESCRITIVOS...................................................................................................................77 Principais planejamentos descritivos................................................................................................77 7.2- ESTUDOS CORRELACIONAIS.............................................................................................................79 7.2.1- Correlao linear.....................................................................................................................79 7.3. ESTUDOS PREDITIVOS.....................................................................................................................90 7.4- ESTUDOS COMPARATIVOS POR JUSTAPOSIO OU DIFERENCIAIS...............................................................97 ....................................................................................................................................................................99 ..................................................................................................................................................................100

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AGRADECIMENTOS:

A possibilidade de produzir um ensaio sobre as questes da produo do conhecimento no mbito das prticas desportivas, no uma tarefa que possa ser desenvolvida por um s sujeito. As idias aqui expressas se beneficiaram de muitos debates, de muitos estudos, de muitas aulas e seminrios. Portanto, fruto de uma coletividade que, embora no possa ser responsabilizada pelas posies assumidas, so parceiras no processo da construo destes conhecimentos. Agradeo inicialmente Universidade do Porto, na pessoa de seu Magnfico Reitor Alberto Amaral. Na Universidade do Porto foi onde tudo comeou. Os estudos de doutoramento nos permitiram um constante debate. A Faculdade de Cincias do Desporto e de Educao Fsica se constituiu num ambiente acadmico e interpessoal riqussimo. Portanto, quero agradecer aos seus professores, alunos e funcionrios com quem convivi entre 1991 a 1994. Todavia, um agradecimento especial a quem este livro dedicado: Jorge Bento, Antnio Marques e Adalberto Dias de Carvalho - incansveis companheiros no debate acadmico e amigos fraternos no bom vinho e no bem viver Portugal. Agradeo ao querido amigo Francisco Sobral Leal, coordenador do Curso de Cincias do Desporto e de Educao Fsica da Universidade de Coimbra, pelas crticas quase sempre contundentes, mas sempre ricas no argumento e no rigor. Hoje, quando desenvolvemos no Brasil um projeto de investigao aos moldes do FACDEX de Portugal, o Prof. Sobral foi incansvel nas orientaes preliminares ao nosso grupo de trabalho, tendo regressado Porto Alegre por duas oportunidades (at agora) durante as quais coordenou longas e produtivas sesses de estudo. Agradeo ao Rui Garcia, com quem estabeleci uma relao pessoal e acadmica fraterna nascida da certeza de que certos preconceitos (e at ironias), ento dominantes em certos gabinetes da faculdade sobre o modo como pensvamos a cincias do desporto, no abalaria as nossas convices. Agradeo a pacincia que tiveram comigo importantes intelectuais portugueses, que foram referncias tericas relevantes em meus estudos e com quem pude partilhar momentos de aprendizagem e que frutificaram numa estreita amizade. Prof. Adalberto Dias de Carvalho, Prof. Antnio Texeira Fernandes, Prof. Eugnio Santos, Prof. Manuel Patrcio, Prof. Boaventura Sousa Santos. Do lado de c do Atlntico, de onde escrevo essas linhas, os primeiros agradecimentos so para a Fabola, o Daniel e a Anelise. Meus companheiros de sempre, a quem devo o estmulo permanente de viver a vida sem acomodaes, buscando a cada dia novos desafios e novos caminhos. Agradeo com muita considerao e paixo os meus companheiros do PRODESP (Projeto Desporto), principalmente aqueles que se constituram em permanentes interlocutores, que diariamente levantam problemas, buscam solues e permitiram a elaborao de muitas das idias que esto neste ensaio Ao Edmilson Santos, Lisiane Cardoso, Jos Leandro Oliveira, Marcelo Cardoso, Marcelo Silva, Carlos

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Adelar Balbinotte e aos estudantes bolsistas dos Programas de Iniciao Cientfica da UFRGS, CNPq e FAPERS, que participam do nosso projeto. Uma palavra de gratido e de reconhecimento ao ento diretor e vice-diretor da Escola de Educao Fsica da UFRGS, Dr. Ricardo Pettersen e Prof. Antnio Rangel que, mesmo na difcil situao em que se encontram as Universidade Pblicas brasileiras, tem propiciado condies operacionais para que se mantenha acesa a chama da esperana no sentido de uma vida acadmica rigorosamente digna, onde o ensino, a pesquisa e a extenso se consubstanciam em prticas solidrias e de relevncia social. Ao Dr. Antnio Carlos Guimares coordenador do Laboratrio de Pesquisa do Exerccio, o reconhecimento de uma capacidade cientfica exuberante, que nos debates, nas crticas e sugestes no transige em momento algum do rigor da racionalidade e do mtodo. Ao Guimares nosso agradecimento tambm pelo esforo em nos proporcionar, dentro da escassez de recursos que ento dispunha, as condies de trabalho que temos no LAPEX. Aos meus alunos do Mestrado em Cincias do Movimento Humano da UFRGS e do Mestrado em Cincia do Desporto - Desporto de Crianas e Jovens- da UP, agradeo aos debates e a possibilidade de t-los como interlocutores nas questes que trato neste estudo. Ao Dr. Jos Vicente Tavares, como Pr-reitor adjunto de pesquisa da UFRGS, nossa gratido pela disponibilidade, sempre demostrada, em auxiliar o desenvolvimento de nosso projeto e pelas oportunidades que nos tem oferecido para participar de grupos de estudos interdisciplinares. Ao Dr. Alberto Reppold Filho, companheiro nos debates, no estudo e nas investigaes sobre a produo do conhecimento em educao fsica e cincias do desporto, bem como, irmo e parceiro em todas as andanas, digamos, "existenciais". As instituies de fomento pesquisa que tem nos auxiliado atravs de bolsas de pesquisa, CNPq., PROPESP-UFRGS e FAPERS e que permitem a execuo do Projeto Desporto e permitiram a elaborao deste trabalho. Dois agradecimentos especiais. Lisiane Torres e Cardoso, por quem passou os primeiros textos que foram impiedosamente criticados. Antnio Marques, que na poca da elaborao do livro, como presidente do Conselho Diretivo, nos concedeu a honra do convite para editar esse estudo no contexto das comemoraes dos 20 anos da Faculdade de Cincias do Desporto e de Educao Fsica da Universidade do Porto.

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INTRODUO EPISTEMOLOGIA E METODOLOGIA INVESTIGAO CIENTFICA REFERENCIADAS DESPORTO.

DA AO

APRESENTAO Nosso objetivo ao propor este trabalho o de estimular a reflexo sobre alguns aspetos referentes epistemologia e a metodologia da investigao e suas possveis implicaes na interpretao das formas da produo do conhecimento cientfico no mbito do desporto, formas de conhecimento normalmente reunidas sobre a denominao de cincias do desporto. Sob o ponto de vista terico, considerando a concepo multidisciplinar1 que configura as chamadas cincias do desporto2, ou seja, definindo-as com um agregado de disciplinas cientficas onde coabitam, convergente e divergentemente, objetivos e objetos que, de formas diversas e diferenciadas, assumem o desporto como campo de investigao cientfica (a biologia, a psicologia, a antropologia ,a sociologia, etc., e num espao mais definido de interveno a pedagogia do desporto e o treino desportivo), torna-se evidente que no temos a pretenso de apontar novas interpretaes sobre o fenmeno do conhecimento. O que pretendemos com este trabalho , to simplesmente, oportunizar aos professores de educao fsica e cientistas do desporto, cujos cursos de formao e ps graduao do pouca nfase a essas questes, um conhecimento aplicado capaz de estimular uma viso crtica sobre o conhecimento que utiliza e/ou que produz. De certa forma, o que nos propomos realizar neste ensaio de reviso a possibilidade de esboar uma espcie de manual introdutrio sobre a epistemologia e a metodologia da investigao referenciadas produo do conhecimento cientfico no mbito das prticas desportivas. Configura-se como o contedo desta monografia o curso que desenvolvemos em nossa atividade docente no programa de mestrado em Cincias do Movimento Humano da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) e, como professor visitante-convidado, no programa de mestrado em Cincia do Desporto - Desporto de Crianas e Jovens- da Universidade do Porto (Portugal). Vamos apresent-lo dividido em trs partes:

Entendemos por multidisciplinaridade quando para realizar uma investigao, se faz apelo ao contributo de diferentes disciplinas, tratando-se, contudo, de uma colaborao fortemente localizada e limitada quanto ao seu alcance: os interesses prprios de cada uma das disciplinas implicadas no sofrem qualquer alterao, conservando-se uma completa autonomia dos seus mtodos bem como de seus objetos particulares. (Cf. CARVALHO, A.D. Epistemologia das Cincias da Educao, Afrontamento, Porto, 1988). 2 Sobre o perfil epistemolgico das cincias do desporto, publicamos As Cincias do Desporto no Espao de Lngua Portuguesa. Uma Abordagem Epistemolgica. Universidade do Porto, Faculdade de Cincias do Desporto e de Educao Fsica. Porto, 1994.1

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Na primeira, mais especificamente voltada s questes epistemolgicas discorremos sobre o significado da epistemologia e, em seguida, em captulos sucessivos, referimos aspetos relacionados possibilidade e origem do conhecimento. Nestes captulos pretendemos especular, no mbito da filosofia do conhecimento, sobre as seguintes questes: O que o conhecimento? O que determina a validade de um determinado conhecimento? Pode o sujeito conhecer o objeto? Podemos conhecer o mundo real? Podemos captar o objeto em toda sua dimenso? Podemos desvelar as leis que regem o universo? Onde reside a origem do conhecimento? Na razo ou na experincia? Em relao essncia ou natureza do conhecimento: o sujeito determina o objeto ou o objeto determina o sujeito? Na segunda parte, que denominamos como processo geral da investigao cientfica, mais centrado na metodologia da investigao, primeiramente vamos discutir sobre os critrios de delimitao do conhecimento cientfico. Vamos discorrer sobre os principais pressupostos que caracterizam o conhecimento cientfico como um cdigo de linguagem e racionalidade que os distingue do conhecimento do senso comum, do conhecimento religioso ou mstico, do conhecimento filosfico. E mais, damos nfase s tcnicas e aos processos gerais da investigao enfatizando a delimitao dos objetivos, a formulao de problemas de investigao, o enunciado de hipteses, a definio das variveis e os principais mtodos de abordagem e procedimento. Na terceira parte, mais voltada especificamente para as questes referentes a epistemologia das cincias do desporto, vamos apresentar uma sntese do perfil das cincias do desporto no que se refere a suas tendncias epistemolgicas, metodolgicas e sobre o contedo do conhecimento produzido, assumindo como pressuposto que tais formas de saber poucas vezes tem sido capazes de responder as questes especficas de interesse dos intervenientes nas prticas desportivas. Finalmente, vamos especular no sentido da possibilidade epistemolgicamente justificada da delimitao da cincia do desporto enquanto disciplina cientfica e acadmica relativamente autnoma, consubstanciada por objeto terico formal quadro conceitual e linguagem prpria, metodologias adequadas, instituies de formao e de investigao relativamente autnoma e a configurao de uma comunidade cientfica com identidade definida. Enfim, desejamos que este trabalho, na perspectiva de um livro texto para cursos de metodologia da investigao cientfica no mbito da educao fsica e desportos, possa contribuir para o efetivo desenvolvimento de concepes epistemolgicas e metodolgicas mais adequadamente crticas. E , da mesma forma, esperamos que seja possvel avanar na construo de um quadro terico transdisciplinar3 capaz de esboar nitidamente os contornos da cincia do desporto enquanto uma disciplina relativamente autnoma.

Por transdisciplinaridade entende-se uma perspectiva de trabalho e de produo de conhecimento onde se alcana um mtodo comum que procura satisfazer prioritariamente as exigncias especficas de um novo objeto. Anuncia-se e realiza-se a emergncia de uma nova disciplina, de um nova cincia, sem que isso aniquile os seus diferenciveis matizes constituintes. Com efeito a idia de transdisciplinaridade traduz, de uma maneira exata, a heterogeneidade constitutiva dessa cincia em que a multiplicidade das suas vertentes se submete unidade de seu objeto. Este no mais um simples objeto ou sub-objeto comum, ele antes o objeto nico de uma nica cincia. (Cf. CARVALHO, A.D. Op.Cit.).3

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I PARTE SOBRE O SIGNIFICADO DA EPISTEMOLOGIA E O FENMENO DO CONHECIMENTO

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CAPTULO 1

1- SOBRE O SIGNIFICADO DA EPISTEMOLOGIA Epistemologia (episteme = conhecimento + logos = teoria, discurso) configurase como a disciplina que trata da possibilidade, da origem, da natureza, da forma, da validade do conhecimento4. Em outras palavras, a epistemologia enquanto saber globalmente considerado, pode ser entendida como o estudo metdico e reflexivo sobre as diversas formas de conhecimento (seja ele senso comum, teolgico, filosfico ou cientfico) de sua organizao, de sua formao, de seu desenvolvimento, de seu funcionamento e de seus produtos intelectuais5. Portanto, nesta ampla perspectiva, como referem AUROUX e WEIL 6, que tantas vezes surgem ambigidades na compreenso do termo que ora referido como teoria e filosofia do conhecimento, ora como teoria e filosofia da cincia. Do nosso ponto de vista a epistemologia, enquanto filosofia e teoria do conhecimento, abrange um espectro mais amplo tratando, para alm da cincia, das diversas formas do conhecimento e do saber7. Por outro lado, enquanto reduzida a formas de conhecimento cientfico, assumimos que so passveis de diferenciao os estudos sobre a filosofia da cincia e a teoria da cincia. Enquanto filosofia8 da cincia, a epistemologia trata dos condicionamentos lgicos e formais, das condies ticas e histricas, da estrutura global das formas do conhecimento. So, por exemplo, os estudos sobre analtica e dialtica que dividem, ao longo da histria, filsofos de todas as pocas9. Enquanto teoria da cincia, a epistemologia trata de temas ligados mais especificamente ao mbito do desenvolvimento de conhecimentos inerentes a cada disciplina cientfica. So por exemplo: no campo da psicologia os estudos de epistemologia gentica de Piaget, no campo da histria a epistemologia arqueolgica de Foucault, nas cincias sociais a epistemologia crtica de Habermas, na matemtica o teorema de Gdel, na biologia celular a auto-organizao de Atlan, etc. Jean PIAGET10, na condio auto-referenciada de epistemlogo em sua obra Lgica e Conhecimento Cientfico, sugere uma forma interessante sobre a compreenso das diversas expresses da epistemologia. Para este autor a epistemologia geral podeCf. SOUZA,D. Epistemologia das Cincias Sociais, Horizonte, Lisboa, s.d.,p.13. Cf. JAPIASSU, H. Introduo ao Pensamento Epistemolgico. 2ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977,p.24. 6 Dicionrio de Filosofia. Asa, Lisboa, 1991, p 106. 7 So vrios os textos que discorrem sobre as possveis diferenas entre a expresso saber e conhecimento. Todavia uma sntese bem claramente apresentada pode ser lida em Bombassaro, L.C. As Fronteiras da Epistemologia. Como se produz o conhecimento. 2ed. Rio de Janeiro, Vozes , 1992, p.19 a 25. 8 No sentido de situar historicamente as diversas concepes filosficas sobre a questo do conhecimento sugiro a leitura de Gaarder, J. O Mundo de Sofia. 6ed. Presena, Lisboa, 1995. 9 Importante trabalho sobre esse tema encontra-se em CIRNE LIMA, C. A Questo da Contradio. PUC-RS. Porto Alegre, 1992. 10 PIAGET, J. Lgica do Conhecimento Cientfico. Vol.1, Civilizao, Porto, 1980, p.46.4 5

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ser compreendida atravs de trs perspectivas: as epistemologias meta-cientficas, paracientficas e cientficas propriamente ditas. No primeiro caso trata-se das epistemologias que partem de uma reflexo sobre as cincias e tendem a prolong-la numa teoria geral do conhecimento. Situam-se neste espao pensadores como Plato, Aristteles, Descartes, Leibnitz, Hume, Kant, Hegel, Marx. Nas epistemologias para-cientficas, trata-se de, apoiando-se numa crtica das cincias, alcanar um modo de conhecimento distinto do conhecimento cientfico e, normalmente, configurando-se em oposio a este. Neste grupo esto entre outros: Bergson, Husserl, Wertheimer , Merlou-Ponty, Jaspers, Heideger. Finalmente, nas epistemologias cientficas, trata-se de permanecer no interior das cincias. Em tais casos, a crtica epistemolgica deixa de constituir uma simples reflexo sobre a cincia: ela torna-se ento instrumento do progresso cientfico enquanto organizao interior dos fundamentos, e sobre tudo enquanto elaborada exatamente pelos mesmos que utilizaro esses fundamentos e que sabem portanto de que que tm necessidade, em vez de os receberem de fora a ttulo de presentes generosos, mas pouco utilizveis e que por vezes estorvam11. Entre os autores inseridos nesta perspectiva epistemolgica esto por exemplo: Comte, Bachelard, Bertalanfy, Wittgenstein, Popper, Khun, Thom, Atlan, Morin12. No presente ensaio, sendo nosso propsito tratar de uma forma especfica de conhecimento - o conhecimento cientfico no mbito do desporto - adotamos como referncia operacional a definio de epistemologia especfica tal como expressa por Japiassu13. Deste modo, vamos nos dedicar a uma Epistemologia especfica, que conforme o autor citado, trata de estudar de modo prximo um objeto intelectualmente constitudo em unidade definida de saber, e de estud-lo de modo prximo, detalhado e tcnico mostrando sua organizao, seu funcionamento e as relaes com outras formas de saber, bem como outras disciplinas. Entendemos que nessa perspectiva, a de uma epistemologia especfica, que vamos encontrar por exemplo em Piaget e Colaboradores14 referncias a uma epistemologia da fsica, epistemologia da biologia, epistemologia das cincias humanas, epistemologia da lgica, epistemologia das matemticas, etc. Na rea da educao discute-se sobre uma epistemologia das cincias da educao15 e especificamente no mbito da educao fsica e desportos podemos perceber tentativas em esboar uma epistemologia

Ibidem, p.54 Possivelmente se possa afirmar que tanto Morin como, principalmente, Atlan, j possam ser situados na perspectiva meta-cientfica na medida em que suas obras tendem a discutir a temtica do conhecimento como um todo, para alm da cincia. Veja, por exemplo, Atlan, H. Tudo, No, Talvez Educao e Verdade. Instituto Piaget, Lisboa, s.d. e Morin, H et Kern, A.B. Terra Ptria. Instituto Piaget, Lisboa, s.d. 13 Op. Cit., p.24 14 Piaget, J (ed.) Lgica e conhecimento cientfico. Volumes 1 e 2. Porto, Civilizao, 1981. 15 Ver por exemplo Cravalho, A.D. Epistemologia das cincias da educao. Porto, Afrontamento, 1988.11 12

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da motricidade humana16 e, tal como pretendemos fazer valer, uma epistemologia da(s) cincia17(s) do desporto18.

2 - SOBRE O FENMENO DO CONHECIMENTO Falar sobre o conhecimento, enquanto objeto do prprio conhecimento, requer uma interpretao de seu significado que pode ser delineada a partir de vrios mtodos. Por exemplo: podemos nos referir a sua gnese no mbito da psicologia como fez Piaget em sua epistemologia gentica; atravs da anlise de sua estrutura lingstica como fazem os filsofos analticos tais como Ernst Tugendhat19; tendo em vista seus determinantes socioculturais como fazem os historiadores da cincia como Bachelard20, Khun21, ou sob o ponto de vista da neurobiologia como Antnio Damsio22 Neste curso, acompanhando a perspectiva de anlise de Johannes Hessan23 situamo-nos na possibilidade de uma descrio atravs de um processo de reflexo sobre aquilo que experenciamos ou que vivenciamos quando discorremos ou discutimos sobre o conhecimento. Este mtodo de inspirao fenomenolgica assume, de certa forma, uma perspectiva descritiva e se desenvolve na tentativa de superao de diversas subjetividades (do professor e seus alunos) atravs de uma sntese intersubjetiva construda no dilogo que , dessa forma, se constitui em requisito imprescindvel para o desenvolvimento de nosso programa. Como tal, como ponto de partida para nossa discusso, a primeira questo que propomos a seguinte: O que se considera como conhecimento? O que conhecer? O que o conhecimento? Vamos argumentar no sentido que o fenmeno do conhecimento pode ser expresso em seus principais aspetos da seguinte forma: O conhecimento representa a expresso/apreenso/construo mental e comunicao formal de um objeto24. No obstante, seja qual for a concepo sobre o conhecimento definida a partir dos diferentes termos acima referidos, sempre teremos como expresso do conhecimento uma relao entre, no mnimo, dois elementos: de um lado um sujeito cogniscente (queSrgio, M. Para uma epistemologia da motricidade humana. Lisboa, Compndium, 1987. Sobre epistemologia da cincia do desporto publicamos Das cincias do desporto cincia do desporto. Notas introdutrias para uma epistemologia da cincia do desporto. Revista Horizonte 11(63) 67-76, 1994. 18 Haag ,H. et all. Sport science in Germany: An interdisciplinary anthology. Berlim, Springer-Verlag, 1992. 19 Tugendhat,E. Lies introdutrias filosofia analtica da linguagem. Iju, Uniiju, 1992. 20 Bachelard, G. La formacin del espritu cientfico, Madrid, Ed. Madrid, 1974. 21 Khun,T. A estrutura das revolues cientficas. So Paulo, Perspectiva, 1975. 22 Damsio, A.R. O Erro de Descartes. Emoo, Razo e Crebro Humano. 15 ed. Europa-Amrica. Mem-Martins, 1995. 23 Cf. Teoria do conhecimento. Coimbra, Armnio Amado, 1987. 24 Referimo-nos simultaneamente aos termos expresso/ apreenso/contruo e comunicao formal, por constituirem critrios advindos de distintas correntes filosficas sobre o conhecimento, tais como o inatismo, o empirismo, o construtivismo e o apriorismo.16 17

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expressa, ou apreende, ou constri, ou comunica formalmente) e, de outro, um objeto cogniscvel (que expresso, ou apreendido, ou construdo, ou reconstrudo e comunicado pela linguagem formal)25. Nestes termos, numa primeira aproximao, poderamos dizer que o conhecimento pode ser expresso na relao entre um sujeito e um objeto (considerando que o prprio sujeito e sua comunidade podem se configurar no objeto do conhecimento). Todavia, a menos que tenhamos a convico que o conhecimento inato (inatismo), ou nos dada de fora por algum ente ou entidade superior (dogmatismo), devemos reconhecer que a constituio de qualquer expresso do conhecimento requer outras exigncias. Exigncias que se consubstanciam nas determinantes histricosociais, ou se preferirmos a episteme, percebida no sentido foucaultiano, como o cdigo cultural de uma poca26. Mas vejamos, atravs de um exemplo muito simples, como se processa esta relao sujeito-objeto-episteme em nosso cotidiano. Imaginemos a seguinte situao: algum nos vem descrever a bola de voleibol e, entre outras caractersticas, predica-a como de forma geomtrica oval. Nestas condies, certamente concluiramos que tal indivduo no CONHECE a bola de voleibol, no CONHECE a bola de rguebi ou, provavelmente, no CONHEA nem uma e nem outra. Diramos, de outra maneira, que tal afirmao no verdadeira, ou seja, no corresponde a verdade pois, na medida em que conhecemos pelo menos a bola de voleibol, sabemos que, em VERDADE, ela esfrica. Este simples exemplo suficiente para nos fazer perceber que o conhecimento para ser adequadamente compreendido, exige algo mais que a relao sujeito-objeto. Exige portanto, a necessidade de uma mediao ou de um critrio que determine, nesta relao, o que conhecimento vlido frente ao que um "conhecimento" no vlido (no conhecimento?). Esse critrio, em princpio, configura-se na concordncia entre o pensamento do sujeito e o "real" do objeto descrito, mediado por um determinado cdigo de compreenso (a episteme). Este critrio corresponde ao conceito epistemolgico de verdade ou validade (que passaremos a referir como verdade/validade). Verdade/validade de um enunciado, enquanto categoria epistemolgica, a (pretendida) concordncia intersubjetiva entre o contedo do pensamento expresso em linguagem formal e o objeto num determinado quadro de referncias. Todavia, devemos reconhecer que tal conceito de verdade/validade nos impe uma outra dificuldade. Se no vejamos: o que determina se h ou no a concordncia entre o pensamento e o objeto? Ou seja, em que constitui o critrio que define verdade/validade? Desta forma, agora j, necessitamos de uma outra categoria ou operador formal para definir o CONHECIMENTO - essas categorias ou operadores configuram-se como os CRITRIOS DE VERDADE. Os critrios de verdade/validade representam os meios para verificar a adequao ou falseamento de uma descrio (de um conhecimento). At aqui parece, estamos percorrendo um caminho sem fim, que expresso pela necessidade de dependurarmos um conceito noutro "ad infinitum". Entretanto, ao nossoRelevante a relao entre conhecimento e saber que hoje discutida em vrios autores como Garder, J; Damsio,A.; Atlan, H.; Morin, E. Obras referenciadas ao fim deste manual. 26 Cf. Foucault, M. As palavras e as coisas. Lisboa, Edies 70, s.d.25

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ver, este caminho na epistemologia superado por critrios mais ou menos arbitrrios 27, critrios que identificaremos como os critrios usuais de verdade/validade, sobre os quais passamos a discorrer brevemente.

1.1- O critrio de autoridade Como refere Pedro Demo, embora a autoridade no seja, por si mesma, argumento algum, no se pode desconhecer o fenmeno constante de que a evocao de certas autoridades desperta imensa respeitabilidade28. Podemos freqentemente observar a presena do critrio de autoridade no discurso cientfico e pedaggico no mbito das prticas desportivas quando o professor evoca constantemente certas autoridades. Por exemplo, um fisiologista do desporto que pretende demonstrar seu ponto de vista sobre a relevncia do treino aerbio valendo-se de citaes de autores diversos (Astrand, Pollock, Fox, Willmor, etc.) ou um filsofo do desporto que faz valer seu quadro epistemolgico, dando ao seu argumento a fora de determinadas autoridades (Kant, Hegel, Marx, Husserl, etc.). Ou seja, nestes casos, o professor deposita nos autores referenciados a fora do seu argumento. Em outras palavras, o professor usa a autoridade de outrem afirmando sua mensagem como vlida. Outra evidncia da presena do critrio da autoridade claramente expressa na relao treinador-atleta onde o primeiro, muitas vezes o todo-poderoso (a autoridade) determina (na maioria das vezes reproduz) a verdade. Verdade que se consubstancia nas tarefas a serem cumpridas (sem discusso) pelos atletas (que, por sua vez, reconhecem e legitimam o papel da autoridade ao treinador). Tambm no mbito do conhecimento cientfico se observa com freqncia a adoo do critrio de autoridade: quando um investigador ou professor (justificacionista), por exemplo, afirma que determinada tese est provada cientificamente e com isto pretende dar como definitiva a sua argumentao na convico que o conhecimento cientfico portador da verdade definitiva. Nota-se ainda, claramente, a presena do critrio de autoridade nas formas dogmticas do conhecimento, tais como o conhecimento religioso e poltico-ideolgico. 1.2- O critrio da evidncia ou da correspondncia O critrio de evidncia revela que so verdadeiros os juzos que assentam na presena ou realidade imediata do objeto pensado. Vejamos um exemplo: ao observarmos por microscopia as fibras musculares esquelticas dos membros inferiores de um maratonista e de um sedentrio, tornam-se patentes uma srie de diferenas estruturais e funcionais. Sendo possvel controlar as diversas variveis, de modo que a nica varivel interveniente na observao seja o treino desportivo, se torna evidente que ao treino desportivo corresponde as causas responsveis pelas alteraes morfofuncionais.

Arbitrrios no sentido de que aps a iluso positivista no se deva acreditar na possibilidade da delimitao de critrios absolutos e a-histricos. 28 Demo, P. Metodologia cientfica em cincias sociais. Sp Paulo, Atlas, 1989, p.41.27

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O critrio de evidncia ou correspondncia usual nas formas predominantemente empricas do conhecimento, ou seja, esto presentes no conhecimento cientfico e tecnolgico e no senso comum. No conhecimento cientfico e tecnolgico, o critrio de evidncia exige uma dupla correspondncia. Deve ser coerente na relao com os dados da percepo, ou em outras palavras, o conhecimento anunciado deve corresponder com aquilo que se observa realmente (o aumento do nmero de mitocndrias em nosso exemplo anterior) e, por outro lado, deve ser coerente na dinmica interna da comunicao ou discurso. Neste segundo caso, que conhecemos como a necessidade lgica formal do discurso, a validade representa a verdade do pensamento consigo mesmo. Esta exigncia define-se como o princpio da No-Contradio. O princpio da No-Contradio, tomado na formulao clssica que lhe foi dada por Aristteles no livro Gama da Metafsica, diz: impossvel predicar e no predicar o mesmo do mesmo modo sob o mesmo aspeto e ao mesmo tempo29. Ou seja no podemos simultaneamente afirmar das condies do tempo, por exemplo: agora chove- no chove. Porque a afirmao chove neste momento, por coerncia formal elimina a possibilidade do no chove neste mesmo momento. Portanto, como afirmamos acima, podemos inferir que nosso pensamento concorda com ele mesmo quando est livre de contradies. 1.3- O critrio da utilidade O critrio da utilidade, consiste na definio da verdade/validade a partir da finalidade prtica que assume o objeto descrito. Est presente nas concepes pragmticas do conhecimento onde o verdadeiro/vlido significa til, valioso, fomentador da vida. Est implcito no critrio de utilidade uma concepo especial de ser humano como um ser prtico, um ser de vontade e ao. O homem no essencialmente um ser terico ou pensante, seu conhecimento recebe o sentido e o valor de seu destino prtico. A sua verdade/validade consiste na congruncia dos pensamentos com os fins prticos do homem em que aqueles resultem teis e proveitosos para o comportamento prtico deste. Portanto, nesta perspectiva o conhecimento reconhecido enquanto tal, quando faz emergir formas de interveno no real concreto. 1.4- O critrio da intersubjetividade O critrio da intersubjetividade consiste na definio da verdade/validade enquanto consonncia com um padro aceito por uma determinada comunidade. A intersubjetividade uma espcie de consenso que impe as regras do jogo e faz com que se aceite ou no este ou aquele tipo de observao ou verificao no seio de uma comunidade cientfica30. Vejamos um exemplo: A medicina, ainda h menos de 70 anos, condenava o exerccio fsico como fator de risco para as doenas isqumicas do corao. Tal recomendao tinha como argumentoCirne-Lima, C.R.V. Sobre a contradio. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1993, ps. 55 e 56. Morin,E. O Mtodo IV. As idias: A sua natureza, vida, habitat e organizao. Mem-Martins, Europa-Amrica, 1991.29 30

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a evidncia analisada atravs do exame usual na poca (o raio X) que os coraes de cardiopatas, bem como os atletas treinados, apresentavam-se dilatados. Desta maneira, o exerccio deveria ser causador de anomalias cardacas. Haviam teorias cientficas que, baseadas nessa evidncia, explicam o fenmeno. vejamos: A distncia que o oxignio do sangue capilar deve cobrir para atingir a poro central de uma fibrila ser muito maior em um corao hipertrofiado. As fibrilas musculares alimentam-se atravs de sua superfcie mas consomem oxignio em proporo a seu volume. Como o volume das fibrilas cresce em proporo ao quadrado, medida que a fibrila crescer, sua capacidade de alimentao no acompanhar a solicitao metablica31. Portanto se o exerccio fsico faz crescer o volume das fibrilas, por conseguinte, ele indiretamente causador da insuficincia cardaca. Neste exemplo podemos perceber com clareza que, a partir de um conceito geral tido como consensual no mbito de uma determinada comunidade cientfica - o corao dilatado sintoma de insuficincia cardaca - conclui-se sobre os efeitos prejudiciais do treino desportivo. Como tal, embora o critrio de evidncia esteja presente quando da constatao por Raio X que o corao dos atletas eram dilatados tal como os coraes dos cardiopatas, tal constatao precedia de um conceito ou teoria aceita intersubjetivamente pela comunidade mdica de que corao dilatado representa insuficincia cardaca. Como veremos mais adiante, o critrio de intersubjetividade tem sido muito referido na epistemologia . especialmente evidente no sentido de pensamento coletivo ou capital intelectual em E. Durkheim32, de paradigma expresso por Tomas Khun33, de episteme em Foucault34, sujeito epistmico em Piaget35, ncleo duro dos programas de investigao em Lakatos36, temtica em Holton37, mundo vital em Habermas38, etc. No obstante, independente das concepes sobre o que representa conhecer ou o conhecimento, um conjunto de questes se impe. Por exemplo: possvel conhecer? Onde est a origem do conhecimento? O que determina o conhecimento? Portanto, ser partir destas interrogaes que iremos discorrer, nos prximos captulos, sobre as principais correntes epistemolgicas.

CAPTULO 2

SOBRE A POSSIBILIDADE E A ORIGEM DO CONHECIMENTO

Rigatto, M. O treinamento fsico: Premissas fisiolgicas. In Simpsio Nacional sobre Arterosclerose Coronariana, 2. So Paulo, 1973, ps. 264 a 266 e 275 a 277. 32 Cf. Durkheim, E. As Regras do Mtodo Sociologico. Lisboa, Presena, 1980. 33 Cf. Kuhn,T. A Estrutura das Revolues Cientficas. So Paulo, Perspectiva, 1979. 34 Cf. Foucault, M. As palavras e as coisas. Lisboa, Edies 70, sd. 35 Op.Cit. 36 Cf. Lakatos,I. Proofs and refutations. London, Cambridge University Press, 1976. 37 Cf. Holton,G. In. Carrilho, M.M. Epistemologia. Posies Crticas. Lisboa, Gulbenkian, 1991, p.241. 38 Cf. Siebeneichler,F.B. Jrgen Habermas. Razo Comunicativa e Emancipao. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, ps 117 e ss.31

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Vimos que o conhecimento representa a relao entre sujeito e objeto num quadro terico de referncias (episteme ou paradigma) determinado historicamente nas relaes socioculturais. Todavia, quando estudamos epistemologia configuram-se como contedos inerentes ao seu espao terico a tentativa de encontrar respostas para um conjunto de questes que, no obstante sua complexidade, definem as principais correntes do pensamento epistemolgico. Essa questes, podemos enquadr-las em dois nveis que identificamos como: sobre a possibilidade e sobre a origem do conhecimento.

2.1- Sobre a possibilidade do conhecimento Pode o sujeito conhecer o objeto? Podemos conhecer o mundo real? Podemos captar o objeto em toda sua dimenso? Podemos desvelar as leis que regem o Universo? Pode nossa conscincia refletir adequadamente a realidade objetiva? Pois so as diversas tentativas de solues a essas questes que vo delinear as principais correntes epistemolgicas sobre a possibilidade do conhecimento. 2.1.1- Dogmatismo (de doutrina fixada, dogma39): modo de pensamento que opera com conceitos e frmulas invariveis. Ou seja, no dogmatismo no faz sentido se discutir sobre a possibilidade do conhecimento, posto que em sua lgica, evidente que o sujeito apreende o objeto que lhe dado diretamente pela percepo. Portanto, desta perspectiva, no dogmatismo evidente que o conhecimento no percebido como uma relao sujeito-objeto na medida em que tanto o objeto como a percepo so dados de maneira absoluta na corporeidade. Confunde-se40 pois, percepo e pensamento no ato de conhecer e nesta confuso, torna-se evidente que o conhecimento para o dogmatismo no considerado como uma questo prpria de conhecimento. O dogmatismo a posio mais antiga na filosofia do conhecimento, est presente nos pr-socrticos41, pensadores que voltados totalmente para o ser e a natureza, no percebiam, como foi dito acima, que o conhecimento , ele prprio, um problema de conhecimento. Na modernidade o dogmatismo assume uma perspectiva diferenciada, ou seja, assume fronteiras com limites mais reduzidos. Refere-se a campos determinados de saber, onde, por conseguinte se pode falar em dogmatismo tico, religioso, poltico, etc. Neste quadro, os conceitos invariveis de operao que caracterizam o dogmatismo, limitam-se a reas especficas. Em Kant podemos observar, por exemplo, que o dogmatismo representa o proceder dogmtico da razo pura sem a crtica de seu prprio poder. Assim se refere Kant aos sistemas metafsicos de Descartes, Leibnitz, criticando nesses pensadores o uso da metafsica sem antes ter examinado a capacidade da razo humana para tal uso. Nas publicaes no mbito do desporto, principalmente nas reas scio-antropolgicas, muitas vezes observam-se posies dogmticas que se expressam na imposioCf. Hessen,J. Op. Cit., p.37. Confunde-se aqu tem o significado explcito de con-fundir =fundir juntos. Portanto aspectos que esto juntos e no, como no senso comum tantas vezes percebido, no sentido de excluso mtua. 41 Filsofos jnios da natureza, os eleticos, Herclito, os pitagricos. Cf. Hessen, J. Op.Cit.,p 39.39 40

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de determinados autores ou de determinadas correntes de pensamento, sem permitir qualquer espao de reflexo sobre o seu uso. So estudos que normalmente se caracterizam por um conjunto de citaes de pequenos insertos de importantes filsofos, muitas vezes em contexto imprprio, com o intuito de justificar determinados pontos de vista contra ou a favor do desporto42. 2.1.2- Ceticismo Enquanto o dogmatismo considera a possibilidade do conhecimento como algo compreensvel por si mesmo, no ceticismo esta possibilidade negada. Para o ceticismo impossvel o conhecimento no sentido de uma apreenso real do objeto portanto, devemos nos abster de formular juzos. Se por um lado o dogmatismo, de certa forma, desconhece o sujeito, o ceticismo, por sua vez, desconhece a significao do objeto na medida em que sua ateno dirige-se inteiramente aos fatores subjetivos do conhecimento humano. Por outro lado, ao dirigir-se inteiramente aos fatores subjetivos do conhecimento humano, torna-se evidente que o ceticismo no aceita a possibilidade de uma verdade universal, e, por conseqncia, ao no aceitar a possibilidade de uma universalidade no pode, na realidade, configurar-se como conhecimento. Portanto, para o ceticismo, no h a possibilidade do conhecimento. Por outro lado, formalmente, o ceticismo radical ou absoluto configura-se numa contradio performativa. Isto porque ao afirmar que no pode haver conhecimento, cria ele prprio um conhecimento (o conhecimento de que no pode haver conhecimento). Ou seja, negar o conhecimento uma afirmao auto-referente que explode como contradio (...) Se tal proposio verdadeira, (no existe a possibilidade do conhecimento) ento ela falsa (pois se no h a possibilidade do conhecimento a prpria proposio de que no h a possibilidade do conhecimento sendo verdadeira desfaz-se na contradio, portanto: ela sempre falsa43. Todavia, tal como ocorre com o dogmatismo, para alm do ceticismo absoluto ou radical pode-se referir ao ceticismo como negao da existncia de determinadas formas especficas do conhecimento. Esse ceticismo localizado surge por exemplo em relao tica (ceticismo tico), em relao metafsica (ceticismo metafsico), em relao religio (ceticismo religioso ou agnosticismo). Podemos ainda nos referir ao cetismo enquanto mtodo do conhecimento. nessa perspectiva que vamos encontrar o ceticismo metdico de Descartes e Kant e o ceticismo sistemtico em Popper. Tais pensadores fazem uso do ceticismo na forma da dvida sistemtica, realando a necessidade da permanente crtica sobre a produo do conhecimento. assim, por exemplo, que Popper44 delimita o conhecimento cientfico como uma forma de conhecimento passvel de ver demonstrada, por observao e deduo, a sua falibilidade.

Uma anlise da produo cientfica nas cincias do desporto nos pases de lngua portuguesa est publicada em Gaya, A.C.A. As cincias do desporto nos pases de lngua portuguesa. Uma abordagem epistemolgica. Porto, Universidade do Porto, 1994. 43 Cf. Cirne-Lima, C. R. V. Op. Cit., p. 114. 44 Popper, K. A demarcao entre cincia e metafsica. In. Carrilho, M. M. Epistemologia. Posies crticas. Lisboa, Gulbenkian, 1991.42

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Uma forma especial de ceticismo em nossa Contemporaneidade, est implcito em algumas correntes do pensamento ps-moderno45. Ao abdicar da possibilidade da unidade da razo e das metanarrativas, em prol de sua fragmentao, cai num relativismo absoluto que, por sua vez, permite a emergncia de um "vale tudo", destruindo, consequentemente, os quadros referencias sobre valores, atitudes e o sobre o prprio conhecimento. Conforme Cirne Lima, essa fragmentao da razo, e como resultado, a decadncia do pensamento sistemtico comea na filosofia por Nietzsche e Kierkegaard, passa pela destruio da metafsica ocidental proposta por Heidegger e desemboca nos plrimos jogos de linguagem de Wittgenstein46. Ouve-se hoje entre os que fazem Filosofia quase s o louvor ao particular, mudana de paradigmas, pluralidade de subsistemas; a unidade das mltiplas formas de racionalidade sempre posta em segundo plano47. Cirne-Lima, em seu livro Sobre a contradio, refere um exemplo do ceticismo ps-moderno nas palavras de Grgias que assim se expressa sobre o absoluto; (...) ns podemos reformular suas teses para caracterizar as perplexidades filosficas de nossos dias: no h sentido nenhum no mundo e na Histria; e se, apesar de tudo, houvesse um tal sentido, no poderamos conhec-lo; e mesmo que conhecssemos, no poderamos sobre ele falar48. 2.1.3- Ecletismo O dogmatismo e o ceticismo, enquanto posies extremas no espectro das discusses sobre a possibilidade do conhecimento pela radicalidade que assumem engendram, eles prprios, posies intermedirias que pretendem concili-los. Entre tais posturas, identificadas por Sousa49 em seu conjunto como eclticas, situam-se o subjetivismo e o relativismo para os quais no h uma verdade universalmente vlida; o objetivismo e o criticismo que crem na possibilidade de uma verdade universalmente vlida, sendo, todavia, que o segundo no o faz sem antes examinar todas as afirmaes da razo humana; e o pragmatismo que substitui o conceito de verdade enquanto concordncia entre pensamento e objeto, em troca do critrio de utilidade ou da prtica utilitria que tal conhecimento possa engendrar. Vejamos suas principais caractersticas.2.1.3.1-Subjetivismo

No subjetivismo, h um limite para o qual o conhecimento considerado vlido, esse limite o prprio sujeito, sujeito que conhece e julga. Ou seja, o homem Pensadores como Baudrillard e Maffesoli que referenciados por Boaventura Sousa Santos como psmodernos reconfortados (...)pensam que as crises das grandes teorias traz consigo a insensibilidade em relao questo social e a impossibilidade de pensar o futuro e na emancipao. (Jornal Zero Hora, Caderno de cultura. O ps-moderno inquieto pede prudncia. Entrevista com Boaventura Souza Santos. 25 de maro de 1995 ,2 caderno ,p.7.) Ver tambm sobre o tema outras obras do autor referenciado, pela ordem : Um Discurso sobre o Mtodo, 5 ed. Porto, Afrontamento, 1991; Introduo a uma Cincia Ps-moderna, Porto, Afrontamento, 1989.; Pela Mo de Alice. Porto, Afrontamento, 3 ed., 1994. 46 Cf. Cirne-Lima, C. R. V. Op. Cit., p.49 47 Habermas, J. apud Cirne Lima, Ibidem, p.49. 48 Idem, Ibidem, p.51. 49 Souza, D. Op. Cit., p.2.45

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a medida das coisas, portanto no haver uma verdade universalmente vlida. Se qualquer de ns julga, por exemplo que 2 x 2 = 4, este juzo s verdadeiro para o prprio (...); para os outros pode ser falso50. Este subjetivismo coloca o mundo das idias e o conjunto dos princpios do conhecimento no sujeito. Tal sujeito apresenta-se como o ponto de que depende, por assim dizer a verdade do conhecimento humano51. Todavia, devemos considerar, como j o fizemos anteriormente quando discorremos sobre o ceticismo, que na realidade formal o subjetivismo se transforma em ceticismo, pois se o conhecimento tem validade limitada somente ao sujeito cogniscente, por conseqncia nenhum conhecimento poder ser vlido para mais do que um sujeito. Este pressuposto impe ao conceito de verdade/validade uma situao de tal forma anrquica, que se torna impossvel conceb-la, e por conseqncia, por esse critrio tudo pode ser verdade e, portanto, tudo (que neste caso o mesmo que nada) conhecimento. Situam-se nesta corrente de pensamento, embora suas especificidades, os pensadores sofistas, Spengler, Husserl, Heideger. Ao observarmos as publicaes no espao das Cincias do Desporto, podemos verificar um aumento significativo nos ltimos anos de trabalhos especulativos de cunho subjetivista. Embora, um conjunto relativamente numeroso de trabalhos cujo o rigor terico e metodolgico muito precrio, verificamos que tal subjetivismo ocorre com freqncia. Todavia, devemos salientar, que curiosamente muitos desses ensaios, cujas teses e argumentaes so frutos de idealizaes solitrias de autores ideologicamente comprometidos apenas com sua subjetividade, portanto, escritos sem qualquer critrio de cientificidade (ou validade cientfica), distantes das evidncias empricas e, inclusive, freqentemente carentes de coerncia lgica, tantas vezes pretendem se identificar no mbito do materialismo histrico e dialtico. Outros autores, identificados como de tendncia existencialista, tantas vezes, se deixam seduzir por conceitos metafsicos de corporeidade, de ludicidade e, desta forma, to distantes das crianas e jovens sobre os quais escrevem, prope uma nova educao fsica ou um novo desporto: sem regras, sem competio, sem contedos formais, sem diretividade e at mesmo, uma educao fsica terica necessariamente sem movimentos corporais, o que convenhamos atinge as raias do pleno absurdo.

2.1.3.2- Relativismo

Tal como no subjetivismo, para o relativismo h um limite para o qual o conhecimento considerado vlido. Todavia, enquanto no primeiro caso o sujeito a referncia limite, para o segundo, o relativismo, so os fatores externos ao sujeito que determinam a validade do conhecimento. Em outras palavras, para o relativismo no h qualquer verdade definitiva ou absoluta ou universalmente vlida; toda a verdade relativa e depende de fatores externos ao sujeito. Esses fatores externos podem ser representados pela influncia do meio cultural, do esprito do tempo ou momento histrico, ou mesmo dentro dos cdigos de linguagem e racionalidade de determinadas comunidades (comunidade cientfica ou comunidade religiosa, por exemplo).50 51

Hessen, J. Op. Cit., p. 46. Idem, ibidem, p. 91.

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Oswald Spengler, expressa os princpios do relativismo em sua obra Decadncia do Ocidente. S h verdades em relao a uma humanidade determinada52. O crculo de validade das verdades coincide com o crculo cultural e temporal do qual procedem os seus defensores. As verdades filosficas, matemticas e das cincias naturais s so vlidas dentro do crculo cultural a que pertencem. No h uma filosofia, nem uma matemtica, nem uma fsica universalmente vlidas, mas uma filosofia fustica e uma filosofia de apolneo, uma matemtica fustica e uma matemtica apolnea, etc. 53. Em nossa Contemporaneidade, considerando a to anunciada crise do paradigma da modernidade, o relativismo, embora menos radical que o de Spengler, tem sido retomado com muito vigor. Os jogos de linguagem de Winnicott e Wittgenstein, as configuraes de Norbert Elias tem se constitudo em idias muito bem aceitas por cientistas e filsofos das mais diversas matizes disciplinares da ps-modernidade que desacreditam do absolutismo das meta regras. Aceitar jogar o jogo de diversos sistemas interpretativos diferentes, cientficos, filosficos, msticos, artsticos, tendo o cuidado de no misturar as regras -tal seria a atitude correta a tomar nos caminhos do conhecimento para aqueles que pretendem, simultaneamente, obedecer a uma preocupao com o rigor e com a racionalidade e no fechar vias que abriram, cada uma de per si, formas diferentes e especficas de racionalidade54. Tal citao retirada de Henri Atlan, traduz-se na perspectiva superadora do pensamento positivista que pretendia ver na racionalidade cientfica a nica e verdadeira forma de racionalidade. E mais do que isto, Atlan, entre outros55, entende que so diversas as formas de racionalidade, o discurso mstico, filosfico e cientfico se consubstanciam em cdigos de linguagem que atuam em freqncias distintas, com regras distintas, todas elas com suas razes, legtimas ainda que diversas. No obstante, o que, segundo esta corrente, torna-se ilegtimo a unificao de todas essas formas de racionalidade numa expresso de conhecimento nico. Afirmamos que com razo que distinguimos os objetos e os mtodos das cincias da natureza e das cincias do homem e tambm os das tradies msticas e mticas, onde aprendemos a reconhecer a possibilidade de uma outra racionalidade. E que sem razo alguns tentam unificar o todo na sntese de um conhecimento inicitico, onde seria revelada uma Realidade ltima, eterna e ubiquitria 56. Esta anlise de Atlan, que conduz evidentemente ao relativismo do conhecimento, no pode ser confundida com um niilismo ou com um confusionismo, cujo o lema ser "vale tudo". Como afirma este autor, bem pelo contrrio, o rigor das regras de interpretao impe-se tanto mais, e torna-se tanto mais possvel de alcanar, quanto maior for o seu reconhecimento como tal, e, consequentemente, quanto mais elas permitem circunscrever os seus domnios de aplicao legtima. Demarcar o relativismo no mbito dos saberes e conhecimentos sobre as prticas desportivas tarefa simples. A prpria multidisciplinaridade das cincias doCf. Hessen, J. Op Cit, p. 48. Idem, ibidem, p. 48. 54 Atlan, H. Com razo ou sem ela. Intercrtica da cincia e do mito. Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p.233. 55 Ver nesta perspectiva a excelente obra do filsofo portugus Carrilho,M.M. Jogos de Racionalidade. Edies Asa, Porto, 1993. 56 Atlan, H. Op. Cit. p.10.52 53

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desporto, como evidenciaremos adiante, no que se refere aos limites do conhecimento cientfico so evidentes. Ao considerarmos, por exemplo, os discursos sobre a capacidade de rendimento desportivo vamos perceber que a biologia, a psicologia, a pedagogia, o treino desportivo discorrem sobre este campo de investigao atravs de diferentes objetos tericos formais. So discursos claramente diferenciados, elaborados a partir de metodologias distintas, linguagem especficas que tantas vezes no so conciliveis. Uma clara evidncia sobre a dificuldade de perceber estas diferenas se consubstancia no campo da educao fsica, onde tantas vezes se configura um conflito entre investigadores da rea biolgica e das cincias sociais, ambos sem perceberem que defendem posies reducionistas na medida que pretendem possvel descrever toda a dimenso plural do desporto exclusivamente a partir de seu quadro terico disciplinar. Tantas vezes no percebem esses investigadores que as descries sobre o desporto da biologia tem um conjunto de regras prprias que as diferenciam relativamente ao seu objeto de estudo cientfico, seja da psicologia, da sociologia, da pedagogia, etc., e mais, e que nenhuma delas poder sozinha explicitar toda a complexidade das prticas desportivas. Da mesma forma poderamos demarcar as diferenas entre os discursos sobre as prticas desportivas expressas no cdigo de leitura da filosofia, da razo potica, do senso comum ou do conhecimento religioso. No se pode negar a racionalidade inerente a cada uma destas formas de conhecimento, o que se torna evidente a necessidade de relativizar cada uma delas no mbito de suas regras, ou melhor, interpret-las respeitando as regras de seus distintos jogos de linguagem e de racionalidade. A desconsiderao das regras de linguagem e de racionalidade das diversas formas de conhecimento tem proporcionado em muitos estudantes e pesquisadores jovens, uma evidente confuso terica e metodolgica. Tantas vezes inspirados por concepes holsticas, na maioria das vezes sem a clara e rigorosa compreenso do que se trata, outras vezes, mesmo sem condies tericas (por exemplo, teorizando sobre a teoria das catstrofes sem perceber absolutamente nada de sua origem matemtica) projetam-se investigaes que na perspectiva da descrio das totalidades, no passam de discursos especulativos, repetitivos, cansativos, e, o que lamentvel, sem qualquer rigor. So discursos que, se por um lado pretendem esboar as complexas relaes do todo, por outro, seu produto intelectual no vai alm de um discurso confuso, sem rigor e, quase sempre, de uma superficialidade evidente e constrangedora. So teses, por exemplo (principalmente na rea da aprendizagem e desenvolvimento motor), que auto-classificam-se como modelos emergentes da teoria dos sistemas dinmicos que, todavia, se desenvolvem com o uso de modelos matemticos tradicionais. So dissertaes (na rea da psicologia, antropologia, e filosofia) e que, contraditoriamente com os objetivos anunciados, pretendem uma totalidade do ser humano (o holismo), mas que normalmente quando referentes s atividades corporais, servem para minimizar a relevncia de aes tais como o desporto, a ginstica , a competio, o rendimento corporal, centrando-se em categorias que tantas vezes nada mais representam que um discurso de pregao ideolgica, poltica, ou mstica. Todavia, diga-se de passagem, este fenmeno que no exclusivo da educao fsica e das cincias do desporto, estando evidente em reas como a educao, psicologia, administrao de recursos humanos, enfermagem, etc., tem o mrito de, pelo menos, desmitificar (embora corra o risco de criar outro mito) o absolutismo da

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racionalidade cientfica pretendido pelo paradigma da modernidade expresso na filosofia positivista e possibilitar, desde que satisfeita as exigncias de rigor e coerncia, a relativizao inerente s diferenas no discurso, na linguagem e na racionalidade que se expressam nas diferentes formas de conhecimento.2.1.3.3- Objetivismo

Diferentemente do subjetivismo e do relativismo que no apontam para uma verdade universalmente vlida, o objetivismo confere esta possibilidade ao real concreto que se expressa em nossa percepo. Para o objetivismo, o conhecimento a apreenso do real concreto, ou seja o conhecimento existe no objeto - portanto para alm do sujeito -. Sujeito que, por sua vez, sendo capaz de apreender o real do objeto, justifica a possibilidade da consolidao de uma verdade universalmente vlida. Para o objetivismo, o objeto o elemento decisivo na relao sujeito-objeto como expresso do conhecimento. Portanto, o objeto que detm o conhecimento que poder ser apreendido pelo sujeito. Assim sendo, podemos afirmar que o sujeito, de certo modo, toma sobre si as propriedades do objeto reproduzindo-as. O conhecimento como se fosse uma fotografia da realidade. nisto que reside justamente a idia central do objetivismo. Segundo ele, os objetos so algo dado, algo que representa uma estrutura totalmente definida, estrutura que reconstruda, digamos assim, pela conscincia cognoscente57. Para o objetivismo, o homem nasce como uma tbua rasa (ou um balde vazio na expresso de Popper) onde atravs da experincia sero gravadas em forma de conhecimento os dados do real concreto. Embora a concepo objetivista possa ser encontrada em filsofos como Hume e Locke, Johannes Hessen58 refere Plato como o primeiro filsofo a defender o objetivismo. A sua teoria das idias seria a primeira formulao clssica da noo fundamental do objetivismo. As idias so, segundo Plato, realidades objetivas. Formam uma ordem substantiva, um reino objetivo. O mundo sensvel tem em frente o suprasensvel. E assim como descobrimos os objetos do primeiro na intuio sensvel na percepo, descobrimos os objetos do segundo numa intuio no sensvel: a intuio das idias 59. Tratando-se do conhecimento produzido nas cincias do desporto, a concepo objetivista se expressa claramente no modelo de investigao de cunho empirista que se limita a coletar e apresentar dados, sem qualquer exigncia de interpretao ou valorao dos fenmenos investigados. Esses modelos de pesquisa, que em outro lugar caracterizei como empirismo ativista60, partem do princpio que sendo o conhecimento um decalque do real, basta "fotograf-lo" e, como tal, exercer qualquer juzo de valor sobre essa realidade j se torna uma questo subjetiva que, por conseguinte, j no se pode considerar como um conhecimento universalmente vlido.Hessen,J. Op Cit., p.88 a 89. Idem, ibidem, p.89. 59 Idem, ibidem, p.89. 60 Gaya, A.C.A. Por uma cincia do desporto para alm do empirismo ativista e do intelectualismo militante. In Bento,J.O. e Marques, A.T. As Cincias do Desporto a Cultura e o Homem. Universidade do Porto, Porto, 1993.57 58

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Grande parte da investigao cientfica em cincias do desporto nos anos 70 e 80, principalmente na rea biolgica (cineantropometria e fisiologia), se apresentavam com essas caractersticas. Trabalhos que insistentemente se limitavam coleta de dados (porcentagem de gordura, medio das principais capacidades condicionais e coordenativas, comportamento da variveis fisiolgicas), que acabavam por descrever determinados fenmenos porm, sem resultar, propriamente em teorias que fizessem avanar o quadro conceitual das cincias do desporto61.

2.1.3.4- Pragmatismo

O pragmatismo, assim como o ceticismo, abandona o conceito de verdade considerado como a concordncia entre o pensamento e o real. Todavia, o pragmatismo no se detm na pura e simples negao da possibilidade do conhecimento e da verdade como o ceticismo, mas prope substituir o conceito, ou melhor, o critrio de verdade. Portanto, para o pragmatismo ser a prtica utilitria o critrio definidor do conceito de verdade. O pragmatismo modifica desta forma o conceito de verdade, porque parte de uma determinada concepo do ser humano. Segundo ele, o homem no essencialmente um ser terico ou pensante, mas sim um ser prtico e de ao. O seu intelecto est integralmente ao servio da sua vontade e da sua ao. O intelecto dado ao homem, no para investigar e conhecer a verdade, mas sim para poder orientar-se na realidade62. Em outras palavras, para o pragmatismo, a verdade consiste na congruncia dos pensamentos com os fins prticos do homem, em que eles resultem teis e proveitosos para a resoluo de seus problemas prticos. O pragmatismo, concepo filosfica de origem norte-americana que tem em Peirce, James e Dewey seu principais sistematizadores, consubstancia-se numa corrente de pensamento claramente antagnica ao relativismo das representaes ou das crenas. O anti-representacionismo - o abandono de uma verso contemplativa (spector) do conhecimento e o conseqente abandono da aparncia\realidade constitui-se o argumento dos principais defensores do pragmatismo63. As crenas so verdadeiras ou falsas, mas no representam nada. bom vermo-nos livres de representaes e, com elas, da teoria da verdade como correspondncia, porque o pensar que h representaes que engendra o relativismo64. (...) Porque no pensamos em descobrir como as coisas so ou descobrir a verdade como um projeto inequivocamente definido(...)65. Numa perspectiva recente, apresentada pelo eminente socilogo portugus Boaventura Sousa Santos da Universidade de Coimbra, o pragmatismo discutido dentro de uma epistemologia denominada por seu autor de ps-moderna 66. Inserido na teoria da dupla ruptura epistemolgica como paradigma emergente da ps-modernidade, Sousa Santos, aps demarcar os avanos da racionalidade cientfica expressos naVer tambm sobre o tema Gaya,A.C.A. As Cincias do Desporto nos Pases de Lngua Portuguesa. Uma abordagem epistemolgica. Universidade do Porto, Porto, 1994. 62 Hessen, J. Op. Cit., p. 51. 63 Murphy,J. O Pragmatismo de Peirce a Davidson. Porto, Edies Asa, 1993, p. 9. 64 Idem, ibidem, p.9. 65 Idem, ibidem, p. 11. 66 Santos, B.S. Introduo a uma Cincia Ps-moderna. Op.Cit.61

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ruptura bachelardiana (1 ruptura) e de mostrar as crises contemporneas deste mesmo paradigma (numa viso Khuniana), avana para a necessidade da concepo da segunda ruptura epistemolgica. A segunda ruptura representaria a necessidade do conhecimento cientfico romper com seus limites estreitos de uma racionalidade mistificadora de verdade absoluta, como pretendida pelo positivismo clssico, e reconhecer o senso comum como uma outra forma de racionalidade prtica que deve interagir com o conhecimento cientfico. Tal como sucede com os obstculos epistemolgicos, a dupla ruptura no significa que a segunda ruptura neutralize a primeira e que, assim, se regresse ao status quo ante, situao anterior primeira ruptura. Se esse fosse o caso regressar-se-ia ao senso comum e todo o trabalho epistemolgico seria em vo. Pelo contrrio, a dupla ruptura procede de um trabalho de transformao tanto do senso comum como da cincia. Enquanto a primeira ruptura imprescindvel para constituir a cincia, mas deixa o senso comum tal como estava antes dela, a segunda ruptura transforma o senso comum com base na cincia constituda e no mesmo processo transforma a cincia. Com essa dupla transformao pretende-se um senso comum esclarecido e uma cincia prudente, ou melhor, uma nova configurao do saber que se aproxima a phronesis aristotlica, ou seja, um saber prtico que d sentido e orientao existncia e cria o hbito de decidir bem (...)67. No tocante s cincias do desporto, uma das principais crticas que sistematicamente temos vindo a referir se consubstancia na clara distncia entre os conhecimentos produzidos pela investigao cientfica e as necessidades eminentes dos intervenientes nas prticas desportivas. Como sugerimos noutro ensaio68, ao analisarmos cuidadosamente o conhecimento produzido nas cincias do desporto, percebemos que ele se configura, em grande parte, numa prtica terica, ou seja, constitui-se num sistema mais ou menos autnomo que se desenvolve a partir de abstraes intelectualistas sobre o desporto que no levam em considerao a realidade concreta onde essas prticas realmente decorrem. Tratam de um desporto abstrato, que consubstancia uma prtica terica (ou teortica) que, para alm disso autofgica na medida que se alimenta e sobrevive a partir de si prpria. a partir dessa realidade e principalmente, por no concordarmos com ela que defendemos o pragmatismo proposto por Sousa Santos na perspectiva da demarcao de uma cincia do desporto enquanto disciplina autnoma tendo como eixo condutor a segunda ruptura epistemolgica. Com esta concepo pretendemos, sem perder o rigor inerente ao processo de produo do conhecimento cientfico, constituir um conhecimento prtico, pragmtico, que poder se constituir em teorias capazes de apontar solues para os problemas concretos advindos das prticas desportivas e de seus diretos intervenientes: os professores, treinadores e demais agentes desportivos. Atingir tais finalidades requerem alguns postulado: Ouvir o discurso cotidiano dos intervenientes das prticas desportivas (de professores, treinadores, atletas etc., claramente expressos na racionalidade imediata do senso comum); sistematizar seus discursos a nvel de teorias cientficas (1 ruptura) e devolv-lo como senso comum aperfeioado (2 ruptura - na forma de um discurso articulado distinto da linguagem tcnica da cincia, mas com rigor e capacidade de proporcionar solues tericas para problemas prticos).67 68

Idem, ibidem, p. 45. Gaya, A.C.A. Por uma cincia do desporto... Op.Cit.,p. 85.

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Em outras palavras isto representa, como afirma Sousa Santos69, trs nveis de orientao. O primeiro refere-se ao desnivelamento entre os discursos cientfico e do senso comum. O segundo, progressivamente superar a dicotomia contemplao/ao. O terceiro constitui-se na busca de um novo equilbrio entre adaptao e criatividade. Ou seja, em outras palavras isto significa que os conhecimentos produzidos pela cincia possam ser expressos em linguagem acessvel e que possam incentivar a criatividade na ao de transformar este prprio conhecimento ao invs de apenas exigir a adaptao dos sujeitos a seus pressupostos normativos.2.1.3.5- Criticismo.

O criticismo representa uma corrente de pensamento que, pode-se dizer, no dogmtico e nem ctico, mas sim reflexivo e crtico. O criticismo partilha com o dogmatismo a confiana fundamental na razo humana. O criticismo est convencido de que possvel o conhecimento, de que h uma verdade, Mas enquanto que esta confiana leva o dogmatismo a aceitar despreocupadamente, por assim dizer, todas as afirmaes da razo humana e a no reconhecer os limites ao poder do conhecimento humano, o criticismo, neste caso mais prximo ao ceticismo, junta confiana no conhecimento humano, em geral, a desconfiana perante todo o conhecimento determinado70. O criticismo tem por princpio submeter ao exame todas as afirmaes da razo -portanto, configura-se numa concepo de caracterstica evidentemente reflexiva e crtica. Considera-se como o criador dessa corrente epistemolgica sobre a origem do conhecimento o filsofo alemo Emanuel Kant. O criticismo o mtodo de filosofar que se define pela constante investigao das fontes das prprias observaes e objees e as razes em que as mesmas assentam. O primeiro passo nas coisas da razo pura, aquilo que caracteriza a infncia da mesma, dogmtico. O segundo passo ctico e ajuda circunspeo do juzo, impulsionado pela experincia. Mas necessrio um terceiro passo, o do juzo amadurecido e viril71. O criticismo portanto, parte do pressuposto de que o conhecimento possvel. Partindo desta posio entra num exame crtico das bases do conhecimento humano, de sua origem, de sua natureza , enfim de seus pressupostos e condies mais gerais. No espao de produo do conhecimento nas cincias do desporto, praticamente inexistente a reflexo crtica ao nvel proposto pelo criticismo. Pode-se referir inclusive, que na anlise que levamos cabo nas publicaes intelectuais referentes aos pases de lngua portuguesa, a filosofia kantiana plenamente ignorada. Por outro lado, os nveis dos trabalhos publicados, que tantas vezes se apresentam sem o adequado nvel de coerncia lgica e consistncia fatual, consubstanciam uma falta de rigor que torna evidente a ausncia de qualquer crtica epistemolgica mais concretamente efetivada na constituio do conhecimento produzido.

Op.Cit., ps. 45 a 49. Cf. Hessen, J. Op Cit, p.54. 71 Kant, E. Apud Hessen,J . Idem nota 65.69 70

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2.2- Sobre a origem do conhecimento Onde reside a origem do conhecimento: Na razo? Na experincia? Com o intuito de situar adequadamente essas questes introdutrias vejamos uma situao concreta. Por exemplo: quando afirmamos que atletas treinados em resistncia aerbica apresentam melhor desempenho em provas de longa durao, fazemo-lo baseados em duas observaes: 1) que identificamos os indivduos treinados; 2) que os treinados apresentam melhores desempenhos em provas de longa durao e baixa intensidade que indivduos no treinados. Como se pode facilmente deduzir, tais afirmaes so fruto de nossa experincia na medida em que percebemos o que seja um indivduo treinado e que tambm pela observao detectamos que seu rendimento superior aos no treinados. Todavia, nossas afirmaes apresentam outros elementos que no esto contidos na experincia. Nossas afirmaes no s referem que se distinguem sujeitos treinados dos no treinados e que os treinados apresentam maior desempenho em provas de longa distncia e intensidade baixa, mas principalmente, infere que entre estes dois processos existe uma relao ntima, melhor dizendo, existe uma relao causal. Portanto, poderamos deduzir da experincia as duas primeiras observaes, no obstante, j a relao entre elas um processo do pensamento, uma elaborao conceitual, uma construo terica, uma atividade da razo. Posto este exemplo, retomemos as questes introdutrias. O conhecimento apoia-se de preferncia, ou mesmo exclusivamente, na experincia ou no pensamento? Onde reside a origem do conhecimento, na experincia ou na razo? Responder a estas questes nos permite discorrer sobre as principais correntes epistemolgicas referentes a origem do conhecimento. Umas defendem a razo como origem de todo o conhecimento e a encontramos o racionalismo, outras defendem a experincia e ento temos o empirismo, e outras situam-se em posies intermedirias como o caso do intelectualismo e do apriorismo. Vejamos brevemente cada uma delas.

2.2.1- Racionalismo O racionalismo (de ratio = razo) configura-se na postura epistemolgica assente na perspectiva de que o pensamento ou a razo constituem a fonte principal do conhecimento humano. Conforme Hessen, Segundo o racionalismo, um conhecimento s merece na realidade este nome quando logicamente vlido. Quando nossa razo julga que uma coisa tem que ser assim e que no pode ser de outro modo, que tem de ser assim, portanto, sempre e em todas as partes, ento, e s ento, nos encontramos ante um verdadeiro conhecimento72. Como se pode perceber pela afirmao anterior, a necessidade lgica e, portanto, a validade universal, consubstanciam-se em critrios determinantes da72

Op.Cit, p.60 e 61.

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concepo racionalista. Exemplificando a exigncia de necessidade lgica e validade universal, Hessen73, apresenta duas afirmaes: 1) o todo maior que as partes; 2) a gua ferve aos 100 graus. No primeiro caso, vemos com evidncia que esta afirmao plenamente correta, que tem de ser assim, e se caso quisssemos afirmar diferentemente estaramos em contradio lgica com a razo. E porque tem de ser assim, tambm sempre e em todos os lugares da mesma forma. Portanto esse juzo possui uma necessidade lgica e uma validade universal rigorosa. No segundo exemplo, a gua ferve aos 100 graus centgrados, temos um fenmeno distinto. Neste caso s podemos ajuizar que assim, mas isto no significa que dever ser sempre da mesma forma. Como sabemos, dependendo de condies ambientais, a gua poder ferver em temperaturas inferiores ou superiores aos 100 graus Clsius. Portanto, poderemos apenas julgar que a gua ferve aos 100 graus dentro dos limites da experincia, o que no ocorre com o primeiro juzo expresso que no se funda apenas na experincia mas sim no pensamento. Ou seja, os juzos so fundados na razo tendo como critrio a necessidade lgica formal e a validade universal. Como se pode claramente deduzir, o conhecimento que se evidencia no racionalismo tem origem no modelo lgico formal das matemticas. com efeito um conhecimento exclusivamente conceitual e dedutivo onde o pensamento impera com absoluta independncia de toda a experincia, por conseguinte seguindo apenas seus prprios axiomas. Provavelmente, a forma mais antiga do racionalismo se encontra em Plato. Nele est profundamente inserida a idia de que os sentidos no podem conduzir-nos a um verdadeiro saber. Nos sentidos, nas percepes, na realidade emprica s podemos delinear evidncias, opinies, porm nunca o conhecimento verdadeiro. Isto porque, na concepo platnica, tem de haver, alm do mundo sensvel, outro supra-sensvel, do qual tira nossa conscincia cognoscente os seus contedos; o mundo das idias. Para Plato o conhecimento uma remanescncia. A alma contemplou as Idias numa existncia pr-terrena e recorda-se delas na ocasio da percepo sensvel. Esta no tem, pois, a significao de um fundamento do conhecimento espiritual, mas somente a significao de um estmulo. A medula deste racionalismo a teoria da contemplao das Idias, a qual podemos denominar de racionalismo transcendente74. Em Plotino, evidencia-se uma forma diferenciada de racionalismo. Nele, o mundo das idias consubstancia-se no Nus csmico, ou seja, no Esprito do Universo. As idias j no representam um reino das essncias existentes por si mas a viva automanifestao do Nus. O conhecimento tem lugar simplesmente recebendo o esprito humano as Idias do Nus. Esta recepo caracterizada por Plotino como uma iluminao. A parte racional da nossa alma alimentada e iluminada continuamente de cima75. Santo Agostinho, por sua vez, modifica o sentido do Nus de Plotino dando-lhe um sentido cristo. Para este filsofo, o Deus pessoal do cristianismo ocupa o lugar do Nus . Portanto, nesta perspectiva, as idias convertem-se nas idias criadoras de Deus.Idem, ibidem, p.61. Idem, ibidem, p.64. 75 Idem, ibidem,p. 64.73 74

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O conhecimento humano uma iluminao divina. A esta concepo podemos denominar de racionalismo teolgico. No obstante, na Idade Moderna surge uma outra forma de racionalismo que ir assumir muito maior significncia na configurao do conhecimento, principalmente na demarcao do conhecimento cientfico moderno. a concepo das Ideias inatas. Segundo ela, so-nos inatos certo nmero de conceitos, justamente os conceitos fundamentais do conhecimento. Tais conceitos no procedem da experincia, mas representam um patrimnio originrio da razo, que segundo Descartes76 so conceitos mais ou menos acabados77 e que segundo Leibnitz, so potencialidades independentes da experincia. Hessen sugere designar essa forma de racionalismo como racionalismo imanente, em oposio ao racionalismo transcendente e ao racionalismo teolgico. Outra forma de racionalismo se evidencia no sculo XIX, o racionalismo lgico. Este modelo de racionalismo se distingue dos anteriores na medida em que se limita rigorosamente aos princpios lgicos formais. Em John Locke, embora se deva consider-lo como um precursor do empirismo por motivo que explicitaremos frente, se expressa pela primeira vez a superao do modelo ontolgico tradicional. Antes dele, reduziam-se as referncias ao conhecimento ora s vises universais do Mundo e justificaes testas da inteligncia, ora especulao sobre categorias formais absolutas, portanto, sem qualquer referncia ao seu contedo e significado contextuais78. Em outras palavras, no dizer de Hessen79, at ento confundiam-se os problemas psicolgicos e lgicos. Para Sousa80, isto se deve ao fato de que se admitia como correto que o mito da alma explicava por si a origem e a natureza espiritual do conhecimento, e que o princpio da certeza, nele implcito, apenas permitia a dvida para denegrir em proveito de tal especulao. Portanto, para Locke, o conhecimento (no o mundo) como complexo de conceitos e suas expresses relacional e proposicional, e no ontolgico.O conhecimento no coisa ou processo, mas simplesmente instrumento ou ferramenta do homem que conhece. No h um mundo ideal ou de idias, porque as idias so simples meios, instrumentos ou convenes do conhecimento. Como aspecto inovador da concepo expressa por John Locke, deve salientarse o papel atribudo s palavras, tomando-as como simples referncias ao usos das idias, e no como categorias de referncia direta s coisas e ao humana, o que hoje claramente referenciado por filsofos como Wittegensteisn, Ryle e Austin, e bem expressa contemporaneamente, por exemplo, nos textos de Henri Atlan81 com os jogos de linguagem, e de Manuel Maria Carrilho82 com os jogos de racionalidade. Nas cincias do desporto, conforme mostraremos em captulos posteriores quando da apresentao do perfil de nossa produo cientfica, o racionalismo no se constitui como modelo presente. Antes pelo contrrio, o que se observa que nossa produo cientfica extremamente carente quando as necessidades de coerncia lgica formal"Para Descartes, tudo que obsrvado atravs dos sentidos duvidoso. Ele pensa que, tal como nos sonhos, os sentidos so enganadores. Ou como nas obras de arte, pois -diz- no podemos tomar como verdadeiras e existentes as coisas imaginrias apresentadas pelos artistas." Cf. Sousa, D. Epistemologia das Cincias Sociais. Horizontes, Lisboa, s.d., p.19. 77 Ver Descartes, R. Mditations. In. Oeuvres et Lettres, Gallimard, Paris, 1983. 78 Cf. Sousa,D. Op.Cit, p.26. 79 Op. Cit. p.66 80 Op.Cit. p.26. 81 Ver Atlan, H. Com razo ou sem ela. Intercrtica da cincia e do mito. Instituto Piaget, Lisboa, s.d. 82 Ver Carrilho, M.M. Jogos de Racionalidade. Asa, Porto, 1993.76

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subentendida como a propriedade de argumentao bem estruturada, o corpo sistematizado e bem deduzido de enunciados, o desdobramento do tema de modo progressivo e disciplinado e a conseqente deduo lgica das concluses. Mesmo em trabalhos predominantemente tericos se observa no espao das cincias do desporto um discurso de cunho subjetivo que, normalmente desconsiderando os pressupostos de exigncia da coerncia lgica, configura-se numa expresso de conhecimento que no suporta qualquer critrio mais rigoroso de uma validade interna que consubstancie alguma perspectiva de validade universal. 2.2.2- Empirismo O racionalismo tanto considera o homem como um ser distinto, nico e universal, como apresenta a sua faculdade de apreender e conhecer por juzos o centro de sua essncia humana. Da o significado do homem como animal racional e de tal faculdade especfica da razo. O empirismo, diferentemente, toma o objeto do conhecimento como o centro de impresso sobre os sentidos do homem, mantendo a razo como mera faculdade de conexo e generalizao dos dados obtidos pela experincia83. O empirismo portanto, ope-se tese do racionalismo. Para o empirismo no h qualquer patrimnio a priori da razo e, como tal, nossa conscincia cogniscente no pode ter seus contedos retirados dessa razo. Nestas condies, para o empirismo, se torna evidente que nossa conscincia cogniscente retira seus contedos exclusivamente da experincia. No obstante sua forte influncia no conhecimento produzido nas cincias da modernidade, o empirismo traz consigo um pressuposto muito contestado, qual seja o fato de que, para o empirismo, sendo o conhecimento fruto exclusivamente da experincia, torna-se evidente que o esprito humano se constitui em sua gnese como uma tbua rasa onde a experincia dever gravar o conhecimento. Portanto, nesta viso na relao sujeito-objeto, o conhecimento est fora do sujeito, est no objeto e os homens apenas podem adquir-lo pela experincia. Como afirma Leonardo Coimbra 84, para o empirismo o conhecimento configura-se como o decalque da experincia e como tal interpreta-o como imagem simtrica na reflexo de nossa conscincia passiva de um mundo existente em si. Cabe destacar que com essa perspectiva, determinadas correntes da psicologia conhecidas como comportamentalistas ou behavioristas, influenciaram significativamente modelos pedaggicos que tornaram-se durante algum tempo o paradigma de uma determinada concepo de educao (ou instruo). Da mesma forma, no espao das prticas desportivas, os modelos at hoje predominantes na rea do treino se consubstanciam na perspectiva da modelao de desempenho, onde o que importa a relao entre o estmulo e a resposta (o desempenho, o resultado), sem a devida considerao com os processos pelos quais decorrem a obteno deste resultado. Provavelmente se possa afirmar em relao pedagogia da aprendizagem e do treino do desporto que um certo descrdito evidente em alguns discursos que questionam as possibilidades educacionais do desporto so oriundos da aplicao desses modelos

83 84

Sousa, D. Op.Cit. ,p.17. Apud Patrcio,M.F. A pedagogia de Leonardo Coimbra. Porto Ed., Porto, 1991, p. 1955.

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comportamentalistas ainda predominantes, seja a nvel da educao fsica escolar ou das prticas desportivas extra-escolares85. Para o empirismo portanto, a fonte exclusiva do conhecimento so os fatos concretos e sua justificativa recorre a uma determinada explicao sobre a prpria evoluo do conhecimento. Segundo o empirismo a criana comea por ter percepes concretas, com base nestas percepes elabora progressivamente representaes gerais e conceitos. Portanto, nestas condies torna-se evidente que o conhecimento nasce organicamente na experincia. No se encontra nada semelhante a esses conceitos que existem completos no esprito ou se formam com total independncia da experincia. A experincia apresenta-se, pois, como a nica fonte do conhecimento86. Em relao s origens do empirismo, se por um lado o racionalismo deriva das matemticas, ela vai encontrar seus principais defensores nas cincias naturais. Este fenmeno por demais compreensvel na medida em que nesta rea da investigao cientfica a experincia (e o experimento) a pedra angular do desenvolvimento do conhecimento. Nelas trata-se sobretudo de comprovar os fatos mediante cuidadosa observao, experimentao e induo. Conforme refere Hessen, j na antiguidade encontramos idias empiristas evidentes nos sofistas, e mais tarde, especialmente entre os esticos e os epicuristas. Nos esticos encontramos pela primeira vez a comparao da alma como uma tbua por escrever(...)87. Mas ser principalmente na filosofia inglesa do sculo XVII e XVIII que o empirismo ter seu desenvolvimento sistematizado. John Locke (1632 -1704), como j referimos em linhas anteriores, ope-se teoria das idias inatas. A alma um papel em branco, que a experincia cobre pouco a pouco com os traos da sua escrita88. H experincias externas que so as sensaes e experincias internas que so as reflexes. Os contedos da experincia so idias ou representaes, umas vezes simples outras complexas. As qualidades sensveis primrias e secundrias pertencem idia simples. Uma idia complexa um conjunto de propriedades sensveis de uma coisa. Nela o pensamento no adiciona novos elementos, limita-se a unir uns com os outros os diferentes dados da experincia89. Posteriormente, David Hume (1710-1776) divide as idias de Locke em impresses e idias, e como tal ele caracteriza as impresses como as simples sensaes que temos quando vemos, ouvimos, tocamos, etc. e como idias as representaes da memria e da fantasia, menos vivas do que as impresses e que surgem baseadas nestas. Portanto, para Hume todas as ideias procedem das impresses e so nada mais do que cpias destas impresses.

Ver importante texto sobre as concepe pedaggicas do treino de alto rendimento em: Balbinotti, C.A. O desporto de competio como meio de educao. Uma proposta metodolgica construtivista aplicada ao treinamento de jovens tenistas. Porto Alegre, ESEF-UFRGS (dissertao de mestrado), 1994. 86 Hessen,J Op. Cit., p.69. 87 Idem, ibidem, p.70. 88 Hessen, Idem,ibidem, p. 70. 89 No obstante cabe sublinhar que Locke, como referimos anteriormente quando tratamos do racionalismo, embora situando a relevncia da experincia no deixa de considerar a relevncia do valor lgico do conhecimento. H verdades que so completamente independentes da experincia e, portanto, universalmente vlidas. A elas pertencem as verdades matemtica, (Hessen, Op.Cit, p.71).85

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Condillac (1715-1780), contemporneo de Hume, sugere a transformao do emipirismo em sensualismo. Critica Locke por ter admitido a dupla fonte do conhecimento, a experincia interna e a experincia externa, e assume a tese de que s h uma fonte de conhecimento: a sensao. A alma s tem originariamente uma faculdade: a de experimentar sensaes. Todas as outras saram desta. O pensamento no mais do que uma faculdade apurada de experimentar sensaes. Deste modo fica institudo um rigoroso sensualismo90. No sculo XIX, John Stuart Mill, supera as teses de Locke e Hume, reduzindo tambm o conhecimento matemtico experincia, como a nica base do conhecimento. No h proposies a priori, vlidas independentemente da experincia. At as leis lgicas do pensamento tem a base de sua validad