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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR

O PAPEL DESEMPENHADO PELA LNGUA DE SINAIS NAS ESTRATGIAS DE LEITURA DO ALUNO SURDO

ANDRA MICHILES LEMOS

Fortaleza - 2007

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ANDRA MICHILES LEMOS

O PAPEL DESEMPENHADO PELA LNGUA DE SINAIS NAS ESTRATGIAS DE LEITURA DO ALUNO SURDO

Monografia apresentada coordenao do curso de Especializao em Lngua Portuguesa da Universidade Estadual do Cear, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Especialista.

ORIENTADORA: Letcia Adriana Pires Teixeira

Fortaleza, 2007

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A todos os alunos surdos que atravs da Lngua de Sinais vm buscando re-significar o mundo da leitura.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me permitir participar deste universo to fascinante que o universo da surdez; minha famlia, especialmente aos meus pais, pelo apoio emocional fundamental na realizao desse trabalho; Ao apoio institucional da Universidade Estadual do Cear; Ao corpo docente do curso de Especializao em Lngua Portuguesa da UECE, especialmente aos professores Valdinar Custdio, Letcia Teixeira, Abniza Pontes e Sarah Diva, que de forma direta ou indireta me ajudaram a calcar mais esse degrau; A todas as pessoas ligadas comunidade surda do Cear, especialmente aos surdos que me permitiram entrar em seu mundo e aprender a sua lngua, partilhar de suas angstias, de seus ideais e de suas indignaes; Renata, minha amiga e co-orientadora que me aturou ao telefone em diversos momentos de dvidas e que muito me ajudou no desenvolvimento dessa pesquisa; Aos meus amigos e companheiros Ernando, Aline e a todos os amigos e parentes que direta ou indiretamente contriburam e apoiaram a realizao dessa pesquisa; Associao dos Surdos do Cear e Associao dos Pais e Amigos do Deficiente Auditivo que gentilmente me cederam uma sala na qual pude realizar minha pesquisa; E finalmente a todos os surdos, especialmente aos cinco alunos do curso de Letras/Libras com os quais trabalhei.

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RESUMO

Entendemos que atravs da Lngua de Sinais que o conhecimento chega at o surdo, possibilitando que ele organize o seu pensamento e perceba a realidade na qual est inserido. Acreditamos tambm que a leitura propicie ao surdo um conhecimento de mundo mais amplo e que essa s ser acessvel a ele mediada pela lngua de sinais. Por isso, propomos-nos a investigar como a Lngua Brasileira de Sinais - LIBRAS pode intervir no processo de aprendizagem da leitura pelo sujeito surdo e quais so as estratgias utilizadas por esse sujeito para atingir um melhor desempenho em leitura de textos em lngua portuguesa, a qual tem caractersticas de segunda lngua para o indivduo surdo. Como nosso interesse sobre aprendizagem e estratgias de leitura, optamos em trabalhar com o referencial terico de Kleiman, Sol e Moreira. Com base nesse referencial propomos, para a pesquisa, uma atividade de predio de leitura, em suas trs fases - o ato de inquirir, o processamento da informao e a validao das respostas. Alm disso, organizamos um roteiro de entrevista constando cinco perguntas para melhor entendermos qual a relao do surdo com a lngua portuguesa escrita. A atividade de predio e a entrevista foram realizadas com cinco alunos surdos do curso de Licenciatura em Letras/Libras. Os resultados encontrados foram que os surdos utilizam, alm das estratgias de leitura citadas por Kleiman e Sol, estratgias que ns consideramos particulares a eles. Essas estratgias so: a soletrao digital, o ataque s palavras, a busca da compreenso do texto pela traduo do todo e o uso do intrprete como facilitador da compreenso.

Palavras chaves: estratgias de leitura - Lngua de Sinais - portugus como segunda lngua.

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SUMRIO

INTRODUO ........................................................................................................... 1. LNGUA DE SINAIS E SURDEZ ........................................................................ 1.1 1.2 1.3 Histria, concepes de surdez e de linguagem ............................................... Lngua de sinais como lngua natural ............................................................... Lngua de sinais como mediadora do aprendizado do portugus (escrito) ......

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2. LEITURA E SURDEZ ........................................................................................... 2.12.22.3Estratgias de leitura ......................................................................................... Relao do surdo com a lngua escrita .............................................................. Estratgias de leitura em alunos surdos ............................................................

3. CONSIDERAES METODOLGICAS .......................................................... 4. ANLISE DOS DADOS ......................................................................................... CONSIDERAES FINAIS ..................................................................................... REFERNCIAS .......................................................................................................... ANEXOS

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INTRODUOUm dos problemas que necessita ser minuciosamente pesquisado, em relao ao ensino da lngua portuguesa para os surdos e, mais especificamente, prtica de leitura realizada na escola, como as pessoas surdas se apropriam da lngua portuguesa e que relao elas fazem entre essa lngua e a lngua de sinais. Considerando que a LIBRAS - Lngua Brasileira de Sinais - a lngua natural dos surdos e que a realidade visual do surdo a legitima, entendemos que o ensino do portugus para esses sujeitos deve acontecer de forma diferenciada, utilizando uma outra metodologia de ensino e de aplicao da lngua. Acreditamos que ela deva ser ensinada como segunda lngua e no como primeira, pois a primeira lngua dos surdos a lngua de sinais1. Levamos em considerao que, se trabalharmos com duas lnguas de estruturas diferentes (tendo em vista que uma lngua tem o canal de comunicao oral-auditivo e a outra viso-espacial), no poderemos utilizar a mesma metodologia de ensino. Ao fazermos uso da mesma metodologia, recorrendo s mesmas estratgias de ensino para o aluno ouvinte e para o aluno surdo, estaremos negando a este o direito condio bilnge2. Por causa dessa inquietao que nos propomos a investigar como acontece o processo de aprendizagem de leitura do sujeito surdo, mediado pela interveno de duas lnguas que esto em contato o tempo todo, e quais estratgias ele utiliza para ler os textos em portugus. Que tipos de inferncias ele faz ao ler um texto em portugus? Como a lngua de sinais pode ajudar no processo de aquisio da leitura? So questes que necessitam de respostas para um bom desenvolvimento e desempenho do surdo na lngua portuguesa.

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interessante esclarecer que as lnguas de sinais no so meras transposies da lngua majoritria para o canal gestual. Ao contrrio, h grandes diferenas estruturais entre a lngua oral de um pas e sua lngua de sinais. 2 Falando de Educao de Surdos, o termo bilnge pode ser visto sob duas formas: a primeira envolve o ensino da segunda lngua, no caso do surdo o portugus, quase de maneira concomitante aquisio da primeira lngua (lngua de sinais); e a outra se caracteriza pelo ensino da segunda lngua somente aps a aquisio da primeira lngua.

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Segundo Sol (1996) o processo de aprendizagem da leitura no difere muito de qualquer outro processo de aprendizagem da escola. Este processo requer que o aluno atribua sentido ao que l e para isso de fundamental importncia que o leitor aprendiz possa contar com a ajuda de um adulto que acredite na sua competncia leitora e que possa fazer intervenes para estimul-lo cada vez mais. Nesse processo contamos com as experincias, as motivaes e o conhecimento de mundo do aprendiz, que somados ajuda do educador determinaro o ritmo de aprendizagem de cada um. No caso do surdo, para que a aprendizagem acontea necessrio que a lngua de instruo seja a lngua de sinais, que atravs dela o aluno surdo tenha acesso ao conhecimento. Mas a maior parte dos surdos chega escola sem uma lngua constituda, na qual eles possam se apoiar durante o processo de aprendizagem da leitura, embora possuam uma linguagem desenvolvida na interao com a me, mas que no se constitui como lngua. Para agravar a situao, geralmente o professor tambm no domina a lngua do aluno. Nesse caso, como acontecer a relao de ensino-aprendizagem da leitura? Hoje, felizmente, a escola e os professores de portugus esto mais atentos a essas questes, mas ainda no h uma preocupao efetiva em desenvolver uma metodologia eficaz para a aprendizagem desses alunos. Acreditamos que a partir do momento em que a Lngua de Sinais for respeitada e os surdos tiverem acesso a ela como o ouvinte tem acesso sua lngua, ser muito mais fcil o processo de aprendizagem para esse sujeito. A lngua portuguesa, como segunda lngua, ser apreendida com muito mais eficcia, pois ele ter uma outra lngua de apoio para o seu aprendizado. A Lngua de Sinais tem as mesmas funes para os surdos, que a lngua oral tem para os ouvintes, ela o nico meio capaz, no primeiro momento, de transmitir conhecimento de mundo ao surdo. Assim como a lngua oral, a lngua de sinais apreendida atravs da interao entre seus usurios; se uma criana no tiver contato com esses usurios no ser possvel a ela adquirir a lngua. E a aquisio da lngua de sinais ser de fundamental importncia para o aprendizado no s da leitura, mas tambm da escrita, possibilitando aos surdos darem significao ao que lerem e escreverem e no serem apenas decodificadores da escrita.

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Gesueli (1998) aponta que crianas surdas expostas lngua de sinais desde o incio de seu aprendizado fazem uso muito regular de estratgias lingsticas, e demonstram conhecer a relao entre a lngua de sinais e a lngua portuguesa. Para alguns estudiosos, as dificuldades do surdo com a leitura e escrita so atribudas, principalmente, ao tempo excessivo dedicado ao treinamento de habilidades auditivas e orais, por se acreditar que atravs da fala ele chegar ao portugus, a metodologia ineficaz do ensino de leitura e escrita e ao difcil acesso sua lngua. Este estudo relevante para mostrar o quanto a lngua de sinais fator de fundamental importncia no processo de aprendizagem de leitura do surdo e o quanto as prticas pedaggicas pouco exploram a capacidade lingstica deste sujeito, subestimando sua capacidade de aprendizagem e pressupondo que eles no so capazes de extrair um significado pleno do texto.

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1 LNGUA DE SINAIS E SURDEZ1.1 Histria, concepes de surdez e de linguagem

A surdez profunda na infncia mais do que um diagnostico mdico; um fenmeno cultural com padres e problemas sociais, emocionais, lingsticos e intelectuais que esto inextricavelmente ligados. (Hilde Schlesinger e Katrin Meadow)

Para entendermos a atual situao educacional dos surdos necessrio conhecermos um pouco da histria da educao deles considerando os aspectos sociais, polticos e histricos de cada poca, aspectos que regeram o tipo de abordagem educacional predominante em cada perodo da histria da educao dos surdos. Na Antigidade3, os surdos no eram considerados como seres humanos competentes. Eles eram considerados incapazes. Os romanos, por exemplo, os privaram de todos seus direitos; eles no podiam se casar, fazer testamentos e precisavam de um representante legal para ficar frente de seus negcios. Isso porque se acreditava que a fala (oral) era a nica forma de expresso do pensamento, e que este no se desenvolvia sem a linguagem, que por sua vez seria expressa pela fala. Mas para o desenvolvimento da fala era necessria a audio. Logo, os que no ouviam no poderiam falar e conseqentemente no poderiam pensar, e se no pensavam no tinham como serem educados e, portanto, no aprendiam.4 At as instituies religiosas acreditavam que os surdos no tinham alma imortal, porque no podiam professar sua f.

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Ver Moura (2000). Este foi o argumento utilizado durante muito tempo por gregos e romanos para os que nasciam surdos. Aqueles que ficavam surdos aps a aquisio da linguagem no recebiam este estigma.

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Para Aristteles, a linguagem o que d condio humana ao homem, e na sua concepo de linguagem os smbolos necessariamente tinham que ser falados. Essa idia equivocada vigorou durante muito tempo e ainda, nos dias de hoje, h fortes resqucios dela, principalmente quando falamos de educao de surdos. Vemos que a influncia dessa concepo acompanhou e acompanha toda a histria de educao desses sujeitos. No final da Idade Mdia comearam a surgir algumas tentativas para educar o surdo, tentativas que ainda no aconteciam em instituies, mas atravs de preceptores que educavam os filhos surdos de nobres com a inteno de torn-los aptos a serem herdeiros dos ttulos e fortunas de suas famlias, principalmente aqueles que eram primognitos, pois, caso contrrio, poderiam colocar em risco a fortuna de toda a famlia, uma vez que os mudos no eram reconhecidos pela lei. Vrios desses preceptores marcaram a histria da educao dos surdos. O primeiro a se destacar foi Ponce de Len5, que dedicou a maior parte de sua vida educao de surdos filhos de nobres. Ele os ensinou a falar, ler, escrever e a conhecer as doutrinas da igreja catlica. Alguns surdos aprenderam grego, outros latim, outros filosofia, dentre outras cincias e lnguas. Ponce de Len demonstrou que o surdo era capaz de aprender e que no era deficiente de suas faculdades intelectuais, como afirmava Aristteles (Moura, 2000). Aps Len, muitos outros surgiram com o mesmo propsito. Entre os mais conhecidos esto Bonet, na Espanha, que foi o primeiro a se aproveitar do trabalho que tinha sido realizado por Ponce de Len; Wallis e Braidwood, na Gr-Bretanha; Amman, na Holanda; e Pereire e Deschamps, na Frana. Todos foram educadores ouvintes que tinham como objetivo principal instruir os surdos filhos de nobres e ensin-los a falar. Alguns pesquisadores ressaltam que esses educadores criaram um alfabeto digital6 e sempre recorriam soletrao desse alfabeto e a alguns sinais para ensinar seus pupilos a falar. De acordo com Sacks (1998), at mesmo os mais clebres desses pupilos surdos

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O espanhol Pedro Ponce de Len (1520-1584), monge beneditino, considerado o primeiro professor de surdos na histria, seu trabalho foi base para muitos outros educadores posteriores. 6 Os usurios das lnguas de sinais utilizam-se de um alfabeto digital, baseado nas letras do alfabeto comum, de A a Z, que permite a soletrao e a traduo para o portugus ou qualquer outra lngua alfabtica. O alfabeto digital existe em outras lnguas, com variaes na forma de apresentao. Esta forma de apresentao secundria, pois se baseia em um primeiro sistema, o da lngua alfabtica, ao passo que os sinais constituem um sistema primrio de representao (ALMEIDA, 2000).

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ensinados a falar sabiam e usavam a lngua de sinais7. Geralmente, a fala deles era pouco inteligvel e tendia a regredir quando o ensino intensivo desta diminua. Diante de todas as tentativas de humanizar o surdo, de torn-lo um falante eficiente com fins que visavam no somente a catequizao destes sujeitos, mas tambm o lucro e o prestgio social, um jovem chamado Charles-Michel de LEpe (1712-1789), o Abade De LEpe, vislumbrou o outro lado de uma prtica do ensino para surdos, agora pautada muito mais na lngua de sinais do que na prtica oral auxiliada por alguns sinais. O jovem abade ficou impressionado com um comentrio de Scrates que durante muito tempo ficou sufocado pelas teorias aristotlicas de que a linguagem se realiza pela fala:Se no tivssemos voz nem lngua e ainda assim quisssemos expressar coisas uns aos outros, no deveramos, como aqueles que ora so mudos, esforar-nos para transmitir o que desejssemos dizer com as mos, a cabea e outras partes do corpo? (SACKS, 1998, p. 29)

LEpe iniciou seu trabalho com surdos por razes religiosas, e comeou a mudar a histria desses sujeitos quando foi s ruas de Paris e aprendeu - com surdos pobres que vagavam por ali - a lngua de sinais local. Ele dedicou toda ateno a seus pupilos, aprendeu a sua lngua (talvez nunca aprendida por nenhum ouvinte antes) e, associando sinais a figuras e a palavras escritas, ele os ensinou a ler; deu-lhes acesso aos conhecimentos e cultura. LEpe fundou a primeira escola para surdos, que recebeu auxilio pblico, em 1755. Esta escola depois se transformou na National Institution for Deaf-Mutes em Paris. Ele criou os chamados Sinais Metdicos8, um sistema que combinava a lngua de sinais nativa dos surdos com a gramtica do francs traduzida em sinais. Dessa forma, ele possibilitou que os alunos surdos comuns lessem e escrevessem qualquer texto em francs, facilitando assim a educao destes sujeitos.

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A lngua de sinais sempre foi utilizada pelo surdo, mesmo no auge de sua proibio. Os Sinais Metdicos De LEpe, de certa forma, retardava a educao dos surdos, pois impedia os surdos de aprenderem a escrita de uma maneira mais fluente atravs de sua lngua. LEpe acreditava que a lngua de sinais era um sistema eficiente de comunicao, mas por outro lado achava que ela era destituda de gramtica, por isso a necessidade do emprstimo da gramtica francesa. Posteriormente, os seguidores do mtodo De LEpe perceberam que a lngua de sinais era uma lngua completa e abandonaram o uso equivocado dos sinais metdicos.

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A importncia de LEpe para a histria da educao de surdos no somente por ele ter criado um mtodo para a educao desses sujeitos9, mas por ter sido o primeiro a reconhecer que os surdos tinham uma lngua e a se dispor em aprend-la, embora ele no conseguisse perceber a organizao gramatical da lngua de sinais10. Veremos que, aps as demonstraes de sucesso de LEpe, vrias escolas de surdos surgiram em muitos outros pases; na maioria delas seus professores eram surdos. Sacks (1998) afirma que essa poca foi uma espcie de era dourada na histria dos surdos e de sua educao. Eles saram da negligncia e do anonimato e houve uma rpida ascenso dos surdos a posies na sociedade jamais imaginadas como a de escritores, filsofos, engenheiros, intelectuais, entre outros. Aps toda essa exploso da lngua de sinais na Europa, o americano Thomas Gallaudet juntamente com o professor surdo francs Laurent Clerc fundou, nos Estados Unidos, no ano de 1817, a primeira escola pblica para surdos, o American Asylum for the Deaf, em Hartford. Durante algum tempo esta foi a nica escola para surdos no pas: vinham surdos de todas as regies dos Estados Unidos para estudar nesta escola. Com o aumento da educao entre os surdos e a propagao da lngua de sinais, logo surgiram outras escolas em vrias regies. Em 1864, Edward Gallaudet, filho de Thomas, teve a autorizao do Congresso americano para fundar, na Columbia Institution for the Deaf and the Blind, em Washington, a primeira faculdade para surdos, o Gallaudet College atualmente Gallaudet University at hoje nica faculdade de cincias humanas do mundo para estudantes surdos. O grande impulso na educao e emancipao dos surdos que entre 1770 e 1820 arrebatara a Frana continuou assim sua trajetria triunfante nos Estados Unidos at 1870 (SACKS, 1998, p. 37).

Mtodo que influenciar diretamente na Abordagem Educacional da Comunicao Total. As lnguas de sinais no s so capazes de expressar qualquer tipo de emoo, como tambm podemos discutir atravs delas sobre qualquer assunto, concreto ou abstrato, de maneira lgica, eficaz e gramatical, assim como nas lnguas orais. Hoje, entendemos que as lnguas de sinais, ao contrrio do que se acreditava, comparam-se igualmente s lnguas orais, seja qual for o campo discursivo. Ela mais uma forma eficaz de comunicao que, no somente os surdos, mas tambm os ouvintes podem dispor, sendo muitas vezes a lngua de sinais preferida lngua oral.10

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Apesar de todas as conquistas e avanos na educao dos surdos com a lngua de sinais, a partir da segunda metade do sculo XIX essa lngua comeou a sofrer opresses tanto nos Estados Unidos quanto no restante do mundo. Isso era conseqncia de um movimento poltico da poca que tendenciava a oprimir as minorias e suas prticas, fossem elas religiosa, tnica e principalmente lingstica. Na verdade sempre existira uma guerra de foras entre os que acreditavam na lngua de sinais e os que acreditavam que fazer o surdo falar era o mais importante mesmo que para isso o ensino da fala ficasse em detrimento da aprendizagem11. Muitos questionamentos que comearam a surgir, e perpetuam em dias atuais. De que valia o surdo saber lngua de sinais se ele no saberia falar? Ele no ficaria isolado em sua comunidade? No seria muito mais proveitoso se ele aprendesse a falar e soubesse se comunicar com os ouvintes? Os sinais no deveriam ser proibidos para no interferirem na aprendizagem da lngua oral? Por outro lado, havia os que defendiam a lngua de sinais e questionavam: como ocupar milhares de horas desses alunos com o ensino da fala sem prejudicar a educao/escolarizao desses sujeitos? O resultado disso no seria alguns semianalfabetos fazendo um uso deficiente de fala? O que melhor, educao ou integrao? De acordo com Sacks (1998), surgiram alguns reformadores que pediam pela derrubada das escolas que adotavam a lngua de sinais e pela introduo de escolas oralistas progressivas. O mais importante dos representantes oralistas foi Alexander Graham Bell12. Se por um lado ele foi um gnio na rea da tecnologia, por outro foi visto pelos surdos americanos como o inimigo mais temvel. Ele defendeu com veemncia o ensino da elocuo e a correo dos impedimentos de fala, defendeu tambm que o surdo no poderia casar entre si, nem lecionar para outros surdos. Quando Bell jogou todo o peso de sua imensa autoridade e prestgio na defesa do ensino oral para surdos, a balana finalmente pesou... (SACKS, 1998, p. 40). O I Congresso Internacional de Educadores de Surdos foi realizado em Milo no ano de 1880. O interesse do Congresso era reafirmar a necessidade da substituio da lngua de sinais pela lngua oral. No se discutiram nesse Congresso os mtodos de ensino da lngua, mas novamente apareceu o discurso aristotlico de que a fala era a nica forma deNa mesma poca que Abade De LEpe fundou a escola para surdos, com o uso de sinais, Samuel Heinick fundou, na Alemanha, a primeira escola pblica para surdos baseada no mtodo oral. 12 Alexander Graham Bell inventou o telefone em 1876.11

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expresso do pensamento e expresso da alma. Foram colocados a vantagem da fala sobre o Sinal para o desenvolvimento intelectual da criana Surda, a possibilidade de desenvolvimento de fala nos Surdos e a necessidade de se abolir completamente os Sinais para poder propiciar o verdadeiro desenvolvimento da fala entre muitos outros argumentos (MOURA, 2000, p. 48)13

. Nesse Congresso os professores Surdos foram excludos da

votao e o oralismo saiu vencedor; o uso da lngua de sinais foi oficialmente abolido de todas as escolas. Os surdos foram proibidos de usar sua lngua natural e desta data em diante obrigados a aprender a lngua falada. Edward Gallaudet, presente ao Congresso, defendeu o uso da lngua de sinais, mas no foi ouvido. As resolues do congresso que mudaram a histria dos surdos foram:1. Dada a superioridade incontestvel da fala sobre os sinais para reintegrar os SurdosMudos na vida social e para dar-lhes maior facilidade de linguagem,... (Este congresso) declara que o mtodo de articulao deve ter preferncia sobre o de sinais na instruo e educao dos surdos e mudos. 2. O mtodo oral puro deve ser preferido porque o uso simultneo de sinais e fala tem a desvantagem de prejudicar a fala, a leitura orofacial e a preciso de idias (MOURA, 2000, p. 46).

A conseqncia desse Congresso que a partir de ento exclusivamente professores ouvintes, e no mais professores surdos, passaram a ensinar os alunos surdos. Estes professores conheciam cada vez menos a lngua de sinais e utilizavam cada vez mais a lngua oral como lngua de instruo para esses alunos. A educao se subordinava conquista da expresso oral (SKLIAR, 1997, p. 78) e, ao contrrio do que se esperava, o resultado dessa escolha foi catastrfica. A realidade dos surdos de antes, que chegavam a um bom nvel de letramento, equiparado ao do ouvinte, ficava cada vez mais distante e o que tnhamos eram surdos com sete ou oito anos de escolarizao com aprendizado de leitura e escrita muito ruim. O Oralismo juntamente com a proibio da lngua de sinais trouxe graves conseqncias tanto para o aproveitamento educacional dos surdos, quanto para o seu reconhecimento de cidado na sociedade14. Podemos constatar, at os dias atuais, que muitos

A autora usa o termo Surdo com S maisculo para indicar o sujeito que faz parte de uma comunidade e possui uma identidade e cultura prprias. 14 Todos aqueles que no alcanassem o nvel da oralizao eram considerados deficientes mentais.

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surdos ainda se encontram na situao de analfabetos funcionais e at bem pouco tempo eram cidados desapercebidos pela sociedade. De acordo com Skliar (1997), as comunidades surdas eram consideradas como hordas perigosas para o desenvolvimento oral da criana surda e desapareceram como realidade da instituio escolar e, portanto, da percepo coletiva dos ouvintes. Os surdos que participavam do processo escolar da criana surda como modelos educativos foram excludos das escolas e reduzidos a atividades de menor prestgio, como cozinheiros, sapateiros, entre outros. A abordagem educacional oralista, que dominou o final do sculo XIX e durante o sculo XX at a dcada de sessenta, adotou uma concepo de educao que pode se enquadrar dentro de um modelo clnico-teraputico da surdez. Esse modelo impe uma viso totalmente patolgica da surdez, relaciona-a com o dficit biolgico e se traduz, na educao, como estratgias que se destinam unicamente a recuperar e corrigir o dano causado por este dficit. Nessa perspectiva, a surdez afetaria diretamente a competncia lingstica das crianas surdas, estabelecendo assim uma equivocada identidade entre linguagem e a lngua oral (SKLIAR, 1997, p.79), condicionando o grau de desenvolvimento cognitivo ao conhecimento de lngua oral da criana surda. No Oralismo se acreditava que era possvel ensinar a linguagem e que existia uma relao unvoca entre a eficcia oral e o desenvolvimento cognitivo. Afirmava-se tambm que a lngua de sinais no era um sistema lingstico verdadeiro e o caracterizava como um conjunto de gestos desarticulados, incapaz de produzir uma comunicao eficiente, podendo atrapalhar o aprendizado da lngua oral. A proposta oralista transformou as escolas em centros de reabilitao para surdos, local onde estes deveriam ser medicalizados simplesmente pelo fato de serem surdos. Por isso, necessitavam de uma interveno teraputica, na qual o objetivo do currculo escolar dar ao sujeito o que lhe falta: a audio, e o seu derivado: a fala (SKLIAR, 1997, p. 81). Apesar dessa rdua colonizao sobre o surdo, de querer transform-lo em ouvinte, desenvolvida por dcadas, o modelo oralista fracassou pedagogicamente e contribuiu consideravelmente para a marginalizao social em que se encontram algumas comunidades de surdos atualmente. Na dcada de 1960, novos conhecimentos tericos surgiram e novos rumos comearam a aparecer para a educao do surdo. Muitos professores

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comearam a perceber que as prticas oralistas no eram eficientes o suficiente para garantir ao surdo o acesso ao conhecimento, embora ainda existam, atualmente, aqueles que as defendem. Concomitantemente, alguns estudos, como o de Stokoe15 (1960), sobre a Lngua de Sinais, tanto no nvel de estrutura interna quanto de sua gramtica, provaram ter esta status lingstico como qualquer outra lngua oral, tanto no plano das funes desempenhadas pelas lnguas, quanto em qualquer nvel de abstrao de comunicao. Vrios outros estudos foram realizados, como por exemplo, a comparao de desenvolvimento na aprendizagem entre surdos filhos de pais surdos que tinham acesso lngua de sinais desde muito cedo atravs de seus pais e surdos filhos de pais ouvintes que tiveram sua aprendizagem mediada somente pela lngua oral. Esses estudos mostraram que surdos filhos de pais surdos tinham um melhor rendimento escolar em relao aos surdos filhos de pais ouvintes. Essas novas perspectivas geraram o incio de uma abordagem educacional bilnge que estava por vir. Nesse momento, depois de comprovada a ineficincia do oralismo, comea-se a acreditar que a melhor forma de educar o surdo seria mesmo mediada pelos sinais. Entretanto, ainda no se admite o ensino exclusivamente pela lngua de sinais, mas apenas uma situao intermediria, em que sinais seriam combinados com a lngua oral para o ensino de alunos surdos. Esta recebeu o nome de Comunicao Total e seria a nova abordagem educacional para surdos que direcionaria os novos mtodos de ensino. De acordo com Moura (2000), a premissa bsica da Comunicao Total era a utilizao de toda e qualquer forma de comunicao com a criana surda, sendo que nenhum mtodo particular deveria ser enfatizado. Deveriam ser utilizadas formas de comunicao auditivas, manuais e orais para uma comunicao mais efetiva com os surdos. O objetivo era oferecer criana uma comunicao mais rpida e fluente para que pudesse entender o mundo que a cercava, mas existia, e ainda existe16, um srio problema nesse tipo de comunicao. Uma lngua no pode ser falada simultaneamente a outra lngua, sem causarO pesquisador americano William Stokoe, estudando a Lngua de Sinais Americana (ASL), identificou nela uma coerncia e organizao internas que se materializava em parmetros sintticos, morfolgicos, fonolgicos comuns a qualquer lngua. 16 Muitas escolas que hoje se denominam Bilnges encontram-se, na verdade, em um perodo de transio. Na tentativa de abandonar um mtodo de ensino puramente oralista e adotar um outro que priorize a lngua de sinais na educao dos surdos, professores e profissionais da educao adotam um tipo de comunicao que utiliza a lngua oral e a lngua de sinais ao mesmo tempo, configurando assim uma Comunicao Bimodal, que foi o termo utilizado posteriormente para a Comunicao Total.15

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prejuzos a nenhuma das lnguas envolvidas, mesmo que seja uma oral e a outra sinalizada17. O motivo para essa inadequao que lnguas diferentes tm estrutura e gramtica diferentes, o que dito em uma lngua de determinada forma pode no corresponder exatamente mesma coisa na outra, principalmente quando uma lngua oral e a outra, visual, que, como veremos no item seguinte desse captulo, se estruturam e se realizam de maneira muito diferentes. Na grande maioria das vezes, acontece que o professor, por no dominar a lngua de sinais e por no ser possvel raciocinar em duas lnguas, ao mesmo tempo, utiliza muito mais a lngua oral em detrimento da lngua de sinais e a cada sentena ou orao que pronuncia utiliza um sinal, prejudicando assim uma comunicao efetiva. O que aconteceu, e acontece nos dias atuais, foi que os professores abandonaram o uso da lngua de sinais e passaram a utilizar a lngua oral correspondente do seu pas, representada por alguns sinais ou tcnicas. A este tipo de comunicao muitos pesquisadores preferiram chamar de Comunicao Bimodal, que se refere utilizao da fala seguida por sinais, pertencentes ou no a um sistema lingstico. O que era antes uma abordagem educacional, uma forma diferente de ver a criana surda e como melhor trabalhar com ela, se transformou em um mtodo para educar os surdos. No entanto, o papel assumido pela linguagem no Bimodalismo diferente do papel assumido no Oralismo, principalmente em termos de aquisio da linguagem. No Bimodalismo no se espera, como no Oralismo, que a linguagem seja adquirida por vias auditivas, pois se sabe que necessria uma modalidade visual para se ter fcil acesso criana. Dessa forma, os resultados obtidos, mesmo no sendo os ideais e nem os esperados, sero muito diferentes dos obtidos anteriormente. Enquanto todo o mundo buscava respostas em abordagens bimodais, os Estados Unidos iniciaram um movimento social que teve grande influncia na educao dos surdos. Esse movimento recebeu o nome de multiculturalismo. Organizado por uma minoria tnica, reivindicava uma cultura prpria, e foi nele que o surdo encontrou um caminho para dar voz s suas reivindicaes. O surdo que havia sido silenciado durante dcadas via agora umaA prtica simultnea de duas lnguas orais impossvel pela prpria inadequao fsica. Em relao as lnguas de sinais existe uma falsa crena de que possvel a utilizao de duas lnguas ao mesmo tempo, ou seja, ao instante que voc fala a lngua oral, voc tambm sinaliza a lngua de sinais.17

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esperana de recuperar sua cultura e sua lngua e poder us-la sem restries18. Moura (2000), em seu estudo, afirma:Numa viso multicultural podemos pensar em diferenas culturais que podem se revelar nos aspectos relacionados aos comportamentos, valores, atitudes, estilos cognitivos e prticas sociais. Com relao ao Surdo podemos verificar diferenas nos aspectos de comportamento lingstico; de valores e atitudes, em que a surdez no vista como uma doena, mas como uma diferena; de estilos cognitivos, que talvez pudssemos considerar como diferentes por serem gerados por uma forma de perceber o mundo pela via visual e de prticas sociais que se estabelecem pela sua forma de linguagem (MOURA, 2000, p. 66).

O movimento dos surdos para o reconhecimento, pela maioria ouvinte, de sua lngua e cultura, juntamente com os diversos estudos realizados na dcada de 70, que comprovaram ser a lngua de sinais fundamental para o desenvolvimento da criana surda, resultaram na implantao de um sistema de educao de surdos, chamado de Bilingismo. Este consideraria a lngua de sinais como a primeira lngua que deveria ser adquirida por uma criana surda. A proposta bilnge pretende tornar acessvel criana surda duas lnguas no contexto escolar. Estudos tm apontado que essa proposta a mais adequada para o ensino dessas crianas, tendo em vista que considera a lngua de sinais como lngua natural e parte desse pressuposto para o ensino da lngua escrita (QUADROS, 1997) de seu pas, ficando escolha do surdo querer ou no aprender a modalidade oral da lngua de seu pas. Aqui, diferentemente das abordagens educacionais anteriores, a fala vista como uma possibilidade e o seu ensino no o objetivo principal dos educadores. O Bilingismo uma tentativa de resgatar o direito do surdo de ter acesso sua lngua natural, tendo em vista que a mesma se adquire de forma espontnea, em contato com outros surdos e adultos ouvintes usurios da lngua. A proposta bilnge defende que o surdo tem o direito de ser ensinado em lngua de sinais, e que isto no atrapalharia, de forma alguma, o aprendizado de uma segunda lngua, ao contrrio, lhe asseguraria o domnio das duas lnguas, dando-lhe condies de constituirse um sujeito bilnge. No caso do Brasil, o ensino da lngua portuguesa, dentro de uma

Embora reprimidas, suas cultura e lngua nunca deixaram de existir. Os surdos sempre utilizaram, clandestinamente, entre eles, a lngua de sinais.

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proposta bilnge, aconteceria baseado em tcnicas de ensino de segunda lngua, j que esta para o surdo uma lngua estrangeira 19. Skliar (1997), afirma:O objetivo do modelo bilnge criar uma identidade bicultural, pois permite criana surda desenvolver suas potencialidades dentro da cultura surda e aproximar-se, atravs dela, a cultura ouvinte. Este modelo considera, pois, a necessidade de incluir duas lnguas e duas culturas dentro da escola em dois contextos diferenciados, ou seja, com representantes de ambas as comunidades desempenhando na aula papis pedaggicos diferentes (SKLIAR, 1997, p. 104-105).

Alguns pases vm desenvolvendo escolas com a proposta bilnge para surdos, entre eles o que mais se destaca a Sucia. Na Sucia, o primeiro pas na implantao do Bilingismo. A lngua de sinais foi reconhecida oficialmente em 1981, e desde ento o Parlamento Sueco determinou que todo surdo profundo deveria ser bilnge, ou seja, fluente em lngua de sinais e na lngua de seu pas. Um novo currculo foi introduzido nas escolas, onde a Lngua de Sinais Sueca foi posta oficialmente como lngua de instruo, juntamente com o sueco escrito, para o ensino de alunos surdos. No Bilingismo, a surdez vista como diferena e no mais como doena - a lngua de sinais apenas uma diferena cultural. Os familiares de surdos so orientados no sentido de que seus filhos fazem parte de uma minoria lingstica, to logo seja diagnosticada a surdez so dadas a eles todas as diretrizes a serem adotadas. Estudos (FERNANDES, 1999); (QUADROS, 1997, 1997b); (GESUELI, 1998); (PEREIRA, 2003) apontam que as crianas expostas a uma proposta educacional bilnge, baseada na existncia da lngua de sinais, possuem uma percepo metalingstica que influi positivamente no rendimento escolar. Muitos pases esto apostando nessa nova abordagem educacional para surdos, esto abandonando velhos mtodos de educao para surdos e adotando uma nova postura diante da educao desses sujeitos. No Brasil, o movimento em torno da educao dos surdos comeou em 1855, com a vinda do professor surdo francs Eduard Huet. Huet era discpulo de LEpe e veio para o Brasil a convite de D. Pedro II. Em 1857, fundou o Instituto Nacional de Surdos-Mudos, o atual INES Instituto Nacional de Educao de Surdos. Naquele tempo, no Brasil, no se19

A Lngua de Sinais a lngua primeira (L1) do sujeito surdo, enquanto a Lngua Portuguesa a lngua segunda (L2), mesmo sendo ele brasileiro.

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tinha idia de educao pblica para surdos e as famlias relutavam bastante em educ-los. O mtodo de ensino utilizado por Huet foi o mesmo que LEpe utilizou durante dcadas com seus alunos franceses. Este mtodo de ensino atravs do uso de alguns sinais combinado com a estrutura da lngua oral foi utilizado na educao dos surdos brasileiros at a proibio oficial do uso dos sinais no Congresso de Milo. A partir de ento, foi iniciado o ensino da linguagem articulada oralizao dos surdos como em todo o restante do mundo. Atualmente, no Brasil, cresce cada vez mais o movimento em torno da educao dos surdos em direo a uma proposta educacional de incluso20, proposta que fere os princpios de uma proposta bilnge idealizada. H poucos relatos no Brasil sobre escolas que adotaram verdadeiramente uma educao bilnge. O que temos so escolas de surdos que se auto denominam de bilnges, mas que na verdade encontram-se em um processo de transio: nem so por total oralistas, nem tampouco bilnges. Vivem um momento de maior aceitao e valorizao do sujeito surdo e de sua lngua e cultura diferenciadas, um passo importante para a implantao de uma proposta bilnge de fato, mas que esbarra na proposta de educao para surdos que vem sendo apresentada pela poltica nacional de educao inclusiva. 1.2 Lngua de sinais como lngua natural Podemos encontrar na literatura uma infinidade de definies para lngua. Mas, o que realmente lngua? Qual a diferena entre os termos lngua e linguagem? Ser que estes termos significam a mesma coisa? Usaremos o termo linguagem no sentido mais amplo da palavra, tudo que designar uma forma de comunicao classificaremos como sendo linguagem, por exemplo: linguagem computacional, linguagem das abelhas, linguagem corporal, entre muitas outras, inclusive as lnguas humanas, sejam elas de modalidade oralauditiva (portugus, ingls, francs, etc.) ou viso-espacial (lngua de sinais brasileira, lngua de sinais portuguesa, lngua de sinais italiana, etc.). O termo linguagem de maior amplitude do que o termo lngua, pois, alm de referir-se s linguagens em geral, este aplicado aos sistemas de comunicao, sejam eles naturais ou artificiais. O termo lngua refere-se a umExiste uma grande discusso sobre a eficcia da incluso para o surdo, principalmente, nas sries iniciais. Quando falamos de incluso para surdos, esquecemos de considerar o elemento diferenciador principal na educao do surdo, a lngua. Lnguas diferentes, metodologias diferentes, como incluir o aluno neste contexto?20

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sistema de comunicao mais sofisticado, possui caractersticas que so somente atribudas s lnguas humanas e que as diferenciam do sistema de comunicao animal. As principais caractersticas citadas pelos lingistas so: flexibilidade e versatilidade, arbitrariedade e motivao, descontinuidade, criatividade e produtividade, dupla articulao, padro de organizao e dependncia estrutural. Podemos verificar que temos vrias concepes de lngua, desde uma mais estruturalista at uma mais funcionalista. Para Saussure (1969), numa viso mais estruturalista, a lngua no se confunde com linguagem: somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. ... , ao mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenes necessrias, adotadas pelo corpo social para permitir o exerccio dessa faculdade nos indivduos (CLG, 17). Saussure acreditava que a lngua era uma instituio social, e seus signos que deveriam ser estudados. A lngua para ele forma e no substncia, ela uma armadura na qual nos movimentamos para a interao humana. Nenhum indivduo tem faculdade para criar a lngua e nem capaz de modific-la conscientemente. Em uma definio funcional de lngua, ela concebida, em primeiro lugar, como um instrumento de interao social entre seres humanos, usado com o objetivo principal de estabelecer relaes comunicativas entre os usurios (DIK, 1978, apud: NEVES, 2004, p. 19). Nesta perspectiva, ao contrrio da outra, a lngua mais funo, a interao verbal que a interao social estabelecida por meio da linguagem constitui uma forma de atividade cooperativa estruturada: estruturada, porque governada por regras, normas e convenes, e cooperativa, porque necessita de, pelo menos, dois participantes para atingir seus objetivos (NEVES, 2004, p. 21). Quando falamos em lnguas de sinais percebemos a existncia de muitas concepes errneas, que alguns autores denominam de mitos, a respeito dessas lnguas. Apesar das pesquisas realizadas em muitos pases descreverem e demonstrarem o status lingstico das lnguas de sinais, o que ajuda a desmistificar as concepes inadequadas em relao s lnguas sinalizadas, esses mitos ainda persistem em nossa sociedade. A lngua de sinais encontra forte resistncia por parte dos ouvintes de ser aceita como uma lngua genuna. Vamos apresentar aqui seis mitos que so mais opositores ao reconhecimento da

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lngua de sinais e que levam o ouvinte a crer que esta inferior lngua oral (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 31 37). O primeiro desses mitos afirma que a lngua de sinais seria uma mistura de pantomima e gesticulao concreta, incapaz de expressar conceitos abstratos. De acordo com esse mito os sinais no so smbolos arbitrrios, mas possuem uma relao icnica de seus referentes. Para contrariar esse mito, estudos (BRITO, 1995); (QUADROS e KARNOPP, 2004) comprovaram que atravs da lngua de sinais possvel expressar quaisquer conceitos, inclusive os abstratos, tais como: poltica, religio, economia, filosofia, entre outros. Investigaes lingsticas indicam que aspectos icnicos ou pictogrficos de sinais individuais no so o aspecto mais significante da estrutura e do uso da lngua de sinais (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 31). Alm disso, alguns estudiosos apontam que nem todo sinal que considerado icnico, em uma determinada lngua de sinais, ser inteligvel em uma outra lngua de sinais. Pois o trao que um determinado grupo selecionou como caracterstico para representar aquele referente pode no ser o mesmo que um outro grupo selecionar, tendo em vista que estes grupos faro parte de comunidades e culturas diferentes. Um exemplo disso um sinal que no Brasil considerado icnico, o sinal de NO, mas que na ASL - Lngua Americana de Sinais tem um significado completamente diferente.

NO (LIBRAS)

ONDE (ASL)

De acordo com alguns autores (QUADROS e KARNOPP, 2004), os sinais podem ser motivados (icnicos), intermedirios e/ou arbitrrios. Os sinais considerados icnicos podem fazer relao direta com o seu referente reproduzindo a forma ou o movimento deste, tornando mais fcil o reconhecimento do significado do sinal, mas este pode tambm sofrer alteraes lingsticas e sociolingsticas e ento modificar com o tempo, deixando de ser um sinal motivado para os seus usurios atuais. importante lembrar que apenas uma parte do

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lxico das lnguas de sinais icnica, a outra arbitrria, o sinal no tem associao ou semelhana alguma com o seu referente. O segundo mito afirma que haveria uma nica e universal lngua de sinais usada por todas as pessoas surdas. Na verdade, esse mito muito presente no entendimento sobre lngua de sinais de pessoas que no fazem parte e no conhecem o mundo do surdo. As pessoas at questionam o porqu dos surdos no utilizarem uma nica lngua de sinais, isso porque, segundo o entendimento do senso comum, facilitaria a comunicao entre estes indivduos. Levantamos agora uma questo: por que os ouvintes tambm no possuem uma nica lngua?Pode-se contrapor tal concepo, argumentando que as mesmas razes que explicam a diversidade das lnguas faladas se aplicam diversidade das lnguas de sinais. Portanto, cada pas apresenta sua respectiva lngua de sinais. A lngua de sinais americana diferente da lngua de sinais brasileira, assim como estas diferem da lngua de sinais britnica, da lngua de sinais francesa, e assim por diante (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 33).

As lnguas de sinais so distintas entre si, e possuem dialetos regionais assim como as lnguas orais. Elas, como qualquer outra, so influenciadas por fatores geogrficos, sociais, culturais, entre outros. A lngua de um pas ser estrangeira ao surdo de outro pas, ou seja, surdos de diferentes pases, em geral, no entendem as lnguas de sinais uns dos outros, embora o surdo parea ter mais facilidade de conseguir se comunicar em uma lngua de sinais estrangeira, do que o ouvinte teria para se comunicar em uma lngua oral estrangeira. Isso acontece porque o surdo, ao usar uma lngua de canal viso-espacial, utilizase de muitos recursos corporais que podem facilitar uma comunicao entre lnguas de sinais estrangeiras. O terceiro mito diz que haveria uma falha na organizao gramatical da lngua de sinais, que seria derivada das lnguas orais, sendo um pidgin sem estrutura prpria, subordinado e inferior s lnguas orais. Segundo este mito, as lnguas de sinais tm total dependncia das lnguas faladas isto implica dizer que as lnguas de sinais no tm independncia em relao ao lxico e que no possuem organizao interna prpria, mas que so meros sinais manuais traduzidos de palavras da lngua oral local. Muitas pesquisas vm mostrando justamente o contrrio deste mito, por exemplo, as lnguas de sinais de pases que falam a mesma lngua oral podem ser completamente diferentes entre si. Um exemplo disso

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so as lnguas de sinais brasileira e portuguesa que so utilizadas em pases diferentes que falam a mesma lngua oral, o portugus. No entanto suas lnguas de sinais so completamente distintas. Podemos tambm ter situaes contrrias, ou seja, pases diferentes com lnguas orais diferentes, mas que, no entanto, os seus surdos utilizam a mesma lngua de sinais nos dois pases, como o caso do Canad e dos Estados Unidos que utilizam a ASL American Sign Language. Segundo Quadros e Karnopp (2004), um erro pensar que as lnguas de sinais so subordinadas s lnguas orais. O que pode acontecer, geralmente em escolas e com fins pedaggicos, so situaes de comunicao em que os sinais so adequados estrutura da lngua falada. Nessas situaes temos os sistemas artificiais, chamados de comunicao simultnea, que de fato so limitados e geram problemas de entendimento, pois quando os sinais so considerados em seqncia ou em contexto, no correspondem obrigatoriamente ao sentido literal das palavras das lnguas orais. O mito quarto afirma que a lngua de sinais seria um sistema de comunicao superficial, com contedo restrito, sendo esttica, expressiva e linguisticamente inferior ao sistema de comunicao oral. Nesse mito, as lnguas de sinais so consideradas pobres lexical e gramaticalmente no sendo capazes de transmitir idias complexas e abstratas.Vinculado a essa concepo, muitas pessoas equivocadamente afirmam que o empobrecimento estrutural das lnguas de sinais liga-se ao fato de que estas no apresentam, por exemplo, elementos de ligao (tais como preposies e conjunes). Todavia, as lnguas de sinais so lnguas de modalidade visuoespacial que apresentam uma riqueza de expressividade diferente das lnguas orais, incorporando tais elementos na estrutura dos sinais atravs de relaes espaciais, estabelecidas pelo movimento ou outros recursos lingsticos (QUADROS e KARNOPP, 2004, p. 35).

Esta viso equivocada sobre as lnguas de sinais, ainda muito difundida nos dias de hoje, vigorou durante muitos anos at o incio dos estudos lingsticos realizados por Stokoe, nos anos de 1960. medida que a lngua de sinais vai tendo maior aceitabilidade na sociedade e seu uso se expande para vrias reas do conhecimento, novos discursos surgem juntamente com novos itens lexicais apropriados situao comunicacional. O quinto mito afirma que as lnguas de sinais derivariam da comunicao gestual espontnea dos ouvintes. Esse mito ligado idia de que as lnguas de sinais no so lnguas estruturadas, mas gestos que derivam da comunicao gestual dos ouvintes, por isso

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seria um sistema de comunicao universal, limitado e inferior. Isso porque durante sculos vigorou uma concepo aristotlica da linguagem, em que se acreditava que a lngua(gem) somente poderia se realizar atravs da fala. Essa viso perpassou todos os segmentos sociais, principalmente o religioso, no qual os surdos eram obrigados a falar para confessar sua f, caso contrrio queimariam no fogo do inferno. A crena nessa concepo de lngua(gem) no permitiu uma manifestao lingstica dos surdos atravs de uma lngua de modalidade visuoespacial, sendo estes obrigados ao uso da fala de forma muito limitada. O mito seis diz que as lnguas de sinais, por serem organizadas espacialmente, estariam representadas no hemisfrio direito do crebro, uma vez que esse hemisfrio responsvel pelo processamento de informao espacial, enquanto que o esquerdo, pela linguagem. Bellugi e Klima, 1990, apud: QUADROS E KARNOPP, 2004, p. 36, em suas pesquisas com surdos mostraram que, ao contrrio do que se acreditava, aqueles sujeitos que tinham leses no hemisfrio direito do crebro tinham condies de processar as informaes lingsticas das lnguas de sinais sem nenhum prejuzo, mesmo sendo elas visoespaciais, e os surdos que tinham leses no hemisfrio esquerdo do crebro processavam informaes espaciais no-lingsticas da lngua, mas no processavam as informaes lingsticas, atestando assim que as lnguas de sinais so processadas no hemisfrio esquerdo do crebro, ou seja, o hemisfrio destinado s lnguas em geral. O interesse pelo estudo das lnguas de sinais, na rea lingstica, crescente e as investigaes realizadas acerca destas lnguas buscam descrever e comprovar que estas so lnguas completas e complexas, com estruturas profundas e passveis de serem analisadas nos diversos nveis de realizao. At o incio da dcada de 1960, o estudo das lnguas se restringia ao estudo das lnguas faladas. Hoje, existe uma quantidade razovel de estudos na rea da lingstica sobre as lnguas de sinais, no somente acerca da estrutura destas lnguas, mas sobre a aquisio, o uso e o funcionamento das mesmas. As lnguas de sinais so, portanto, consideradas pela lingstica como lnguas naturais ou como um sistema lingstico legtimo e no como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 30). Stokoe (1960) foi o primeiro a pesquisar sobre as lnguas de sinais. Ele observou que os sinais no eram imagens, mas smbolos abstratos complexos, com profunda estrutura

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interna. Ele comprovou que a lngua de sinais atendia a todos os critrios de uma lngua flexibilidade e versatilidade, arbitrariedade e motivao, descontinuidade, criatividade e produtividade, dupla articulao, padro de organizao e dependncia estrutural -, no lxico, na sintaxe e na relao entre seus constituintes, sendo capaz de produzir sentenas infinitas. Mostrou tambm que cada sinal apresentava pelo menos trs partes constituintes independentes21, a localizao (L) ou ponto de articulao (PA), a configurao de mos (CM) e o movimento (M)22

. Em estudos posteriores ao de Stokoe, foi sugerida a adio de

mais duas partes constituintes independentes na formao do sinal, a orientao da mo (Or) e as expresses no-manuais (NM) que so as expresses faciais e/ou corporais. O estudo da fonologia das lnguas de sinais se d a partir destes cinco constituintes, ou parmetros, que so os fonemas destas lnguas. Estes parmetros isolados no possuem significado algum, mas combinados entre si podem formar uma infinidade de sinais com significado. Segundo Ferreira-Brito (1995), as lnguas de sinais so lnguas naturais porque, como as lnguas orais, surgiram espontaneamente da interao entre pessoas e porque, devido sua estrutura, permitem a expresso de qualquer conceito - descritivo, emotivo, racional, literal, metafrico, concreto, abstrato - enfim, permitem a expresso de qualquer significado decorrente da necessidade comunicativa e expressiva do ser humano. Uma diferena fundamental entre as duas modalidades de lngua, oral e de sinais, diz respeito estrutura. A primeira se estrutura seqencialmente - fonema aps fonema, palavra aps palavra, e assim por diante - enquanto que a segunda se estrutura, em nvel fonolgico, simultaneamente, todos os parmetros (fonemas) se realizam no mesmo instante. A estrutura seqencial das lnguas orais contrasta-se com a simultaneidade, muitas vezes, das lnguas de sinais em que os sinais possuem uma estrutura paralela, podendo fazer uso de sinais complexos, envolvendo simultaneamente diversas partes do corpo do sinalizador. Uma

Estes constituintes so chamados de parmetros e isoladamente no possuem significados, eles so equivalentes aos fonemas da lngua oral. 22 A localizao ou ponto de articulao se refere ao lugar onde a mo predominante pode estar tocando alguma parte do corpo ou estar em um espao neutro vertical (do meio do corpo at a cabea) e horizontal ( frente do emissor); a configurao de mos so as formas da mo que podem ser usadas na datilologia (alfabeto manual) ou outras formas feitas por uma ou pelas duas mos do emissor ou sinalizador; e o movimento, que um parmetro complexo, pode envolver movimentos internos da mo, movimentos do pulso e movimentos direcionais no espao. Um sinal pode ter movimento ou pode ter movimento parado.

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outra diferena que as distinguem o meio ou canal de comunicao: enquanto uma utiliza o canal oral-auditivo, a outra utiliza o canal viso-espacial. Desta forma, as lnguas de sinais articulam-se espacialmente e so percebidas visualmente, ou seja, usam o espao e as dimenses que ele oferece na constituio de seus mecanismos fonolgicos23, morfolgicos, sintticos e semnticos para veicular significados, os quais so percebidos pelos seus usurios atravs das mesmas dimenses espaciais. De acordo com Peixoto (2004, p. 33) esse tipo de organizao torna desnecessria a existncia de algumas categorias gramaticais (como as preposies, algumas conjunes e elementos de ligao em geral), pois as idias passadas por esses elementos so incorporadas na estrutura dos sinais pelas dimenses espaciais da lngua. A Lngua Brasileira de Sinais LIBRAS, assim como as demais lnguas de sinais, composta por signos24 que se estruturam de forma complexa. Os signos da LIBRAS se realizam basicamente pelo movimento das mos, juntamente com os demais parmetros que fazem parte da fonologia desta modalidade de lngua. Segundo Ferreira-Brito (1990) e Quadros & Karnopp (2004), os principais parmetros fonolgico da LIBRAS so configurao de mos, locao ou ponto de articulao e movimento.

Uma das tarefas de um investigador da lngua de sinais descobrir as configuraes de mos, os pontos de articulaes e movimentos que so traos distintivos dentro da lngua. Assim como nas lnguas orais, as lnguas de sinais tambm possuem seus

O termo fonologia adotado no estudo das lnguas de sinais, mesmo sendo estas de uma modalidade de lngua que no utiliza o som para sua percepo e produo. No incio dos estudos lingsticos acerca das lnguas de sinais adotou-se o termo Querologia (do grego mo), mas posteriormente este termo foi abandonado por entender-se que apesar das diferenas entre as duas modalidades de lngua, as lnguas de sinais compartilham dos mesmos princpios lingsticos subjacentes s lnguas orais. 24 Os signos lingsticos das lnguas de sinais so chamados de sinais, diferentemente das lnguas orais em que recebem o nome de palavras.

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pares de sinais que contrastam minimamente. Observaremos nas figuras abaixo que o contraste de apenas um dos parmetros altera o significado dos sinais.

Par de sinais distintos apenas pelo parmetro Ponto de articulao (FERREIRA BRITO, 1995).

Par de sinais distintos apenas pelo parmetro configurao de mo (FERREIRA BRITO, 1995).

Par de sinais distintos apenas pelo parmetro movimento (FERREIRA BRITO, 1995).

Atravs desta observao, podemos constatar que os parmetros ponto de articulao (PA), configurao de mos (CM) e movimento (M) assumem a mesma funo que os fonemas assumem nas lnguas orais, com a diferena que os fonemas nas lnguas de sinais se realizam simultaneamente e no linearmente como nas lnguas orais, como j foi explicado anteriormente. Ou seja, para o sinal ser realizado preciso que os trs parmetros (alm dos secundrios e expresses no-manuias, como veremos a seguir) aconteam ao mesmo tempo.

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Configurao de mos (CM) A configurao de mos so as diversas formas que a(s) mo(s) toma(m) na realizao dos sinais. A LIBRAS apresenta 46 CMs25, 26 destas so configuraes que representam tambm as letras do alfabeto manual em LIBRAS. De acordo com Ferreira Brito, as CMs utilizadas em LIBRAS so semelhantes ao sistema da ASL, embora nem todas as lnguas de sinais compartilhem o mesmo quadro de configurao de mos. A seguir, o quadro de CMs, organizado em grupos segundo semelhanas de configurao.

As 46 Configuraes da LIBRAS ( FERREIRA BRITO, 1995)

Existem estudos que indicam maior nmero de CMs encontrados na LIBRAS, mas nesse trabalho ficaremos com a tabela organizada por Ferreira-Brito.

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Locao ou Ponto de Articulao (L) ou (PA) A locao ou o ponto de articulao, que corresponde ao local onde o sinal articulado, seja este local um espao neutro frente do corpo (exemplos de sinais realizados neste espao: casa, trabalho, criana, etc.) ou um local no prprio corpo (ex. amigo, na regio do tronco, obrigado, na regio da cabea, etc.), tem um espao limitado para sua realizao que vai do topo da cabea at os quadris do sinalizador.

Espao de realizao dos sinais (QUADROS e KARNOPP, 2004).

As locaes ou pontos de articulao dividem-se em quatro principais regies: cabea, tronco, mo e espao neutro. Cabea topo da cabea testa Rosto parte superior do rosto parte inferior do rosto Orelha Olhos Nariz Boca Braos brao antebrao Tronco pescoo ombro busto estmago cintura

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Bochechas Queixo Mo Palma costas das mos lado do indicador lado do dedo mnimo Dedos ponta dos dedos dedo mnimo Anular dedo mdio Indicador Polegar

cotovelo pulso Espao neutro

Locaes propostas por Friedman e adaptadas por Ferreira Brito e Langevin, 1995.

Movimento (M) Segundo muitos pesquisadores o movimento um dos parmetros mais complexos porque pode envolver uma vasta rede de formas e direes, desde movimentos internos da mo, os movimentos do pulso, os movimentos direcionais no espao at conjuntos de movimento no mesmo sinal (FERREIRA-BRITO, 1995) e (QUADROS & KARNOPP, 2004). O movimento pode ser analisado levando-se em conta o tipo, a direo, a maneira e a freqncia do sinal26.

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O tipo refere-se s variaes do movimento das mos, pulsos e antebraos, ao movimento interno dos pulsos ou das mos (ex. palestra) e ao movimento dos dedos. A direo pode ser unidirecional, bidirecional ou multidirecional (ex. eu olho para voc, voc olha para mim). A maneira descreve a qualidade, a tenso e a velocidade podendo, assim, haver movimentos mais rpidos, mais tensos e mais leves (ex. zangado, muito zangado). A freqncia pode indicar se os movimentos so simples ou repetidos, ou pode distinguir itens lexicais (ex. sentar, cadeira).

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Mudanas no movimento interno da mo, como abrir, fechar ou dobrar os dedos conduzem a mudana na CM. Da mesma forma, mudanas na freqncia do movimento de um sinal servem para distinguir itens lexicais como nomes e verbos (p. ex: sentar e cadeira), assim como mudanas na direo do movimento de verbos indicam a concordncia verbal. Parte da complexidade desse parmetro est relacionada com a diversidade de categorias que o caracterizam (PEIXOTO, 2004, p. 36 37).

O quadro a seguir, elaborado por Brito, mostra as categorias do movimento. TIPO Contorno ou forma geomtrica: retilneo, helicoidal, circular, semicircular, sinuoso, angular, pontual Interao: alternado, de aproximao, de separao, de insero, cruzado Contato: de ligao, de agarrar, de deslizamento, de toque, de esfregar, de riscar, de escovar ou de pincelar Torcedura do pulso: rotao, com refreamento Dobramento do pulso: para cima, para baixo Interno das mos: abertura, fechamento, curvamento e dobramento (simultneo/ gradativo) DIRECIONALlDADE Direcional - Unidirecional: para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda, para dentro, para fora, para o centro, para a lateral inferior esquerda, para a lateral inferior direita, para a lateral superior esquerda, para a lateral superior direita, para especfico ponto referencial - Bidirecional:para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, para dentro e para fora, para laterais opostas - superior direita e inferior esquerda No-direcional MANEIRA Qualidade, tenso e velocidade - contnuo - de reteno - refreado FREQNCIA Repetio - simples - repetidoCategorias do parmetro Movimento na LIBRAS ( Ferreira Brito, 1990)

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Esses trs primeiros parmetros (CM, PA, M) so considerados, por FerreiraBrito e outros pesquisadores, como os parmetros primrios para o estudo da fonologia das lnguas de sinais. Juntamente a estes teremos os no menos importantes parmetros secundrios, que so: a orientao da mo, juntamente com a disposio das mos e a regio de contato 27, e as expresses no-manuais. A orientao da(s) mo(s) a direo da palma da mo durante a realizao do sinal, que pode ser voltada para baixo, para cima, para o corpo, para frente, para a esquerda ou para a direita. Pode acontecer mudana da orientao durante a realizao do sinal. As expresses no-manuais movimento da face, dos olhos, da cabea ou do tronco podem ter dois papis nas lnguas de sinais: marcao de construes sintticas e diferenciao de itens lexicais. As expresses no-manuais que tm funo sinttica marcam as sentenas interrogativas, as negativas, oraes relativas, topicalizaes, concordncia e foco. E as que constituem componentes lexicais marcam referncia especfica, referncia pronominal, partcula negativa, advrbio, grau ou aspecto, alm de poderem diferenciar significados (QUADROS & KARNOPP, 2004). Na diferenciao de itens lexicais, Ferreira-Brito cita o seguinte exemplo: a diferena entre PENSAR, DUVIDAR e ENTENDER (sinais de SP). Nos trs sinais, a configurao a mo em G, com a ponta do indicador em contato com a lateral da cabea. Em PENSAR h apenas um toque; em DUVIDAR, o toque acompanhado do olhar e da expresso facial mostrando dvida e balanando a cabea para os lados; ENTENDER realizado com um toque do indicador e um rpido afastamento, enquanto os olhos se abrem. importante notar que tanto os parmetros primrios, como os secundrios e os componentes no-manuais podem estar presentes simultaneamente na organizao do sinal. O sinal se realiza multidimensionalmente e no linearmente, como acontece, em geral, com as palavras orais, e a sua realizao necessita da presena simultnea de seus parmetros (FERREIRA-BRITO, 1995, p- 41).

Uma outra caracterstica importante das lnguas de sinais, que tambm uma caracterstica inerente s lnguas orais, o fenmeno do emprstimo lingstico. Os emprstimos lingsticos identificados na LIBRAS, segundo Ferreira-Brito, so cinco:A disposio das mos a articulao dos sinais que pode ser feita apenas pela mo dominante ou pelas duas mos. As duas mos podem se movimentar na formao do sinal, ou apenas a mo dominante se movimenta. A regio de contato refere-se parte da mo que entra em contato com o corpo, que pode ser atravs de um toque, um risco ou um deslizamento.27

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emprstimos lexicais de outras lnguas de sinais, emprstimo de domnio semntico, emprstimos lexicais, inicializao e emprstimo de ordem fontica. Os dois primeiros tipos de emprstimos lingsticos fazem referncias a emprstimos de outras lnguas de sinais, como por exemplo, o sinal ANO, cuja origem parece ser o mesmo sinal de mesmo valor semntico da Lngua de Sinais Americana (ASL) (FERREIRA-BRITO, 1995, p. 23). J os trs ltimos emprstimos apresentados so feitos em relao lngua portuguesa, sendo que os dois primeiros so mais freqentes em LIBRAS28. Tanto o emprstimo lexical como a inicializao caracterizam-se pelo uso do alfabeto digital (CM correspondente letra) na composio do sinal. Sendo que no primeiro caso, o sinal inteiro ser feito pela soletrao das letras na composio da palavra, mas com ritmo diferenciado da soletrao comum, normalmente um ritmo acelerado. Como exemplo de emprstimos lexicais, temos: AZUL, NUNCA, MARO, VEZ, entre outros. No segundo caso, apenas a primeira letra da palavra em portugus representada no sinal atravs da CM que representa esta letra. Exemplos de sinais que so emprstimos lingsticos por inicializao so: VERDE, BRASIL, EUROPA etc. Apresentaremos agora algumas caractersticas da organizao morfolgica da Lngua Brasileira de Sinais, e observaremos que esta se diferencia bastante da organizao morfolgica da Lngua Portuguesa. Vale lembrar que estas diferenas ocorrem, principalmente, pela distino de modalidade entre as lnguas: uma tem a modalidade oralautidiva e a outra, a modalidade viso-espacial, em que a simultaneidade dos parmetros ser determinante para o tipo de organizao que a lngua ter.Neste caso a principal diferena para com a lngua portuguesa seria a ausncia de flexo de gnero e nmero, assim como de tempo e modo para os verbos. O fato de no ocorrer a flexo no prprio sinal no quer dizer que essas marcaes sero ignoradas em enunciados feitos na LIBRAS, e sim que sero demarcadas de outras formas, como por exemplo, o acrscimo dos sinais homem/mulher para indicar o gnero ou a repetio do sinal e o acrscimo do sinal muitos para indicar o plural, ou ainda o uso de locativos temporais para indicar o tempo dos verbos (PEIXOTO, 2004, p. 41).

O emprstimo de ordem fontica obtido pela tentativa de representao visual do som que constitui a palavra em portugus, tal como ela percebida pelo surdo (FERREIRA-BRITO, 1995, p. 24).

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Segundo pesquisadores da rea, as diferenas apresentadas acima entre a LIBRAS e o portugus no devem ser consideradas como pobreza ou incompletitude da lngua de sinais, mas deve-se sim, considerar que estas diferenas ocorrem, justamente, pela diferena na modalidade de uso de uma lngua e de outra. O que devemos considerar que, se trabalhamos com duas lnguas de estruturas diferentes, no podemos utilizar a mesma metodologia de ensino. A criana surda - usuria dos sinais - se depara diariamente com a escrita do portugus e enfrenta essa rdua tarefa de lidar com essas diferenas. Ao fazermos uso da mesma metodologia, recorrendo s mesmas estratgias de ensino para o aluno surdo e para o aluno ouvinte, estaremos negando ao aluno surdo o direito condio bilnge. 1.3 Lngua de sinais como mediadora do aprendizado do portugus (escrito) Durante muito tempo a linguagem humana foi, e continua sendo, o foco de estudo de muitas reas da cincia. A preocupao com o desenvolvimento da linguagem oral na educao de surdos, ao longo da histria, sempre foi uma preocupao exagerada. Sempre se colocou o aprendizado da linguagem (oral) em detrimento do aprendizado de contedos. Isso porque a criana surda no apreendia naturalmente a linguagem oral, tendo em vista que este um processo que demanda a passagem pela lngua oral-auditiva. Apesar deste entrave, acreditava-se, e muitos hoje ainda acreditam, que fazer o surdo falar e ler os lbios permitir o acesso a linguagem 29, por isso muitas tcnicas e metodologias foram desenvolvidas para o favorecimento deste processo. No entanto, a histria da educao dos surdos nos mostra que apesar de todo esse empenho, os resultados foram conseqncias drsticas para a educao dos surdos, a maior parte dos adultos surdos brasileiros demonstram o fracasso das inmeras tentativas de se garantir linguagem atravs da lngua oral-auditiva do Pas, a lngua portuguesa (QUADROS, 1997, p.70). Vimos anteriormente que as pesquisas acerca das lnguas de sinais surgiram nos anos de 1960 com os estudos lingsticos de Stokoe. Foi a partir desses estudos que muitas outras pesquisas, acerca das lnguas de sinais, surgiram, inclusive pesquisas voltadas ao processo de aquisio da linguagem em crianas surdas. Estudos mostraram que a aquisio

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Frase repetida ao longo da histria dos surdos.

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da linguagem em crianas surdas com a lngua de sinais tem perodo anlogo aquisio da linguagem em crianas ouvintes com a lngua oral-auditiva.A aquisio da linguagem em crianas surdas deve ser garantida atravs de uma lngua visual-espacial. No caso do Brasil, atravs da LIBRAS. Isso independe de propostas pedaggicas (desenvolvimento da cidadania, alfabetizao, aquisio do portugus, aquisio de conhecimentos, etc.), pois algo que deve ser pressuposto. Diante do fato das crianas surdas virem para a escola sem adquirirem uma lngua, a escola precisa estar atenta a programas que garantam o acesso LIBRAS. O processo educacional ocorre mediante interao lingstica e deve ocorrer, portanto, na LIBRAS. Se a criana chega na escola sem linguagem, fundamental que o trabalho seja direcionado para a retomada do processo de aquisio da linguagem atravs de uma lngua visual-espacial. A aquisio da LIBRAS por crianas surdas brasileiras algo inquestionvel (QUADROS, 1997, p. 72).

As propostas pedaggicas das escolas de surdos devem, no apenas, levar em considerao as lnguas envolvidas no processo educacional, mas ir muito alm disso, e cumprir o seu papel, enquanto instituio educacional, na formao dos alunos surdos. de responsabilidade da escola oferecer ao cidado o instrumento mnimo para que ele exera seu direito de prosperar profissional e socialmente. Mas sabemos que na prtica, a escola para muitos se transformou em um local de frustrao. Todas as mazelas que atingem a educao no Brasil atingem igualmente a educao de surdos, s que com um agravante: o fator lngua30. Na maioria das vezes, o aluno surdo desafiado a aprender contedos programticos em uma lngua que ele no domina, no nosso caso, a lngua portuguesa. No domina por dois motivos; primeiro, no sua lngua e segundo, o ensino do portugus para surdos, inclusive o escrito, baseado no ensino de portugus para ouvintes que adquirem o portugus falado espontaneamente31. Inevitavelmente o resultado disso tem sido o fracasso, a frustrao, o isolamento social e o abandono da escola por parte desse aluno. Diante da realidade apresentada fao minhas as palavras de Freire (1999) se atravs da educao queA discriminao escolar sofrida pelos surdos se deve, estritamente, diferena entre sua lngua e a lngua utilizada no ambiente escolar. 31 A maioria dos procedimentos metodolgicos objetiva a oralidade como requisito indispensvel alfabetizao e, nos casos comuns no mbito da educao especial em que crianas apresentam problemas relacionados ao desenvolvimento da linguagem, estabelece-se uma relao causa-efeito equivocada entre problemas na oralidade e dificuldades na escrita (FABRI, 2001).30

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o surdo poder ter acesso a um avano social e profissional e se a nica lngua utilizada na sua educao o portugus, tanto na modalidade oral quanto na escrita, ento este aprendiz j tem automaticamente bloqueados seus direitos como cidado brasileiro (p. 25). Assim, afirmamos neste trabalho que a aquisio da LIBRAS Lngua Brasileira de Sinais pelo surdo um direito de cidado brasileiro, assim como o aprendizado da Lngua Portuguesa, sendo que o aprendizado desta ltima deve ser como o de segunda lngua (L2), com metodologia de segunda lngua, uma vez que a primeira lngua (L1) do surdo a lngua de sinais32. A escola tem o dever de garantir a este cidado o acesso pleno s duas lnguas, j que isto implicar na sua formao e que as lnguas citadas tm funes sociais distintas e determinadas. O ensino da Lngua Portuguesa passaria a ser entendido, ento, como o ensino de uma lngua instrumental com o objetivo de desenvolver no aprendiz habilidades de leitura e produo escrita (FREIRE, 1999, p. 26). Segundo Quadros e Schmiedt (2006), o ensino da lngua portuguesa escrita para crianas surdas pode realizar-se atravs de dois recursos utilizados em sala muito importantes: o relato de histrias em sinais juntamente com a produo espontnea e a produo de literatura infantil em sinais33. A produo de histrias espontneas, piadas e contos em lngua de sinais que passam de gerao a gerao so exemplos de literatura em sinais e precisariam fazer parte do processo de alfabetizao da criana surda. Mas, infelizmente, na nossa realidade as prticas na educao de surdos, na grande maioria das vezes, no se utiliza nem a lngua de sinais no processo de alfabetizao das crianas surdas, tampouco a literatura surda34. E importante o resgate desta produo literria em sinais para o processo da alfabetizao de surdos, pois a partir dele que o surdo poder tornar-se um leitor na lngua de sinais para posteriormente tornar-se tambm um leitor em lngua portuguesa.Muitos pesquisadores e educadores investigam o processo de aquisio da modalidade escrita de uma lngua oral-auditiva por alunos surdos. Pressupem a aquisio da lngua de sinais como L1 e propem a aquisio da escrita da lngua oral-auditiva como aquisio de uma L2. 33 A comunidade surda tem como caracterstica muito presente a contao de histrias espontneas, piadas e contos que passam de gerao em gerao sem um registro formal. Geralmente so histrias contadas em encontros informais em associaes de surdos. Estas histrias seriam de suma importncia para a alfabetizao dos surdos, pois uma vez que eles aprendessem a ler os sinais, teriam mais subsdios para aprender a ler as palavras em lngua portuguesa. Mas, infelizmente nunca houve uma preocupao com o registro dessas histrias. 34 A literatura surda traduz a memria das vivencias surdas atravs das vrias geraes dos povos surdos. A literatura se multiplica em diferentes gneros: poesia, histria de surdos, piada, literatura infantil, clssicos, contos, romances, fbulas, lendas, etc. Grande parte dessas narrativas em lngua de sinais tem sido gravada em CDs, Vdeos e DVDs, servindo como fontes de pesquisas nas Universidades.32

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Como vimos anteriormente, a lngua de sinais uma lngua de modalidade visoespacial, e por esse motivo explorada de forma diferente da lngua oral. Existem muitas formas de explorar a lngua de sinais criativamente: configuraes de mo, movimentos, expresses faciais gramaticais, localizaes, movimentos do corpo, espao de sinalizao, classificadores so alguns dos recursos discursivos que tal lngua oferece para serem explorados durante o desenvolvimento da criana surda e que devem ser explorados para um processo de alfabetizao com xito 35 (QUADROS e SCHMIEDT, 2006). O quadro a seguir apresenta alguns dos aspectos que, segundo pesquisas desenvolvidas em escolas bilnges americanas, precisam ser explorados no processo educacional do surdo. Estabelecimento do olhar; Explorao das configuraes de mos; Explorao dos movimentos dos sinais (movimentos internos e externos, ou seja, movimentos do prprio sinal e movimentos de relaes gramaticais no espao); Utilizao de sinais com uma mo, duas mos com movimentos simtricos, duas mos com movimentos no simtricos, duas mos com diferentes configuraes de mos; Uso de expresses no manuais gramaticalizadas (interrogativas, topicalizaes, foco e negao); Explorao das diferentes funes do apontar; Utilizao de classificadores com configuraes de mos apropriadas (incluem todas as relaes descritivas e preposicionais estabelecidas atravs de classificadores, bem como as formas de objetos, pessoas e aes e relaes entre eles, tais como, ao lado de, em cima de, contra, embaixo de, em, dentro de, fora de, atrs de, em frente de, etc); Explorao das mudanas de perspectivas na produo de sinais; Explorao do alfabeto manual; Estabelecimento de relaes temporais atravs de marcao de tempo e de advrbios temporais (futuro, passado, presente, ontem, semana passada, ms passado, ano passado, antes, hoje, agora, depois, amanh, semana que vem, prximo ms, etc); Explorao da orientao de mo; Especificao do tipo de ao, durao, intensidade, e repetio (adjetivao, aspecto e marcao de plural); Jogos de perguntas e respostas observando o uso dos itens lexicais e expresses no manuais correspondentes;

Os Classificadores em lngua de sinais so certas configuraes de mos que funcionam como morfemas que marcam certas caractersticas de um objeto nestas lnguas. Vrios lingistas, que tm pesquisado lnguas de sinais, tm demonstrado que estas lnguas possuem vrios tipos de classificadores.

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Utilizao de feedback (sinais manuais e no-manuais especficos de confirmao e negao, tais como, o sinal CERTO-CERTO, o sinal NO, os movimentos de cabea afirmando ou negando; Explorao de relaes gramaticais mais complexas (relaes de comparao, tais como, isto e aquilo, isto ou aquilo, este melhor do que este, aquele melhor do que este, este igual quele, este com aquele; relaes de condio, tais como, se isto ento aquilo; relaes de simultaneidade, por exemplo, enquanto isto acontece, aquilo est acontecendo; relaes de subordinao, como por exemplo, o fulano pensa que est fazendo tal coisa; aquele que tem isso, est fazendo aquilo); Estabelecimento de referentes presentes e no presentes no discurso, bem como o uso de pronomes para retomada de tais referentes de forma consistente; Explorao da produo artstica em sinais usando todos os recursos sintticos, morfolgicos, fonolgicos e semnticos prprios da LIBRAS.Alguns aspectos lingsticos da LIBRAS (QUADROS e SCHMIEDT, 2006).

A explorao destes aspectos, que tornam a lngua de sinais um sistema lingstico mais complexo, juntamente com os relatos de histrias e produo literria, bem como a interao espontnea da criana com outras crianas e com adultos por meio da lngua de sinais propiciar uma alfabetizao satisfatria criana surda. As crianas precisam dominar tais relaes para explorar toda a capacidade criativa que pode ser expressa por meio da lngua e tornar possvel o amadurecimento da capacidade lgica para aprender uma segunda lngua (QUADROS e SCHMIEDT, 2006, p. 28). Sabemos que atravs da lngua, e somente atravs dela, que conseguiremos estabelecer relaes e organizar idias para podermos discutir e pensar sobre o mundo. No caso dos surdos, a lngua que permitir esse processo a lngua de sinais. J vimos que o aprendizado da escrita de uma lngua oral-auditiva, no nosso caso a lngua portuguesa, pela criana surda envolve um aprendizado de segunda lngua. De acordo com Quadros e Schmiedt (2006), entre outros pesquisadores, este processo de aprendizagem envolve alguns aspectos fundamentais: a) o processamento cognitivo espacial especializado dos surdos; b) o potencial das relaes visuais estabelecidas pelos surdos36; c) a possibilidade de transferncia da lngua de sinais para o portugus; d) as diferenas nas modalidades das lnguas no processo educacional; e) as diferenas dos papis sociais e acadmicos cumpridos por cada lngua; f) as diferenas que a comunidade surda estabelece

Para o aprendizado da leitura e da escrita pelo surdo deve ser explorado principalmente, se no, exclusivamente, a percepo visual dessas duas habilidades.

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com a escrita tendo em vista sua cultura; g) a existncia do alfabeto manual que representa uma relao visual com as letras usadas na escrita do portugus. Entendemos que na perspectiva do desenvolvimento cognitivo, a aquisio de uma segunda lngua similar aquisio de primeira lngua. Mas, sabemos que qualquer aprendiz de L2 sempre far relaes entre o que est aprendendo na nova lngua e o conhecimento que possui da sua L1 torna-se muito mais penoso o aprendizado de uma L2 sem a aquisio de uma L1. A importncia de uma primeira lngua na vida de um sujeito um fato indiscutvel uma vez que a mesma ir constituir-se em elemento fundador de seu psiquismo e de sua vida em grupo social dado (FABRI, 2001, p. 51). No caso dos surdos, devemos levar em considerao que eles no so letrados na sua primeira lngua quando se deparam com o portugus escrito37, ou seja, com o aprendizado da L2. Os surdos no ouvem as palavras em portugus e no discutem sobre seu significado nesta lngua, essa discusso mediada pela lngua de sinais, ou seja, a escrita do portugus significada a partir da lngua de sinais38. Este processo, se no for bem conduzido, pode acarretar uma grande confuso para o aprendiz surdo. Os surdos, na maioria das vezes, mesmo depois de adultos e proficientes na lngua de sinais, no sabem distinguir o que faz parte da lngua de sinais e o que faz parte da lngua portuguesa, para eles uma lngua extenso da outra. A escrita em portugus nada mais seria, seno a lngua de sinais escrita, e a lngua de sinais a representao visual da lngua portuguesa39. Por isso, importante evidenciar para a criana surda que sua alfabetizao um processo que envolve duas lnguas e ela precisar estar ciente das situaes em que uma e outra sero utilizadas. A partir de alguns estudos, podemos observar que de maneira similar oralidade para os ouvintes, a lngua de sinais organiza logicamente as idias e o pensamento dos surdos no momento da produo escrita em portugus. Essa interferncia acaba refletindo na

Existe a escrita da lngua de sinais (Sign Writing), um sistema no-alfabtico que representa as unidades espaciais-visuais dessa lngua. Esta escrita ainda no muito difundida na educao de surdos, mas h pesquisadores que defendem que os surdos primeiro deveriam ser alfabetizados na escrita de sua lngua para posteriormente adquirirem a escrita do portugus como segunda lngua. Sobre Sign Writing consultar Stumpf, 2002. 38 Existem estudos (FERNANDES, 1999); (MACHADO, 2000); (PEIXOTO, 2001) entre outros, que mostram a inadequao de prticas de letramento pautadas no som para surdos, j que o surdo percebe a escrita visualmente e no auditivamente, e tentam mostrar como a leitura significada pelo surdo atravs da lngua de sinais. A leitura para o surdo sempre passar por um processo de traduo. 39 J vimos anteriormente que este um equvoco no somente cometido pelos surdos, mas pela grande maioria dos ouvintes, quando acreditam no mito de que as lnguas de sinais so derivadas das lnguas orais.

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estrutura morfossinttica da escrita desse sujeito. Como conseqncia, teremos produes textuais imensamente distantes daquelas que so tidas como padro de normalidade, muitas vezes encaradas como dados patolgicos de linguagem, que justificam a marginalizao dos surdos no contexto escolar, traduzidas por prticas avaliativas extremamente excludentes (FABRI, 2001, p. 58). Mas, ao contrrio do que parece ser, essas escritas revelam como acontece o processo de aquisio da lngua portuguesa pelo surdo. Ou seja, o aprendizado da segunda lngua (escrita) apresentar vrios estgios de interlngua; as crianas apresentaro escritas que nem representam a primeira lngua, nem representam ainda a lngua alvo. Essa interlngua no catica e nem desorganizada, ela apresenta sim hipteses e regras que comeam a delinear uma outra lngua que j no mais a primeira lngua daquele que est no processo de aquisio da segunda lngua (QUADROS e SCHMIEDT, 2006, p. 34). O quadro abaixo mostra o processo de interlngua em surdos fluentes em lngua de sinais, observado por Brochado e citado por Quadros e Schmiedt:

Estgios de interlngua em crianas surdas INTERLNGUA I Neste estgio observa-se o emprego predominante de estratgias de transferncia da lngua de sinais (L1) para a escrita da lngua portuguesa (L2) desses informantes, caracterizando-se por: Predomnio de construes frasais sintticas; estrutura gramatical de frase muito semelhante lngua de sinais brasileira (L1), apresentando poucas caractersticas do portugus (L2); aparecimento de construes de frases na ordem SVO, mas maior quantidade de construes tipo tpico-comentrio; predomnio de palavras de contedo (substantivos, adjetivos, verbos); falta ou inadequao de elementos funcionais (artigos, preposio, conjuno); uso de verbos, preferencialmente, no infinitivo; emprego raro de verbos de ligao (ser, estar, ficar), e, s vezes, incorretamente; uso de construes de frase tipo tpico-comentrio, em quantidade, proporcionalmente maior, no estgio inicial da apropriao da L2;

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falta de flexo dos nomes em gnero, nmero e grau; pouca flexo verbal em pessoa, tempo e modo; falta de marcas morfolgicas; uso de artigos, s vezes, sem adequao; pouco emprego de preposio e/ou de forma inadequada; pouco uso de conjuno e sem consistncia; semanticamente, ser possvel estabelecer sentido para o texto.

INTERLNGUA II Neste estgio constatamos na escrita de alguns uma intensa mescla das duas lnguas, em que se observa o emprego de estruturas lingsticas da lngua de sinais brasileira e o uso indiscriminado de elementos da lngua portuguesa, na tentativa de apropriar-se da lngua alvo. Emprego, muitas vezes, desordenado de constituintes da L1 e da L2. Justaposio intensa de elementos da L1 e da L2; estrutura da frase ora com caractersticas da lngua de sinais brasileira, ora com caractersticas gramaticais da frase do portugus; frases e palavras justapostas confusas, no resultam em efeito de sentido comunicativo; emprego de verbos no infinitivo e tambm flexionados; emprego de palavras de contedo (substantivo, adjetivos e verbos); s vezes, emprego de verbos de ligao com correo; emprego de elementos funcionais, predominantemente, de modo inadequado; emprego de artigos, algumas vezes concordando com os nomes que acompanham; uso de algumas preposies, nem sempre adequado; uso de conjunes, quase sempre inadequado; insero de muitos elementos do portugus, numa sintaxe indefinida; muitas vezes, no se consegue apreender o sentido do texto, parcialmente ou totalmente; sem o apoio do conhecimento anterior da histria ou do fato narrado.

INTERLNGUA III Neste estgio, os alunos demonstram na sua escrita o emprego predominante da gramtica da lngua portuguesa em todos os nveis, principalmente, no sinttico. Definindo-se pelo aparecimento de um nmero maior de frases na ordem SVO e de estruturas complexas, caracterizam-se por apresentar: Estruturas frasais na ordem direta do portugus; predomnio de estruturas frasais SVO; aparecimento maior de estruturas complexas; emprego maior de palavras funcionais (artigos, preposio, conjuno);

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categorias funcionais empregadas, predominantemente, com adequao; uso consistente de artigos definidos e, algumas vezes, do indefinido; uso de preposies com mais acertos; uso de algumas conjunes coordenativas aditiva (e), alternativa (ou), adversativa (mas), alm das subordinativas condicional (se), causal e explicativa (porque), pronome relativo (que) e integrante (que); flexo dos nomes com consistncia; flexo verbal, com maior adequao; marcas morfolgicas de desinncias nominais de gnero e de nmero; desinncias verbais de pessoa (1 e 3 pessoas), de nmero (1 e 3 pessoas do singular e 1 pessoa do plural) e de tempo (presente, pretrito perfeito), com consistncia; emprego de verbos de ligao ser, estar e ficar com maior freqncia e correo.Tabela elaborada por BROCHADO (2002) apud QUADROS e SCHMIEDT (2006).

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2 LEITURA E SURDEZA vida parece particularmente difcil para o leitor iniciante. (Frank Smith)

2.1 Estratgias de leitura A perspectiva tradicional de leitura a conceitua como habilidade para decodificar os grafemas atravs dos sons (fonemas) que eles intencionam representar. Nesta perspectiva a leitura vista como meta e no como meio, isto , primeiro os alunos aprendem a decodificar as palavras e somente depois que eles estaro aptos a ler. Ainda de acordo com essa concepo, a escrita no est associada a situaes reais de uso e sua decifrao torna-se central, ou seja, se o aluno conseguir decifrar o que est escrito, conseguir ler qualquer coisa, mesmo que para isso ele no atribua sentido ao que acabou de ler; discriminar e produzir sons adequadamente so fundamentais para uma boa leitura. Durante muito tempo acreditou-se que o melhor mtodo para ensinar leitura seria atravs de cartilhas. Sol (1998) nos apresenta como acontecia este processo: o mtodo para aprender a ler comeava com a ao de soletrar palavras para conhecer o alfabeto e cada letra em particular nas formas maiscula e minscula, depois vinha a diviso silbica e, por ltimo, a leitura corrente. Este mtodo, associado separao que se fazia de leitura e escrita e ao grande nmero de alunos que um professor tinha, e ainda tem em sala, resultava com que esses alunos demorassem muitos anos para aprender a ler, e que essa leitura, muitas vezes, fosse entrecortada e sem atribuio de sentido algum. Naquela poca, leitura no significava compreenso. Numa perspectiva no tradicional de leitura, ler atribuir diretamente um sentido a algo escrito. questionar algo escrito como tal a partir de uma expectativa real (necessidade/prazer) numa verdadeira situao de vida (JOLIBERT, 1994, p.15). A leitura passa a ser meio e no fim, ela no precisa da intermediao, nem da decifrao e nem