MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM P D F

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INTRODUÇÃO Atrocidades que cometem os seres humanos, mesmo não se admitindo, pode ser manifestação oriunda da própria humanidade de cada indivíduo, infelizmente. Foi o que aconteceu, por exemplo, na 2 a Guerra Mundial, em que se dizimaram pelo menos sete milhões de judeus, em nome da pureza humana, da raça ariana de Adolf Hitler. Mas a reflexão que se pode fazer de cada ato de indignidade praticado no mundo, seja beligerante, seja social (em virtude de desprezo estatal, racismo ou preconceito), leva o homem a voltar-se para si mesmo, a repensar-se. E desse ato surge sempre uma forma, de buscar alguma razão para tolerância humana, principalmente no campo ético e moral. É o caso, por exemplo, dos direitos internacionais humanos, oriundos do segundo pós-guerra mundial, responsáveis por tornarem cada ser humano em sua singularidade, merecedor de respeito, não somente dos Estados, mas do mundo. Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, convencionou-se tratar a cada indivíduo como único, porque a própria vida é única. Desde então, não só a ética como a moral, passam a revestir a abstração e o positivismo do direito, tornando-o então um pouco mais próximo do ser humano. Os direitos fundamentais, oriundos da Revolução Francesa do século XVIII, já haviam feito isso, mesmo de maneira quase imperceptível; com o pós-guerra, se passa a lhes permear também de dignidade, 1

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INTRODUÇÃO

Atrocidades que cometem os seres humanos, mesmo não se admitindo, pode

ser manifestação oriunda da própria humanidade de cada indivíduo, infelizmente. Foi o que

aconteceu, por exemplo, na 2a Guerra Mundial, em que se dizimaram pelo menos sete milhões

de judeus, em nome da pureza humana, da raça ariana de Adolf Hitler.

Mas a reflexão que se pode fazer de cada ato de indignidade praticado no

mundo, seja beligerante, seja social (em virtude de desprezo estatal, racismo ou preconceito),

leva o homem a voltar-se para si mesmo, a repensar-se. E desse ato surge sempre uma forma,

de buscar alguma razão para tolerância humana, principalmente no campo ético e moral. É o

caso, por exemplo, dos direitos internacionais humanos, oriundos do segundo pós-guerra

mundial, responsáveis por tornarem cada ser humano em sua singularidade, merecedor de

respeito, não somente dos Estados, mas do mundo. Com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, convencionou-se tratar a cada indivíduo como único, porque a própria vida é única.

Desde então, não só a ética como a moral, passam a revestir a abstração e o

positivismo do direito, tornando-o então um pouco mais próximo do ser humano. Os direitos

fundamentais, oriundos da Revolução Francesa do século XVIII, já haviam feito isso, mesmo

de maneira quase imperceptível; com o pós-guerra, se passa a lhes permear também de

dignidade, decência, e não só de fundamentalidade. O que, noutra palavras, significa lhes

erigir juridicamente em favor de cada indivíduo, assim o fazendo pela condição, sobretudo,

“humana”, que homens e mulheres de todas as nacionalidades do planeta têm. Debaixo a um

só pensamento, qual seja, o de que a ordem jurídica de cada Estado, tanto quanto a ordem

jurídica internacional, tem a missão inderrogável de proteger a cada um, se passa a conceber o

Estado – incluindo-se aí o direito em si -, como razão, produto da vida humana, e não o

contrário.

Somam-se os valores da filosofia, da história e da sociologia enquanto ciências

humanas, a inspirar o mundo do “dever-ser”, da norma hipotética fundamental que é uma

Constituição, como diz Hans Kelsen. E tem-se então, o fato de os Textos Constitucionais

passarem a se embeber do que então ocorre no mundo do “ser”, de como as coisas são

realmente, para humanizar as relações jurídicas entre Estado e indivíduo, principalmente.

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Disso decorre o princípio da dignidade da pessoa humana enquanto valor

axiológico-normativo, principalmente em nossa Constituição Federal de 1988. Essa

“dignidade” humana de cada um, acaba por fundar o sistema jurídico brasileiro, o mundo do

“dever-ser” hipotético. Os contornos de uma verdadeira Democracia são também delimitados

por esta dignidade. E o mote para as funções principalmente típicas, dos três Poderes Políticos

brasileiros, passa a mirar a condição humana de cada indivíduo para então bem cumprirem

seu papel.

Ampliando esse conceito de dignidade humana, a seu turno, o § 2o do art. 5o da

CF/88 está também a cumprir com tal intuito. Diz o dispositivo que, acima de tudo, direitos e

garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos

princípios adotados pelo país, ou dos tratados internacionais dos quais o Brasil faça parte. O

que faz ampliar o conceito que se pode traçar a respeito de como a dignidade do ser humano –

em especial, a de brasileiros e estrangeiros residentes no país -, se avoluma com o passar do

tempo, fato esse inevitável.

Porque o que faz o direito na sua finalidade de distribuição de justiça, além de

harmonizar a convivência humana, é também amenizar dentro de cada indivíduo, o

sentimento que tem do descaso estatal a não atender-lhe, ou então, a não atender quem dele

necessita de fato. E quando então não se verga esse ideal sob o aspecto dos direitos humanos e

sob o tratamento constitucionalmente material a respeito dos tratados que sobre eles se insere,

a dignidade humana enquanto “linha de partida” se enfraquece, por ato voluntário do próprio

Estado. Primeiramente, em decorrência do tratamento que a Emenda Constitucional n. 45

conferem aos tais tratados, instituindo, por intermédio do § 3o do art. 5o da CF/88, um rígido e

desarrazoado processo de sua incorporação formal junto à ordem jurídica interna.

Secundariamente, em virtude de o Poder Judiciário, mais especificamente, o

Supremo Tribunal Federal, mesmo intentando se firmar sobre o teste da constitucionalidade

material de tais tratados, tão importantes à própria dignidade humana dentro do país, alocar

esses tratados não sob essa qualidade, mas sim como espécie de norma especial, de estigma

supralegal. O que, a nosso ver, em face dos § 2o do art. 5º da Constituição Federal de 1988 é

equivocado. Atinge a força normativa da Carta enquanto norma e tornam ainda inumanas as

relações jurídicas, o que será então a tese de tudo quanto se propõe a se estudar neste trabalho.

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I EVOLUÇÃO HISTÓRICA.

1.1 Origem dos Direitos Humanos.

A história dos direitos humanos surge dos horrores verificados após a segunda

guerra mundial, em que pelo menos seis milhões de judeus foram dizimados pelos alemães.

Muito embora o segundo e então definitivo “reich” de Adolf Hitler não tenha se concretizado,

é certo haver o holocausto a que o ser humano foi submetido, inspirado o mundo a adotar

paradigmas éticos, filosóficos e morais para orientar, numa ação conjunta, um processo de

internacionalização dos determinados e mais básicos direitos então denominados, a partir dali,

de direitos humanos. A relação de Bruno, alemão, e Shimon, judeu 1 - duas crianças

desinteressadas a escrever uma história de humanidade por entre cercas de arame farpado -,

agora se tornaria história corriqueira sob o fundamento de um direito convencionado por

grande parte das nações do mundo.

Oras. Os indivíduos combateram uns aos outros, a troco de nada. Enfrentaram-

se em massa, a favor, cada um, de suas melhorias, de seus desejos, envolvidos num pano

escuro de interesses nada significativos à humanidade considerada num todo. E depois de

tanto sangrarem, nada conquistaram senão o agravamento de um mundo já convulso

socialmente. Dizem até que, houvesse à época, um efetivo sistema capaz de “responsabilizar

os Estados pelas violações por eles cometidas ou ocorridas em seus territórios” 2, os alemães

não teriam logrado tamanho êxito em seu propósito de exterminar judeus e minorias étnicas,

com o consentimento do restante do mundo.

É verdade que a idéia do ser humano digno, respeitado pelos outros

semelhantes, fossem estes personificados na pessoa do Estado soberano, ou fosse ainda

personificados na pessoa do Estado Internacional, sempre permeou a cada um de nós, desde

os primórdios. A filosofia grega, o direito divino de Sófocles e o cristianismo de São Tomás

de Aquino no século XIII já tratavam desse valor. O jusnaturalismo racionalista, com Grócio

1 John Boyne, O menino de pijamas listrados.2 Jaime Benvenuto Lima Júnior, Relatório brasileiro de direitos humanos econômicos, sociais e culturais – meio ambiente, saúde, moradia adequada, educação, trabalho, alimentação, água e terra rural, p. 135, 2003.

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e Puffendorf, na idade média, ao conceber certos direitos inerentes a cada ser humano em

decorrência da própria natureza humana, também apontava na mesma direção.

O mesmo fizeram, a seu turno, a Magna Charta de 1215 e o rule of law do

século XII, ambos os diplomas ingleses; as Declarações das colônias inglesas da América do

Norte, como, por exemplo, a Declaração de Virgínia, de 1776, deram origem ao direito

constitucional norte-americano, e também atinaram com o valor das relações humanas,

indispensáveis à subsistência do próprio Estado.

Mas foram os surgimentos dos chamados direitos fundamentais aos homens,

expostos pela França revolucionária do século XVIII, o marco responsável por conferir ao ser

humano uma digna e relevante importância, como o fim de todas as coisas, principalmente do

Estado. Criou-se, de fato, um pacto social. E nele, a vida privada, de direitos que, à sua

necessária medida, passavam a ser regulados pelo Estado com a finalidade de possibilitar aos

indivíduos uma vida justa e pacífica em meio aos seus semelhantes.

Mais do que isso. Naquele momento prescrevia-se uma Constituição universal

– uma verdadeira lei escrita, formal, solene, clara e precisa -, na qual se estabelecia o

exercício de direitos agora considerados não só naturais - decorrentes da natureza humana -,

mas já reputados fundamentais por essa própria lei, como tradução da vontade humana de

firmar o compromisso de respeitar a vida privada de cada um. Diante dela, o Estado,

indubitavelmente, sempre representado pelos homens em maior ou menor intensidade,

passaria a respeitar a esta Declaração.

Ou seja, com tal Declaração, ao menos o Estado francês estaria nascendo

novamente, agora sob exercício de fato político, do povo. Para tanto, abriria mão de grande

parcela de seu poder para sujeitar-se a uma delimitação de sua esfera de atuação. Ali se

estabelecia uma forma de não se intervir no bem estar de cada indivíduo.

A chamada Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, em

1789, surge, portanto, com esse objetivo primaz. Por ela, os franceses refreavam a atuação das

forças estatais sobre o indivíduo, “protegendo os direitos dos homens contra os atos de

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governo”. 3 De mesma forma, o exercício dos direitos dos indivíduos, agora selados pelo

próprio Estado no seu conjunto, se lhes dotando com a pecha da fundamentalidade,

compunham um regime de liberdades públicas todas voltadas para a vida básica,

primeiramente, de cada um. Porque essa foi, à época, a primeira necessidade sentida pelos

revolucionários franceses, já inspirados pelas declarações dos norte-americanos. Desejavam

eles o direito à vida privada, desregulada pelos olhos do rei, sobretudo.

Além disso, a Declaração servia para instruir os homens a respeito seus direitos

então fundamentais, limitando o papel indispensável da lei (a ser sempre genérica, abstrata e

impessoal). Ainda, servia para enumerar princípios básicos de organização política e obrigar

ao Estado conferir tratamento isonômico a todos indistintamente. E dava também

oportunidade aos cidadãos de participar do exercício do Poder Político que acabava de nascer,

depois de séculos sufragado.

Enfim, os direitos declarados pela Declaração Universal dos Direitos do

Homem e do Cidadão, de conteúdo axiológico-jurídico permeado de valores éticos,

filosóficos e morais oriundos também do iluminismo, por suas características peculiares,

contribuíram, e muito, para a noção de que tratam os direitos humanos na atualidade. E só a

partir da quase “falência” da segunda dimensão dos direitos fundamentais oriundos da

primitiva Declaração francesa é que o valor da pessoa humana, coincidindo com o final da

segunda guerra mundial, passa ascender às aspirações internacionais das gentes, ou seja, de

todos, ou de quase todos os homens.

A temática será analisada mais a frente, mas é fato que os direitos

fundamentais, com toda a sua relevância, conferiram apenas uma parte da chamada

substancialidade da dignidade humana, até em virtude do contexto histórico em que formados.

Reinava entre a Europa do Século XVIII, o absolutismo, em que o rei era o

então poder supremo do Estado, julgando, legislando e, quando muito, administrando a terra a

favor de seu povo. E contra isso, numa espécie de contracultura tanto social como política e

ideológica, ansiavam os indivíduos por uma libertação de suas amarras, sendo essa a causa

direta do descontentamento geral, principalmente dos franceses. A vontade de se desvencilhar

3 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direitos Humanos Fundamentais, 1999.5

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dos olhos do rei, nos mais remotos aspectos era, na verdade, a vontade de dignidade humana

que o homem perseguia a si até então.

De sorte que a fundamentalidade de determinado rol de direitos foi durante

séculos e mesmo de maneira implícita, considerada a dignidade – ainda adormecida, diga-se

de passagem -, do indivíduo. Nenhum evento histórico, por pior que tenha sido, pode ser

considerado fator determinante a ensejar à criação de direitos efetivamente humanos, de

dignidade do ser em sua própria existência perante seus semelhantes. O segundo pós-guerra

mundial foi quem fez isso. Porque mesmo as piores guerras não levaram os seres humanos à

tamanha degradação. Houvessem levado, até ali não seriam consideradas como das piores

ocorridas, pois o intento alemão iniciado em 1º de setembro de 1939, deu início não só a mais

ambiciosa, mas, sobretudo, a mais virulenta e reprovável guerra do mundo.

Disseminando-se com rapidez, a 2ª Guerra Mundial, no desiderato alemão,

teve por finalidade a idéia da conquista de territórios como parte do jogo político mundial e,

em especial, a eliminação do próprio ser humano dado por inadequado aos padrões de Hitler

em sua Mein Kempf. Isso em pleno século XX, tempo que se imaginava haver alcançado a

maneira de viver mais próxima da perfeição. Grupos privados, representando na verdade suas

grandes nações, acumulavam riquezas. Novas tecnologias eram criadas e a humanidade, cada

vez mais, dava enormes passos no campo científico, principalmente na medicina, na física,

biologia e astronomia, entre outros ramos da ciência. 4

Por isso então, a relevância dos direitos humanos como parte indispensável dos

direitos das gentes, talvez os únicos a motivar continentes inteiros e o próprio mundo

entrelaçado, a um consenso quase que unânime a esse respeito. Antes disso Direito

Humanitário, a Liga das Nações e a OIT – Organização Internacional do Trabalho trataram

deles. A Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, assinada em São Francisco, nos

Estados Unidos, também fez isso. Tudo no intento de fortalecer a idéia da dignidade humana.

Mas só com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro

de 1948 é que os direitos humanos foram, pois, internacionalizados, merecendo tutela do

mundo. Foram dispostos num diploma jurídico próprio, relevante, ainda que nos seus

4 Enciclopédia Compacta de Conhecimentos Gerais, p. 347.6

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primórdios, ineficazes. A solene Declaração teve como divisor de águas justamente a

homenagem aos avanços do homem também no campo ético, já que até ali, até a década de

40 do século passado, esse lhe via em desuso. Os direitos fundamentais de outrora, agora se

tornavam também humanos a toda e qualquer pessoa do mundo, sem exceção.

Mesmo em face das inúmeras dificuldades em se conceber determinado rol de

direitos como parte do indivíduo, a partir de 1948, os direitos humanos ganham corpo ainda

que sobre eles e sobre quaisquer outros de matiz internacional pudesse pairar a eterna

dualidade entre o monismo clássico, de se considerar haver entre ordem interna e soberana do

Estado face ao mundo, uma só esfera, ou do dualismo, a preponderar prevalência desta ordem

interna estatal sobre qualquer ordem externa por acaso existente.

Inda assim, o fato é louvável. Sequer “intrincadas relações entre as diferenças

históricas, culturais e sociais entre as nações” 5 ou divergências acerca da inclusão ou não de

certos direitos, puderam impedir a constatação histórica de que dali em diante, a partir do

segundo pós-guerra mundial, a humanidade passaria a partilhar alguns valores em comum,

tornando-os universais e acolhendo-os subjetivamente, sponte propria. A imperatividade da

força do jus cogens, lançada também como dúvida a inspirar os mais hesitantes a não

firmarem Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, não se prestou a este intento.

O tímido, mas importante “tratado ético”, enquanto instrumento de repúdio

internacional às ofensas contra o ser humano, a despeito de sua firmação por 48 Estados

apenas, deu amostra de que, por ele, havia um consenso inicial no mundo, de que o futuro das

gentes, senão garantido pela própria força internacional na sua maneira de se associar e

ordenar, pelo menos seria um ideal a ser perseguido por cada signatário da Declaração, na sua

própria ordem interna primeiramente.

Por essa razão, o processo de internacionalização de determinados direitos de

caráter humano, ético-jurídicos e axiológico-jurídicos, nada mais faz do que acrescentar aos

direitos fundamentais estas premissas. Eles reforçaram de vez o seu papel como base dos

próprios direitos fundamentais, uma vez que, mesmo adormecidos, estiveram sempre a

5 Alci Marcus Ribeiro Borges, Breve Introdução ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, 2006.

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repousar sobre os de cunho fundamental. E os direitos fundamentais, por sua vez, não apenas

se aperfeiçoaram, mas se despertaram no seu caráter mais humano possível justamente em

virtude do pós-guerra mundial. Por isso então, sua importância para a compreensão dos

direitos humanos em si, estudo esse a ser desenvolvido nas próximas linhas.

1.2 Dos Direitos Fundamentais e suas Dimensões.

Os direitos fundamentais dos indivíduos, como dito, surgiram primeiramente

na França do Século XVIII.

Formando o que alguns doutrinadores chamam hoje de “bloco de

constitucionalidade” 6, os direitos fundamentais ampliaram-se com o passar do tempo,

basicamente sob a idéia de seu aperfeiçoamento às necessidades político-jurídicas das

sociedades mundiais surgidas ao longo da história do mundo a partir do século XVIII. A

efetividade dos primeiros direitos deu origem a novas distorções sociais e estatais. Para saná-

las, criou-se então outro rol a completá-los, sem retirar dos primeiros direitos já existentes,

sua vigência e eficácia, mesmo que limitada.

A falência deste segundo rol deu origem a um terceiro. E do terceiro surgiu um

quarto, havendo até quem diga existir um quinto rol, ou também, um verdadeiro “catálogo” de

direitos fundamentais. O argumento é o de demonstrar uma necessidade de, mais e mais, se

ampliar, qualitativamente e quantitativamente 7, os direitos marcados por esta alcunha. Houve,

nessa melhoria, um processo no qual se acumularam direitos, como dito. E por isso então a

ampliação do bloco dito constitucional, tanto em ordem interna, dos Estados, como em ordem

jurídica internacional.

6 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit, p. 19, bem aduz que “a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, é a mais famosa das declarações. Por força do preâmbulo da Constituição de 1958 – como ocorria na de 1946 – está ela em vigor na França. Integra o chamado ‘bloc de constitutionnalité’, em face do qual opera o controle de constitucionalidade efetuado pelo Conselho Constitucional”.7 Dimitri Dimoulis e Martins Leonardo, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, 2007.

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A terminologia “dimensão”, mesmo repudiada por parte da doutrina nacional,

é a regularmente usada. Há quem prefira a expressão “geração”, outra ferozmente criticada. E

há ainda os que preferem denominar tais direitos como “categorias” ou “espécies”. 8

De qualquer forma, a terminologia aqui adotada é a de dimensão de direitos

fundamentais. Direitos esses naturais, abstratos do homem (e não só de franceses ou

europeus), individuais, imprescritíveis, inalienáveis e universais, porque válidos,

individualmente, por qualquer sujeito de direitos do mundo inteiro, dentro ou fora da

soberania do país que lhe rege. 9 Também fundamentais porque assim convencionados pelo

Estado, representado pelo povo, na sua positivação em documento solene e escrito.

1.3 Da Primeira Dimensão de Direitos Fundamentais.

A primeira dimensão tem início quando da própria Declaração Universal dos

Diretos do Homem e do Cidadão, datada de 1789, ministrando aos homens antídotos contra os

abusos já praticados pelo “dono” do Estado, o rei. Com ela se delimita uma transição entre o

Absolutismo e o Liberalismo. A burguesia francesa, quem lhe dá origem, passa a buscar

proteção à propriedade privada, além de liberdade ao indivíduo de ter a sua vida bem regulada

por ele próprio, distante dos olhos estatais. Essa liberdade não estava a se circunscrever

somente no âmbito físico, considerado o termo na sua forma corrente.

De fato, a liberdade então desejada na primeira dimensão de direitos

fundamentais era aquela na qual se impedia o Estado de coibir o individuo de manifestar-se,

votar em quem bem entender, e ser votado sob a ideologia de sua preferência; de reunir-se,

organizar-se para quaisquer fins lícitos, mesmo contestadores, e ainda, de denunciar abusos,

seja de outros privados, seja do próprio Estado. 10

8 Guido Soares, Direito Internacional Público e Direitos Humanos, 2007, dispõe, com incisão, que “de mesma forma, a classificação dos direitos humanos conforme “gerações”, tem recebido críticas, em nossa opinião, em parte, bastante procedentes, como as formuladas por autores internacionais e, sobretudo brasileiros, para apenas citar alguns, como os luminares doutrinadores, Antônio Augusto Cançado Trindade , o já citado Carlos Weis, Dalmo de Abreu Dallari e Flávia Piovesan . Os argumentos de tal crítica se resumiriam a que o conceito de “geração” seria inadequado, porquanto alguns dos direitos da segunda e terceira geração já constavam do rol dos direitos da primeira geração, os denominados direitos liberais, e, sobretudo, que aqueles não se originaram, tal como os filhos, destes”.9 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit.

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O valor disso, nesta percepção, surge enfim como rol de direitos a combater a

ação discricionária e arbitrária do Estado em face dos indivíduos, caracterizando sua mínima

intervenção e sua pecha de absenteísta. A ele se impunha uma espécie de ação negativa, não

lhe restando discricionariedade ou arbitrariedade sobre a qual se firmar em prol de seus

interesses próprios. Cada ser humano passa a ser tomado como fim da atividade estatal, para

quem o Estado se vinculava juridicamente, em respeito ao conteúdo firmado e admitido na

própria Declaração de 1789.

Em âmbito comercial, mais especificamente, na regulação de mercados e

grupos societários (de que decorre a autonomia da vontade contratual), é que mais se percebe

o chamado Estado “Liberal” de Direito atuar, porque daí o ensejo ao crescimento econômico

avassalador e repentino da classe burguesa, em contrariedade à nobreza ligada sempre ao

monarca. Noutros campos, como também de organização política, os direitos fundamentais

são semelhantemente sentidos.

No aspecto legislativo, de criação da lei, a primeira dimensão de direitos

fundamentais a concebia segundo a idéia de dotar-lhe de um caráter de abstração,

impessoalidade e de destinação geral, alçando o ideal filosófico da igualdade de todos os

indivíduos conforme lhe dizia a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. As

liberdades, para serem de fato gozadas, deveriam ser prescritas por ela, pela lei. E no mais,

tudo se regulava por ela, numa espécie de Contrato Social como disse Rousseau.

1.4 Da Segunda Dimensão de Direitos Fundamentais.

Finda que, desta visão isonômica da lei e das liberdades públicas aos

indivíduos, os menos abastados não puderam lhe perceber a, de fato, criarem mudanças

significativas, principalmente no âmbito sócio-econômico. Se a lei tratava a todos de maneira

equivalente, não adiantava ao magistrado tratar os menos abastados de maneira semelhante

aos mais abastados porque, no mais das vezes, o controle social e econômico era ainda

exercido pela burguesia, e isso limitava a própria chance de um menos abastado lograr êxito

10 Ney Stanys Morais Maranhão, A afirmação histórica dos Direitos Fundamentais. A questão das Dimensões ou Gerações de Direitos, 2006.

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em qualquer demanda, ou em qualquer outra situação, se em face de indivíduo ou corporação

muito maior do que ele.

Os olhos do controle estatal, em virtude da primeira dimensão de direitos,

como dito, eram agora quase que imperceptíveis. O rei havia deixado de ser absoluto. O povo,

de alguma maneira e, pelas liberdades públicas conquistadas, passou a sê-lo. Mas, diante

disso, de que adiantava aos mais pobres não serem vigiados pelo Estado se em suas mãos não

repousava qualquer fatia da atividade econômica ou do controle social? A falta de vigilância

estatal sobre a ordem econômica, aliás, deu origem à autonomia da vontade, princípio

privatista clássico de que o contrato é lei entre as partes celebrantes e deve assim ser

cumprido, sob essa premissa.

Com isso, ante a distância do Estado, os mais abastados, ainda detentores do

poder econômico e político, sentiam-se muito mais confortáveis para, cada vez mais

utilizarem-se da produção e da circulação de bens para controlarem o mercado interno e

acumular riquezas. O capital avolumado por poucos em face da mão de obra degradante de

muitos, dava então origem ao chamado capitalismo, máxima de vida no inconsciente coletivo

a que poucos puderam alcançar, de fato. O fenômeno ocorre principalmente na Europa

Ocidental e nos Estados Unidos. 11

Neste contexto surge a segunda dimensão de direitos fundamentais. Ela

enxerga que a liberdade formal, por tratar pobres e ricos de maneira equivalente, não os

aproximava, ma sim os distanciava. Estava se reconhecendo que o tratamento isonômico,

mesmo bem concebido inicialmente, redundava em luta acirrada entre os detentores dos meios

de produção, burgueses, e aqueles dispostos a oferecer força de trabalho, o proletariado. O

foco da atenção agora se desviava do clero ou da nobreza, classes anteriormente criticadas. O

alvo consistia numa luta entre classes sociais, que buscavam uma satisfação em comum:

riqueza.

No Estado Liberal, o indivíduo, para de fato gozar de plena liberdade, antes de

tudo carecia é de condições materiais mais básicas à sua sobrevivência. Pois mesmo pelo

exercício de seu trabalho, não as conquistava facilmente.

11 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, op. cit, p.42.11

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Com isso se percebe que o liberalismo empunhado pela promulgação da

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, é resultado premeditado de uma ambição

concretizada pela burguesia francesa em tomar as rédeas do poder estatal, porque até ali, já

cansada da proteção qual sempre se ofereceu ao clero e a nobreza. O proletariado, neste

embate, foi por ela utilizado como mera longa manus, nunca como parte integrante,

fundamental, para quem as conquistas pelas liberdades públicas seriam igualmente repartidas.

Por essa razão, o descontentamento dos menos abastados toma forma nas

doutrinas do marxismo, do socialismo, entre outras semelhantes. A igreja católica também

lança sua doutrina social, de repúdio à acumulação de riquezas da maneira como então os

direitos fundamentais pareciam permitir. Em 1917, eclode a Revolução Russa. E depois disso,

outros Estados passam a encarar todo este plexo de ideais como substrato material para

efetivação de políticas sociais através de mudanças jurídicas relevantes, criando os chamados

direitos sociais, de cunho assistencialista. É o que fazem as Constituições do México, em

1917, e a de Weimar (alemã), em 1919. 12

Os direitos então reputados sociais, numa segunda dimensão, passam visar

proteção jurídica da relação de trabalho, defendendo uma forma mais justa de sobrevivência e

acumulação de bens. Saúde, alimentação, educação, previdência e moradia tornam-se não só

direitos dos indivíduos, mas deveres do Estado, se lhe compelindo a uma ação então positiva,

de atuação efetiva junto à ordem sócio-econômica em razão do ordenamento jurídico interno

agora prescrever-lhe tal obrigação. 13 Estava a se admitir a existência de uma disparidade na

forma de tratar desiguais com igualdade, se convindo, pois, a tratar os desiguais na justa

medida de sua igualdade. Tudo no intuito de melhorar as condições de vida dos mais pobres,

criando-se um Estado não só Liberal, mas igualmente, Social de Direito.

Na ordem econômica, o indivíduo passa também a gozar de guarida. A

arbitrariedade nas relações de trabalho, e também no âmbito privado, são agora vigiadas pelo

Estado com mais acuidade. Até mesmo as liberdades sociais, como de greve e livre

associação, por exemplo, são permitidas; compreende-se que o Estado antes Liberal, lançando

12 Nelson Saldanha, O que é o Liberalismo?, 1996.13 Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, 2006.

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mão de recursos jurídicos, poderia envidar esforços políticos para alcançar equivalência entre

ricos e pobres, denominando-se esta busca como Justiça Social.

Como visto, só em razão, pois, desta segunda dimensão de direitos dados como

fundamentais a alguém, é que se abrem melhores oportunidades ao ser humano de gozar da

primeira dimensão de direitos, até então percebida por não muitos, geralmente, donos das

terras, da indústria e do comércio. A busca pelo capital era ainda necessária, porque

indispensável. Por pelo menos quase um século, as nações se enveredaram sob a regência do

sistema econômico capitalista, e certamente não se desfariam dele, por já deterem vínculo

intrínseco com o próprio Liberalismo, o que não era de todo ruim.

Era, contudo, necessário o surgimento da segunda dimensão de direitos

fundamentais. Porque, através dela, o capitalismo passaria a ser delimitado por

comprometimentos sociais. Sob estrita vigilância do Estado, a forma de se conceber a

atividade econômica poderia ditar um desenvolvimento justo, mesmo sob a idéia da

igualdade, considerando-se, porém a realidade dos desiguais, dando-lhes acesso a condições

de vida um pouco mais decentes.

1.5 Da Terceira Dimensão de Direitos Fundamentais.

Passado quase meio século e já algum tempo de Estado “Social” de Direito, em

1939 se inicia a segunda guerra mundial, a mando de Adolf Hitler, como dito noutro tópico. O

saldo, trágico, é não somente a morte de 06 milhões de judeus, aproximadamente, ou a morte

de outros milhões de pessoas ao redor do mundo, salpicando quase que a metade dele com

sangue inocente.

E o que de fato assusta na guerra de Hitler é a razão de seu saldo ter sido, sem

dúvida alguma, um dos mais cruéis à humanidade, sob a pecha de um nacionalismo (aliás, de

um social-nacionalismo) exacerbado, disfarçado do mais puro autoritarismo. A matança foi

encetada em nome de uma sociedade mais justa. E curiosamente, para se alcançar a esta

sociedade mais “ajustada”, “padronizada”, traçou-se um culto demasiadamente exclusivista à

pureza da nação. Descartava-se quem não era considerado cidadão, mediante parâmetros

absolutamente subjetivos, pessoais. Origem, crença religiosa e cor de pele prestavam-se como

13

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elementos desclassificatórios à consideração de um indivíduo como parte de seu país. O

próprio princípio liberalista e ainda subsistente da igualdade, em pleno Estado Social, passou

a ser desrespeitado mais uma vez.

O ideal de nação mais justa acabou enfim, por transcender a própria razão de

“ser” humano. E por esse motivo, a alusão ao resultado da segunda guerra. Os povos se

constrangeram a humanização e universalização das relações humanas. Chegou-se à

conclusão de que os direitos fundamentais não podiam mais proteger aos interesses do

indivíduo, ou de um grupo determinado de indivíduos, inspirado pela cidadania a fazer

distinção entre semelhantes. Não. Os direitos fundamentais, antes de tudo, deveriam dirigir-se

aos seres humanos, agora não somente considerados como fim de seus Estados soberanos,

mas sujeitos de direitos tutelados por todas as gentes.

Criando-se, para tanto, um diploma normativo a alimentar a ordem jurídica

internacional – a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 - os direitos até ali

fundamentais passam a ter “primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num

momento expressivo de sua afirmação”. 14

Há quem diga, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho 15, que a Declaração

Universal dos Direitos do Homem situa-se ainda na esfera da segunda dimensão de direitos

fundamentais, por inscrever, lado a lado, liberdades públicas e direitos sociais. Para o

doutrinador, a citada Declaração seria um coroamento das duas dimensões de direito

existentes, pela junção delas num só diploma.

No entanto, o primeiro diploma internacional realmente humano em sua

materialidade surge como base sólida para a concepção da terceira dimensão de direitos

fundamentais que tanto nos interessa. Por ela o ser humano passa a ser enfocado como ser

relacional, em conjunto com o próximo, sem que lhe existam fronteiras físicas, sociais e

econômicas a lhe impedir ser tratado a partir de sua própria natureza. 16

14 Mabel Cristiane Moraes, A proteção dos Direitos Humanos e sua Interação diante do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, 2003.15 Mabel Cristiane Moraes, op.cit.16 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, p. 385, 1993.

14

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Há quem diga, com acerto, que os direitos humanos, na verdade, não

decorreram necessariamente do segundo pós-guerra mundial, desta terceira dimensão de

direitos fundamentais. Para os que advogam este entendimento, os direitos humanos foram

sim deflagrados a partir deste momento histórico na vida da humanidade, que foi a segunda

guerra mundial, mas, na verdade, houveram de nascer já na primeira dimensão, pertinente a

Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, como houve de se anotar

anteriormente. Porque antes, estavam adormecidos.

Enfim, alcançando sua forma mais semelhante a qual concebemos atualmente,

os direitos humanos só a alcançou a partir, por exemplo, da resistência heróica do gueto de

Varsóvia ao ataque dos nazistas alemães e da inacreditável sobrevivência do “Pianista”, na

famosa, mas trágica e real história do polonês Wladislaw Szpilman.

Tem-se aí, o início do Estado Democrático de Direito. E junto dele, a

necessidade de se requerer dos Poderes Públicos em quaisquer de suas esferas, uma atuação

de transformação da realidade 17 humana existencial, no âmago de cada ser. Sendo isso um

ideal utópico ou não, ao menos o compromisso firmado é o de se perseguir o bem estar

humano, respeitando-o mediante obrigação estatal de entregar as mais básicas prestações,

positivas ou negativas, por serem cumpridas pelos entes estatais.

Para a pretensão traçada neste trabalho, é fato: só a partir dessa narrativa

histórica se pode visualizar o nascimento da terceira geração de direitos fundamentais com a

qual se lida. Flávia Piovesan, aliás, é enfática neste sentido. E diz que “os tratados de direitos

internacionais tem como fonte um campo do Direito extremamente recente, denominado

‘Direito Internacional dos Direitos Humanos’, que é o direito do pós-guerra, nascido como

resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo nazismo” 18. Isso reafirma a posição da

qual se lança mão para o sustento dos tratados internacionais de direitos humanos como

normas de constitucionalidade material, se incorporados internamente pelo país.

Só em decorrência da segunda guerra mundial, se convenciona a considerar os

direitos fundamentais como primeiramente, humanos, independentemente de positivação

17 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 569, 2000.18 Flávia Piovesan, Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, 1997.

15

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constitucional na ordem jurídica interna. Aliás, esta a diferença entre um e outro: os

fundamentais são institucionalizados na ordem interna 19, e só ela os pode garantir. Tratam da

vida humana, mas não na sua plenitude. Na verdade, indicam valores os quais podem levar o

ser humano a alcançar parte de sua dignidade, mas não ela toda.

Os direitos humanos, por sua vez, vêem na ordem internacional o seu repouso,

por causa de seus valores axiológicos. Como direito no seu amplo sentido, os tratados

internacionais de direitos humanos tomam por base fontes materiais históricas, sociológicas,

éticas e filosóficas. Sua gênese não surge a partir de uma ordem estatal interna. Surge a partir

da vida humana e do valor que se faz a seu respeito. Os Estados internacionais só formalizam

estes direitos reputados humanos, passando a respeitar a humanidade de cada indivíduo em

especial, por não mais se tolerar discrepâncias acerca da natureza humana de cada um. A vida

humana iguala os indivíduos, não a lei, pois todos, sem distinção, são dotados de liberdade,

autonomia e razão 20, valores que não se pode, e nem nunca se poderia ter ignorado.

Mas uma outra diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais

é ainda percebida. Trata-se, mais precisamente, de serem os direitos fundamentais, defendidos

agora por toda humanidade, perpassando o valor da necessidade, da essencialidade. Um

direito essencial, anteriormente fundamental (mas ainda antes humano), sob o enfoque do

Direito Internacional Público, já não é mais fundamental. É humano. E se encontra acima de

todos os outros, porque parte da humanidade de cada ser.

Os direitos humanos estão pura e simplesmente atrelados à natureza humana, e

não se tratam de direitos apenas fundamentais, pela sua essencialidade aos quais os Estados,

por suas Constituições, lhes conferem. Todo ser humano é em si mesmo a mais perfeita

tradução da vida. E como êxtase disso, os direitos a que detém lhes são inerentes, pela simples

razão de ao menos nascer com vida, e, portanto, ser tratado de acordo com a virtude dela.

Vê-se dessa maneira, “que o valor da pessoa humana enquanto conquista

histórico-axiológica encontra sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem”.

19 Mabel Cristiane Moraes, op.cit.20 Mabel Cristiane Moraes, op.cit.

16

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21. A vida humana – e não alguns de seus setores –, desde a Declaração Universal dos Direitos

dos Homens, é elevada a categoria de bem máximo de um ordenamento jurídico, nunca

passível de ingerência estatal ou internacional qual lhe faça degradada. Os Estados passam a

fazer dela motivo de pactos internacionais, de tutela também internacional. Apenas a

efetivação das normas que a delimitam é que se orquestram no seio dos ordenamentos

jurídicos internos de cada país signatário deste pacto.

Surgem ainda, nesta terceira dimensão de direitos fundamentais, os chamados

direitos de solidariedade e fraternidade. Para se lhes alcançar, tutelas difusas e coletivas

revelam-se como instrumentos capazes de guarnecer a sujeitos indefinidos ou indetermináveis

desejosos de o pleitearem. Entre eles, há os mais destacados, que são o direito ao meio

ambiente equilibrado, ao desenvolvimento econômico, além do direito a uma sadia qualidade

de vida nas suas mais variadas formas.

Outros direitos não menos relevantes também surgem. Tratam-se da

autodeterminação dos povos, do direito ao desenvolvimento (principalmente humano), e do

direito ao patrimônio comum da humanidade. O fundamento deles, como dito, é a

solidariedade e a fraternidade, sob a idéia de uma sociedade entre os povos.

E o que se trata aqui de discorrer, advém da sociedade, do pacto que fazem os

povos do mundo ao celebrarem tratados internacionais de direitos humanos. Ver-se-á que a

incorporação destes tratados na ordem jurídica do país, deve ser não só valida enquanto ato

normativo, mas, todavia, eficaz. Deles s deve se extrair efeitos os quais se projetem sobre a

legislação infraconstitucional como norma materialmente constitucional, reforçando o papel

da própria Constituição Federal de 1988.

Para isso, um bom raciocínio de tudo quanto se anotou sobre as conseqüências

da segunda guerra mundial, e a sua utilização como fator histórico a levar as nações do mundo

reunir-se para debater e positivar o assunto, já é não pouca razão para se fundamentar a

materialidade constitucional, como dito, de um tratado internacional de direitos humanos,

independentemente do que diga o § 3º do art. 5º da CF/88. O estudo não versa sobre esse

21 Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, 1988.

17

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ponto especificamente, muito embora a partir disso e de recente jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal, se o discuta aqui para fins de análise da supralegalidade.

A supralegalidade de um tratado internacional de direitos humanos nada mais é

do que a alocação que se lhe faz na ordem jurídica interna, como lei superior à lei

infraconstitucional, mas abaixo da Constituição Federal.

No entanto, o STF e o constituinte derivado reformador parecem lhe dificultar

o status merecido, mesmo cediços de que a matéria trazida no bojo de um tratado é fonte de

direito material nele implícita (remontando às origens do segundo pós-guerra mundial e

aperfeiçoando o conceito de dignidade humana). Não fazem ampliar, de fato, o bloco de

constitucionalidade do art. 5º. E para parte da doutrina, a supralegalidade ou mesmo a

constitucionalidade formal de um tratado tornam ineficaz o § 2º do art. 5º da CF/88.

Se a dignidade da pessoa humana, erigida como sobreprincípio jurídico, é

quem norteia a aplicação das normas constitucionais, soa ilógico então, tratar um pacto

internacional de direitos humanos como norma qualquer, equiparando-o a lei ordinária. Se

dele se concebeu fonte para a definição do que vem se tratar a dignidade humana, é

desarrazoado tratar-lhe como lei a que o constituinte derivado não lhe rende louvor.

Assim, o estudo irá abordar essas e outras questões, em defesa à materialidade

constitucional de um tratado de direitos humanos como forma não só de evitar que se decorra

de eventual nacionalismo exacerbado, uma terceira guerra mundial, estribada na ausência da

ética nas relações intrapessoais. Mais do que isso. É o intuito de que se evite uma guerra civil,

de origem primeiramente social, interiorizada no próprio sentimento humano de grande parte

da população do Brasil, que vive no liame de uma pobreza quase que absoluta, de que se

retiram, de cada indivíduo dela, a sensação de ser atendido e respeitado pelo seu próprio país,

o que parece muito mais grave do que qualquer guerra mundial.

II DOS TRATADOS INTERNACIONAIS E O PAPEL DO DIREITO

INTERNACIONAL PÚBLICO.

18

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Apenas uma pequena digressão se faz a respeito do que são os tratados, como

fontes formais de expressão do direito internacional, pelas quais as regras jurídicas do que

convencionam os Estados é então positivada. É importante a anotação a respeito porque, entre

outras razões de se clamar pela constitucionalidade material de um tratado na ordem interna,

tudo quanto lhe envolve para o seu cumprimento é também motivo suficiente para se exigir

que, ante a ordem jurídica vigente, à luz da Constituição Federal de 1988, um tratado de

direitos humanos receba como norma, esse posicionamento.

Logo após, se traçam algumas considerações a respeito do papel, da finalidade

a qual se incumbe o Direito Internacional Público, e a questão do “jus cogens” diante da

ordem jurídica internacional das gentes, e da ordem interna dos Estados soberanos.

2.1 Das Principais Características dos Tratados Internacionais.

Ainda antes de se esboçar os conceitos e características mais básicas de um

tratado, se diz apenas a respeito da terminologia utilizada para designá-lo, já motivo de tanta

discórdia entre a doutrina internacionalista, por razões as quais, neste trabalho, não se faz

minúcias. O que se pode mencionar é que outros sinônimos para “tratado” podem ser

utilizados. Mas isso de maneira por vezes específica, e noutras, indiscriminada.

Qualquer tratado internacional então, seja ou não de direitos humanos, é como

um “acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinado a

produzir efeitos jurídicos” 22. A Convenção de Havana sobre Tratados, de 1928, e a

Convenção de Viena sobre Tratados, dizem a respeito e a última, o faz com muito mais força.

Em seu preâmbulo, tem-se a afirmação de se acreditar “que a codificação e o desenvolvimento

progressivo do direito dos tratados alcançados” são responsáveis por promover os propósitos

das Nações Unidas, que são “a manutenção da paz e a segurança internacionais, o

desenvolvimento das relações amistosas e a consecução da cooperação entre as nações”.

Qualquer tratado então, vê-se ter por princípio a pacificação e a segurança

mundial, lastreando-se numa relação de solidariedade e fraternidade entre os Estados. Mesmo

que variável ao extremo, o tratado passa por esse caminho, digamos. E pelo efeito

22 J.F.Rezek, Direito Internacional Público, 1999, p. 14.19

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compromissivo e cogente que visa produzir, ele mesmo dá cobertura legal à sua própria

substância, mesmo que a matéria tratada seja não tenha relevância substancial ao direito das

gentes, tampouco aos humanos em si. 23

O tratado tem natureza jurídica internacional, porque regido por fontes de

direito internacional (que também retiram seu substrato dos princípios gerais de direto), além

de seu próprio texto também dispor-lhe. Conste de um instrumento único, ou de dois ou mais

instrumentos conexos, é sempre um tratado. E mesmo que se lhe atribua então uma outra

denominação, não fugirá à regra estabelecida, por deter contornos bem definidos.

Inicialmente, é concebido com um ato jurídico complexo; o tratado é, pois, um

ato comissivo capaz de combinar as vontades de seus contraentes (Estados detentores de

personalidade jurídica internacional) e para assim se considerá-lo, deve necessariamente

produzir efeitos na ordem jurídica internacional, primeiramente. Há uma criação de vínculos

entre os Estados que o ratificam, aceitam, aprovam ou aderem-no, como preceitua a alínea “b”

do art. 2º da Convenção de Viena. E justamente em razão disso, um tratado passa a ser

considerado como norma jurídica.

Veja-se então que “o acordo formal entre os Estados é o ato jurídico que

produz a norma, e que, justamente por produzi-la, desencadeia efeitos de direito, gera

obrigações e prerrogativas” 24. De muita relevância a consideração porque, um tratado

internacional de direitos humanos, a seu turno, nada mais é do que um tratado em que sujeitos

de direitos internacionais avalizam vínculos entre eles no intuito de que a dignidade do ser

humano, não formalmente, mas materialmente, entre atitudes positivas e negativas de um

Estado, seja promovida, e principalmente, respeitada.

Classifica-se formalmente, por conseqüência do número de partes que o

ratificam e pelo procedimento adotado para a sua concepção. Materialmente, pela natureza

das normas que expressa, e de como é executado no tempo e no espaço. São duas as fases de

expressão do consentimento das partes. A primeira corresponde à assinatura. A segunda, à

ratificação. A doutrina a isso denomina procedimento, que pode ser menos ou mais abreviado

23 J.F.Rezek, op.cit, p. 1424 J.F.Rezek, op. cit, p. 19.

20

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dependendo do sistema constitucional de cada país, e pode envolver um ato composto dos

Poderes Executivo e Legislativo.

A prática internacional diz que um tratado simples, num acordo bilateral ou

multilateral, sobre matéria de importância limitada, é incorporado mediante procedimento

breve, sob a forma de troca de notas, envolvendo apenas o Poder Executivo das partes, sem

intervenção formal dos chefes de Estado. 25

A natureza jurídica do tratado pode ser contratual, ou normativa, sobre a qual

as partes signatárias editam uma regra de direito válida e objetiva. A maioria dos tratados

internacionais de direitos humanos trata-se, pois, de verdadeiros diplomas normativos. Os

tratados contratuais já não são usados com regularidade e por essa razão se deixa de lhes

mencionar aqui.

Quanto à execução de um tratado no tempo, dura ele enquanto durar “a

legitimidade da situação que nele encontra origem” 26. Mas nesse tocante o que se admite de

fato é que excetuados alguns casos de transitoriedade ou provisoriedade, um tratado seja

permanente, por instituir um diploma normativo eterno, cuja duração é condicionada à

vontade comum das partes, e não à possibilidade de uma delas o denunciarem de maneira

unilateral, por exemplo.

No espaço, um tratado executa-se, vige, em todo o território de um Estado, a

menos que “uma intenção diferente resulte do tratado, ou seja de outro modo estabelecida”,

como diz o art. 29 da Convenção de Viena.

A produção do texto convencionado em um tratado, a seu turno, parte dos

Chefes de Estado ou de Governo, por encarnarem a soberania estatal representativa de seus

países. Essa representação pode ainda ser plenipotenciária, quando então os Estados

determinam, em geral, um terceiro dignatário, na pessoa de um ministro de relações exteriores

(em que se tem um poder derivado para a celebração de tratados internacionais), ou então, por

um chefe de missão diplomática.

25 J.F. Rezek, op. cit.26 J.F. Rezek, op. cit, p. 33.

21

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A negociação de um tratado pode ser simples, de maneira bilateral. Nessa

hipótese, leva em conta as circunstâncias da própria matéria a ser pactuada e por essa razão,

pode ser negociado não no país de um dos signatários, e sim num terceiro país, neutro. Pode

ser lavrado sob o idioma de um deles, numa única versão autêntica ou ainda, num outro

idioma suplementar, escolhido pelas partes. E neste caso, em razão de dois idiomas, este

tratado poderá ser lavrado em duas ou mais versões autênticas e de igual valor, ou em duas ou

mais versões autênticas, porém com privilégio assegurado a uma única versão, para fins de

interpretação em relação ao próprio idioma escolhido.

Já no tocante a negociação coletiva de um tratado, isso geralmente acontece

numa conferência diplomática internacional justamente designada para este fim, na qual se faz

ou discute um ou mais tratados. Dela podem participar grande número de países, ou não,

conforme o caso e a conveniência de cada um.

O idioma tanto negocial como normativo de um tratado, é escolhido pelos

próprios Estados pactuantes. E o texto nele expresso, conforme a Convenção de Viena

aprova-se por quorum de 2/3 dos participantes, ainda que, depois disso, um dos países

votantes não manifeste sua assinatura junto ao tratado, para garantir-se a autenticidade do

texto. “A não-assinatura por parte do Estado que integrou os trabalhos é um gesto sem

significado jurídico, e pretende ter, mo plano político, efeito publicitário da insatisfação

daquele com o texto acabado”, explica J.F. Resek. 27

Sobre a estrutura de um tratado, também cabem algumas considerações.

Principalmente acerca do preâmbulo, onde se enunciam as partes e se explanam os motivos,

circunstâncias e pressupostos pelos quais o tratado foi então firmado.

O preâmbulo, em especial o de um tratado internacional de direitos humanos,

funciona como ferramenta de interpretação de um dispositivo do próprio tratado, por nele se

delimitar fatores ao menos históricos a explanar seu surgimento. Além disso, a exemplo de

como se concebe a idéia em relação às Constituições dos Estados, o preâmbulo pode indicar

27 Op.cit, p. 47.22

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as razões sociológicas, éticas, filosóficas e políticas para fundamentar a razão de se celebrar

determinado tratado.

Nele constam os seus objetivos. E assim constam para que sua parte dispositiva

tenha como finalidade, como alcance, justamente o cumprimento destes objetivos, e por isso a

sua importância. Diz-se que a Corte Internacional de Justiça já se valeu, e não só em uma

ocasião, do preâmbulo de um tratado para delimitar o alcance do dispositivo nele constante. 28

A parte dispositiva, portanto, como já se fez entender, é o texto do tratado,

lavrado em linguagem mais técnica, ou seja, linguagem jurídica, diferentemente do preâmbulo

ou de seus anexos. Tem-se nela as normas internacionais, a matéria internacional pactuada

propriamente dizendo, o que se faz ordenando-a e numerando-a por artigos ou cláusulas.

Ao final, têm-se os anexos, mais específicos do que a generalidade do tratado,

no entanto, menos metodológicos. 29 Compõem-se de textos lavrados em linguagem jurídica,

podendo conter gráficos, ilustrações e até mesmo equações ou fórmulas numéricas, e

símbolos, dependendo da natureza do tratado.

A assinatura, como dito, fixa e autentica o texto, exteriorizando o signatário

sua manifestação pública de concordância ao tratado. É uma expressão de consentimento.

Com efeito, é a partir dela que o tratado tem condições de viger imediatamente, acaso as

partes não transijam em dotá-lo, a exemplo da lei, de vacância, premeditando sua vigência

para outra data. Se assinado, torna-se irretratável, e passa dar vazão ao brocardo do pacta sunt

servanda, no direito das gentes utilizado como princípio para se alegar vinculação.

Outra expressão de consentimento pode ser a do intercâmbio instrumental,

também chamada de troca de notas. Por elas, as partes programam a vigência do tratado

mediante ulterior manifestação. Não se trata de um ato público de consentimento.

Primeiramente, um Estado remete ao outro uma nota-proposta, Em seguida, o que recebeu tal

nota, emite a sua nota-resposta, para que assim tenha validade o tratado, consumando-se o

vínculo bilateral.

28 J.F.Rezek, op. cit.29 J.F. Rezek, op. cit.

23

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A ratificação de um tratado, objeto de grande discussão doutrinária a respeito

de seu conceito, em simples palavras, é um ato internacional no qual determinado Estado,

pelo Poder Executivo, confirma a vigência de um tratado em seu âmbito interno perante os

demais. É uma expressão de dizer aos países signatários que o Estado se vincula ao tratado.

A competência, em tese, para a ratificação de um tratado internacional, é

sempre do poder Executivo de um país. E a ratificação, aqui adotada como o ato de

declaração internacional de vontade, trata-se, igualmente, de um ato discricionário a que o

chefe do poder Executivo pode ou não tomar, mesmo havendo antes negociado o tratado. Só

que, ratificando-o, o pacto torna-se irretratável, via de regra. Só o próprio tratado pode

disciplinar em quais situações, e sob quais aspectos, um país pode denunciá-lo. O pacta sunt

servanda, a boa-fé e a segurança jurídica, como valores axiológicos no direito das gentes dão

força a esse princípio da irretratabilidade.

A forma mais usual de se ratificar um tratado é a comunicação formal do país

ou outro, ou ainda ao país depositário do tratado, em instrumento de que consta vontade

manifesta e definitiva de um país a cumprir com determinado tratado. Internamente, não são

raras que as Constituições dos Estados dotem aos seus poderes Executivos, por meio de seus

ministros ou presidentes, a prerrogativa de celebrarem tratados ou acordos executivos que

visem aditar ou interpretar tratados já vigentes. O mesmo se diz a respeito de se conferir ao

poder Legislativo, a competência para referendá-los, dando lhes validade e eficácia na ordem

interna a que se destinam. O Brasil adota modelo parecido, de que tão logo se discorrerá.

Um tratado internacional pode ser objeto de reserva, que se trata de “um

qualitativo de consentimento”, como define J. F. Rezek. 30 Para a Convenção de Viena, a

reserva a que faz um Estado no tocante a alguma cláusula ou dispositivo de um tratado, é uma

forma de “excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em relação a

esse Estado”, e pode se dar antes de assinado o tratado. Só o poder Executivo de um Estado

pode fazê-la, o que se admite apenas quando se está a negociar pactos multilaterais.

30 Op.cit, p. 70.24

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O Poder Legislativo de um país, se lhe permitido, pode opor suas restrições

quando da aprovação do tratado na ordem interna. Mas serão elas consideradas, quando da

ratificação pelo poder Executivo, com reservas.

As reservas também podem ficar a cargo de eventuais vícios de consentimento

quanto à negociação e assinatura de um tratado, mesmo que posteriormente ratificados. Pode

ser de agravo ao direito público interno, caso em que constitucionalmente, um Estado não tem

competência para a celebração de um tratado, donde se vislumbra, a reboque disso, afronta ao

princípio do pacta sunt servanda, só que de maneira excepcional. A Convenção de Viena, no

art. 46, bem diz que, a rigor, os pactos celebrados internacionalmente devem ser cumpridos.

Por erro, dolo, corrupção e coação sobre o negociador também se pode opor

reservas a um tratado. O Erro que se aceita quanto à idéia de um tratado, é de fato, não de

direito. A coação, gerando nulidade absoluta do tratado em relação ao país signatário a opor-

lhe reserva por esse fundamento, é caracterizada pela ameaça ou emprego de força em

violação aos princípios de direito internacional. O dolo é caracterizado pela deliberada má-fé

de um dos negociadores em usar o tratado como forma de desequilibrar-se uma relação

presumida justa, em tese. E a corrupção, diz respeito ao convencimento de um negociador por

outros, de maneira imoral, em promessa de determinadas vantagens pessoais ao Estado que

então assinar o tratado.

Não há termo final, usualmente, para se ratificar um tratado, a não ser que esta

possibilidade seja assim disposta em alguma de suas cláusulas. E ele passa a entrar em vigor,

quando não lhe observado um lapso como vacatio legis, de vigência diferida.

O tratado deve, após isso, ser registrado. Atualmente, se faz tal coisa junto às

Nações Unidas. Mas outras organizações regionais, conforme dispõe o tratado, ou

organizações especiais, conforme dispõe a matéria dele, podem servir como órgãos para

registro de um tratado internacional.

No Brasil, a promulgação de um tratado é feita por decreto do Presidente da

República, como ato de ratificação, depois de aprovado mediante processo de incorporação

realizado na esfera do Poder Legislativo (que, ao final desse processo, também expede um ato

25

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de aceitação do tratado: um Decreto Legislativo). Sua publicação dá-se no Diário Oficial da

União. A partir daí, o tratado passa a vigorar na ordem interna, nela produzindo efeitos tanto

quanto efeitos entre as próprias partes pactuantes.

Há tratados que podem operar efeitos sobre terceiros, sejam jurídicos, sejam

meramente factuais, mas, sobre isso não se discute. Em regra, como já se anotou, um tratado

vige por tempo indeterminado, a não ser que o próprio texto nele inserto diga o contrário. E

países outros os quais de sua negociação e assinatura resolveram não tomar parte, podem

depois, aderir-lhes, operando o que então se denomina ingresso mediante adesão. “A adesão é

uma forma definitiva de consentimento do Estado em relação ao tratado internacional. Sua

natureza jurídica não difere daquela da ratificação: também aqui o que temos é a

manifestação firme da vontade de ingressar no domínio jurídico do tratado”. 31

Em geral, não se admite emendas a um tratado. Só as partes tratantes, todas

elas, podem consentir nisso, mediante então aprovação de 2/3 delas. Caso queiram o tratado,

ao invés de ser emendado, pode então ser revisado ou reformado, em procedimentos mais

simplificados.

Um tratado não pode ser violado. Aliás, é feito, em tese, para não sê-lo. Se

violado, sua violação deve ser substancial, o que, segundo a Convenção de Viena em seu art.

60, acontece quando um Estado o repudia pura e simplesmente em conta de um dispositivo

fundamental para a consecução do que então se tratou, acordou. O que, por conseqüência, “dá

direito a outra parte de entendê-lo extinto, ou de suspender também ela o seu fiel

cumprimento, no todo ou parcialmente”. 32

Para o estudo, não cabe tratar-se a respeito do conflito entre tratados em si,

senão entre eles e a lei interna, o que se fará em outro tópico, e não agora.

A respeito da extinção de um tratado, cabe a ressalva de se extingui-lo, a

princípio, mediante a vontade comum dos últimos e restantes pactuantes a cumprir-lhe,

levando-se em conta sucessivas adesões e denúncias as quais, ao longo de sua vigência, foram

31 J.F. Rezek, op. cit, p. 91.32 J.F. Rezek, op. cit, p. 95.

26

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ocorrendo. Ou então, extingue-se um mediante condição resolutiva por lapso, por termo,

variável nas suas formas, em predeterminação ab-rogatória. Ainda, por conjugarem-se

intenções ab-rogatórias da unanimidade das partes ou mediante votação com quorum

majoritário (desde que expressa essa possibilidade no próprio tratado), caso em que se opera

uma decisão ab-rogatória superveniente para se extinguir o tratado.

Um tratado pode ainda ser extinto por vontade unilateral encetada por uma das

partes pactuantes, só que por denúncia desta à outra, ou ainda, a todas as outras partes,

conforme se trate a forma de um tratado pela sua bilateralidade ou multilateralidade. Pela

denúncia, manifesta num instrumento ou notificação escrita, em ato de Governo do poder

Executivo dirigido ao depositário do tratado, o Estado denunciante pratica um ato então

unilateral em que declara sua vontade de “deixar de ser parte no acordo internacional” 33.

Questão dolorosa diz respeito à possibilidade de a denúncia, em âmbito interno

de um Estado, ser tomada por iniciativa do Poder Executivo, se a ilustrarmos em hipótese que

ocorra na ordem jurídica brasileira. O Presidente da República poderia, sem manifesta

vontade do congresso, denunciar um tratado, a exemplo de eventualmente poder reformá-lo,

revisá-lo ou emendá-lo?

A questão já foi observada no Brasil em 1926, como pondera J.F. Rezek,

mencionando o voto do então consultor do Itamaraty, Clóvis Bevillácqua, dar parecer

favorável à ordem de que o então Presidente Artur Bernardes denunciasse ao Pacto da

Sociedade das Nações por própria vontade, sem consulta ou aprovação do Congresso

Nacional.

Porém, a forma mais acertada, ao menos para o objeto aqui estudado, se

focalizada a questão sob o ângulo do sistema constitucional de freios e contrapesos, é a de que

na omissão da Constituição Federal de 1988, o Congresso Nacional, em consulta, aprove a

denúncia de um tratado acaso sua substancialidade revele interesse público desta esfera do

Poder Político sobre o assunto. Do contrário, ao Poder Executivo se dá o poder unilateral e

expresso de denunciar um tratado.

33 J.F. Rezek, op. cit, p. 112.27

Page 28: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

Ao menos é essa a interpretação mais razoável, efetiva e integradora que se

pode fazer do inciso I do art. 49 e do inciso IV do art. 83 da CF/88, diante de uma leitura

harmônica e sistemática de todo o texto constitucional. Aqui não se debate ainda quanto à

possível incorporação automática dos tratados de direitos humanos, disposição essa dada pelo

próprio constituinte originário, como dita a conjugação dos § § 1º e 2º do art. 5º, em virtude

da matéria neles tratada ser de suma importância à própria função da dignidade humana como

valor fundante não só do sistema constitucional, mas da ordem jurídica que se criou após o dia

03 de outubro de 1988 34.

Mas não se deixa de reconhecer que uma vez dada ao Congresso Nacional

competência exclusiva para resolver ou referendar definitivamente tratados, em especial, os

que podem acarretar encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, lhe seja

dada também competência para referendar previamente, um ato de denúncia a ser tomado

pelo Poder Executivo. No âmbito dos tratados de direitos humanos, por mais que exista quem

diga não haver incorporação automática deles na ordem jurídica – isso não em razão da

matéria que tratam, obviamente, mas sim pela rigidez formal da Constituição e sob a ótica de

não se poder afrontar a separação de poderes -, 35 se pode dizer, por ora, que até a sua retirada

do ordenamento jurídico deve, impreterivelmente, passar pela voz da “Casa do Povo” que é o

Poder Legislativo.

Como diz a unânime doutrina constitucional do país, o Poder Legislativo tem

por finalidade precípua não só a atividade legiferante, de feitura das leis, mas também a de

fiscalizar os outros dois poderes políticos do Estado, em especial, o Poder Executivo, na

deflagração e cumprimento de suas atividades, as quais, para se concretizarem, independem,

nalguns casos, de ideologia política a ser seguida por seu dignitário eleito à maioria absoluta

de votos, como diz o art. 77, § 2º, da Constituição Federal de 1988. A observação lógica da

inteireza do capítulo I, do título IV da referida Magna Charta diz isso categoricamente.

34 Carmem Lúcia Antunes Rocha, “O Princípio da Dignidade Humana e a Exclusão Social”, 2006, destaca, nesse sentido, que “o princípio da dignidade humana tornou-se então, valor fundante do sistema no qual se alberga, como espinha dorsal da elaboração normativa, exatamente os direitos fundamentais do homem. Aquele princípio converteu-se, pois, no coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana estampado nos direitos fundamentais acolhidos e assegurados na forma posta no sistema constitucional”. 35 Fernanda Dias Menezes de Almeida, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, 2008, p.51.

28

Page 29: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

Por fim, vale dizer que mudanças circunstanciais capazes de tornar impossível

a execução de um tratado dão direito a um pactuante de desonerar-se de um compromisso, o

que, a priori, pode ensejar sua extinção definitiva, acaso não se verifique existir uma

possibilidade de suspensão do cumprimento do pacto. A cláusula do “rebus sic stantibus”

passa então a ser aceita desde que presentes os requisitos determinados no art. 62 da

Convenção de Viena.

Ou seja, uma mudança fundamental de circunstâncias não previstas pelas

partes não se invoca como causa para retirada ou extinção a não ser que tais circunstâncias

tenham influído de maneira relevante para que uma ou tantas partes manifestasse uma

expressão de consentimento digamos “viciada” em relação ao tratado. Ou ainda, que essa

mudança de circunstâncias, após a vigência do tratado, acabe por transformar radicalmente a

natureza das obrigações ainda pendentes de cumprimento do tratado.

Enfim, essas as características básicas, alinhadas de maneira simples, para que

então se possa compreender, à finalidade do presente estudo, a função normativa de um

tratado na ordem interna de um país, em especial, de nosso país.

2.2 Do papel do Direito Internacional Público e sua cogência perante a ordem jurídica

interna dos Estados.

Bem anota J. F. Rezek, que o direito internacional público se fundamenta por

“um sistema jurídico autônomo, onde se ordenam as relações entre os Estados soberanos”,

na qual, impreterivelmente, a expressão de consentimento válido entre eles promulga um

acordo de vontades, um relacionamento a que, de alguma forma, lhes atinja a um bem

comum. Dizendo-se ou não haver nisso uma espécie de diminuição da soberania e da

autodeterminação de um povo, o Estado pactuante de um tratado está a reconhecer sua

necessidade de afiliar-se aos desideratos de um ou mais povos, por questão simples, lógica

até: sobreviver e reconhecer-se entre os demais.

Se poderia aqui expressar, com muita exaustão, que desde cedo, os povos e

nações sempre trataram de interesses comuns uns aos outros, em diferentes formas de relação,

até a figura clássica de que se concebe o Direito Internacional Público, na forma que hoje se

29

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lhe tem como o direito de relação entre sujeitos internacionais, em voga principalmente a

partir do primeiro pós-guerra mundial.

Antes disso, o direito internacional, mais afeito à posição privatista do que

propriamente pública, dividiu-se em 03 fases ou subperíodos, remontando, primeiramente, aos

tempos que precederam à paz de Vestefália (1648), onde figuraram o Renascimento, os

descobrimentos, a Reforma e a Contra-Reforma, além de guerras político-religiosas; em sua

segunda fase, as relações internacionais remontam à Revolução Francesa, no final do século

XVIII, do Liberalismo burguês, das citadas liberdades públicas e do nacionalismo romântico,

além da questão de serem todos os seres humanos, livres, iguais, detentores do direito à

autodeterminação, numa perspectiva jusracionalista; em terceiro lugar, a Declaração dos

Direitos Humanos e do Cidadão operada pela França e seu constitucionalismo, junto aos

Estados Unidos, até à 1ª Guerra Mundial.

Após então a 1ª Guerra Mundial, desde 1919, o Direito Internacional Público

agora então Contemporâneo, passa a assumir outra postura. Seus sujeitos agora não são só os

Estados, mas também as Organizações Internacionais e os indivíduos, em determinadas

condições. As Organizações Internacionais criam normas jurídicas que vinculam os Estados

e os indivíduos e proliferam os tratados multilaterais. 36 E ele se divide em outras 03 fases,

decorrendo, a primeira, do Tratado de Versalles até à 2ª Guerra Mundial, em 1939, onde se

tentou, sem sucesso, institucionalizar a Sociedade das Nações.

A segunda fase, advinda do segundo pós-guerra mundial, em 1945, vai até

meados da década de 80 do século passado, na qual se presenciou a corrida armamentista da

chamada Guerra-Fria e não declarada entre Estados Unidos e Rússia, além do advento da

Carta das Nações. A terceira, a seu turno, tem lugar após a queda do Muro de Berlim (1989),

responsável por separar não só duas “Alemanhas”, mas o mundo em dois blocos distintos: um

capitalista, outro socialista; ainda nessa terceira fase, pouco mais adiante, têm-se a derribada

da Perestroika, em 1991, duro regime socialista russo, até ali, influenciador de grande parte

das nações mundiais, em especial, do Leste Europeu.

Atualmente, o que se tem, pois, numa das mãos, é a função do Direito

Internacional Público em continuar a regular as situações de relacionamentos entre Estados,

36 Antônio Albuquerque, Material de Estudo da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona, p.2.30

Page 31: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

só que se compreendendo nesta expressão “Estado” o relacionamento entre quaisquer outros

sujeitos de direito internacional, mesmo os de cunho supranacional, com outros organismos

nacionais. Noutra das mãos, o Direito Internacional Público regula a ordem internacional num

todo, podendo se dizer tratar-se esta a finalidade talvez maior de sua atuação.

Para o propósito dos direitos humanos, frente ao sujeito de direitos

internacionais que é cada individuo em si, o forjo dessa dupla finalidade parece a mais válida,

principalmente porque seu fomento e sua regulação internacional, senão adstrita à maioria dos

países do mundo, ao menos serve como incentivo a que os ainda não pactuantes, por exemplo,

da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1949, o façam tão logo se convençam de

sua importância vital à própria paz mundial.

Hidelbrando Accioly diz serem inúmeras “as doutrinas que procuram explicar

a razão de ser do DIP, mas verifica-se que todas podem ser filiadas a duas correntes, ou seja,

a voluntarista e a positivista”. E um pequeno comentário se faz a esse respeito, até em virtude

de se conceber a importância disso para que um tratado de direitos humanos, em nossa ordem

interna, seja consagrado materialmente como norma constitucional, de plena eficácia sempre

que possível, e não equiparada a ela mediante inócuo processo legislativo, ou feita lei especial

em face de leis regulares.

Os voluntaristas se firmam sobre o positivismo, para quem a obrigatoriedade

do Direito Internacional Público advém da vontade ou do consentimento dos próprios Estados

em manterem-se vinculados, traduzida numa espécie de contrato entre eles. Já os positivistas

vão além do próprio nome. Para eles, “a obrigatoriedade é baseada em razões objetivas, isto

é, acima a vontade dos Estados”, e funda-se sobre a idéia do direito natural, da razão sã da

natureza racional do homem, e não da vontade divina. 37

Sobre a corrente positivista é que então o Direito Internacional Público toma

seu molde, ao menos como forma de vincular as nações em torno do seu ideal, de sua

finalidade. A relação entre Estados, perseguindo um mesmo objetivo expresso e consentido

num instrumento denominado tratado, deve partir de um princípio geral, para ser válida,

eficaz e vigente. Esse princípio geral acaba por iluminar uma norma cogente, obrigando aos

37 Hidelbrando Accioly, Manual de Direito Internacional Público, 1996.31

Page 32: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

Estados respeitarem-na de boa-fé em razão da vontade ou consentimento dado, na verdade, ao

tratado que pactuaram. Por isso, deve a norma cogente ser cumprida de boa-fé já que, também

de boa-fé, presume-se, foi consentida.

A Convenção de Viena, a par do assunto, consagra a corrente positivista em

seu art. 26 e faz mais do que isso. Aceitando a noção do jus cogens em seus artigos 53 e 64,

dá outra demonstração de aceitação dos preceitos derivados do direito natural para justificar-

se filiada à corrente positivista. O art. 63 diz ser nulo "o tratado que no momento de sua

conclusão conflite com uma norma imperativa de Direito internacional geral". E o art. 53, em

seguida, traz definição sintética, mas incisiva, do que se trata o jus cogens: “uma norma

aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como uma

norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por uma

norma de Direito Internacional geral da mesma natureza”. 38

Mas sobram críticas ao jus cogens. As mais recorrentes são a de que não há

uma ordem jurídica internacional sobre a qual todos os países do mundo firmem seu

consentimento, abrindo, por isso, mão de própria parcela de seu poder interno. Noutras

palavras, não há executoriedade, de fato, na ordem jurídica do Direito Internacional Público

porque é característica dele próprio que os Estados sejam sempre independentes e soberanos,

regendo-se pela sua autodeterminação sem que outros lhe intervenham.

No mais, a cogência - como o direito imperativo, obrigatório -, parece em si ser

contraditória se ressalvado o fato de um pacto firmar-se sobre o consentimento voluntário de

um Estado, e não sobre uma imposição. Já se pontuou que para a sua validade, não pode um

pacto ser maculado por vício de consentimento.

A partir disso, como então conciliar a cogência do Direito Internacional

Público, expressada na forma de um tratado, com a soberania e a autodeterminação de um

povo? A idéia da Convenção de Viena a esse respeito, fazendo da boa-fé e do pacta sunt

servanda, o ditado do jus cogens do Direito das Gentes entre os Estados, é também acertada.

A celebração de qualquer tratado, ou de um vínculo formalizado sob qualquer outra forma de

expressão, não pode ficar à deriva de pura discricionariedade quanto a se observá-lo ou não.

38 Guido Soares, op. cit, p.18.32

Page 33: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

Se admitida, essa discricionariedade desmerece a razão de ser de um tratado, e do próprio

Direito das Gentes.

A conjugação dos artigos da Convenção de Viena a esse respeito, dizem que

um pacto, se celebrado, deve tornar-se a regra entre as partes, por partir-se do princípio de que

o Direito Internacional Público em si, é firmado sob essa premissa, em que uma relativa perda

de soberania é admitida, ao fim de uma comunhão única, digna e útil a quem dela toma parte.

Mas dizem os críticos que se o desejo dessa concepção e de sua serventia às

gentes, principalmente em relação aos direitos humanos, é o de torná-lo regra firme a quem

dele se amalgama, dizê-lo então necessariamente imperativo sobre a vontade interna, sobre a

lei interna de um Estado, é na verdade, desdizê-lo. E tal crítica tem seu fundo de razão.

Entretanto, positivada, a regra do jus cogens tenta (ou pelo menos intentou), da

melhor maneira possível, inculcar nos Estados o sentimento de cumplicidade no tocante suas

relações internacionais, de que sejam cumpridas todas de boa-fé já que a boa-fé, como valor

ético e moral, é o ideal, a atitude volitiva que se espera do próprio coração humano. A

humanidade a tem como padrão e se lhe positivou a Convenção de Viena na intenção de

lembrar aos Estados a importância de que um pacto deve sempre ser cumprido, desde que

respeitados princípios básicos do próprio Direito Internacional Público, mesmo sabendo-se

que melhor seria a expectativa de que o jus cogens ficasse ao alvedrio moral e ético de cada

Estado.

Os Estados são governados por corações humanos. Corações humanos são

governados por desígnios, em sua maioria, como se viu na história do mundo, ruins. O ser

humano nasce bom, mas ao longo da vida pode se tornar ruim, principalmente se não lapidado

e incentivado a manter seus laços éticos e espirituais de bondade, de humanidade. O Direito,

fruto da criação do homem e ciente disso, equilibra-se nesta premissa, regulando as relações

humanas entre bons e ruins, se lhe incumbindo dar-lhes o que lhes pertencem, desde que, para

tanto, se faça tal coisa em respeito a um mínimo de dignidade humana inerente a ambos.

E é esse, pois, o motivo para se haver positivado o valor do jus cogens como

princípio explícito e objetivo do Direito Internacional Público.

33

Page 34: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

Contudo, em virtude dessa cogência, vê-se razão para se questionar quem, ou

melhor, qual dos direitos, num conflito direto entre tratado internacional e lei interna, tem

prevalência sobre a regulamentação das relações entre os Estados como sujeitos

internacionais.

Porque mesmo existindo uma ordem jurídica dita “externa”, por força da

imperatividade de um tratado, dentro de cada Estado, semelhantemente, existe uma ordem

jurídica interna em que os seus desejos já expressos são soberanos sobre o seu povo, ainda

que odiosos a outros Estados. Melhor dizendo, a primeira grande pergunta na visão de

Hidelbrando Accioly, consiste em saber se o Direito Internacional Público e o direito interno

são dois ordenamentos independentes ou se tratam de dois ramos de um mesmo sistema 39.

Eis então, o paradoxo. Saber se a ordem jurídica externa prevalece sobre a

interna ou vice versa, ou ainda, saber se tais ordens têm sua razão de ser independentes, desde

muito é a grande dissensão do Direito Internacional Público, até hoje, sem solução taxativa. A

questão está longe de firmar-se definitivamente sobre uma ou outra idéia, inda mais apoiada

sobre o bom senso unânime dos Estados. O que existe são temperos para algumas soluções.

Basicamente, há os que defendem a tese monista, de haver uma só ordem

jurídica num grande círculo concêntrico, onde a ordem jurídica externa engloba, total ou

parcialmente, a ordem interna.

Já para a tese dualista, existem duas ordens jurídicas, interna e externa, como

dois círculos concêntricos independentes, os quais vez por outra se enfeixam.

Numa melhor explicação, o monismo vem de mono, único, um só, muito

embora se verifique dentro dele a existência de duas correntes. A primeira, diz respeito a uma

ordem jurídica única, sob o primado do direito internacional, ou seja, de se ter o Direito

Internacional Público no topo de uma pirâmide normativa. Kelsen, seu maior expoente, desde

cedo profetizava que um dia se haveria uma única ordem jurídica onde então a soberania dos

Estados ficaria em segundo plano.

39 Op. cit, p. 62.34

Page 35: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

A segunda apóia-se no primado da ordem jurídica interna, importando na

soberania de cada Estado que, a seu critério, pode ou não adotar os preceitos do Direito

Internacional, de maneira casual. Na verdade, cabe ao Estado consentir ou não de que a norma

internacional melhor complete seus interesses. A ordem jurídica única desenhada sob o

monismo, a princípio, tem validade no seu todo, mas no caso de eventual conflito de norma

internacional em face de norma interna, prevalecerá esta última se assim o Estado desejar.

Porque a norma interna é fruto de sua criação. E a interpretação que se deve fazer dela é à luz

da própria Constituição do Estado, e não de um diploma internacional.

O dualismo, por sua vez, dá ênfase à “diversidade de fontes de produção de

normas jurídicas, lembrando sempre os limites de validade de todo direito nacional” 40. A

norma de Direito das Gentes só tem validade e eficácia na ordem jurídica interna do Estado

quando ele mesmo, em face principalmente de sua Constituição, a aceita, promovendo então a

sua introdução no plano doméstico.

Isso porque a ordem interna trata, logicamente, dos problemas do Estado, ao

passo que a ordem internacional trata de suas relações internacionais com outros Estados. Por

essa razão é que não há confusão entre uma e outra ordem. Se lhes existem dois campos

distintos. Ocorrendo eventual conflito entre norma internacional e norma interna, resolve-se a

questão a partir da interiorização ou não da primeira no plano jurídico interno de um Estado.

Eis então, três posições as quais se pode adotar, na qual em uma delas, os

Estados podem admitir, de qualquer forma, a existência do Direito Internacional Público.

Mesmo que a crítica ao jus cogens se faça então acentuadamente, em razão desse paradoxo,

de como resolver um conflito entre lei internacional e lei interna, da prevalência de uma à

outra e em quais casos isso pode se dar.

Fato é que, por exemplo, um tratado, em especial, um tratado internacional de

direitos humanos, deve ser cumprido justamente por força do jus cogens, em que boa-fé e

pacta sunt servanda, como valores axiológico-jurídicos são muito valiosos. Inda mais quando,

por tratarem de substrato material relacionado a um rol de direitos básicos inerentes aos seres

40 J.F. Rezek, op. cit. p. 05.35

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humanos, servem para melhor aperfeiçoar a aplicação da Constituição Brasileira, por

exemplo, sob o mote da dignidade humana.

Mas a própria CF/88 não é unânime no assunto e adota as três posições

existentes. Ora é monista sob a primazia do Direito Internacional Público quando, por

exemplo, diz no § 2º do art. 5º, que ela mesma, ao petrificar direitos e garantias nela

expressos, “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou

dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Noutro momento é monista sob a primazia do direito interno. E diz que

compete ao Supremo Tribunal Federal julgar, mediante recurso extraordinário, as causas

decididas em única ou última instância quando a decisão recorrida declarar a

inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Quem assevera é o art. 102, III, “b” da CF/88,

de cuja glosa se extrai a equiparação de um tratado a uma lei ordinária federal, em que se lhe

aloca, portanto, abaixo da Carta Política.

Por fim, a CF/88 é dualista quando anota que um tratado internacional assinado

pelo Brasil, representado pelo Poder Executivo, deve passar por processo de incorporação

conduzido pelo Congresso Nacional que, o admitindo, irá editar Decreto Legislativo como

que o validando, sobre o qual o citado Poder Executivo enfim poderá apor sua ratificação. É o

que versa o art. 84, VIII, da Carta Política.

Como então já se anotou, para a finalidade deste estudo, a posição que se adota

ao menos para justificar a constitucionalidade material de um tratado internacional de direitos

humanos é a de que a Constituição adotou, neste quesito, a corrente monista, sob a primazia

dos Direitos Internacionais Humanos. Ao menos nesse aspecto, não parece haver dúvida que o

constituinte originário fez opção pela citada incorporação imediata de tratados de direitos

humanos, em virtude da relevância da matéria neles disposta. O fato de o constituinte

derivado, diga-se de passagem, com o advento da EC/45, haver criado uma espécie de

processo formal para a incorporação e equiparação de um tratado a uma Emenda

Constitucional, não retira a eficácia do monismo sob a prevalência do Direito Internacional

Público (no caso, como se anotou, dos direitos humanos), inserto no texto do § 2º do art. 5º da

CF/88.

36

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Os direitos humanos, aos quais se cumprem fazer constantemente a sua defesa

intransigente, conferem ao campo normativo da proteção humana, uma natureza globalizante,

o que muito justifica sua relevância até para o próprio Direito Internacional atual. E é por

conta disso que “até mesmos os temas tradicionais passaram a ser “contaminados” pelo

novo enfoque centrado nos valores revelados pela novidade da descoberta da pessoa humana

nas relações internacionais”. 41

III O VALOR DA DIGNIDADE HUMANA COMO BEM JURÍDICO TUTELADO

POR TODA E QUALQUER ORDEM JURÍDICA.

“Viver é mais que existir” 42, diz a letra do liricista. Aliás, diz a humanidade

inteira. Viver é existir para si mesmo. É reconhecer-se entre si e entre os outros. É gostar-se,

valorizar-se, e saber que o Estado lhe deve não só esse respeito, mas a promoção disso, por

intermédio ou de ações positivas, ou de ações negativas.

41 Guido Soares, op. cit.42 Slim Rimografia, “Sol”, de “Instrospectivo”.

37

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Aliás, o mundo também deve. Quem nasce, nasce para existir, em qualquer

parte do mundo, sob qualquer aspecto em que se proponha discutir a sua própria existência,

enquanto ser pensante, racional. Quer sob um valor religioso, sejam sob valores éticos,

filosóficos, morais, jurídicos ou quaisquer outros, a vida, estrondosamente viva, na forma de

quem anda, pensa, lê, escreve, come, e habita o mundo inteiro, é o patrimônio de um planeta

em meio a outros oito, na qual se vê-la unicamente existir nesse chamado Terra.

O assunto é inesgotável. A riqueza, mais do que a pobreza da humanidade, é

ou pode ser também inesgotável. Deve se valorizar, ainda que não tantas as demonstrações de

humanidade ao longo da história, as vidas de Jesus Cristo, Pedro ou Paulo; John Wesley,

Mahatma Ghandi, Martin Luther King Jr., Madre Tereza de Calcutá, Xanana Gusmão,

Betinho, Mandela ou Patativa do Assaré; todas em comparação a Slobodam Milosevic,

Saddam Hussein ou Augusto Pinochet, por exemplo. A complexidade das relações humanas,

em meio a regras universais presumidamente inerentes ao seres humanos, de maneira ou

outra, foge ao alcance de nossa própria capacidade de compreender a questão.

Sendo assim, quaisquer conceitos ou estudos que se faça sobre isso, jamais

serão estanques. Os gregos ou o cristianismo na visão de São Tomás de Aquino fizeram, mas

não esgotaram o tema. Imannuel Kant 43 e o ideal de todo ser humano existir como um fim em

si mesmo, ou a reflexão de Nietzche em Assim falava Zaratrusta ou Humano,

Demasiadamente Humano, igualmente. Protágoras, Cícero, Agostinho, Francisco de Vitória,

Puffendorf, Descartes, Locke, Rosseau, Voltaire e Montesquieu, igualmente contribuíram

cada um ao seu tempo e modo, para conferir importância de ser e sentir-se humano, sem,

contudo, traçarem pontos de chegada, senão, pontos de partida para se alcançar a uma espécie

de fórmula sobre o que vem a ser a dignidade do ser humano.

Aí então, a razão da Declaração Universal dos Direitos do Homem, após o

massacre dos seis milhões de judeus pelo Fuhrer. A convivência humana tolerante, em meio a

essa complexidade e sob o enfoque da Assembléia Geral das Nações Unidas de 1948, versou

deter o ser humano o direito de ser e existir enquanto tal em qualquer lugar do mundo. Esse

43 Norbert Hoerster é quem cita Kant, ao dizer que “no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outro como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço e, portanto, não tem equivalente, então ela tem dignidade”.

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direito, a partir de então, deveria sempre ser reconhecido por qualquer ordem jurídica interna,

uma vez reconhecido pela ordem jurídica internacional. E seria válido sob quaisquer

condições ou circunstâncias, ainda que um conceito completo a respeito de dignidade humana

não se alcançasse, como, de fato, nunca se alcançou.

Pois, o que mundo havia visto até então, por si só, era o conceito do que não

era e nem nunca poderia ser a dignidade de uma pessoa.

Homens e mulheres, de qualquer idade ou cor e independentemente de credo,

origem, nacionalidade ou classe social, são simples e maiormente homens e mulheres, não

objetos, seres inanimados. Á época da segunda guerra mundial eram assim também. Disso

resulta a idéia do detentor de direitos universais, o sujeito de direitos universais chamado ser

humano.

O mundo, em torno dele, passa a gravitar 44, sobretudo de maneira

conscientemente ética. Com o pós-segunda guerra mundial, o direito, definitivamente, passa a

ser colocado à sua razão, combatendo sua coisificação. E a partir da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, esta concepção então se desdobra em direitos “humanos”, direitos esses

marcados por indivisibilidade e universalidade. A condição de pessoa humana é o único

requisito para que um indivíduo tenha o expresso reconhecimento de seus direitos

primordiais, a proteger sua existência com dignidade 45 moral e espiritual. Em especial, para

protegê-lo do Estado e do juízo que a inobservância disso o pode levar a fazer de si mesmo.

Eis, portanto, o molde do mais amplo valor traçado a respeito do ser humano.

A experimentação de dor física e sofrimento moral nunca antes haviam sido maiores e

intensas 46. E essa dor, esse sofrimento, do segundo pós-guerra em diante, passa a ser

relembrado ao nascer de um novo dia, mesmo que inconscientemente. O indivíduo dá-se a

refletir a respeito de sua existência e de como ela é exposta não só porque a ordem jurídica foi

então permeada de valores desta natureza. Na verdade, o que faz o direito é tentar alcançar

uma dignidade humana que, para ela mesma, não há conceito fugaz, estanque.

44 Vicente Greco Filho e Alessandra Orcesi Pedro Greco, A Prova Penal no contesto da Dignidade da Pessoa Humana, 2008.45 Flávia Piovesan, Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos: Jurisprudência do STF, 2008.46 Mabel Cristina Moraes, op. cit.

39

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O indivíduo dá-se a refletir a respeito de si, de seu papel, sobre sua finalidade.

Não só perante o próprio Estado em que vive, mas perante o mundo. A dignidade humana é

assim, um sentimento que vem de dentro para fora, que brota do coração. Nem o próprio ser

humano consegue explicá-la. Se forjada sob um conceito, é por vezes o juízo doloroso que o

próprio ser faz de si mesmo perante o mais algoz dos homens e das instituições: ele mesmo,

enquanto parte de um Estado social, político ou jurídico, e parte do mundo que também dessa

forma parece se organizar. Ele indaga como pode, diante disso, sobreviver dignamente por

suas próprias forças e o que faz a lei para lhe socorrer ao menos um pouco, em pé de

igualdade.

A dignidade humana consiste então na tentativa, apenas, de amenizar, quando

muito, uma situação em que o ser humano, diante da organização estatal e mundial, se

discrimina, e se sente ao mesmo tempo discriminado. É como a verdade que Pilatos

desconhecia. Lei interna ou externa tem a finalidade de traduzir esse sentimento e entender o

contrário, é acreditar que o plano fático, do ser, é mero produto do dever-ser. Porque,

infelizmente, nem o Estado, e nem o mundo por seus organismos internacionais, alcança a

todos os indivíduos da terra indistintamente. Aliás, os olhos dessas instituições mais se

assemelham a luzeiros, aos quais a todo o momento o indivíduo luta para enxergá-los com um

pouco mais de intensidade.

Essa reflexão, extraída de tais sentimentos, passa a surgir a cada dia em

sincronia aos avanços técnicos e científicos que a própria vida humana produz, quando então

a conseqüência disso, no mais das vezes, se traduz em fome, miséria, guerras e segregações,

todas advindas de um comportamento frio, irracional, não raras vezes enxaguado em sangue e

morte de gente inocente. Também se sincroniza ao crescimento econômico e social de uma

minoria, que exclui a maioria fazendo-a amargar contrapartidas pouco digestas.

Dá-se então, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma

revivificação do antropocentrismo político e jurídico, garantindo-se muito mais do que a vida.

Garante-se o mérito de ser não só aceito pelos outros, mas de ser o indivíduo aceito por ele

mesmo, de aceitar-se digno ao mundo e ao Estado, combatendo-se qualquer forma a que lhe

venha degradar 47.

47 Carmem Lúcia Antunes Rocha, op.cit.40

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E para isso, há o reconhecimento da existência dos direitos mais básicos a esse

desiderato, imprimindo-se neles o próprio conteúdo da dignidade humana e a projeção dela

sob uma única, mas não esgotável linguagem, se assim podemos dizer. Ela não é alocada

como derivação de uma conduta, ou mesmo como um padrão de conduta a ser perseguido. Ela

passa a ser tratada como uma qualidade, não importando o modo de cada um conduzir-se. A

dignidade humana passa, pois, a ser relevada como um “pressuposto de qualquer conduta, um

limite externo e de caráter tutelar imposto à ação”. 48 O indivíduo que a goza, a goza não por

seus próprios méritos. Goza-a porque é ser humano e, até então, está vivo.

Ao que, a Declaração de 1948, sob este aspecto peculiar, vem contrariar, ou

melhor, vencer a idéia de que a dignidade de cada ser humano só se pode vê-la singularmente

a partir da leitura qual cada povo lhe faz, porque fruto da história e cultura, numa variante

assim esquadrinhada por levar em conta convicções sociais religiosas ou ideológicas 49.

Une-se o mundo em torno de uma proposição única, sintética, qual seja, a

defender o ser humano por ele mesmo, acima de qualquer circunstância interna ou externa, ou

sob qualquer critério valorativo, quer objetivo, quer subjetivo. Há uma essência comum a

ligar todos os indivíduos. Dignidade não se mede ou se lhe fixa preço. É um valor

insubstituível, indivisível, estabelecido em categorias 50 já que toda pessoa humana é digna,

acima de qualquer indagação que se faça a respeito disso. Dignidade, em verdade, é uma

honra, uma honraria; é um cargo; é o título mais importante, determinando a integridade e a

inviolabilidade de cada indivíduo, repensando-o numa dimensão superior e para além da

existência apenas de um ser dotado de corpo físico somente 51.

Ética, filosofia, moral, história e sociologia, enfim, valores já mencionados,

nem sempre considerados como fontes materiais das quais se faz emergir o direito 52, também

passam a servir, mais do que nunca, para reforçarem a justa finalidade de conferir à existência

humana total proteção. Sob tais premissas, nasce, pois, o Direito Internacional dos Direitos

48 Augusto César Leite de Carvalho, A dignidade (da pessoa) humana, 2009.49 Vicente Greco Filho e Alessandra Orcesi Pedro Greco, op. cit.50 Mabel Cristiane Moraes, op. cit.51 Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.52 Como bem estudou o assunto Del Vecchio, todas as manifestações jurídicas subsumem-se a uma fonte única, essencial e permanente que é o espírito humano, a natureza humana, a pessoa humana.

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Humanos, visando garantir o exercício dos direitos da pessoa humana. Seu diploma maior, se,

reconhece na Declaração Universal de 1948. Surge com ela, uma espécie de um código

comum, a ser observado por todos os países 53.

Com isso, coloca-se um ponto final na eterna dualidade entre o positivismo

jurídico e o naturalismo, por se convencionar uma união de ambas as correntes jurídicas em

prol da humanidade de cada pessoa. E mesmo entre elas, no seu embate contra a moral e a

ética - que formam a consciência social dos seres como diz a teoria de Perelman -, também se

coloca outro ponto final, fazendo-se nova resolução a respeito do assunto. Porque as três

correntes passam então a se completar 54. A ética principalmente, de onde deriva a norma

jurídica em si, sai do campo secundário, de inspiração, ao que se lhe passa a impor uma

posição primária, inserida no bojo da cogência e da coercibilidade que o positivismo dota à

norma jurídica.

Desde então, o legislador e os tribunais necessitaram fundamentar o

reconhecimento ou a própria criação de novos direitos humanos a partir de uma evolução de

consciência social, baseada em fatores sociais, econômicos, políticos e religiosos 55. Mas,

passado algum tempo, não se estancou a formulação desses direitos.

Muito ao revés. Passaram a ser chamados, igualmente, de direitos

fundamentais. Melhor dizendo: direitos humanos fundamentais. Originaram-se da fusão de

várias fontes, bebendo das antigas tradições das civilizações “até a conjugação dos

pensamentos filosófico-jurídicos, das idéias surgidas com o cristianismo e com o direito

natural”. 56 Sempre dotados da finalidade de aperfeiçoamento do controle e limite do poder 53 Flávia Piovesan, op. cit.54 Implicitamente, a questão tem relevância de dimensões inimagináveis porque, até então, não se concebia a norma moral, de comportamento geral, mas subjetivo dos homens, fonte sobre a qual a produção da norma então jurídica se apoiava ou deveria se apoiar, muito embora ambas detivessem, tanto quanto ainda detém, repouso sobre a ética. Não. A norma jurídica originava-se da forma de organização racional da própria relação entre os homens em sociedade, na tradução do contrato entre ele e os demais enquanto pertencentes a um mesmo Estado. Noutras palavras, a abstração da norma jurídica era assim determinada porque o próprio Estado, ao criá-la, criava então o próprio conteúdo do direito, autônomo, numa espécie de convenção social, uma vontade geral sobre o que então poderia ser considerado correto, acertado, no seu aspecto jurídico. A diferença entre uma e outra, dizem, é a heteronímia, a coercibilidade e a bilateralidade da norma jurídica, ao passo de a norma moral possuir então unilateralidade e, principalmente, incoercibilidade e autonomia quanto ao fato do indivíduo observá-la ou não. 55 Flávia Piovesan, op.cit.56 Alexandre de Moraes, Direitos Humanos Fundamentais, 2000, p. 19.

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estatal, imbuindo o Estado moderno, contemporâneo, de verdadeira legalidade e igualdade aos

indivíduos ao consagrar o respeito à dignidade humana no âmago de tudo.

Este controle, esta limitação, passa então a ser empreendida de “fora para

dentro”, tendo-se o incentivo de diplomas e organismos internacionais a motivarem os

Estados a respaldarem seus pactos sociais, ou seja, suas Constituições, com normas de

implicações tanto negativas quanto positivas aos poderes de cada Estado na sua

particularidade. Essa a diferença básica do que anteriormente não se havia constatado na

Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789.

Porque, na primeira dimensão de direitos fundamentais, a idéia ainda

adormecida de dignidade regrava-se na liberdade individual sem qualquer vigilância ou

proteção do Estado. Burguesia e proletariado competiam em pé de igualdade. Só depois, com

o genocídio de uma parte do mundo, é que o próprio ser humano - passada a primeira e

segunda dimensão de direitos fundamentais -, foi se aperceber do fato de sua liberdade não vir

antes de seu direito tanto natural, como divino ou positivo, de ser dignamente existente, para

si, para os outros e, no contexto da segunda guerra mundial, principalmente para a Alemanha

ou a Itália em que se encontravam os judeus.

O nacionalismo exacerbado, responsável por tentar igualar, na segunda

dimensão de direitos fundamentais, ricos e pobres debaixo a mesma condição de serem, pois,

cidadãos qualificados de um Estado, acabou por criar a indignidade do ser humano que então

se marcava com a chancela da pseudo-cidadania criada por Hitler, Mussolini, e outros.

Só que, como se vê até hoje, por questão ética, moral, filosófica e de alguma

forma espiritual ou religiosa, o ser humano existe. Irá sempre existir, até o dia em que a terra

se acabe. E a partir disso, de sua simples existência e já de seu valor enquanto ser existente e

pensante, é que então se lhe respeita. Porque a pior afronta à dignidade de um indivíduo

enquanto ser humano, ao menos de maneira objetiva, é aquela praticada pelo próprio Estado

em que ele vive, quando se lhe nega principalmente respeito e proteção. Quando em guerra,

escravizado até por uma outra nação, o indivíduo inda assim não desmerece tratamento digno,

muito embora se admita ao menos que tal coisa se imponha por parte do inimigo, do Estado

vencedor, até com maior amplitude.

43

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Mesmo assim, a indignidade do ser humano é inadmissível.

Uma guerra civil, por exemplo, não se origina somente a partir de movimentos

paramilitares, de cunho político principalmente. Ela nasce em corações humanos indignos, e

pode se manifestar de maneira muito pior, como a que se vê no Brasil do século atual. A

apatia política e o descaso às instituições públicas fazem de cada um, refém, e ao mesmo

tempo, vilão. O aumento incontrolável da criminalidade é um dos frutos dessa guerra interior.

Injustiça social e falta de boa-fé no trato de negócios se eternizam como motivos suficientes

para que a ordem econômica, pela cobrança de juros, seja sempre desequilibrada, e por esse

motivo, a defesa da dignidade humana, a humanizar qualquer relação particular, entre

indivíduos, e estatal, entre indivíduos e Estado.

IV DIGNIDADE HUMANA COMO PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

4.1 Conceito e pano de fundo social da Dignidade Humana.

Enfim, diante então desse esboço amplo do que se trata a dignidade de um ser

humano, torna-se impossível conceituá-la sob um molde estrita e verdadeiramente jurídico 57.

Pior ainda é a tentativa de divorciá-la então dos tão citados valores éticos, morais, filosóficos,

sociológicos e espirituais dos quais inevitavelmente o constituinte brasileiro se embebeu,

57 O conceito de Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos Direitos Fundamentais, 2001, a respeito do tema, por exemplo, é um dos mais completos. Por ele se tem a noção de que "A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos".

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mesmo a criando como parte de uma norma hipotética fundamental abstrata que é a

Constituição Brasileira. A verdade é que todos a dizem ter sido forjada sob o valor da

dignidade da pessoa humana, ainda que esta última, como sobreprincípio jurídico, tenha sido

positivada, como dita o art. 1º, III, da CF/88.

Tal como o constitucionalismo contemporâneo no mundo, não poderia ter sido

diferente o desenvolvimento do constitucionalismo brasileiro quando da Assembléia Nacional

Constituinte anterior a 03 de outubro de 1988. O constitucionalismo pátrio se embrenhou na

suma importância da dignidade humana, e justamente por isso, a positivou.

O constituinte se convenceu de que um tratamento porventura desumano, como

se viu na história do mundo e do próprio país, não atingiria só a uma pessoa. Sempre que

caracterizado, este tratamento desumano afrontaria diretamente a toda a humanidade

representada em cada ser humano e por essa razão estabelecer-se, com a humanização da

CF/88, “uma nova forma de pensar e experimentar a relação sociopolítica baseada no

sistema jurídico; (a dignidade da pessoa humana) passou a ser princípio e fim do Direito

contemporaneamente produzido e dado à observância no plano nacional e no internacional” 58.

A escolha pelo valor axiológico-normativo da dignidade humana como mote

não só da atividade legiferante ou executiva, mas também em relação à aplicação da lei, teve

como fundamento o próprio espírito ao qual se desejou imprimir na Constituição Federal de

1988. Porque nela se estava a traduzir o fruto de prerrogativas individuais não somente

oriundas do citado constitucionalismo em voga no mundo, como também oriundo de fatores

históricos e sócio-econômicos extremamente relevantes ao Brasil até aquele momento.

O apego à constitucionalidade e a democracia, nos anos anteriores, não existiu,

ao menos na sua forma típica. A ditadura militar houve de suprimir a legalidade, isonomia, a

liberdade de expressão e o sufrágio verdadeiramente universal, entre outros direitos

fundamentais. Sua eficácia foi arrancada à força dos indivíduos. E se assim não a foi, ao

menos se lha reduziu sensivelmente, por iniciativa do próprio Estado Brasileiro, governado

58 Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.45

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sob armas. Os que se muniram de idéias e tolerância, evitando a todo custo uma guerra civil

de indignidade humana dentro do próprio coração, foram obrigados à rouquidão.

Por tal motivo é que, vendo-se tamanha gravidade em tudo isso, o constituinte

preferiu, com a promulgação da nova Carta Política do Brasil, dispor uma resolução ao que no

passado se violou, formalizando-se principalmente o chamado bloco de constitucionalidade

do art. 5º da CF/88 e prevendo outras dimensões de direitos fundamentais (inclusive os de

quarta ou quinta geração como prefere parte da doutrina dizer).

Ao longo de quase três décadas anteriores à promulgação da Constituição de

1988, época dos chamados “anos de chumbo”, o que se viu foi o esfacelamento do que até

então, desde a década de 30 do século passado se havia conquistado, principalmente no

campo econômico.

Dizem, aliás, que uma das seqüelas desses anos de ditadura militar deu-se na

década de oitenta, quando então se constatou um crescimento econômico pífio que só fez

aprofundar o fosso social entre ricos e pobres. Por conta deste Estado de Direito “às avessas”,

a economia e a competitividade do país foram estagnadas. Os inúmeros planos econômicos

desta época, além de pouco conquistar, marcaram a década seguinte, a de noventa, ainda com

marcas outras, indeléveis. Cresceu a apatia política de gente já descrente do Estado. Por

conseguinte, deu-se mais azo à proliferação ou a “descoberta” da corrupção.

Por conta disso tudo é que uma nova luta, a partir da Constituição Federal de

1988, passa a ser travada. O ideal mor do novo constitucionalismo em vigor no Brasil não só

retoma a democratização do Estado e o fortalecimento de suas instituições. Inculca no

inconsciente coletivo a idéia de o país necessitar mostrar-se economicamente forte,

competitivo, e sólido na condução do sistema democrático de governo. Ao menos

politicamente, se tentaria alçar o Brasil à condição de potência internacional, o que só se faria

por abertura do mercado interno a impulsionar o aquecimento da economia e o incremento da

indústria nacional. Tudo em vista de se “revestir” a chamada dignidade da pessoa humana.

Como sobreprincípio constitucional, foi então motivo de reclamo pelo

constituinte, a partir de uma premissa axiológica inspirada principalmente pela desigualdade

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social, e sob essa idéia do crescimento democrático e financeiro que se pretendia imprimir no

país. Quer ou não, a conquista da democracia envolve a conquista do poderio econômico

igualmente. Envolve também a sua distribuição, de maneira equilibrada. Carmem Lúcia

Antunes Rocha, aliás, dedica um estudo pleno sobre a questão 59.

E por isso o intuito da Constituição Federal de 1988 em adotar em seu art. 1º,

inciso III, a dignidade humana. Não somente se concedia, a partir dela, unidade aos direitos e

garantias fundamentais, agora considerados como inerente à personalidade de qualquer

indivíduo. De mesma sorte, se tentava, um pouco, amenizar a latente questão da miséria social

na qual a maioria pobre, era submetida.

Visando a construção de uma sociedade justa, como diz o art. 3º, I, da Carta

Política, é que surge a dignidade humana. Isso estava a valer tanto para ordem interna quanto

no tocante às relações internacionais que o Estado Brasileiro travaria com outros países,

fazendo prevalecer os direitos humanos. Quem o diz é o art. 4º, II e IX, da Constituição.

Por isso que a positivação, pois, da dignidade humana como sobreprincipio, foi

não por acaso, estratégica. O Brasil passou a dizer, a partir de 1988, que o bem estar do ser

humano seria o ideal pelo qual todo o seu maquinário estatal estaria engrenado. Pelo ser

humano o país se organizaria no âmbito de seus três poderes políticos e para ele se envidaria

todo e qualquer esforço para lhe fazer sentir-se humano. Isso se daria através da disposição de

direitos e garantias fundamentais, políticas e sociais, principalmente.

Apenas para que se faça constar, Alexandre de Moraes 60 formula um conceito

abrangente do princípio. E diz que a dignidade da pessoa humana se dá na forma de um

“valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.

4.2 Os ideais da Constituição e os Princípios Constitucionais.

59 Op. cit.60 Direito Constitucional, 2006, p. 45.

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Page 48: MONOGRAFIA PÓS LEGALE PARA CONVERSÃO EM  P  D  F

Ferir, portanto, a este sobreprincípio, é muito “muito mais grave do que

transgredir uma norma” 61, na clássica lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, por

exemplo. Tem-se não somente uma ofensa a um específico mandamento obrigatório, como

também a um sistema de comandos, muito maior do que o próprio princípio. Tem-se a

legitimação da mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade 62, por se ofender ao

maior princípio existente na ordem jurídica brasileira.

Mais do que isso. Tem-se igualmente a insurgência contra todo o sistema

jurídico em que a dignidade humana tem assento matricial, subvertendo-se a ordem e a razão

dos valores fundamentais nele constantes 63. E para de fato se visualizar a dimensão do que é a

afronta ao sobreprincípio da dignidade humana na ordem jurídica interna, deve se ter em

mente a importância da Constituição Federal de 1988, que se trata do coração do próprio

Estado Brasileiro. É ela quem lhe dá o nascimento, e de onde brota o princípio tratado.

Uma Constituição pode ser classificada sob o seu aspecto jurídico, político ou

sociológico. Hans Kelsen, Carl Schimitt e Ferdinand Lassale, cada qual a seu modo e visão, a

definem sob estes três aspectos, respectivamente.

Mas é fato que na CF/88 não consta só a forma pela qual o país se organiza

politicamente ou então os valores dos quais ela se reveste, ou seja, dos fatos sociais que a

dirigem. Sobretudo, os direitos e garantias individuais dispostos aos indivíduos, podendo ser

contrapostos contra o próprio Estado e ainda contra outros particulares, são a pedra angular de

validade da Constituição Federal, e até mesmo do direito interno. Mais especificamente, o

direito realmente válido é o que se conforma, a priori, com a Constituição Federal de 1988,

ou seja, é o que se conforma à própria dignidade humana, por nela relacionar-se os direitos e

garantias fundamentais que a compõem.

61 Curso de Direito Administrativo, 2007, p. 922.62 Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 1996, no mesmo sentido, também diz que "é extremamente mais grave a lesão a um princípio do que o ferimento a uma norma isolada (...) a lesão ao princípio consiste em ferir as próprias estruturas desse direito, a ossatura que compõe esse feixe normativo".63 Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit.

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A Constituição Federal de 1988 é então a norma hipotética fundamental do

ordenamento jurídico interno, se a tratarmos sob o seu conceito jurídico; é a hipótese de um

direito que “deve ser” perfeito na sua própria abstração. De suas entrelinhas toda e qualquer

outra lei retira fundamento para ser considerada válida dentro de um sistema jurídico que,

pressupõe-se, já é perfeito, em cujo topo se assenta a própria Constituição. Sob o olhar da

teoria pura do direito, a Constituição é a norma que mais “pureza” carrega. Dela não se extrai

considerações de cunho sociológico, político ou filosófico 64 já que tanto ela quanto o direito

em si, como fruto de uma convenção racional entre os homens, são perfeitos.

Diante disso, a Constituição paira então acima do mundo do “ser”, de como

são as coisas realmente 65. Ela é o dever-ser, um mandamento a que as leis e a ordem jurídica

sejam como ela, carregando o seu espírito e a sua força.

E nessa consideração, se a dignidade humana é o seu valor fundante, como

tanto anota Carmem Lúcia Antunes Rocha 66, então, sob o olhar da dignidade humana

guardada nas entranhas da força que tem a Constituição enquanto norma, a razão de ser do

próprio ordenamento jurídico está na própria dignidade do ser humano. É para ele quem a

norma deve se validar à Constituição Federal. Essa validação não pode nunca torná-lo refém

do direito, e sim finalidade para qual o direito, fruto de homens racionais, existe.

Desta maneira, não se pode violar a Constituição ou qualquer dos princípios

fundamentais nela insertos. Quando isso acontece, se viola o próprio “coração” do Estado,

que tem nele um outro coração chamado dignidade do ser humano enquanto braço forte

direito internacional público de mesma sorte. Na discussão que noutro tópico se travará com

mais ênfase, o § 3º do art. 5º da CF/88 viola justamente essa disposição, que bem se vê

plasmada na redação do § 2º do citado art. 5º, a chamada cláusula aberta para a ampliação do

conceito inesgotável que se pode fazer a respeito da “honraria” humana.

O que se tenta, pondo-se a dignidade humana como sobreprincípio jurídico,

não é a aproximação do ser humano à perfeição da norma hipotética fundamental que é a

64 Teoria Pura do Direito, 2006.65 Vicente Paulo, op. cit, 2006, p. 11, assim comenta: “nisto consistia basicamente a sua teoria pura do direito (de Kelsen): afastar a ciência jurídica de toda a classe de juízo de valor moral, político, social ou filosófico”.66 Op. cit.

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Constituição. É sim, fazer com que este “plano hipotético”, frio, mas perfeito, se amolde à

quentura da realidade em que brasileiros e estrangeiros residentes no país vivem. Para o

campo da realidade, do mundo fático de como são as coisas - do “ser” de Kelsen -, é que se

necessita trazer o direito.

A partir disso, a dignidade da pessoa humana enquanto princípio mor da CF/88

deve, pois, ser vista como um grande “standard”, o maior “padrão” juridicamente relevante

que existe, até mesmo no plano jurídico internacional. Tanto quanto qualquer outro princípio

jurídico, a dignidade humana se radica na exigência de justiça e no ideal ao qual persegue o

direito. Sua natureza é normogenética, de onde todas as outras normas infraconstitucionais

tiram sua origem. E se lhe diz tal coisa por ser, igualmente, o fundamento para a própria

existência das normas constitucionais 67, como deveria ser a razão de existência do § 3º do art.

5º da CF/88, exemplo.

Enfim, a dignidade humana enquanto princípio está na base de tudo e se

constitui na ratio de qualquer regra de direito 68, tal como se lhe infere no ordenamento, seja

implícita, seja explicita e positivamente (ou ainda, como alardeia o § 2º do art. 5º da CF/88).

Pois além do mais, se trata também de um instrumento de integração da ordem jurídica, como

diz o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. E se porta como um caminho a que o

aplicador e operador do direito deva sempre percorrer, para que então se alcance a finalidade

para qual tanto o princípio como o direito em si, se lhes propõem.

67 Joaquim José Gomes Canotilho, op. cit, p. 245.68 Interpretação e Aplicação da Constituição, 1996, p.147.

50

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V MATERIALIDADE CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS

DE DIREITOS HUMANOS E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/04.

Não se presta o trabalho a fazer uma análise do novo posicionamento do

Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto, ocasião em que Gilmar Mendes, atual

Ministro Presidente, no Recurso Extraordinário 466.343-1 SP, julgado em 03 de dezembro de

2008, fixou o entendimento, seguido por outros 06 votos, de que um tratado de direitos

humanos, só em função de sua materialidade, não deve ser equiparado a uma lei ordinária,

comum, e sim dotado de uma eficácia especial, dizendo-o então supralegal, ou “acima” das

leis ordinárias.

Também não se faz alusão à resolução da questão sob a ótica da Emenda

Constitucional n. 45/04, embora se rascunhe alguns comentários a esse respeito. Ela

estabelece, por força do § 3º do art. 5º da CF/88, que tratados e convenções internacionais

sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por

quorum especial de três quintos, são equivalentes às emendas constitucionais o que, na

verdade, acarretou um óbice aos que até então, advogavam a tese da equiparação de um

51

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tratado internacional a lei ordinária, em que se conferia prevalência do dualismo sobre o

monismo.

Porém, essa forma de status constitucional, na qual se prefere, em observação à

rigidez constitucional, a formalidade do processo legislativo de incorporação do tratado de

direitos humanos, não resolve a questão como aludem alguns. Tampouco esvazia a tese da

constitucionalidade material de um tratado de direitos humanos, e não formal. Porque admitir-

se tal coisa é consentir-se na ineficácia dos § § 1º e 2º do art. 5º da CF/88, os quais já existiam

antes do próprio § 3º, em vigência a partir da promulgação da Emenda Constitucional n. 45.

De mesma sorte, a matéria discutida nesses tratados não se origina sequer de

deliberações e necessidades internas do Estado, na pessoa do Poder Legislativo. Origina-se

sim, de uma deliberação internacional a respeito do tema da dignidade humana, fator esse

muito mais relevante para se crer na constitucionalidade material de um tratado do gênero.

5.1 Posição doutrinária a respeito da constitucionalidade material dos Tratados Internacionais

de Direitos Humanos.

Há razão, por isso, em dizer que com os tratados internacionais de direitos

humanos, sob o enfoque da cláusula aberta 69 do § 2º do art. 5º da CF/88 o valor da própria

dignidade humana é ampliado. À glosa do § 1º do citado art. 5º, os tratados devem ser

imediatamente aplicados. E a existência conjugada de ambas as normas constitucionais, neste

sentido, estão a indicar que o constituinte originário permitiu ao constituinte reformador

ampliar não só o bloco de constitucionalidade de direitos e garantias fundamentais. Permitiu-

lhe também, ampliar o próprio conteúdo axiológico da dignidade humana que, em razão dos

tratados de direitos humanos, pode receber novos contornos com o passar do tempo, segundo

a vontade do direito das gentes neste âmbito, sempre dinâmico, nunca estanque 70. 69 Nesse sentido, Valério de Oliveira Mazuolli, A tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, 2009, diz que os tratados de direitos humanos incorporam-se no Direito interno brasileiro ou como Emenda Constitucional (CF, art. 5º, § 3º) ou como Direito supralegal (voto do Min. Gilmar Mendes) ou como Direito constitucional, sendo essa a posição doutrinária emanada de uma forte corrente a qual se filiam o próprio Valério de Oliveira Mazzuoli Flávia Piovesan, Ada Pelegrini Grinover, Luiz Flávio Gomes, Antônio Cançado de Trindade, Sylvia Steiner, entre outros. Valério anota ainda que tal posição já conta com várias décadas de existência no nosso país. 70 Paulo Antônio de Menezes Albuquerque e Rodrigo Ferraz de Castro Remígio, Tratados Internacionais de Direitos Humanos: um novo ‘locus’ hermenêutico?, 2009, sustentam conceber-se a dita cláusula aberta do art. 5º, § 2º, da Constituição Federal, como “o reconhecimento de uma fonte

52

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O que, nessa visão, torna imediatamente aplicável um tratado de direitos

humanos à razão de não se poder protelar a sua aplicação quando o sujeito a se valer de sua

materialidade é o próprio ser humano, em espécie, tratando de sua dignidade intima para

consigo mesmo, para com os semelhantes e com o próprio Estado.

Sob a máxima efetividade da norma, quer se entender que o constituinte, em

nome da dignidade humana e de tudo quanto se traça nesse sentido, preteriu sua própria

ordem interna, ao menos em relação à constitucionalidade formal, adotando uma ordem

jurídica única, com prevalência do Direito Internacional Público. E assim o fez por causa de

valor tão relevante como esse, sufragado por uma guerra mundial qual jamais haveria de

ocorrer se de fato o Estado houvesse, à época, existido em razão do indivíduo, e o próprio

indivíduo houvesse admitido sua existência atrelada à existência de seus semelhantes.

Não se pode, assim, imaginar outra perspectiva à questão. A

constitucionalidade material de um tratado de direitos humanos se defende porque se está,

admitindo-a, defendendo ao próprio ser humano, mesmo que isso custe a relativização da

soberania interna do país, ou um contrapeso a sua autodeterminação. A dignidade da pessoa

humana é sobreprincípio fundante do ordenamento jurídico brasileiro, e matricial a toda

organização social do país, conforme se infere do art. 1º, III, da CF/88 e pelo que tanto já se

anotou a esse respeito.

Como princípio, a dignidade humana se afirma no sentimento de justiça que

não só cada povo, mas, cada brasileiro busca. E por isso o motivo para se considerá-la o

fundamento para o repouso de toda a ordem jurídica. Por humanizar o direito positivo, além

de, igualmente, ser uma postura de vida e uma compostura de convivência. A dignidade

humana está no olhar do ser humano, sobre si e sobre os que lhe rodeiam 71.

Portanto, os tratados internacionais de direitos humanos, sendo posicionados

de maneira superior não só à lei ordinária, mas dotados de eficácia constitucional, como

ordenam os § § 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, são fundamentais em razão

também de uma dimensão objetiva a qual se lhes deve sempre conferir, reputando-lhes, a

inovadora do sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais: os tratados internacionais de direitos humanos”.71 Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.

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partir disso, como fontes de direitos transindividuais 72. Materialidade mais do que suficiente

detêm para esta concretização sob tal enfoque. E essa dimensão dita objetiva dos direitos

fundamentais, é matéria já aceita de que quaisquer relações, principalmente aquelas travadas

em âmbito privado, são orientadas objetivamente por valores constitucionais do art. 5º da

CF/88.

Bem por essa razão, como fontes normativas de direitos primeiramente

humanos, se deve incorporar esses tratados como parte da Constituição para ainda mais, se

fazer a Carta Política firmar-se sobre a dignidade humana. Isso enaltece a própria Democracia

do Estado, tornando-o não só Democrático, mas, sobretudo, Constitucional e até mesmo

Internacional de Direito 73, conforme a teoria dualista com preponderância do direito

internacional público, de direitos humanos, neste quesito. Faz deflagrar, de mesma maneira, a

finalidade de qualquer ente estatal, em atuar inexoravelmente pelo ser humano.

Ao se incorporá-los, sob a ótica do constituinte, estes tratados avolumam

também o chamado bloco de constitucionalidade de direitos fundamentais 74.

Constitucionalizados, desencadeiam em relação aos órgãos estatais eficácia irradiante sobre o

modo de se aplicar e interpretar a legislação tanto infraconstitucional como a própria

Constituição Federal de 1988, e passam também, a servir como parâmetro para o controle de

constitucionalidade de leis e atos normativos, porque mesmo em âmbito privado, os

particulares ficam adstritos a respeitar a dignidade humana, implícita ou não em tais tratados,

o mesmo se impondo ao Poder Público em quaisquer de suas atividades. Isso faz cumprir o

papel do direito das gentes na sua mais forte vertente, a partir, primeiramente, da ordem

jurídica interna dos Estados.

O que faz então, fortalecer o processo de democratização do próprio Estado

brasileiro, aqui se aceitando a idéia da redução de desigualdades, principalmente sociais. Esta

“reorganização” da agenda internacional brasileira compõe uma imagem mais positiva do país

no cenário internacional. E a tira colo, simboliza o aceite para com a idéia contemporânea da

72 Ingo Wolfgang Sarlet, op. cit, p. 176.73 Luiz Flávio Gomes, Valor dos Direitos Humanos no Sistema Jurídico Brasileiro, 2008.74 Valério Oliveira de Mazuolli, op. cit.

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globalização dos direitos humanos, tal como à idéia da legitimidade das preocupações da

comunidade internacional no tocante a matéria, à dignidade do ser humano 75.

Outra razão para se considerar a relevância de um tratado internacional de

direitos humanos ser aceito como norma constitucionalmente material se dá em virtude do §

2º do art. 5º da CF/88 na sua singularidade. A tese que o enxerga individualmente, muito

defendida pelos internacionalistas brasileiros, diz que a partir do dispositivo citado, há

incorporação automática desse tipo de tratado. E não sem razão, porque não se trata de paixão

cega pela questão, ou defesa inflamada dos direitos humanos, por assim dizer.

Há quem diga o contrário: não há incorporação automática dos tratados de

direitos humanos porque o processo para esse desiderato, previsto na CF/88, em suma,

consiste primeiramente na assinatura dos tratados por parte do Poder Executivo e após, de sua

necessária ratificação pelo Poder Legislativo, com posterior edição de Decreto Legislativo. Só

esse último órgão é quem pode, ratificando um tratado, torná-lo válido e eficaz. Ou seja, o

processo formal de incorporação, em consonância ao princípio constitucional da separação

dos poderes torna-se, em tese, uma barreira à incorporação automática de tais tratados na

ordem jurídica interna, por exigir a participação de dois poderes políticos do Estado, em

respeito à forma constitucional de se legislar internamente.

Mas em resposta a tal crítica, marcam-se a própria razão de ser dos direitos

humanos e do papel exercido pelo então sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, que

lhes dão origem. É grande e válida a sua projeção sobre o ordenamento jurídico do país, ainda

que o próprio Estado muitas vezes a torne objetivamente ineficaz. Porque, inda assim, a

dignidade do ser humano foi adotada como mote pelo constituinte para qualquer fim estatal,

tratando-se do valor base dos direitos fundamentais na forma de princípio estruturante da

própria Democracia 76, como já se anotou.

E se o próprio constituinte, quando do advento da nova Carta Política não se

opôs ao texto do § 2º do art. 5º da CF/88, assim dispondo-o em consonância ao ideal de torná-

lo cláusula pétrea, inderrogável e imediatamente aplicável (como indica o § 1º do art. 5º da

75 Flávia Piovesan, op. cit.76 Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.

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CF/88) o fez desta maneira justamente por compreender, neste assunto, uma relativização da

“forma”, ou seja, do processo formal de incorporação de um tratado de direitos humanos, à

“matéria” nele constante, de muito mais importância até do que a própria relativização da

soberania estatal. Caso contrário, por certo o constituinte originário haveria previsto, no lugar

da chamada cláusula aberta, o citado processo de incorporação, uma vez que à época da

promulgação da Constituição, a dissensão doutrinária a respeito do assunto já existia.

Se bom ou ruim para o texto constitucional em si, para a sua harmonização,

nem se cabe indagar. Mas fato é que ao menos para a idéia da ampliação do bloco de

constitucionalidade, em virtude de melhor poder se contornar a dignidade da pessoa humana,

a interpretação do texto constitucional do molde como é feita, é a mais acertada, tornando-se

até inquestionável. Encarada sob o enfoque do princípio da unidade da Constituição, do efeito

integrador da Carta e de sua força normativa, a posição da constitucionalidade material de um

tratado de direitos humanos diz isso. Até mesmo no conflito da norma § 2º do art. 5º da

CF/88, com a do § 3º, os princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e

razoabilidade, como critérios de hermenêutica constitucional, se bem observados a fim de se

calibrar a eficácia das três normas para o ajuste da dignidade do ser humano, também dizem a

mesma coisa.

O constituinte originário se esforçou prevendo se inserisse na CF/88 uma série

de direitos e garantias fundamentais. Mas também desejou, indo além deles, dispor ao § 2º do

art. 5º uma forma a que outros direitos e garantias porventura esquecidos ou lançados no

decorrer da vigência da nova Constituição Federal, se oriundos do regime Democrático (ou

seja, da própria idéia da dignidade humana) ou de princípios constitucionais, sejam inseridos a

compor o espírito da Constituição Federal, de maneira célere, sem necessário processo para a

sua incorporação. E o que fez o constituinte derivado reformador em descompasso a isso, é

prever quorum especial de aprovação formal de um tratado, como diz o § 3º do art. 5º,

pretendendo sanar eventualmente a discussão em torno de sua ordinariedade, derrogando a

tese da equiparação à lei ordinária.

Se tal motivo não é ainda suficiente, tem-se outro. Como se disse, o § 1º do art.

5º, da CF/88, já mencionado, bem versa que “as normas definidoras de direitos e garantias

fundamentais têm aplicação imediata”. Não se pode considerar tenha o constituinte

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originário, a partir disso, concebido o dispositivo tendo em vista somente o momento pós-

promulgação da nova Carta. É admissível, nesse sentido, que o constituinte tenha elaborado o

dispositivo prevendo que, por óbvio, os poderes políticos do país, em pleno divisor de águas

entre ditadura militar e democracia, fossem sentir grande dificuldade em adequar os preceitos

do novo texto, ainda isolados no mundo do “dever-ser”, ao mundo do “ser”, onde então a vida

em si, depois da nova Constituição, estaria sempre por acontecer.

Porque, de outra sorte, o velho brocardo jurídico diz a lei não conter palavras

inúteis, ainda mais se tratando de norma constitucional, qual não se lhe admite e tampouco se

deveria admitir uma interpretação restritiva ou extintiva de outros direitos fundamentais,

dizendo-a então ser dotada de palavras sem sentido.

Por isso então, a razão de extrair das normas dos § § 1o e 2o do art. 5o da

CF/88, eficácia plena, medindo-se, em proporção e lógica, se é válido preterir-se um direito

humano também convencionado por diversos outros países, a um formalismo legislativo-

processual na ordem interna que não se explica. Em especial o § 2º do art. 5º, ao adotar a

incorporação automática de tratados de direitos humanos, não sacrifica qualquer outro direito

fundamental, como bem jurídico tutelado pela própria CF/88. Como se anotou, só acrescenta

ainda mais, de sorte que a força normativa e a unidade da Carta Política são, pois, enaltecidas.

A alegação já feita sob os ensinos de Carmen Lúcia Antunes Rocha, a que se

assemelha o de Flávia Piovesan, também se coaduna a esse ideal. O valor da dignidade

humana é núcleo básico e informador do ordenamento, e serve como parâmetro de valoração

a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional quer de normas

constitucionais, quer da legislação infraconstitucional. É valor sobre o qual os princípios

constitucionais informadores da Constituição Federal de 1988 se apóiam 77, a espalhar

exigências de justiça e premissas éticas requeridas do próprio direito atualmente.

Não sem razão que uma interpretação sistemática de normas constitucionais

como a que tratamos, em face de toda a Constituição Federal e num efeito integrador do então

§ 2º do art. 5º aos demais dispositivos constitucionais, basta para resolver-se a questão. Se,

como dito, o valor da pessoa humana funda o sistema constitucional e como princípio, ponto

77 Flávia Piovesan, Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional, 2002.57

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de partida, na Carta é alocado já nas primeiras linhas, ou melhor, no primeiro de seus mais de

duzentos artigos 78, não se pode então admitir-se para a incorporação de tratados de direitos

humanos, um processo semelhante ao de ratificação dos demais tratados, em sua maioria,

relacionados à ordem privada.

O conteúdo material de um tratado de direitos humanos diz por si só, e não há

nenhum outro valor a ser tratado com tanto esmero – relacionado à própria idéia de um

individuo ser minimamente tratado apenas por ser indivíduo e estar vivo -, do que a

humanidade dos homens.

Também em decorrência de se conferir à Mesa da Câmara dos Deputados ou

do Senado Federal, pelo que diz o § 4º do art. 57 da Constituição Federal, legitimidade para

propor ação direta de inconstitucionalidade por via abstrata ou concentrada e intentar o

controle então, do conteúdo de um tratado de direitos humanos, se tem aí uma outra razão

para crer-se na sua incorporação automática. A questão da suposta afronta à separação dos

poderes harmônicos e independentes entre si, para os que advogam a tese de não se permitir a

incorporação nos moldes da norma do § 2º, art. 5º, da CF/88, é resolvida, neste ponto, de

mesma maneira e com muito mais força.

Aqui, em face do sistema de poder político tri-partido estatuído pela CF/88, ao

Poder Legislativo, mesmo num momento posterior à vigência de um tratado, é dada a opção

de controlar o seu conteúdo. O constituinte, bastante preocupado com o fato, não se esqueceu

desta finalidade. Ao Poder Legislativo não incumbe só a atividade legiferante. De mesma

maneira se lhe encarrega controlar os atos advindos do Poder Executivo e é por isso que a

incorporação automática, mediante assinatura de um tratado, tal como o próprio tratado,

podem ser contrariados, como dita a Constituição Federal de 1988. Isso reforça a idéia da

vigilância exercida pela “casa do povo”, o Poder Legislativo, sobre o que alcançam as mãos

do “monarca”, o Poder Executivo.

O respeito, então, ao art. 5º, § 2º, da CF/88, é fundamental não só em razão do

próprio espírito, da vontade e da força normativa constitucional qual se pretende a todo

instante preconizar, de humanidade aos indivíduos para os quais a Democracia, o Estado de

78 Carmen Lúcia Antunes Rocha, op. cit.58

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Direito e as finalidades estatais são direcionadas. O dispositivo dá à Constituição Federal uma

função de “construir e fortalecer o Direito Internacional, devendo seu conteúdo, portanto,

cumprir este papel. Neste sentido determinadas normas constitucionais possuem e devem

possuir uma significação internacional, uma vez que são voltadas para fora, e não somente

para dentro do sistema jurídico interno” 79.

Tem-se então que um tratado de direitos humanos é sim incorporado

automaticamente, mas sem se lhe obrigar a enfrentar processo de aprovação em quorum de

três quintos, por duas vezes, em cada casa do Congresso Nacional, como diz o § 3º do art. 5º

da CF/88. Por óbvio. Esse processo se refere à aprovação formal de um tratado. Já a

incorporação automática refere-se a mais rápida vigência de um tratado de direitos humanos

na ordem interna, num processo mais célere, em que para a sua vigência, basta apenas ao

Congresso Nacional, de maneira precedente, exarar Decreto Legislativo como que num ato de

concordância ao substrato do tratado em discussão, dando condições a que o Poder Executivo

então o ratifique.

É ilógico, portanto, pensar o contrário, excluindo-se dessa idéia de

incorporação dita automática a participação do Poder Legislativo. A única e exclusiva

participação do Poder Executivo se dá, nessa questão, para fins de denúncia de um tratado

como se concebe implicitamente do art. 84, VIII, da Constituição Federal. No mais, não se

pode excluir a participação do Poder Legislativo, o que também em nada torna ofuscado o

brilho da incorporação automática. A interpretação harmônica e integradora da Constituição

avaliza que a função de cada Casa Legislativa é importante para a sustância do poder político

do país, fato esse irrefragável. E mesmo a partir dessa idéia se compreende que a

incorporação, pela cláusula constitucional aberta do § 2º do art. 5º da CF/88, se não o é de

fato automática à conta da literalidade da palavra, é ao menos facilitada.

Não se deve esquecer ainda, como diz o art. 85, III, da CF/88, que é crime o

ato de responsabilidade do Presidente da República impedir o livre exercício de direitos

individuais. Portanto, outra razão para a dita incorporação automática dos tratados, de se lhes

facilitar a vigência, validade e eficácia, está nesse ponto. Por direitos individuais talvez se

devam compreender, não por um acaso, aqueles que, segundo o § 2º do art. 5º, expressos na

79 Mabel Cristiane Moraes, op. cit. 59

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Constituição, não excluam “outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,

ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, como já

se disse.

E os direitos do ser humano, confabulados primeiramente em âmbito

internacional, mesmo considerando-lhes em meio a características culturais, históricas,

religiosas e o grau de desenvolvimento de cada povo, não são concedidos ou reconhecidos

pelo Estado 80. A este daí, uma vez signatário de tratados que em seu bojo dizem respeito a

tais direitos, só cabe interná-los em sua ordem jurídica, da maneira mais eficaz e urgente

possível.

O que se defende, assim, é também a elevada posição hermenêutica dos

direitos humanos fundamentais 81, cujas características – imprescritibilidade, inalienabilidade,

irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e

complementariedade – devem sempre ser levadas em conta quando da ampliação do dito

bloco de constitucionalidade dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988.

Reforça-se, para “fora”, o papel dos direitos humanos, fazendo-os vingar já mesmo na ordem

interna para só aí, fazê-los vingar também na ordem externa. E tudo isso é feito para se lhes

retirar efetividade regular e continua, não no plano teórico, mas, na vida real principalmente.

Enfim, dota-se a norma constitucional de uma eficácia jurídica internacional,

dando formação ao próprio Direito Internacional Público e fazendo observação ao pacta sunt

servanda a que alguns o dizem invariavelmente vinculante à Declaração Universal de 1948 se

por um acaso estivermos a tratar de direitos humanos. Porque em mira, tem-se a proteção do

ser humano, a dignidade do cidadão do mundo, e não do Estado. Não há sobreposição da

ordem jurídica internacional à ordem jurídica interna, por exemplo. A constitucionalidade

material de um tratado de direitos humanos e não a sua supralegalidade, é uma forma de

reconhecer que a ordem jurídica interna necessita de complemento – o que bem anota o § 2º

do art. 5º da CF/88 -, 82 fazendo confirmar a existência de um sistema aberto e flexível,

principalmente, de direitos e princípios fundamentais.

80 Flávia Piovesan. op. cit, 1997.81 Alexandre de Moraes, op. cit.82 Mabel Cristiane Moraes, op.cit.

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Ainda que não se dissesse, pela leitura do art. 5º, § 2º, da CF/88, um tratado de

direitos humanos incorporado automaticamente na ordem jurídica interna, inda assim, se lhe

diz constitucionalmente material e não supralegal em consideração ao ideal do “pro homine” 83, em geral, aplicado como princípio especial a derrogar norma geral, por tratar de conteúdo

mais favorável ao ser humano. Um tratado dessa importância se enlaça, à luz da Declaração

Universal dos Direitos Humanos, com a própria condição do indivíduo em suas três, quatro ou

cinco dimensões de direitos fundamentais. Noutras palavras, é condição sine qua non para a

titularidade e gozo de todas essas dimensões de direitos a própria condição única e exclusiva

de “ser” humano, e o princípio do “pro homine” reforça essa premissa. 84

No mesmo passo, homenagem deve se render à própria Declaração Universal

dos Direitos Humanos quanto à sua execução no tempo, segundo a idéia de sua duração

atrelada “a legitimidade da situação que nele encontra origem” 85, como já se aludiu ao tratar-

se das características dos tratados internacionais. A materialidade constitucional de um

tratado, sob as ingerências dos § § 1º e 2º do art. 5º da CF/88, dá vazão a essa concepção, qual

seja, a de que um tratado efetivamente de direitos humanos, desde que validamente

constitucional, deve sempre ter plena eficácia segundo a situação que o legitima: o indivíduo e

sua dignidade. O descaso a ele, imagina-se, o descaso a nós mesmos, não se presume. Porque,

de mesma forma:

“É fundamental atentar para a questão de que os tratados internacionais de direitos humanos, ao contrário dos tratados internacionais tradicionais, não visam ao equilíbrio de interesses entre os Estados, e sim buscam garantir o exercício de direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos. De mesma forma, o Direito Internacional dos Direitos Humanos não objetiva substituir o ordenamento nacional ou se sobrepor a este; contudo, coloca-se como direito paralelo e suplementar ao direito nacional, a fim de corrigir omissões e deficiências”. 86

Não só isso. A defesa da constitucionalidade material de um tratado de direitos

humanos é de extrema relevância não só ao que tratamos, por ora, a respeito da dignidade de

cada um. Soma-se ao fato, principalmente, de sobre esta última fundar-se uma ordem jurídica

83 Luiz Flávio Gomes, Prisão civil, tratados de direitos humanos e as antinomias com a lei e com a Constituição, 2007, põe regra clara à expressão pro homine. Anota que “vale o direito que mais tutela a liberdade, a vida, etc (...) Sempre prevalece a regra que melhor proteja os direitos da pessoa humana. A questão não implicaria, pois, negativa de vigência de norma constitucional, mas de recurso à hermenêutica para a interpretação, já que o conflito, em matéria de direitos e garantias fundamentais, seria sempre aparente”.84 Flávia Piovesan, op. cit.85 J.F. Rezek, op. cit, p. 33.86 Mabel Cristiane Moraes, op. cit.

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inteira, interna ou externa, e ainda, criar-se uma nova Teoria Geral do Direito, na qual se lhe

proponha tornar o homem evoluído ética, moral e espiritualmente, tanto quanto já se lhe fez

evoluir no plano técnico-científico até hoje.

Porque, embora não se desprezando a sistematização e a abstração do direito

puro enquanto norma posta, o positivismo a nada responde, ainda que, de certa forma torne

letra o conteúdo axiológico e ético do direito, mesmo em menor escala, como até então se fez 87. Esse o valor de sua contribuição, por tornar fácil a invocação do próprio direito enquanto

norma de prescrição, como vontade social.

Entretanto, o direito é muito mais do que um valor social, uma decisão política,

ou um ideal lastreado pelo direito posto, absorto em si mesmo. Por sua Teoria Geral renovada,

se o concebe a partir dos direitos humanos fundamentais, a partir da dignidade da pessoa

humana. Em razão disso, se lhe vê como um fenômeno social positivado para fins de defesa

integral do indivíduo, por intermédio dos direitos humanos.

A validade do direito, nesse passo, obriga ao seu operador aferi-la não a partir

da constitucionalidade da ordem jurídica por ele estabelecida, mas, sobretudo, a partir da

humanidade em que, por sua Constituição, o direito se apóia. Ou seja, o direito deve,

efetivamente, ser visto não só como ciência, em que lhe pesa um estigma próprio e autônomo,

frio muitas vezes. Deve é ser visto como razão para se aumentar a “condição humana” moral e

ética, superando-se o modo individualista e egoísta de ser. 88

Por conta disso, o direito atual, na sua forma extenuada, está a reclamar a

criação de um novo pacto social, mesmo utópico. Porque em busca de uma utopia é que já

hoje se têm lançadas as diretrizes mais básicas da dignidade humana enquanto norma. E este

trabalho não deve cessar. O ser humano, através do direito, sempre está em busca de uma

condição de plenitude humana, porque nesses dias, é irrevogável e irrenunciável ele próprio

não se considerar um cidadão do mundo, o ser a quem Deus fez por um pouco menor do que

os anjos, mas que com glória e honra foi coroado 89.

87 Marcos André Couto Santos, A delimitação de um conteúdo para o Direito. Em busca de uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa humana, 2003. 88 Marcos André Couto Santos, op.cit.89 Salmos, Capítulo 8, versículo 7.

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Dessa forma, não se quer dar lugar à chamada “inflação” de direitos humanos

fundamentais, muito criticada por sinal. De fato, há que se concordar que nem todo e qualquer

direito, inicialmente, se trate de um direito humano fundamental. Mas inda assim quer se

comungar da premissa de que, mesmo exceção, os direitos humanos são avolumados com o

passar do tempo, fato esse já visto, e por sinal inevitável. As diferentes necessidades

demandadas pelos homens fazem surgir outros direitos de proteção à dignidade humana,

como as chamadas “dimensões” ou “gerações”.

E nesse ponto o esforço do constituinte ao então dispor os § § 1º e 2º do art. 5º

da CF/88 não foi em vão. “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm

aplicação imediata”. E o Brasil não deixa de adotar direitos e garantias outros, decorrentes do

regime e dos princípios adotado por sua Carta Política, ou dos tratados internacionais em que

seja parte, justamente por conta disso.

Na verdade, a própria Constituição Federal de 1988 preconiza a relevância dos

direitos humanos internacionais para a proteção do sujeito do mundo, e não apenas do sujeito

brasileiro. A CF/88 diz que qualquer brasileiro é parte de uma grande aldeia global, relevando

a relativização da soberania da República nesse tocante por filiar-se ao monismo, mesmo que

moderado, à prevalência do direito internacional público.

O constituinte, se lhe vê claramente convencido de que a gênese dada a CF/88,

de que o seu conteúdo axiológico, é na verdade, uma carta de valores éticos, sociais,

filosóficos, a despeito de traduzir-se numa norma resultante de uma vontade política, ou

então, em norma puramente abstrata de onde as demais leis retiram seu fundamento de

validade. Diante disso, a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, nesse

quadrante, ante a observância do princípio da prevalência da norma mais favorável, “é

interpretação que se situa em absoluta consonância com a ordem constitucional de 1988,

bem como sua racionalidade e principiologia”. 90

Pois, de fato, já não tem muita importância discutir-se a respeito do

positivismo ou do naturalismo. Tampouco sobre o direito alternativo, por exemplo. Nem se

90 Flávia Piovesan, op. cit.63

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deve questionar mais, para a efetivação do próprio direito, a utilidade da sociologia, da ética,

da filosofia, da história ou da moral, entre outros valores e ciências enquanto fontes de

materialidade para o direito. Importa sim, é que a ação do mundo, mais do que a ação estatal

de cada parte dele, volte-se para a preservação do ser humano enquanto ele mesmo, não para a

intolerância. Todas estas ciências humanas agregam-se a isso e o direito, como já se disse

antes, não se divorcia desses campos de conhecimento. Sua efetividade só existe de fato

quando esses valores estão incrustados em sua base ético-axiológica 91, guarnecendo,

principalmente o ser humano, como criador e não como criatura do “dever-ser”.

Um sentimento de compaixão universal, a simpatia na acepção etimológica da

palavra ou a capacidade de sofrer com os fracos, pobres e humilhados do mundo inteiro, é o

que deve mover a cada um, principalmente aos juristas, servidores da humanidade 92. A

missão? Utilizando-se da dignidade humana enquanto princípio, traduzindo-a então uma

fórmula jurídico-normativa que impeça a mercantilização do homem, tornar o direito dotado

de conteúdo ético axiomático que imponha respeito à igualdade humana e à singularidade da

pessoa, não como objeto, mas como sujeito universal merecedor do respeito de todos 93. Aliás,

seu direito de ser respeitada por essa razão lhe é subjetivo, pessoal. Em face de seus

semelhantes, o subjetivismo dá lugar ao direito cabalmente objetivo, e não de norma moral

incoercitível, unilateral e autônoma.

5.2 A Emenda Constitucional n. 45/04 e a tese da supralegalidade adotada pelo STF.

E em virtude, pois, de todo esse substrato material dado aos tratados

internacionais de direitos humanos ao se lhes invocar como norma constitucional, de

hierarquia especial e diferenciada, é que se indaga a razão do constituinte derivado haver

criado a EC/45, dotando a Constituição Federal do § 3º do art. 5º. Também se indaga a razão

de o Supremo Tribunal Federal, em jurisprudência recente, adotar a tese da supralegalidade

dos tratados de que discorremos se ratificados anteriormente à vigência da citada emenda,

quando então se poderia adotar a tese aqui discorrida, já antiga, mas, ao que parece quase

nunca recorrente.

91 Marcos André Couto Santos, op.cit.92 Fábio Konder Comparato. Papel do jurista num mundo em crise de valores, 1996.93 Carmem Lúcia Antunes Rocha, op. cit.

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A EC/45, por si só, nada mais fez do que tentar por fim à discussão que se

travava a respeito dos tratados serem ou não equiparados à lei ordinária, principalmente

aqueles relacionados à dignidade da pessoa humana 94. Ela tentou facilitar a

constitucionalização formal dos direitos humanos, mostrando preocupação do constituinte

derivado reformador em sintonizar-se à ordem jurídica global. Só esqueceu-se, porém, de que

a constitucionalidade formal para a incorporação dos ditos tratados, jamais deveria derrogar a

materialidade que neles se carrega, ou seja, a sua constitucionalidade material.

Porque o direito das gentes e a atual posição da dignidade humana como seu

braço forte parece mais se preocupar com uma ordem jurídica interna voltada à proteção do

ser humano enquanto sujeito de direitos intangíveis, e não com uma ordem extremamente

formal, na qual se torna os indivíduos escravos de uma ordem soberana, mas demasiadamente

abstrata.

Desconsiderou a EC/45, a redação da norma mais favorável ao homem, já

antes vigente e embutida, aliás, no § 2º do art. 5º da CF/88. Fez também fragilizar “a vigência

interna das normas internacionais em matéria de direitos e garantias fundamentais” 95,

criando um processo legislativo para se incorporá-las. Justo para normas que, até então, se

lhes incorporavam automaticamente, em razão de sua materialidade, como já dito

exaustivamente. E essa é na visão de Luiz Ximenes Rocha 96, a mais feliz posição a que

poderia o constituinte de 1988 adotar, ampliando-se a infindável dignidade do ser humano.

O que fazer agora com os tratados não aprovados pelo quorum de 3/5, por dois

turnos, em cada Casa Legislativa? Se lhes transforma em lei ordinária, como antes se fazia em

94 Apenas para que se faça constar, a partir da EC/45, os tratados de direitos humanos passam a ser vistos sob quatro níveis hierárquicos: 1) são supraconstituiconais, ou seja, estão acima da Constituição; 2) são constitucionais, de maneira formal ou principalmente, por consta de sua materialidade; 3) são supralegais, por estarem abaixo da CF/88, mas acima de qualquer outra lei ordinária; 4) são infralegais, tratados como qualquer outra lei ordinária, o que, num,a antinomia dele com lei ordinária brasileira, se desembaraçará a questão por adoção do princípio da especialidade, em que uma lei é preterida em razão de outra menos especial, ou então, por adoção do princípio da posterioridade, em que prevalece a norma posterior, revogando a norma anterior.95 Luiz Fernando Sgarbossa, A Emenda Constitucional nº 45/04 e o novo regime jurídico dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, 2005.96 A incorporação de tratados e convenções internacionais de direitos humanos no direito brasileiro , 1996.

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franca oposição ao monismo com prevalência do direito internacional neste âmbito 97? Se lhes

deixa continuar perderem a eficácia material do substrato neles contido? Em face, aliás, da

jurisprudência atual do STF, os tratados ratificados pelo país após a vigência da EC/45

passam então a ser equiparados à lei ordinária, mas aqueles anteriores à emenda, serão sempre

tratados com status supralegal, de lei alocada a um degrau acima da ordinariedade? Ou então,

tanto um como outro serão dotados de supralegalidade, de “especialidade”?

Porque, mesmo não se desejando, a supralegalidade ou até a ordinariedade de

tratados internacionais, sobretudo de direitos humanos, em face da Constituição e sob o

argumento do controle de constitucionalidade qual se lhes pretende sempre fazer, cedo ou

tarde irá sucumbir. Lei ordinária interna não pode prevalecer sobre tratados do tipo, seja por

especialidade, seja por posterioridade. Normas constitucionais, principalmente de direitos

fundamentais, têm sua validade retirada também deles.

E o STF, com a tese atual, embora os alocando num degrau acima à

ordinariedade, nega valor e parte da eficácia a que deveriam produzir os direitos humanos no

seu todo, embora se diga tenha o constituinte derivado ou a jurisprudência haver sinalizado

com o inevitável caminho de que um dia ainda se considerará os tratados de direitos humanos

como parte da própria Constituição Federal. Porque a supralegalidade dos tratados, já existe

por si própria. Basta a leitura do art. 27 da Convenção de Viena98

Comentários de que já hoje não há diferença gritante entre a

constitucionalidade material de um tratado ou a sua supralegalidade, por haver tanto num

quanto noutro caso, eficácia paralisante de ambos sobre leis ordinárias, não pode encerrar a

discussão, tampouco o clamor pelo que aqui se está a propor. Não só em nome da norma mais

benéfica ao homem se atua. Atua-se em favor de uma Constituição mais afeita às

necessidades humanas já que sobre a dignidade humana, ela, seu sistema jurídico e a

democracia que lhe envolve, subsistem. Os tratados internacionais de direitos humanos

97 George Rodrigo Bandeira Galindo, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira, 2002, ao lançar mão de excerto de Antônio Augusto Cançado Trindade, anota que a aplicabilidade direta dos § § 1º e 2º da CF/88 depende muito mais de vontade, de animus, e não de um problema de direito propriamente. Aliás, o apego sem reflexão à tese da equiparação de um tratado, de qualquer tipo, à lei ordinária, apenas em virtude de se desejar o controle de constitucionalidade dele, era um apego a uma postura anacrônica, em desuso em muitos países, e assim também considerada em desuso por própria opção do poder constituinte originário.98 Flávia Piovesan, op.cit.

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possuem forma própria de revogação (denúncia), e diante disso, não se pode admitir que lei

interna, anterior ou posterior, especial ou geral, os derrogue 99. Tampouco norma

constitucional posterior à glosa do art. 5º, § 2º, da CF/88, não nascida originariamente com a

própria Carta Política, mas compondo as chamadas cláusulas pétreas, podem derrogá-los e,

consequentemente, derrogar os direitos humanos neles insertos.

O STF, com a posição de que se embevece, acaba, pois, por corroborar a

inóspita criação do poder constituinte derivado e dá legítimo aval ao descumprimento de um

tratado internacional de direitos humanos, o que é muito pior. Por isso é que tanto em âmbito

legislativo quanto judiciário, sua iniciativa de advogar a supralegalidade ainda está longe de

um suposto ato de vanguarda. Pode resolver, por ora, questões oriundas do mundo do “ser”,

onde se requer a aplicação do direito ao caso concreto, mas não resolve a correta interpretação

do § 2º do art. 5º da CF/88. Aliás, mostra timidez de quem, por função típica, deveria ser o

guardião da Constituição, ao tornar de fato, eficazes as normas constitucionais.

Com ou sem EC/45, a dignidade de um ser humano - discutida e assinada

internacionalmente pelo Chefe do Executivo, mas, deliberada e consentida sua ratificação

pelo Poder Legislativo -, deve deter tratamento mínimo adequado. Impossível dizer o

contrário, principalmente sob o argumento de dever um tratado internacional de direitos

humanos, ser controlado constitucionalmente por sua paridade, ou quase isso, à lei ordinária.

Duvida-se muito se o Poder Executivo se daria ao luxo de negociar e assinar

tratado internacional de direitos humanos inconstitucional, o que, diante de nossos direitos

fundamentais, se poderia até denominá-lo tratado de direito inumano; antes mesmo da

Emenda Constitucional n. 45 ou da supralegalidade, a “cláusula aberta” do § 2º do art. 5º da

CF/88 já desempenhava o papel de controlar a constitucionalidade de um tratado, por prever

que o conceito de dignidade humana só se alcançaria acaso a matéria nele disposta se ligasse a

tratados tipicamente “humanos”, ou a outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos

princípios adotados pela Constituição Federal, mas nela não expressos.

99 Frederico Augusto Leopoldino Koehler, Hierarquia dos tratados internacionais em face do ordenamento jurídico interno. Um estudo sobre a jurisprudência do STF, 2007.

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Além do mais, a tônica é de que a interpretação, em si, de um tratado - em

especial de direitos humanos -, é feita por seus signatários de muita boa-fé, em conformidade

com o sentido comum que deve ser atribuído aos termos dele em seu contexto (texto objetivo,

preâmbulo e anexos do tratado). À luz de seu objeto e finalidade principalmente, um tratado

deve igualmente ser interpretado. E quem está a ditar isso tudo são os artigos 31 e 32 da

Convenção de Viena. Ou seja, a própria interpretação isolada do tratado, pela finalidade a ele

circunscrita e pelo objeto, por si só, relevante, devem motivar o pais signatário a observá-lo, o

que parece não ser feito com muito rigor em nosso país.

Assinado um tratado deste tipo para após, em ordem interna, se alocar o seu

objeto - a dignidade humana -, em segundo plano, é esquecer-se que o próprio poder

constituinte originário foi buscar justamente em diplomas internacionais tais como a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, a materialidade de fundamento ético 100 sobre a

qual faria então repousar a Constituição Federal de 1988 em muitas de suas prescrições

dispostas nos incisos do art. 5º. Noutras palavras, o exercício do intérprete, principalmente o

responsável pela aplicação da lei, deveria estar em interpretar um tratado internacional de

direitos humanos de acordo com o contexto de sua gênese enquanto norma de deliberação

internacional, ou seja, de acordo com o fundamento jurídico nele representado.

Para fins de tratados internacionais de direitos humanos, segundo a mais

recente jurisprudência do STF, seus intérpretes deveriam, e ainda devem, necessariamente,

dar-lhe grau de obrigatoriedade, tratando-o efetivamente a favor do ser humano, como um

“dever-ser” propriamente dito 101 (ainda que o próprio Pretório prefira a tese da

supralegalidade, ao invés da constitucionalidade material). Dessa forma, se exerce inclusive,

uma parte do Poder Jurisdicional Internacional, demais de se compreender existir diante de tal

coisa, um sistema “misto disciplinador de tratados” 102, onde dois regimes jurídicos

diferenciados se combinam: um relativo aos direitos humanos, superior e de hierarquia

constitucional, e outro, dos demais tratados, então equiparados à lei ordinária.

100 Valério de Oliveira Mazzuoli, A opção do Judiciário brasileiro em face dos conflitos entre Tratados Internacionais e Leis Internas, 2001.101 André Lipp Pinto Bastos Lupi, Qual contexto? Uma análise dos critérios de interpretação segundo a Convenção de Viena sobre direito dos tratados, 2007.102 Flávia Piovesan, op. cit.

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Kelsen acerta, em outro argumento que se expõe a favor da constitucionalidade

material de um tratado internacional de direitos humanos, que uma norma, para sua validade,

deve retirar fundamento da Constituição. Só que hoje se marca um novo tempo; tempo em

que uma norma interna, no Brasil, retira seu valor da Constituição se por um acaso ela mesma

se encontra adequada à evolução da dignidade humana também em âmbito internacional, por

tratados dessa espécie. Caso contrário, a norma se valida diretamente dos direitos humanos

internacionais, e não da CF/88. Pois os tratados internacionais de direitos humanos, sempre se

deve tê-los para maior quantificação do grau de efetividade do próprio sentimento humano,

quando então traduzido para o plano jurídico. Dessa maneira, reduzem-se desigualdades,

sociais principalmente 103.

É em “pro homine” que o direito, a tutela da pessoa em buscar o direito, deve

valer. E por essa razão o “duplo controle de verticalidade”. Luiz Flávio Gomes 104 é quem

anota a tese e, diga-se de passagem, o faz com muito acerto. Porque, nesses casos, os tratados

de direitos humanos sequer revogam as leis que abaixo deles se situam. Apenas lhes retiram

sua validade e eficácia, principalmente quando a colidirem no caso concreto, de maneira

semelhante até aos critérios constitucionais de proporcionalidade e razoabilidade, ocasião na

qual se tem uma colisão entre princípios constitucionais 105.

103 Priscila Pereira de Andrade, Definição do Status jurídico das normas internacionais de direitos humanos. Um caminho para maior efetividade, 2007.104 Controle de Convencionalidade: STF revolucionou nossa pirâmide jurídica, 2009. O autor ainda defende que Valério de Oliveiro Mazzuoli, a esse respeito, institui corretamente a tese do controle de convencionalidade de um tratado de direitos humanos em face de lei ordinária ou norma constitucional contrária a esse ideal, só que a ser preconizada em âmbito difuso. E o próprio Valério, nesta idéia, expõe que um tratado materialmente constitucional, por lidar com direitos humanos, possui eficácia paralisante sobre lei doméstica, interna. A norma pode até não deixar de produzir efeitos internamente, mas, se acaso estiver a combater um tratado de direitos humanos, têm sua eficácia paralisada por força do próprio tratado. Porque se a CF/88 possibilita sejam os tratados de direitos humanos elevados ao status de norma materialmente constitucional, ou atualmente dotada de constitucionalidade formal (caso em que esse controle de convencionalidade é feito tanto de maneira difusa quanto de maneira abstrata), por lógica, deve se lhes observar os meios que garanta a qualquer norma ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional, e porque não, do próprio direito constitucional, como é o caso da EC/45.105 E mesmo na antinomia entre leis internas, os critérios de especialidade, hierarquia ou vigência no tempo acabam cedendo lugar a que, sob a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, extraídos dos direitos humanos, prevaleça aquela que mais se amoldar ao espírito não só da Constituição em seu art. 1º, III, mas aos próprios direitos humanos. Ou seja, a lei interna, no conflito à outra de possível aplicação, só será aplicada se experimentada sobre esse duplo controle de verticalidade.

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Deve se ponderar, igualmente, que a constitucionalidade de direitos humanos

demonstra da parte do poder constituinte uma abertura sensata da soberania brasileira, num

ato de cooperação com outros Estados e organismos internacionais. Mostra igualmente a

harmonização de tais direitos à ordem jurídica externa, sobressaltando-a.

Só que, se trata este de um entendimento flexível? Sim, é. Criticam-no? Sim.

Mas de maneira alguma se podem chamá-lo de imaturo. A supremacia da Constituição, só por

causa disso, não deixa de existir. O que se tem, nesses casos, são bens a serem tutelados, os

quais não podem nunca ser questionados em rijo processo formal como faz o § 3º do art. 5º da

CF/88. A materialidade desses bens é de riqueza extraordinária e sobre ela, não só o Brasil,

mas grande parte dos países do mundo põe seu ato de concordância, de chancela.

Por isso então a existência de um processo que, mesmo não sendo tipicamente

legislativo, é aquele no qual se tem a deliberação, tanto na Câmara dos Deputados quanto no

Senado, sobre o conteúdo material de um tratado de direitos humanos. Cabe às duas casas, em

conjunto e se convencionadas a tal coisa, exararem Decreto Legislativo atestando a ratificação

do pacto por parte do Poder Executivo. Tudo de maneira célere, e não rígida, como prevê o §

3º do art. 5º da CF/88.

No mais, emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias

individuais sequer pode ser deliberada, quanto mais constitucionalmente válida e eficaz, como

anota o art. 60, § 4º, da CF/88 em face do que fez a EC/45 com a disposição do § 3º do art. 5º.

Há aí um limite ao qual lhe denomina Luis Roberto Barroso de “material” 106. E eis outro

argumento para se questionar a eficácia, até mesmo a serventia, da EC/45.

Como pôde essa emenda ter sido deliberada e aprovada, dificultando aos

tratados internacionais de direitos humanos a produção, de fato, de efeitos jurídicos eficazes,

como a nova Teoria Geral do Direito se lhes pretende fazer? Ainda que a EC/45 se lhe tenha

esculpido de maneira a impor aos tratados necessária incorporação por via estritamente

formal, não se pode dizer com isso que, acredite-se ou não, a constitucionalização de tratados

deste tipo está sendo feita.

106 Interpretação e Aplicação da Constituição, 1998.70

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Pois se deve atentar para o fato de que os § § 1º e 2º do art. 5º da CF/88

garantem a imediata aplicabilidade das normas definidoras de direitos e garantias

fundamentais bem como a sua inclusão automática na ordem jurídica interna, fortalecendo ao

princípio do pro homine. E o passo que deu o constituinte originário neste sentido foi o de não

oferecer dificuldades à Constituição Federal em se adequar ao Direito Internacional Público,

em especial, à idéia da boa-fé, do pacta sunt servanda e do jus cogens, como também

estabelece o art. 27 da Convenção de Viena. A assertiva deste dispositivo último é de que um

tratado não pode deixar de ser cumprido na ordem interna de um país signatário.

Do contrário, é possível, ainda antes de se admitir a inconstitucionalidade da

EC/45, admitir-se a própria inconstitucionalidade originária dos referidos § § 1º e 2º do art. 5º

em face justamente do que dispõe o citado § 3º do art. 5º da Constituição Federal de 1988.

Aliás, é possível, nesse contexto, afiliar-se a esta idéia absurda de que o

constituinte originário haja talvez, elaborado normas constitucionalmente formais, mas

materialmente inconstitucionais. Correto?

Nunca. Se assim admitirmos, estaremos a descartar a própria dignidade de um

ser humano enquanto ele mesmo. Acreditar-se-á ter se alcançado ao mais alto degrau de

dignidade humana já positivada no país ou no mundo quando, na verdade, dignidade

propriamente de um ser humano enquanto ser racional e existente para si mesmo, sequer se

consegue explanar com palavras, que dirá estancá-la mediante previsão normativa do art. 5º

da Constituição Federal de 1988 em sua inteireza. A lei passa muito longe do indivíduo em

seu âmago e o que se tenta é fazê-la passar um pouco mais próximo.

Enfim, devem se romper - a partir da constitucionalidade material e

incondicional de um tratado internacional de direitos humanos -, as concepções clássicas do

positivismo, do apego ao legalismo e à abstração da norma. Qualquer lei só é válida e eficaz

se adequada primeiramente à CF/88, e depois, aos direitos humanos internacionais. E mesmo

uma norma constitucional, como é o caso então da EC/45, só é, ou ao menos deveria ser,

efetiva e, sobretudo, materialmente constitucional, quando então ajustada à idéia da dignidade

humana em âmbito internacional. Eventual lei abaixo dessa emenda só se lhe tem por válida e

eficaz sendo a própria emenda, igualmente, válida e eficaz, em especial, na sua

constitucionalidade material.

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O Estado Internacional e Constitucional de Direito já em formação, retira de

cena a velha cadeira de balançar legalista. Vai beber é do próprio sentimento de dignidade de

cada ser humano para então dar vida viva ao direito, principalmente ao ato democrático de se

exercê-lo na tri-partição do Estado. E com isso, a partir dos direitos humanos a dar formação a

esse novo Estado de Direito, se preconiza a co-existência de três ordenamentos jurídicos a se

comunicarem e completarem, o que, na expressão de Luiz Flávio Gomes 107 se pode

denominar “retro alimentação”; o primeiro deles, é internacional, de direitos humanos; o

segundo, constitucional; o terceiro, de demais leis internas. Na comunicação entre o primeiro

e o segundo, é que reside a importância do § 2º do art. 5º da CF/88, por se poder dizer que,

“em outras palavras, há outros direitos decorrentes, outros implícitos e aqueles que são

originários de tratados internacionais que, embora não façam parte do catálogo, são

materialmente constitucionais”. 108

Para Ingo Sarlet 109, é a consagração do princípio da não-tipicidade dos direitos

fundamentais, em que se lhes amplia e completa, superando-se a tradicional concepção de

soberania estatal. O ser humano, em qualquer janela do mundo, é parte de uma nação

politicamente organizada, mas bem acima disso, parte do próprio mundo que ao menos

juridicamente se relaciona, por tratados internacionais nos quais se delibera e convenciona

proteger cada indivíduo como um cidadão universal.

E a intenção do poder constituinte originário, nesse quesito, admitindo a

ampliação do mencionado bloco de constitucionalidade por adoção da cláusula aberta do art.

5º, § 2º, foi a de evitar eventual conflito entre norma constitucional e tratado de direitos

humanos. Lembra-se em relação a isso, que dados direitos humanos, no bojo dos tratados

internacionais, se considerados como fundamentais (já que todo direito humano é também

fundamental), deles se irá extrair eficácia horizontal e irradiante, da qual haverá mais

diretrizes para a aplicação e interpretação do direito infraconstitucional.

No Brasil, se vê o fato com extrema relevância e utilidade. Porque muito se

questiona a respeito da eficácia das normas constitucionais em si, e qual o grau de

107 Conflito entre a Constituição Brasileira e os Tratados de Direitos Humanos, 2007.108 Paulo Antônio de Menezes Albuquerque e Rodrigo Ferraz de Castro Remígio, op.cit.109 Ingo Wolfgang Sarlet, op. cit.

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intensidade, de sensibilidade que se pode tirar delas para a resolução de um caso em concreto.

Sob esse argumento, elas podem então ser mais observadas em qualquer esfera, por qualquer

dos poderes estatais, principalmente pelos aplicadores da lei. Trata-se dos fins autônomos dos

direitos fundamentais a que tanto Ingo Wolfgang Sarlet menciona 110. E trata-se ainda da

valoração deles não sob um aspecto individualista, em que o indivíduo invoca contra o Estado

determinado direito fundamental, mas sim, de um aspecto social, de sociedade, em que toda

ela o invoca como forma de melhor persuadir o Poder Público ao respeito dos direitos

humanos fundamentais. Quem o diz é José Carlos Vieira de Andrade, mencionado pelo citado

Ingo Sarlet. 111

Ou seja, analisando-se a EC/45 a luz de tudo quanto se traçou, não existe, de

fato e no plano teórico, um conflito entre o § 3º e o § 2º do art. 5º da CF/88. Ao menos não

deveria existir. Porque à luz da dignidade humana, um olhar rápido sobre a questão leva-nos

ao raciocínio de que se trata ampliar-se ou não do chamado bloco de constitucionalidade,

acaso se vislumbre um novo direito humano a colidir com a Constituição Federal. Não

ocorrendo, entretanto, essa hipótese, a regra é a da ampliação da própria dignidade humana,

sob a lógica do “pro homine”. Homenageia-se, com isso, o primado do monismo com

prevalência dos direitos humanos internacionais e projeta-se o país como verdadeiro

garantidor deles na ordem interna.

5.3 A ponderação entre os § § 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, e a questão

de sua Força Normativa.

A questão da constitucionalidade material pode se encerrar também a partir da

ponderação entre os § § 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, a respeito de qual

deles há de prevalecer quando a discussão da validade e eficácia de um tratado de direitos

humanos se situa no plano prático. A força normativa da Constituição, a partir da dignidade

humana, é quem tempera a questão, muito mais ao sabor do citado § 2º do art. 5º da Carta

Política, do que ao sabor de qualquer outra norma constitucional, seja formal, seja material.

Não se pode e tampouco se tem o desejo de esgotar o assunto da interpretação

da Constituição, mas é fato que, uma das respostas para se preterir o § 3º do art. 5º em face do

110 Op. cit.111 Op.cit.

73

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§ 2º é a de que este daí, como dito, se trata de norma mais favorável ao ser humano, portanto,

mais favorável à própria força normativa da Constituição, como bem diz Konrad Hesse 112.

Ela respeita o monismo com prevalência dos direitos internacionais. Leva em conta o jus

cogens, a boa-fé pactual e o pacta sunt servanda. E por fim, guarnece a dignidade humana

como sobreprincípio da Constituição, ampliando o seu significado, inesgotável, diga-se de

passagem. Ponderando-se a questão à luz dos princípios constitucionais da proporcionalidade,

inevitavelmente chega-se a essa conclusão, ainda que, nesse embate, fosse melhor que a

norma do § 3º do art. 5º da CF/88 já sucumbisse.

Há que se afirmar então, mesmo resumidamente, não haver adequação do § 3º

do art. 5º da CF/88, como norma materialmente constitucional, ao fim que se lhe tentou

destinar. Porque o parágrafo anterior deste mesmo dispositivo já estava, desde então, a fazer

previsão da mesma demanda, regulando-a inclusive de maneira acertada. Não havia

necessidade de que o poder constituinte derivado, impondo esse processo formal de

incorporação de um tratado de direitos humanos, atingisse frontalmente a uma outra norma

constitucional que já o facilitava.

Tem-se aí o embate entre um suposto direito fundamental que é o § 3º do art. 5º

da Constituição Federal de 1988, contra o direito de fato, fundamental, do § 2º. O primeiro, é

norma constitucional formal, porque disciplina um processo de incorporação, sem, no entanto,

fazer alusão a uma ampliação do que pode vir a ser a dignidade humana com o passar do

tempo.

Sua diferença entre o seu predecessor é que no bojo deste último, da norma do

§ 2º do art. 5º, não se tem uma previsão de processo de incorporação de um tratado de direitos

humanos para que então seja válido como norma materialmente constitucional. Não.

Enquanto norma invulgar, o próprio § 2º é quem constitucionaliza a materialidade de um

tratado desse tipo, o que, sem dúvida, é muito mais benéfico não só à ordem constitucional.

Na verdade, um tratado internacional de direitos humanos, sob a norma do § 2o,

apresenta sim um caráter de verdadeira especialidade, buscando a proteção da própria

dignidade humana aos brasileiros, e não a defesa de prerrogativas do Brasil enquanto sujeito

112 Dier normative kraft der Verfassung (Força normativa da Constituição).74

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de direito internacional 113. Por isso a alusão à sua materialidade constitucional, e não à sua

supralegalidade, principalmente para a resolução do caso concreto. Pois não se está, ao

celebrar-se tratados internacionais do tipo, relacionando-se comercialmente, em âmbito

privado, com outros Estados. Pelo contrário. Esta relação internacional pública se esguia

sobre o valor do coração dos homens, e não sobre o que têm eles a produzir.

Por isso que numa ponderação de proporcionalidade estrita entre uma e outra

norma, verifica-se daí que a mais recente delas, advinda da EC/45, sacrifica um direito

fundamental em troca de outro menos afeito à fundamentalidade e à humanidade. O § 3º do

art. 5º, parece o constituinte derivado reformador lhe haver imprimido mais a preocupação em

disciplinar o que, na verdade, já era disciplinado pela Constituição Federal do que

necessariamente, trazer algum reforço realmente constitucional e benéfico à Constituição

Federal em si, principalmente sob o espectro da dignidade da pessoa humana. Essa opção, em

segundo lugar, volta-se contra a própria deliberação que doutrina tanto constitucional quanto

internacional, como fontes do direito, faziam da questão.

Mesmo dizendo a hermenêutica constitucional que nesses casos, nenhuma das

normas deixa de existir, de terem validade, a eficácia de uma delas sobre a outra deve sempre

ser evidente. E a do § 2º do art. 5º da CF/88 é quem deve prevalecer. Mesmo que a

interpretação de qualquer delas seja tarefa das mais difíceis porque o intérprete esteja a lidar

com enunciados abertos, polissêmicos e indeterminados, para a resolução deste caso em

especial, há de prevalecer o bom senso, a razoabilidade e a lógica do homem médio que,

como constituinte, prevê a materialidade constitucional de um tratado de direitos humanos

desde o nascedouro da Constituição Federal de 1988.

Adotando-se tal posicionamento, dá-se efetividade ao direito. E quando se diz

isso, se diz então dar-se efetividade e proteção aos direitos humanos internacionais. Eles

mesmos tomam parte da Constituição, e por isso a razão de se lhes clamarem por ser

aplicados como normas constitucionais. Compõem um princípio mor, chamado dignidade da

pessoa humana. E por comporem-no, fazem da dignidade norma de alto grau de abstração,

mais do que uma simples regra de direito. Os direitos humanos conferem caráter de extrema

113 Flávia Piovesan, op. cit.75

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fundamentalidade à própria dignidade do homem. E servem como fontes materiais de direito

veiculadas por fontes formais, e não o contrário.

São também standards da própria justiça, enquanto densificados no princípio

da dignidade humana. Os direitos humanos constituem-se, no corpo deste princípio, o

fundamento de validade, a razão das regras de direito, ao que se denomina tal coisa de

natureza normogenética da qual se dota um princípio basilar. E seja por qual método de

interpretação for, no embate entre o § 2º do art. 5º e o § 3º, há que se considerar outros

princípios, quais sejam, o de que a Constituição tem uma unidade entre suas normas e de que

existe um sistema harmônico entre elas. Fato completamente diferente quando se trata da

interpretação do § 3º do art. 5º da CF/88, que desde o seu advento, parece sempre ser

interpretada de maneira quase que isolada.

Há ainda, o princípio de se envidar esforços a um efeito integrador entre as

normas constitucionais, em que se favorecem aquelas mais assimiladas à unidade política e

social da Constituição. E esse é o papel do § 2º do art. 5º da CF/88, por ligar-se

umbilicalmente à própria idéia da dignidade humana. Deve se tirar deste dispositivo, sua

máxima efetividade, máxima eficácia, principalmente. Trata-se de um clamor a um princípio,

a um ponto de partida de onde surge a norma, e qual a finalidade a ser alcançada por ela.

Já se anotou que a lei, principalmente a norma constitucional, não contém

palavras inúteis. E a mais útil norma constitucional, é aquela na qual se assegura o pleno gozo

de direitos e garantias fundamentais, como o caso de não se excluir outros decorrentes do

regime e dos princípios adotados pelo país, ou dos tratados internacionais dos quais é parte,

caso em que, os tratados internacionais de direitos humanos são justamente esses diplomas

normativos de que trata o constituinte no § 2º do art. 5º da CF/88. Deve haver, segundo outros

princípios de hermenêutica constitucional, conformidade constitucional da norma à estrutura

dogmático-normativo estabelecida na Constituição, e também, concordância prática da norma,

combinando-a a outros bens jurídicos tutelados pelo texto da Carta Política.

Por fim, colidindo os dispositivos constitucionais citados, num embate em que

se estabelece a norma mais favorável (dentre a idéia, inclusive, do devido processo legal

substantivo, material, lastreado nos princípios universais de justiça e solidariedade do direito),

76

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deve ser clamar pela Força Normativa da Constituição, comentada outrora. Nesta força da

CF/88 enquanto norma fundamental se estabelece uma construção do futuro e uma regulação

do presente. Para tanto, essa construção e essa regulação se baseia na realidade histórica e

atual do mundo de como as coisas realmente são, não podendo a norma constitucional alocar-

se simplesmente no plano hipotético de como as coisas devem ser, somente.

As normas constitucionais, para se lhes imprimirem força de norma, é obvio:

“devem-ser” alguma coisa.

Contudo, tanto para isso quanto para serem aplicadas no plano onde as coisas

realmente acontecem (ou seja, no plano fático, concreto), elas não podem desprezar a

realidade da natureza humana, e tampouco as necessidades dos homens. Não pode o

constituinte omitir-se à realidade de onde surge a Constituição, e à realidade para a qual ela se

destina.

Deve se assegurar correspondência à natureza singular do presente. Devem se

incorporar elementos políticos, sociais e econômicos, e também o próprio espírito, a própria

cultura do povo, acaso se deseje construir um verdadeiro Estado de Direito, (Constitucional,

sobretudo). A práxis das autoridades estatais, a interpretação dos textos constitucionais e a

dogmática, devem se ligar a esse ideal de força normativa da Constituição Jurídica, segundo a

idéia de Konrad Hesse 114. E este espírito de empenho normativo, de Constituição, deve se

fazer inculcado sobre o próprio indivíduo, a desbancar a Constituição fática, da realidade.

Por esse motivo a carência de se vê-la não como parte mais fraca, sucumbente,

e sim a mais forte. É sempre ela quem deve prevalecer. Seu texto deve conter princípios

básicos, fundamentais, e abrangentes, do que especialmente é a dignidade da pessoa humana.

A Constituição não pode ser objeto de modificações particularizadas, momentâneas. Isso é o

que lhe garante forte eficácia enquanto norma hipotética consubstanciada à realidade social. E

o § 3º do art. 5º da CF/88, numa preclara vontade do constituinte derivado em equacionar o

que já então assim restava, fez foi retalhar e descaracterizar a própria feição da Carta neste

quesito.

114 Op. cit.77

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Surge disso a necessidade da adoção de um tratado internacional de direitos

humanos como norma materialmente constitucional, de plena eficácia e imediata

aplicabilidade, principalmente no plano fático, da resolução do caso concreto. Sempre se

intenta com isso, preconizar o ideal positivado do constituinte originário de que, evoluindo o

ser humano em suas complexas relações e necessidades, evolui também a sua proteção. Não

se infla o rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5º da Constituição Federal de 1988.

O que se tem é a possibilidade de lançar-se mão de outros direitos humanos que se acham

mais próximos de guardarem o bem tutelado por toda e qualquer ordem jurídica, que é o ser

humano. Esse parece ser o mais perfeito exercício do direito enquanto ciência humana.

Nessa particularidade, se diz que há o crescimento de um novo

constitucionalismo também, a levantar a bandeira da força normativa da Constituição como

tese suficiente ao que tratamos. Trata-se do “neoconstitucionalismo”. Para essa doutrina,

contundente, aliás, vale a releitura que se pode e deve fazer dos direitos humanos

fundamentais, enquanto normas constitucionais, internas, das quais se deve extrair sua

máxima eficácia normativa, sobretudo quando o conteúdo nelas plasmado, se dá em normas

de cunho material.

Sob as lentes da ética e da moral, passa a se atribuir a Constituição (por força

dos direitos fundamentais) não só uma força política, ideológica, jurídica ou sociológica, mas

sim a se lhe dotar de caráter vinculativo e compulsório, onde seu vínculo e compulsoriedade

são aplicados à realidade para qual o texto constitucional foi feito, buscando-lhe sempre

adequá-la a essa idéia 115. Para tanto, o texto não deve ser mudado a todo e qualquer instante.

Deve sim, é ser interpretado de maneira mais próxima possível a satisfazer o desejo humano,

internacional e estatal, de pacificação, na qual se obriga ao Estado tri-partido laborar em razão

do indivíduo, prestando-lhe tanto ações negativas quanto positivas.

Para o neoconstitucionalismo, deve haver a concretização da norma hipotética

fundamental. A Constituição, abstrata, deve sair do plano de “hipótese”, posta sobre um

pedaço de papel. Como lei, no seu mais amplo sentido, ela deve ocupar o coração dos

homens. Sua força normativa e seu espírito devem residir primeira e inconscientemente no

âmago de todos, para só assim se conferir ao texto constitucional uma verdadeira eficácia.

115 Camila Muritiba Tenório. A re-significação dos direitos individuais à luz da nova conjuntura sócio-jurídica brasileira, 2008.

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Daí a razão para se fundir sua força como “norma”, à releitura do direito

constitucional, já que “a vida, quer a vida em geral, quer a vida humana em particular, está

acima do Direito posto. É, qualquer que seja a constituição, bem supraconstitucional” 116, por

ser o maior de todos os bens, e também o mais valoroso deles. Por seu valor ontológico se

aprofundam os direitos humanos, e a partir desse aprofundamento é que se concebe o Direito

como um sistema de 2ª ordem. Porque o “Direito não é somente lei. O texto não basta” 117,

tanto quanto não basta só o espírito que se lhe quer imprimir, a partir da força normativa da

Constituição; a partir do texto constitucional, e mesmo dos direitos humanos internacionais,

este sistema é composto de “um conjunto de elementos que evoluem e interagem de modo

relativamente uniforme”, ao qual se atribui a função principal de prevenir conflitos, e não

somente solucioná-los 118.

Porque já os direitos humanos internacionais assim têm se posicionado, ao

menos por inspirarem a tantos países adotá-los em suas Constituições. Não se lhes dizem

serem imperativos, até em virtude de não haver uma ordem jurídica internacional pública, de

fato, cogente e imperativa, como se pontuou a questão já em outras linhas.

Mas isso não retira dos direitos humanos a sua eficácia enquanto normas

fundadas sobre valores outros, que, de maneira alguma dependem então de necessária

imperatividade e cogência, das quais se lhes tenham um comando de respeito imputável aos

Estados porque alocadas na ordem jurídica internacional. O que necessita a comunidade

internacional, para o acatamento a esses direitos, é de bom senso ético.

O Brasil, neste contexto, tem por obrigação respeitar a própria norma interna

do § 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, para que, através dela, como norma

também político-ideológica, outras ainda (logicamente, as de caráter internacional e

humanitário) consigam proteger os indivíduos e seus direitos fundamentais, e não aos

Estados. O pacta sunt servanda e a boa-fé fazem o papel da imperatividade e da cogência que

falta ao próprio direito internacional público nesse sentido, e tornam obrigatória a alocação de

116 Antônio Junqueira de Azevedo. O Direito ontem e hoje. Crítica ao neopositivismo constitucional e à insuficiência dos direitos humanos. 2008.117 Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit, p. 12.118 Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit.

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um tratado internacional de direitos humanos em patamar constitucional. Por isso, nem se

carece de cogência e imperatividade, até em razão dos artigos 26 e 27 da Convenção de Viena

sobre tratados internacionais equacionarem a questão, ditando justamente tal coisa.

Ao que, na colisão, pois, do conteúdo dos direitos humanos internacionais entre

uma norma constitucional proibitiva de valoração da “matéria” em detrimento da “forma” de

como se incorporá-la (como é o caso do § 3º do art. 5º da CF/88), deve se pugnar, mesmo

assim, pela alocação de um tratado de direitos humanos como norma de constitucionalidade

material, em respeito igualmente à Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Porque como norma especial, a Declaração é vinculativa e obrigatória aos

Estados. Dizem-na talvez, ser o único diploma a esvaziar a soberania de qualquer Estado, em

nome da proteção da dignidade do ser humano. E a tese da supralegalidade, como faz o STF

por ora, mesmo sendo esse um passo importante ao constitucionalismo do país, é ainda uma

demonstração de timidez que, a essa altura, passados mais de 20 anos de Constituição vigente,

não se poderia ter. Se a norma do § 2º do art. 5º da CF/88 já nasceu imediatamente aplicável e

plenamente eficaz, e se ela ainda traduz a expressão de incorporação de outras normas

valiosas à dignidade da pessoa humana, não há como se modular seus efeitos jurídicos, tal

como se faz em relação aos efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade de

determinada lei ou ato normativo, por exemplo.

Noutras palavras, não se pode dizer que a eficácia da cláusula aberta do citado

§ 2º do art. 5º da CF/88 seja restrita por outra norma constitucional, e tampouco por uma

fonte, apenas, de direito, que é a jurisprudência do STF no caso. Mesmo se Alta Corte tivesse

sumulado a questão, inda assim, não se poderia então sobrepor uma súmula a uma norma

constitucional. E não se pode, ou não se quer acreditar ainda, que a norma em análise pode ser

objeto de ponderação, de equilíbrio, se aplicada a um caso concreto.

Pois mesmo tendo se cogitado disso quando então se mencionou a respeito de

dar-lhe prevalência por utilização dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, fato é

que, para os que advogam da tese da constitucionalidade material dos tratados internacionais

de direitos humanos, impossível cogitar-se de uma colisão entre ela, a norma do § 2º, e a do §

3º do art. 5º da CF/88. Para quem luta por um novo constitucionalismo realmente significativo

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e sob essa luz, o ser humano é a premissa básica do Estado. E tudo quanto lhe envolve para a

sua proteção, não deve ser impedido de fazer frente já de pronto.

O bem estar humano depende de um conjunto de forças estatais. E também

depende, igualmente, de homens e mulheres permeados de valores morais, éticos e mesmo

espirituais. Deve se pronunciar, com isso, a admiração pela diversidade humana. Porque,

assim fazendo, acaba-se por reduzir, em conjunto com o Estado, desigualdades

principalmente sociais. E essa, pois, a força motriz para, de fato, ter-se paz e harmonia entre

todos os seres humanos, os chamados “cidadãos do mundo”.

CONCLUSÃO

Se admitirmos o constituinte originário, a partir da cláusula aberta do § 2º do

art. 5º da CF/88, não haver cogitado do ser humano enquanto fim de si mesmo e do próprio

direito, então o admitimos haver cogitado da idéia da dignidade humana como mera

proposição jurídica esgotável. Dizemos que não se a concebeu como necessidade do indivíduo

em gozá-la, quaisquer que sejam os aspectos ou circunstâncias para isso.

A moral, nesse embate, é então o justo diferencial da questão. Sua utilização

volta-se para a formação de direitos realmente humanos. Sob sua égide, congregam-se

esforços tanto do positivismo quanto do naturalismo, e não só da ética. Positivada como

norma internacional, é a moral quem na verdade circunscreve, embora de maneira não

exaustiva, os valores da dignidade humana. E esses valores de humanidade, sistematizando os

direitos fundamentais, não os delimitam a uma só vez. Porque, como a dignidade humana em

si, todos são ilimitáveis na verdade. O que se tem é apenas uma tentativa de aproximação

deles, do bojo neles inserido, ao coração do homem, onde tudo se ressente.

Por isso o motivo de se vociferar a que o discurso da dignidade humana faça

eco, ao menos um pouco mais, no país. Não é possível aos olhos de cada brasileiro não

enxergarem ao menos uma vez por dia a miséria em que a maioria do país, pobre, é

submetida. Não é crível a idéia de que dentro do “universo” brasileiro existam dois outros

completamente diferentes e que em momento algum não se enlacem. Toda forma de

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desigualdade social, na verdade, é uma forma de desigualdade humana. E em decorrência

disso, a miséria, deflagrada por essa desigualdade, faz aprofundar o abismo entre ricos e

pobres, diferenciando aqueles para o qual o direito estatal é de fato existente, entre aqueles

para o qual este mesmo direito não passa de expectativa.

Só que o dito o universo brasileiro só se lhe conhece ao transitar-se por ele,

sem reservas. Quem sente a dita miséria sente o próprio universo brasileiro, sem reservas. O

transeunte que se dá conta disso e aprende a dialogar com extremos, ou seja, com riqueza e

pobreza, é, pois, o jurista informal, o que se aloca no mais crucial dos pontos: possuindo

riquezas, mas pior ainda, sentindo descaso por nada possuir, ele se irrelevante aos seus

próprios olhos até, e aí então o motivo para se perseguir incessantemente a dignidade humana

enquanto axioma, o que fazem os § § 1º e 2º do art. 5º da CF/88.

O sentimento de indignidade, advindo principalmente do campo social, deve

ser amenizado. E a ordem jurídica, mesmo abstrata, não pode ser vista somente sob tal

perspectiva. Pois já noutras ocasiões se experimentou isso. A inexatidão da primeira dimensão

de direitos fundamentais oriundos de 1789 colocou em pé de igualdade, fracos e fortes.

Weimar e o direito mais afeito ao socialismo também não resolveu a questão, porque sob esse

critério é que se levantou o nacionalismo, dotando os seres humanos de padrões de validade,

se assim podemos dizer. Os próprios direitos humanos internacionais, depois disso, não foram

capazes de delimitar a auto-suficiência da dignidade humana enquanto norma jurídica.

Improvável até que se lhe veja plenamente delimitada nesse aspecto. Mas, inda

assim, deve se buscar aproximar o direito, sua premissa máxima, à sensível realidade de João,

José e Maria, brasileiros que, no seu país, comem feijão com arroz como se fossem príncipes.

A cláusula aberta do § 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, mais o § 1º deste

dispositivo, quer se acreditar sejam um dos caminhos para isso, por preverem a

nacionalização de direitos humanos destinados a amenizar esse compasso ainda distante do

direito à humanidade, literalmente.

A constitucionalidade material de um tratado de direitos humanos toma parte

em tal coisa, e não faz jus somente à tônica da boa-fé pactual, do jus cogens, ou do pacta sunt

servanda; também não diz respeito somente a ampliação do bloco de constitucionalidade do

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art. 5º da CF/88; ela reforça o valor fundante do próprio sistema jurídico brasileiro,

acrescentando a expectativa de que a dignidade humana será sempre observada, desde que se

lhe haja motivos para se encontrá-la sob outras circunstâncias as quais o falível constituinte

originário não a tenha previsto.

O que faz integrada e forte normativamente a Constituição no seu. Nesse

contexto, a importância do próprio Direito Internacional Público em seu braço forte dos

chamados direitos humanos, a dar-lhe então esta alma, como que a revestindo. Isso faz do ser

humano e mesmo do brasileiro, não uma parte do mundo, mas um próprio mundo em si,

digno de atenção estatal e de todos os outros países.

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