Museologia Informal - Memórias Locais 2

112

description

Questões sobre Estudos Africanos

Transcript of Museologia Informal - Memórias Locais 2

Page 1: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 1

Page 2: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 2

Page 3: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 3

Ficha Técnica:

Heranças Globais – Memórias Locais

Revista de práticas de museologia informal

Nº 2. primavera 2013

Diretor

Pedro Pereira Leite

ISSN - 2182-7613

Edição: Marca d‟ Água: Publicações e Projetos

Redação: Casa Muss-amb-ike

Ilha de Moçambique,

3098 Moçambique

Lisboa: Passeio dos Fenícios, Lt. 4.33.01.B 5º Esq.

1990-302 Lisboa -Portugal

Page 4: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 4

Índice Museologia informal e Estudos Africanos ......................................................... 7

Cartografias dos Estudos Africanos .................................................................. 9

1ª Questão: Os Estudos Africanos como campo de investigação científica .............. 10

2ª Questão: De que forma a proposta das Epistemologias do Sul se constitui como

uma problemática dos Estudos Africanos .............................................................. 15

3ª Questão: Qual é a relação entre Epistemologias do Sul e Estudos Africanos. ...... 29

A proposta da museologia informal como campo de investigação-ação ......... 35

Horizontes da emancipação Social: As epistemologias do Sul, o Barroco e a Fronteira

....................................................................................................................... 36

A Metodologia de investigação-ação .................................................................. 42

As Narrativas Biográficas e as metodologias de investigação-ação ................. 50

A Saúde Materno-Infantil e os Problemas do Desenvolvimento ..................... 61

Poética das viagens museológicas ................................................................. 75

Diário de Bordo .............................................................................................. 76

Moçambique ................................................................................................... 77

Viagens na fronteira (parte 1) .......................................................................... 88

Tertúlias na Baixa .......................................................................................... 95

Oficina do Riso ................................................................................................ 99

O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos ........................ 102

Page 5: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 5

Page 6: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 6

Apresentação

Page 7: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 7

Museologia informal e Estudos Africanos

Heranças Globais - Memórias Locais apresenta neste número uma reflexão

temática sobre a relação da Museologia Informal e os Estudos Africanos. Como

temos vindo a referenciar esta é uma revista semestral que apresenta os

resultados do projeto de investigação ação em curso no Centro de Estudos

Sociais da Universidade de Coimbra financiando pela FCT com o nome

“Heranças Globais: a inclusão dos saberes das comunidades no

desenvolvimento integrado do território” (SHRH/BPD/76601/2011).

Este projeto foi submetido no painel de avaliação de “Estudos Africanos” da FCT.

A natureza interdisciplinar dos Estudos Africanos, e a sua intima relação ás

questões dos processos de globalização, nomeadamente as questões da

memória e do esquecimento justificam uma reflexão deste nosso projeto sobre

esta questão.

Um dos objetivos fundamentais do nosso projeto é o estabelecimento de uma

rede de parcerias com outros investigadores e atores locais. Deste modo, neste

número iniciamos igualmente a colaboração de outros autores, com o objetivo

de ir progressivamente alargando o seu espaço de influência.

Centrar na questão dos Estudos Africanos, permite-nos centrar as publicações

das revistas em questões temáticas. A centralidade dos temas permitem

aumentar a focagem em assuntos relevantes para os processos de investigação.

Uma outra alteração, esta mais prosaica, diz respeito à periodicidade. Mantemos

a sua natureza semestral, mas balizamos a publicação em torno da Primavera e

Outono. Cremos que assim acentuamos melhor a sua natureza de “Encontros”

dialógicos.

A direção, junho 2013

Page 8: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 8

Sobre Estudos Africanos

Page 9: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 9

Cartografias dos Estudos Africanos1 Trabalhamos neste artigo um conjunto de questões relativas aos Estudos Africanos, aos

Estudos Sobre o Desenvolvimento e sobre as Epistemologias do Sul. Durante os

trabalhos de preparação da investigação no sul de Moçambique, nomeadamente na

revisão de literatura, formos encontrando algumas questões umas de natureza teoria,

outras de natureza metodológica que mereceram alguma atenção e reflexão. Aqui

procuramos aprofundar essas questões duma forma crítica

O artigo encontra-se articulado em torno de três questões. Estas questões não esgotam

os campos de reflexão, mas constituem um importante momento reflexivo que permite

o desenvolvimento dos trabalhos de investigação no âmbito do projeto Casa Muss-amb-

ike. Ao mesmo tempo constituíram um importante contributo para o Curso de

Formação Avançada do Doutoramento em Estudos Africanos, realizado por Ana

Fantasia no ISCTE-IUL, com a qual temos vindo a desenvolver os projetos em

Moçambique.

1 Por Pedro Pereira Leite, CES- Universidade de Coimbra. e Ana Fantasia –CEA- ISCT-IUL. (Uma

parte deste texto foi usada nos trabalhos do Curso Avançado de Estudos Africanos)

Page 10: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 10

1ª Questão: Os Estudos Africanos como campo de

investigação científica

A investigação científica pode definir-se como o processo de busca de

conhecimento. O conhecimento científico é um processo de observação do real, construído por determinadas ferramentas

através de determinados procedimentos, por determinados sujeitos. Esta distinção

entre o sujeito que conhece e o objeto que é alvo da ação desse sujeito constitui um dos paradigmas em que assente a ciência

moderna. Um conhecimento que se diz objetivo, porque parte da observação de

factos, da sua aceitação como fenómenos interdependentes, mas ao mesmo tempo constrói uma consciência dos seus limites.

O conhecimento científico, pelo seu procedimento opõe-se assim a outras

formas de pensamento, tais como o pensamento mágico ou o senso-comum.

A delimitação do objeto de investigação

constitui-se como a questão crucial na formação do conhecimento científico. O

quê, como e para que se observa o real é uma operação mental, feita por um

sujeito: Um cientista, segundo determinados procedimentos, expostos claramente aos seus pares. É a relação

entre o sujeito e o objeto.

O cientista, para além de aplicar os

métodos e os procedimentos científicos, é também um produtor de conhecimento. E a produção desse conhecimento inicia-se

com o questionamento sobre o real. A ciência observa fenómenos. Fenómenos

que se constituem como questões relevantes para a comunidade científica, para a sociedade em geral. Para além da

delimitação do seu objeto, importa também questionar a sua relevância, para

a comunidade científica em particular e para a sociedade em geral.

Qual será então a delimitação do objeto da

investigação em estudos africanos e a sua

relevância para o conhecimento científico é

a resposta epistemológica que vamos procurar responder.

Iniciemos pela reflexão sobre o que distingue os fenómenos estudados pelos Estudos Africanos no âmbito da ciência. Os

Estudos Africanos são uma disciplina científica ou um campo disciplinar?

Sabemos que o pensamento científico se tem vindo a consolidar em termos de disciplinas. As primeiras ciências modernas

a afirmarem-se, de onde derivaram os modelos disciplinares foram a ciências

ditas puras, ou exatas. As ciências da matéria. A busca dos elementos básicos do mundo exterior. A ciência construi também

uma linguagem, a matemática. Das primeiras ciências, com base na alegoria

da ramificação foram emergindo diferentes disciplinas científicas que estudavam

fenómenos naturais. A astronomia, o mundo exterior, a Ciência Natural, o mundo vivo, a geologia, o planeta, a

medicina o corpo humano, a psicologia a mente humana, a etologia, o

comportamento animal, a sociologia, a organização das sociedades, a antropologia, o homem e a sua relação

com o mundo.

Com o crescente conhecimento dos

fenómenos do mundo as diferentes áreas foram-se fragmentando em especialidades. Algumas delas deram origem às ciências

aplicadas. A medicina, por exemplo, uma área praticada desde a antiguidade, é um

campo onde o método científico produz um crescimento e eficácia extraordinária, como consequencia no aumento da

qualidade de vida e na longevidade da espécie humana. Também os fenómenos

humanos, mais diretamente relacionados com a organização da vida social dos homens, do seu passado, forma alvo da

proposta de estabelecimento das regras do conhecimento científico. Embora seja um

fenómeno que se gerou mais tarde do que nas ciências naturais, a ciência social, desde os trabalhos de Augusto Comte que

aspira à constituir-se como metodologia

Page 11: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 11

cientifica e a compreender as leis gerais da

sociedade.

Se olharmos atentamente para as diversas

disciplinas, no âmbito da sua génese, verificamos então que o que as distingue é fundamentalmente o campo de observação

do sujeito que observa e o conjunto de regras e procedimentos que utiliza. Desse

modo ao que se observa, como se observa é também relevante entender de onde se observa.

A questão dos Estudos Africanos como campo disciplinar é útil para entender esta

questão de “onde se observa”, já que pela sua definição plural de “estudos” parece indicar uma pluridisciplinaridade e assim

integrar um novo tipo de investigações científicas interdisciplinares que mais do

que se definirem pela delimitação do seu objeto, definem-se pelo seu processo.

Vale a pena olhar para a formação do paradigma científico moderno para entender a forma como a fragilidade das

fronteiras disciplinares. Uma primeira distinção, entre a observação do mundo

natural e o mundo dos homens, permite fazer evoluir a ciência natural e a formação das suas disciplinas de observação, do

infinitamente grande (astronomia) ao infinitamente pequeno (física). Do estudo

da matéria ao Estudo da Vida é um passo. A ciência natural ainda dividida nos três reinos (mineral, vegetal, e animal) ev olui

a partir a classificação das espécies com a aplicação da metodologia de Lineu e com a

ideia da evolução de Darwin. Mantendo naturalmente a divisão entre natureza e o homem, estudado pela Filosofia e pela

Teologia. Só em pleno século XIX, o humano será alvo do olhar científico, com

base no mesmo paradigma.

Uma outra questão que tem levantado alguma polémica na academia, coloca-se

com a emergência da interdisciplinaridade. Grosso modo podemos dizer que quando o

objeto de investigação deixava de ser investigação pura para passar ser investigação aplicada a convocação de

vários olhares disciplinares era convocada.

A essa multidisciplinaridade foi então adicionara a defesa do dialogo

interdisciplinar a a convocação da reflexão de metodologia interdisciplinares. Mas a questão não se reduz apenas a isso. A

mobilização dos contributos de diversas disciplinas implica a produção de produtos

de investigação mestiços.

O caso dos Estudos Culturais na sua relação com as ciências da educação é um

exemplo paradigmático. Quando em meados dos anos cinquenta os sistemas de

ensino europeus se tornam universais (universal no sentido de se estender a todo o universo do Estado, embora a teoria

do ensino para todos também se torne universal no sentido da sua expansão por

todos os estados do mundo, em ações de disseminação promovidas pela UNESCO),

emergem as questões da compreensividade dos sistemas. Isto é por via da consciência de que à “alta cultura”

objeto de estudo dos sistemas escolares coexistia com uma “cultura tradicional ou

popular” vinculada pelas organizações sociais e comunitárias. Colocava-se então o problema de como incluir esses

elementos, até aí considerados marginais, para as escolas. Facilmente se entende

que com as questões das migrações, dos grupos minoritários estes problemas tornam rapidamente objeto de estudo,

mobilizando diferentes áreas disciplinares, sejam dos estudos literários, da história,

da antropologia, da sociologia, de psicologia, criando “diálogos horizontais” entre diferentes ramos das disciplinas

tradicionais, na busca de propostas metodológica de compreensão de

diversidade e da inclusão.

Um outro exemplo desta questão, talvez até mais relevante para a questão dos

estudos africanos são os “Estudos para o Desenvolvimento”. A ideia de

desenvolvimento no discurso contemporâneo está presente uma ideia de que a mobilização da vontade de mudança,

de transformação da sociedade se mede por indicadores do progresso.

Page 12: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 12

Etimologicamente desenvolvimento

significa o crescimento natural das forças contidas num ponto2. Mas, para além do

seu significado etimológico a palavra foi apropriada pelas ciências sociais, em particular pela economia (BEIROCH, 1986)

e rapidamente se torna num conceito interdisciplinar. Rogério Roque Amaro, em

2003 propôs uma leitura crítica deste conceito através da sua releitura crítica (AMARO, 2003).

O autor situa a sua formulação inicial em Adam Smith na “Riqueza das Nações”3. No

entanto a questão emerge fundamentalmente no pós-guerra como um conceito que situa as condições da

aplicação dos processos de industrialização nas sociedades do Norte. O

Desenvolvimento seria então um modelo de aplicação de um conjunto de

procedimentos e técnicas que faria crescer as economias e criava bem-estar nas sociedades.

Com a emergência das independências do Sul, na Ásia e na África, nas décadas de

2 Desenvolvimento, acto de desenvolver.

Crescer, fazer medrar. 3 Adam Smith, (1723-1790). Filósofo e

Economista inglês. A sua obra mais famosa, “O

Inquérito sobre a Natureza e Causa da Riqueza

das Nações, publicado em 1776, é uma das

obras fundadoras ciência económica clássica.

Segundo Adam Smith, é o funcionamento do

mercado e a liberdade de troca (livre-câmbio)

que fundamenta a riqueza das nações. A sua

teoria irá também opor-se às teorias da

fisiocracia, fundamentado a mecanização e a

divisão do trabalho como criadores de riqueza.

Segundo Adam Smith, o interesse individual,

em concorrência no mercado permitiria a

criação da máxima riqueza para a sociedade

(SMITH, 1987). Adam Smith, com a sua teoria

do mercado fundamenta a ideia do crescimento

contínuo e cumulativo (ou acumulativo se

preferirmos). A esta ideia opunha-se na época

as conceções de Thomas Malthus (1766-1834)

o economista inglês que argumentava a

necessidade de equilibrar o crescimento

geométrico da produção de bens, com o

crescimento exponencial do consumo dos

recursos.

quarenta a sessenta do século XX, o

desenvolvimento torna-se num objeto semiófero. A independência é feita, entre

outras bandeiras, para trazer desenvolvimento e bem-estar aos países colonizados.

Ainda que essa visão reducionista tivesse sido criticada por diversos economistas, a

avaliação da aplicação dos planos de desenvolvimento nesses países evidenciou, num primeiro momento, a grande

eficiência das campanhas de saúde pública e dos planos de vacinação. Através dessas

ações tinham aumentado a esperança média de vida e diminuído a mortalidade, especialmente a mortalidade infantil.

Por seu lado a aplicação dos planos de educação tinham aumentado a taxa de

escolaridade de muitos dos países recém-independentes. Tudo faria esperar

progressos da produtividade económica e do aumento generalizado do Bem-estar social.

Contudo, como muitos estudos acabaram por revelar, não se verificou esse

progresso e em muitos casos, tinha havido mesmo um retrocesso nos indicadores de desenvolvimento para níveis anteriores à

independência. No início do sáculo XX, quando se estabelecerem os Objetivos de

Desenvolvimento do Milénio, falava-se das “Décadas perdidas”, do desenvolvimento em África.

A questão que interessa aqui relevar é que este campo de Estudos, que agrega a

economia, a sociologia, a antropologia, a história, a saúde, a gestão e as questões ambientais (pela preocupação do

desenvolvimento integral), a educação instalou-se nas academias permitindo

desenvolver a tal interdisciplinaridade.

O mesmo acontece com o Estudos Africanos. Como refere Franz-Wilhem

Heimer na sua apresentação dos Cadernos de Estudos Africanos em 2001, “Estudos

Africanos em Portugal, Balanços e Perspetivas” os Estudos Africanos

Page 13: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 13

emergem, como campo institucional nos

anos sessenta na Europa (HEIMER, 2001,17), como uma substituição dos

antigos Estudos Coloniais. Com a recomposição do sistema mundo emergem na Europa os “area studies” tomando como

objetos de estudos as problemáticas específicas das regiões.

Ora se nesse primeiro momento se o que caracterizava o “africanista” era o seu interesse por África, portanto o local de

investigação, os seus objetos de investigação deveriam estar ligados a um

espaço específico; rapidamente algumas questões se irão levantar rompendo esta barreira. Um exemplo dessa rutura com o

local é o caso da apropriação da “condição africana” como objeto de investigação

científica pela da História e pela filosofia. No primeiro caso verificámos a emergência

nos anos 70 do século XX da História de África através da escola dos Analles. A questão dos povos sem história foi, no

âmbito da renovação da historiografia francesa, uma das questões abordadas

pela “Nova História”. Os historiadores salientaram então que a História era em grande medida a narrativa dos

vencedores. Os vencidos, como era o caso dos africanos até aí sujeitos à condição

colonial, estavam ausentes das narrativas. Henri Moniot escrevia em a “história dos povos sem história” que escreveu “Havia a

Europa e era toda a História. Por cima e à distância, algumas grandes civilizações.

Cujos textos, ruínas, por vezes os laços de parentesco, de troca ou de herança da Antiguidade Clássica, nossa mãe, ou a

amplitude das massas humanas que opuseram aos puderes e ao olhar

europeus, faziam admitira às margens do império de Clio, aos bons cuidados dum orientalismo apaixo-nado pela filologia e

pela arqueologia monumental e votados, frequentemente, à ostentação das

“invariantes” espirituais. O Resto: povos sem história, como de comum acordo os consideravam o homem da rua e os

manuais da Universidade” (Moniot, 1977, p. 129).

Se até aí os africanos eram objeto dos

estudos estudos etnográficos, na maioria dos casos conduzidos por missionários.

(uma tradição que se enraizava mais na prática protestante do que na católica), as independências e as lutas anticoloniais

chamaram a atenção para a necessidade de escrever essa história. A monumental

obra de Joseph Ki-Zerbo, encomendada pela UNESCO é um bom exemplo da busca da legitimação no passado das novas

nações, como de resto eram as narrativas nacionais europeias.

Também a história faz emergir tomará consciência de incluir nas suas narrativas os processos que levaram à dominação das

nações africana. Um caso paradigmático é consciência do fenómeno negreiro e sua

influência na diáspora africana pelos outros continentes. A célebre questão do “The

Black Atlantic abordada por Paul Gilroy (Gilroy, 1993) que recupera o conceito de dupla consciência. Este coinceito havia sido

introduzido pelo filósofo americano W. Du Bois (1868-1963) como uma característica

dos negros americanos que transportavam simultaneamente a consciência da sua nova condição de cidadania em simultâneo

com a consciência da escravatura, conduz os Estudos Africanos para além do topoi

continental, para se centrar nos fenómenos das influências globais. Agora o objeto de estudo dos Estudos Africanos

alarga-se para os fenómenos contemporâneos da africanidade vivida,

para explicar como é que os descendentes dessa diáspora leem a sua pertença ao mundo. A dupla consciência traduz uma

dupla referenciação, por um lado a experiencia e a memória da escravidão e

do racismo e por outro lado o seu confronto com as trocas e influencias que sofrem nas sociedades contemporâneas

em que estão inseridos

Esta condição africana de resto já havia

sido proposta por Aimé Césaire (1913- 2008) (Césaire, 1971) e Léopold Sédar Senghor (1906-2001) por volta de 1935

(SénghoR, 1977) que utilizam o conceito de negritude para designar a

Page 14: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 14

“personalidade africana”. Nas palavras de

Senghor, “o que faz a negritude dum poema, é menos o tema do que o estilo, o

calor emocional que dá vida às palavras, que transmuda a palavra em verbo” (Margarido;1964, p V). Por via da

literatura emerge igualmente um campo de reflexão conhecida por Estudos Pós-

coloniais. Inicialmente ligada aos estudos literários4. O Pós-colonialismo procurou igualmente repensar a estrutura

epistemológica das ciências sociais e humanas, colocando-se do ponto de vista

das sociedades periféricas (um outro conceito introduzido por Immanuel Wallerstein (sociólogo, nasceu em 1930),

(Wallerstein, 1994) e Samir Amin, que classifica as sociedades hegemónicas como

Centrais e as dominadas como Periféricas (Amin, 1970). A Teoria Pós-Colonial efetua

por via dos discursos e das narrativas a análise os processos da dominação (política e cultural), e de afirmação da

diferença (de grupos e de culturas) que muitas das vezes são bandeiras de

movimentos sociais.

Sistematizando a questão que se coloca numa reflexão sobre a epistemologia

destas heranças nos Estudos Africanos podemos sumariamente concluir que na

sua génese concorrem não só as questões da formação de diálogo entre as disciplinas

4 Considera-se usualmente que a Teoria Pós-

Colonial se formalizou com o Livro de Edward

Said, professor de literatura na Universidade

de Colúmbia, nos Estados Unidos da América.

Edward Said (1900-2000) nasceu m Jerusalém

e publicou em 1978, o livro Orientalismo

(SAID, 2004), onde considera que a ideia de

Oriente é uma construção do Ocidente para

justificar a sua dominação política. Segundo

Said, o discurso das ciências sociais e humanas

foi moldado pelos padrões ocidentais que se

tornaram hegemónicos pela dominação

colonial. Embora esta questão não seja

exclusiva de Edward Said porque já em Frantz

Fanon (1925-1961), que no ano da sua morte

pública “Os Con-denados da Terra”, (FANON,

1977) fez uma crítica aos mecanismos de

dominação colonial do ocidente; o Orientalismo

tornou-se uma referência para os trabalhos

académicos sobre Pós-colonialismo.

científicas, como também nela concorre a

evolução do ponto de vista da análise dos fenómenos, na sua relação com o ponto de

observação. Ou seja para lá duma evidência de que os Estudos Africanos se constituem maioritariamente como um

campo disciplinar nas universidades do norte (ou se quisermos dos centros de

produção de conhecimento dominante), há também a dificuldade de delimitar o objeto de estudo apenas aos fenómenos que

ocorrem no continente africanos. Assim, dados os vários processos em que os

africanos estiveram envolvidos o objeto de estudo poderá situar-se numa ligação duma qualquer comunidade ao universo

cosmológico africano.

A questão dos Estudos africanos no caso

português adiciona ainda algumas especificidades à questão. Como antigo

país colonial que foi, adicionado a um regime político que alicerçou a sua ideologia identitária ao longo de cinquenta

anos numa narrativa duma “nação pluri-racial e pluri-continental” na base da qual

manteve uma longa e desgastante guerra de quase cem anos. (em algumas leituras o processo de colonização do interior de

África é retratado como tendo-se iniciado nas “campanhas de pacificação” do século

XIX, considerando-se que o estado de militarização, nem a resistência africana nunca cessaram). Ora esta narrativa

identitária teria tido uma certa dificuldade em ultrapassar o “trauma”, podendo

identificar-se ao nível dos discursos uma transmutação sucessiva duma narrativa do “espírito de cruzada”, “missão

civilizadora”, “luso-tropicalismo” e finalmente “comunidade lusíada”. É nessa

“turbulência” que os Estudos africanos se instalam em Portugal. Será apenas nos anos 90 do século XX que podermos falar

numa emergência dos “estudos africanos em Portugal”, instalando-se na academia

por via de centros de investigação, licenciaturas, mestrados e mais recentemente em doutoramentos.

(Heimer, 2001, 21).

Page 15: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 15

Neste ponto da nossa reflexão importará

fundamentalmente olhar para os fenómenos africanos na sua complexidade

contemporânea para procurar respostas para os problemas contemporâneos. A consolidação deste campo de estudos

dependerá fundamentalmente dos contributos que outras formas de olhar a

realidade podem trazer. Analisar os fenómenos africanos e os seus processos de conhecimento podem ser um deles

2ª Questão: De que forma a proposta das Epistemologias do Sul se constitui como uma

problemática dos Estudos Africanos

As epistemologias do Sul constituem uma proposta epistemológica alternativa à

“epistemologias do norte”, feita por Boaventura Sousa Santos em Toward a New Common Sense: Law, Science and

Politics in the Paradigmatic Transition, publicado em Nova Iorque pela Routledge,

em 1995. Nesse trabalho o autor ensaia uma visão crítica ao paradigma científico que segundo ao autor conduziu à

hegemonia da produção saber sobre o mundo do ocidente. Este saber, segundo o

autor encontra-se numa crise paradigmática. A esta crise ensaisa uma leitura do paradigma emergente.

A leitura crítica inicia-se com “Um discurso

sobre as ciências”, o seu discurso de sapiência proferido na Universidade de Coimbra na aula magistral de abertura do

ano letivo de 1986. (SANTOS, 1987). O texto será sucessivamente enriquecido

com “Introdução a uma ciência pós-moderna”, (1989), “Pela Mão da Alice: o social e o político na Pós-modernidade”,

1994. Em “Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the

Paradigmatic Transition, New York: Routledge (1995) surge a sua proposta de

uma “epistemologia do sul”, proposta que é retomada na “Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência”

publicado em 2000 e “Gramática do

tempo: para uma nova cultura política” publicado em 2006. Finalmente em 2010,

em colaboração com Maria Paula Meneses apresenta um volume “Epistemologias do Sul”onde reúne várias contribuições

teóricas feitas a partir do sul. Devemos logo de início vincar a formação

em direito do autor e realçar a importância das questões da regulação e da ação política. Na leitura epistemológica do autor

a questão da regulação versus emancipação estarão sempre presentes, o

que implica uma valorização do que se poderá considerar a “função social da ciência”. O seu discurso e a sua proposta

assume deliberadamente um posicionamento crítico face á ordem do

mundo e uma busca de alternativas teóricas. Isso mesmo ressalta das críticas

que faz ao paradigma epistemológico que conduz à hegemonia saber do ocidente. Um paradigma que, segundo ao autor

sustentou o domínio do ocidente sobre o mundo. Esse paradigma é o produtor da

globalização do mercado de onde emergem trocas desiguais. As trocas desiguais criam as dependências e

desregulações ambientais. Assume-se que partes dos problemas do mundo atual

resultam da aplicação de resultados dessa ciência moderna, propondo-se a análise dos processos que podem favorecer um

rutura. A resposta epistemológica da busca dum novo posicionamento paradigmática

insere-se nestas preocupações. Ao partir do postulado de que parte desta ciência moderna deixou de dar respostas

inovadoras aos problemas da sociedade atual, o autor procura, na esteira da

análise sobre as revoluções científicas de Khun (Khun, 2009), antever um novo paradigma através da escuta “das vozes

do mundo”. Se o saber produzido pelas ciências deixou responder aos problemas

do mundo e se transformou num saber que se limita a reproduzir a si mesmo sem perspetiva crítica, há que procurar

formular novas perguntas para obter novas respostas. O saber científico deixou de ser

inovador e emancipador. A sua proposta é procurar saberes emergentes em locais e

Page 16: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 16

em comunidades que resistem à

hegemonia dessa ciência eurocêntrica.

É por essas razão que afirma que a produção do conhecimento científico está

numa fase de transição paradigmática. Uma transição de poderá durar várias

décadas e que permite a abertura de espaços de inovação crítica. Uma inovação crítica que ainda será tributária dos

paradigmas dominante em termos metodológicos e conceptuais, mas que

permite a emergência de vozes alternativas de conhecimento não hegemónico. Boaventura Sousa Santos

defende que para reconhecermos a inovação é necessário partir de

comunidades científicas não hegemónicas. Estas comunidades científicas são constituídas por investigadores

empenhados nas suas próprias investigações, sem coação de organizações

hegemónicas. Ora ao propor essa descentração das organizações de saber hegemónicas procura processos de

produção de saberes diferentes e silêncios que resulta dos processos de globalização.

A partir dos resultados da globalização hegemónica, a alternativa teoria de Boaventura Sousa Santos procura ancora-

se naquilo a que chama uma “globalização alternativa (SANTOS, 2000, p 000). O

domínio do paradigma científico do norte levou ao esquecimento e ao silenciamento de outros saberes. A cartografia destes

silêncios levará Boaventura Sousa Santos a reunir num conjunto de nove títulos com

o tema geral “Reinventar a emancipação Social: para novos manifestos” onde apresenta as propostas de globalização

alternativa. Por exemplo o sexto volume dessa coleção, com o título “Vozes do

Mundo”, (SANTOS, 2008) é apresentado experiências sociais alternativas à

hegemonia globalizadora. São propostos outros modos de vida e outros saberes que, segundo o autor, permitem

reconhecer os conhecimentos rivais. Estes conhecimentos rivais são essenciais para

procurar o que faz mover o mundo e o que dá sentido ao mundo.

A emergência destas “Epistemologias do sul” opõe-se à “Epistemologia do Norte”. A epistemologia do norte é uma

epistemologia de dominação que se organiza em estruturas verticais. O paradigma hegemónico foi o que permitiu

a consolidação dos projetos de poder coloniais, patriarcais, de exploração

assalariada. Constitui-se com base no fetichismo da mercadoria, na dominação identitária desigual é o fundamento da

troca desigual. O novo paradigma alternativo, contra-hegemónico deverá

constituir-se como epistemologias horizontais. Epistemologia de diálogo e de relações iguais

No campo das ciências sociais o projeto de dominação tinha conduzido problemáticas teóricas estéreis da como, “por exemplo, a

relação entre estrutura e ação ou entre a análise macro e a análise micro e que, em

meu entender, a distinção e a relação fundamental a fazer era entre acção conformista e acção rebelde”.

(SANTOS, 2006). Esta distinção vai alicerçar o trabalho científico do autor na

busca da consolidação do novo paradigma crítico, diversificado observado a partir do Sul. Este empenhamento a partir das

ações rebeldes permitem observar práticas de conhecimentos construídos por

processos cognitivos diferenciados, que geram experiencias sociais alternativas de resistência e emancipação social.

A proposta de conhecer a partir da perspetiva do sul implica uma posição do conhecimento feito a partir dos grupos

marginalizados, dos grupos sociais vítimas do sofrimento e da opressão das operações

de globalização. O conhecimento torna-se assim numa prática global que procura ultrapassar o conformismo que reduz a

realidade a processos de conciliação. A epistemologia do sul é uma proposta

poética e utópica gerada a partir das injustiças do mundo. As epistemologias do sul constituem-se como uma proposta de

enfrentamento e confronto com as práticas hegemónicas, com o objetivo de acabar

Page 17: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 17

com o sofrimento e de criar um

pensamento alternativo.

A crise do paradigma científico moderno

A crítica à epistemologia do norte é feita a partir de três contextos de crise paradigmática. O contexto do

conhecimento, o contexto sociopolítico e o contexto cultural. O contexto da crise do conhecimento tem vindo a ser tratado

por Boaventura Sousa Santos desde a publicação em 1987 do “Discurso sobre as

Ciências Sociais”, posteriormente desenvolvidos na Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna em 1989 e na “Crítica

da Razão Indolente: contra o desperdício da Experiência”,publicado em 2000.

Nesses trabalhos Santos defende que o conhecimento dominante criado pela Ciência Moderna não está de acordo com o

que sabemos sobre as coisas do mundo.

Os fundamentos da crítica da relação entre sujeito que conhece sobre objeto que é

conhecido através do método de observação, que fundamenta este

conhecimento, tem vindo a ser questionado desde os anos 20, com os trabalhos sobre a relatividade de Einstein,

entre outros. O sujeito que observa interfere no objeto. A partir desta

constatação, Santos defende que não há uma neutralidade axiológica. A ciência é comprometida e não há um conhecimento

sobre o objeto que não envolva também o sujeito que conhece.

Igualmente a emergência das teorias dos sistemas, da cibernética e as teorias do caos, levam a que o conhecimento seja hoje entendido como uma constelação de

complexidade interdependente em processo. Exclui-se portanto, das ciências

sociais a possibilidade de determinar leis gerais. A ciência não é mais de que um

modo de explicar a realidade, através de determinados procedimentos que interferem com essa mesma realidade. O

conhecimento é hoje mais uma probabilidade, o que aliás constitui um

tema que tem estado em debate desde os

anos noventa, nos debates sobre a interdisciplinaridade5.Os quatro princípios

que fundamentam o fim das disciplinas são a complexidade, a indeterminação, a incerteza e os sistemas abertos com fonte

de inovação que se opõem a sistemas fechados que tendem para a entropia.

Os trabalhos sobre este novo paradigma emergente são objeto dos trabalhos de Boaventura Sousa Santos em

“Reeinventar a emancipação social” (SANTOS, 2003). Nele são apresentados os desenvolvimentos das epistemologias

femininistas, pós-coloniais e dos estudos para a paz, que confrontam os

procedimentos da ciência clássica, revelando que essa ciência moderna estava comprometida com os preconceitos

sociais. Sousa Santos defende uma ciência prudente para um conhecimento prudente.

As novas linhas de reflexão para a ciência, apontadas pelo autor, implicam uma relativização dos conceitos apontados para

limites externos da ciência. O desenvolvimento do conhecimento passa

pela instrumentalização dos argumentos do conhecimento. O conhecimento medeia o pensamento mas não medeiam os

sistemas. Os limites do conhecimento derivam das relações de poder na

sociedade.

O século XVIII transforma a ciência num discurso de poder e com o positivismo o

pensamento científico domina o processo do conhecimento (os conhecimentos rivais) e subordina a filosofia. Por essas vias, o

conhecimento científicos, enquanto discurso de poder, limita a emergência de

vozes rebeldes. Este é o limite da epistemologia do norte. É um discurso sobre a natureza que reflete o poder na

sociedade. Como pensamento hegemónico

5 A Carta da Transdisciplinaridade foi aprovada

em 1994 nos Encontros da Arrábida e defende

a o fim das disciplinas e a necessidade de

interdisciplinaridade. Entre outros participaram

Edgar Morin, Lima de Freitas e Bensarb

Nicolescu

Page 18: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 18

exclui outros conhecimentos. Para a

epistemologia do conhecimento científico moderno não há conhecimento fora de si.

Por isso é necessário criar outras epistemologias para dar vozes a outras formas de saber. As epistemologias do sul

têm como limites o seu próprio rigor. O rigor constitui a base da emergência de

outros conhecimentos.

Em relação à crise do contexto social e político, decorre do esgotamento teórico e

analítico da ciência no mundo moderno. O esgotamento do futuro é visível pela crise financeira que é um sintoma de

esgotamento do modelo. A crise financeira recentra o norte as questões da resolução

dos problemas do mundo. O postulado hegemónico de desenvolvimento gera não mais do que subdesenvolvimento e o

modelo de conhecimento moderno não permite vislumbrar alternativas.

Santos afirma “depois de cinco séculos a ensinar o mundo o que é a civilização e o que é a democracia e o que são os Direitos Humanos, a Europa já não tem muito a

ensinar ao mundo” a partir do momento em que dentro de si própria a democracia

e os Direitos Humanos são suspensos. Governada por vice-reis, personagens

nomeadas fora dos processos de decisão democrática, para tomarem decisões sobre o mundo, a Europa e o seu sistema político

revela que está incapaz de aprender com os sinais do mundo. A tradição colonial da

Europa impede-a de apreender o mundo. As epistemologias do sul são também espaços de reconstrução das economias da

solidariedade e de dar voz a outros processos produtivos.

Quais são esses pilares emergentes? Segundo o autor há impulsos temporais contraditórios. Há claramente dois tempos. Um marcado pela urgência do agir. A

ecologia, o aquecimento global, o modelo energético são sinais de que são

necessários novos modelos de produção e de consumo. A ciência, no fundo tem sustentado o modo de produção

hegemónico. O modo de produção do

capitalismo americano, construído com

base na manipulação da natureza leva a que a autonomia da ciência seja

inoperante. A ciência é sustentada pelas corporações e desenvolve o que o capital exige. A longo prazo a ciência até talvez

não seja necessária se não ultrapassar a sua circularidade. A circularidade da

ciência é o que conduz a formulação de que apenas são problemas científicos, os problemas que essa ciência formula. Ora

como a fenomenologia determina os conteúdos, a ciência hegemónica evita

formular problemas que não podem ser determinados cientificamente. A ciência moderna demonstra uma grande

dificuldade em lidar com problemas de sentimentos e de espontaneidade.

A negação do outro leva a que, por exemplo, as conceções de natureza indígenas não sejam consideradas, porque

na mairia dos casos, as comunidades indígenas relacionam-se com a natureza com base nos seus sistemas de saber, de

pensar e de sentir. Este processo, leva a que o sistema social e político da

modernidade esteja impossibilitado de se radicalizar. O mundo contemporâneo domesticou o pensamento radical,

exigindo-se hoje uma antropologia da emancipação (livro em elaboração) onde

defende que é também necessário descentrar as formas de pensar das ciências sociais. A domesticação do

pensamento (selvagem6) levou a que a produção do conhecimento passa a ser

feita fora da sociedade, criando-se instituições (escolas e universidades). Esta separação entre o saber e o fazer em

instituições que apenas se dedicam à produção de conhecimento impede a

emergência de ações rebeldes porque produz conhecimento padrão. Ou seja, é

impossível ter uma ideia revolucionária numa instituição reacionária.

6 O pensamento selvagem de Levi-Straousse

de 1962, onde faz a analise dos mitos e dos

ritos da sociedades arcaicas

Page 19: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 19

A impossibilidade de formular perguntas pertinentes e a probabilidade de obter respostas fracas é o tem central do livro “A

Gramática do Tempo” (2006), onde faz a leitura do que é ser cosmopolita hoje e coloca em cena os horizontes de

possibilidade emancipatória. São horizontes que se situam em torno de uma

economia verde versus um capitalismo verde, buscando soluções nos mercados livres e não regulados com base em

investimentos verdes.

Em relação às alterações que emergem no contexto cultural, o terceiro elemento

analisado por Boaventura Sousa Santos no âmbito do seu trabalho de descolonizar as

ciências sociais, tem como base as evidências que se tem revelado nos últimos anos sobre a sensação de

esgotamento da ciência. A ciência já não responde aos problemas do mundo. Por

outro lado, desde há várias décadas que vários povos, sujeitos à colonização, indígenas e afrodescendentes tem vindo a

fazer várias reflexões epistemológicas e a construir ações de emancipação social.

Alguns países emergentes, como por exemplo a índia e a china, ao ascenderam como poderes no mundo transportam

também novas formas de refletir epistemologicamente, refazendo as leitura

das relações entre o ocidente e o oriente.

Uma das ideias que está errada é a crença de que a ciência é uma criação da Europa.

Por exemplo a ideia de que a matemática é feita pelos árabes, esquecendo o contributo de Al-khwazmi7, ou de que a a

Revolução Industrial só aconteceu na Europa, esquecendo a destruição da

indústria oriental, ou de que os europeus foram os primeiros a chegar à América. A história da sociologia começa no

positivismo, esquecendo os trabalhos de Ibn Khaldun sobr o Asbyyah (o assobio,

como sinal identificador da solidariedade clânica). A transfiguração é tão grande que

7 A ideia de zero, que assume valor associado a

outra coisa e da unidade, o um, como ideia que

põem em causa a ideia de Deus

muitos dos “heróis” da ciência, como por

exemplo Arquimedes é retratado como um homem branco. Negação da epistemologia

dos outros e a sua apropriação pela ciência moderna é um exemplo de criar propostas de transição epistemológicas, centradas

nas diversidades do sul.

Características das Epistemologias do Sul

A crítica ao pensamento e à ciência moderna, formado pelas sociedades ocidentais e que se tornou dominante no

mundo global parte da constatação de que na sua formulação existe um sistema de distinções entre o visível e o invisível. É o

que o autor chama de “pensamento abissal” (SANTOS. 2010, 30) uma

característica ontológica que distingue o visível do invisível. O objetivo do subjetivo. Uma metáfora que acompanha a ontologia

ocidental deste a metáfora platónica da alegoria da caverna. O que é iluminado e o

que está na sombra. A razão é o instrumento dessa operação. Uma linha que é abissal que torna invisível tudo que

acontece do lado de lá da linha. Assim, representa-se do norte imperial, colonial e

neo-colonial do lado de cá da linha, correspondendo, o lado de lá da linha ao

sul colonizado, silenciado e oprimido.

O outro lado da linha, o subjetivo não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do norte operacionalizados na

apropriação e na violência. Esta impossibilidade de operacionalizar o outro

conduz à impossibilidade da copresença entre as partes. No domínio da produção conhecimento pelo pensamento ocidental a

ciência e o direito constituem as formas paradigmáticas do pensamento abissal da

ontologia ocidental. No pensamento científico ela define a distinção entre verdadeiro e falso. No campo jurídico

define a distinção entre legal e ilegal. A distinção entre o legal e o ilegal é um

instrumento normativo da ação.

A proposta de observação deste fenómeno, segundo Sousa Santos, parte da análise

Page 20: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 20

das tensões visíveis entre a apropriação e

a resistência, no cruzamento com as tensões invisíveis presentes a regulação e

a emancipação do sistema. Essa forma de pensamento dual pode expressar-se em múltiplas representações. Uma das formas

propostas pelo autor é aquilo a que chama a “cartografia moderna dual”. A cartografia

moderna exprime na sua componente visível pela cartografia jurídica e na componente invisível na cartografia

epistemológica (SANTOS, 2010, 30). A primeira, a cartografia jurídica, regula o

que é incluindo e o que é excluído, criando os termos das “legalidades” e das “ausências”, dos “não lugares” e dos

“grupos humanos sacrificados”. Por seu lado a cartografia epistemológica coloca

uma segunda linha de visibilidade invisíbilidade, determinando o que é

conhecimento científico e exclui os não-conhecimentos. Todo o saber do mundo constituído fora do paradigma científico.

Os dados dos dos excluídos, dos ausentes são lidos e reinterpretados com as lentes

da razão.

As epistemologias do Sul tornam-se por essa via numa proposta de trabalho de criar uma “sociologia das ausências” e uma

sociologia das emergências”. Esta proposta conduz a uma “ecologia dos saberes” como

prática de regulação social.

A aplicação desta proposta é operacionalizada num primeiro momento

por uma diagnose dos diferentes tipos de saber. Saberes produzidos pelo conhecimento científico e pelo pensamento

não científico. No diagnóstico verifica-se um primeiro diálogo entre o conhecimento

ocidental e os outros conhecimentos. De seguida propõe-se um diálogo entre saberes para centrar as análises nos

elementos da convergência e nos denominadores comuns. O produto final é

expresso através narrativas linguísticas e ações transformadoras. Ações que se centram em processos de resolução de

problemas. A resolução de problemas concretos, como desafio das comunidades

permite lançar o desafio de criar

instituições adequadas as intervenções no

mundo real. Que espaço, que tempos e que formas de sociabilidade e podem

reconstruir para evitar a reprodução da reprodução das linhas abissais. (SANTOS, 2010, p 56).

Em suma a proposta da operação das epistemologias do sul assenta da desfamialização do que nos é familiar e na

abertura de uma janela para a experiencia cognitiva do mundo. Implica produzir um

estranhamento a partir do qual se reconstrói outros olhares e outras experiencias. Partimos do postulado de

que a experiencia e o conhecimento é diverso e infinito. As epistemologias do sul

devem captar os seus limites, incluindo as sensações, os afetos e a razão. Revelar a diversidade cognitiva do mundo é

questionar o mundo. Do questionamento emerge ação.

As epistemologias do sul deverão permitir a emergência de pensamentos alternativos. Por exemplo é importante questionar a ideia da universalidade. A

verdade duma entidade não pode depender do seu contexto. A ideia do

universalismo europeu por exemplo é uma falsa ideia. “Se é europeu não pode ser

universal”, afirma Sousa Santos a propósito da questão dos “Direitos Humanos como campo de tensão global

(Santos, 2006, 409). Este pensamento alternativo não prossegue a ideia do

universal, propondo um dialogo a partir de campos de convergância e compromissos. Uma outra característica que este

pensamento alternativo deve ultrapassar é a arcaica distinção entre conhecimento

natural e conhecimento sobre a humanidade, seja no indivíduo, seja nos grupos. A separação entre o homem e a

natureza é uma classificação artificial.

Este pensamento emergente não é um conhecimento completo. Partindo da ideia

da complexidade do mundo, não aspira à construção duma totalidade. Assumindo a incerteza recusa contudo a ignorância

completa. Deve-se assumir como um

Page 21: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 21

conhecimento emergente em processo que

assentar na em limites do rigor e no caráter retrospetivo da coerência. A

verdade é o que acontece e o que desacontece. Que há as situações de bifurcação e impasse. Que se aprende e se

desaprende no processo de aprendizagem de um dado conhecimento. O real deve ser

concebido como uma entidade ativa que se oferece ou que resiste a ser conhecido por um certo tipo de conhecimento. E é sobre

essas dificuldades que assenta o diálogo de saberes.

Quanto aos limites externos à pragmática epistémica ela quebra a relação entre o sujeito e o objeto. A ciência tradicional

necessita de objetos. A questão é definir quais são os objetivos de conhecimento e a sua relevância para a sociedade. As

dificuldades do conhecimento alternativo revelam-se quando admite que nem todo o

conhecimento é contável, e nem todos os conhecimentos são incomensuráveis. Os critérios de validação das epistemologias

do sul são dados pelas ações que desencadeiam e pela sua adequação aos

problemas do mundo.

A proposta metodológica das epistemologias do sul

Os procedimentos da epistemologia do sul são definidos pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências, propondo uma ecologia dos sabres e uma

tradução intercultural.As áreas de tradução intercultural são áreas que criam

legibilidades entre os saberes, que relacionam os indivíduos com as comunidades, a relação entre os indivíduos

e a natureza. A epistemologia do sul deve permitir a emergência da transcendência.

A epistemologia ocidental faz uma distinção entre a imanência e a transcendência. Onde o primeiro se

encontra nos limites da experiencia, sendo o transcendente o que se encontra para

além da humanidade. Com isso a ciência cria uma rutura com a espiritualidade que é remetida para o campo da teologia. Nas

epistemologias do sul há lugar para a

espiritualidade como processo de

conhecimento. As epistemologias do sul apontam para três caminhos pragmáticos,

o de democratizar a democracia, o de descolonizar e o de desmercantilizar. São três campos onde emerge a indignação

Sociologia das Ausências e Sociologia das Emergências8

A proposta de Boaventura Sousa Santos para uma Sociologia das Ausências e para

uma Sociologia das Emergências e de uma Prática de Tradução emancipatoria através

duma Hermenêutica Diatópica é apresentada na sua obra “Gramática do Tempo” (Santos, 2006, 87-161). Ele

transporta também a formulação da Re-invenção da emancipação social, um

objetivo teórico proposto pelo autor.

Para Sousa Santo é necessário entender como é que estão a ser produzidas

alternativas à globalização neo-liberal e ao capitalismo global, que constitui o corolário do pensamento ocidental. Tem como

objetivo criar uma comunidade internacional independente, pró via do

cruzamento de diferentes tradições teóricas, metodológicas e culturais a fim de constituir uma interação entre a cultura

e o conhecimento. O reconhecimento das alternativas criadas pelas diferentes

experiências sociais do mundo permite conhecer saberes muito mais amplos do que aqueles que a tradição da

epistemologia do norte permite reconhecer. Por isso é necessário combater

o desperdício das ideias e o desperdício da experiência (que o autor descreve na “Critica à Razão Indolente” (Santos, 2000),

e dar visibilidade ao conhecimento alternativo. O conhecimento alternativo

constitui uma ecologia de saberes. A razão cosmopolita é uma razão plural, aberta à diferença.

8 Artigo publicado por Boaventura Sousa

Santos na Revista Critica de Ciências Sociais,

63, outubro, 2002, pp 237-280, no âmbito do

projeto Reinventar a Emancipação Social

Page 22: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 22

A compreensão do mundo a partir da razão e do conhecimento produzido pela racionalidade ocidental assenta na busca

do domínio e controlo do mundo. É uma racionalidade que assenta numa determinada conceção de tempo e de

temporalidade. Esta distinção é fundamental para compreender esta

racionalidade. O tempo é compatado no presente ampliado no futuro. A temporalidade é linear.

A contratação do tempo no presente cria uma conceção de totalidade. O presente é um instante. A sua projeção no futuro

permite planear e planificar as ações, abrindo também a capacidade de projetar

no futuro o tempo presente.

A expansão do tempo no futuro, por seu lado é feita pela compreensão da história como uma linearidade. Sendo linear o

tempo é possível perspetivar a sua continuidade. O plano faz para da

prospetiva.

A alternativa proposta por Santo a esta racionalidade indolente (porque se fechou

em si própria e perdeu a capacidade de pensar o mundo fora de si) é a constituição duma racionalidade

cosmopolita. Essa racionalidade, ao invés deverá ampliar o presente e conter o

futuro. É uma racionalidade que necessita de traduzir a experiência do mundo. A racionalidade cosmopolita não busca uma

teoria geral, mas procura comprrender o que está fora da racionalidade indolente.

A razão indolente, caracterizada por Sousa Santos (Santos, 2000), é uma razão impotente, porque nada consegue ver fora de ela própria: uma razão arrogante,

porque não sente necessidade da pratica incondicional da liberdade; uma razão

metonímica, porque se reivindica como a única forma de racionalidade; e como uma

razão proléptica, porque não se compromete a julgar o futuro porque sendo uma racionalidade total no presente,

desmonta, pela retórica, todas as objeções possíveis.

Esta racionalidade arrogante, produz um pensamento em que nada existe fora de si próprio (desse pensamento) e nenhuma

das suas partes pode ser pensada fora do seu todo (porque cada parte é uma parcela do todo). A razão indolente opera uma

redução da multiplicidade do mundo e a linearidade do tempo (como por exemplo

foi formalizado por Weber em “A Ética Protestante”, em que a ação virtuosa produz resultados virtuosos, e vice-versa)

fundamenta um processo próprio de entender o progresso com um único feixe

pré-determinado.

Esta conceção da totalidade, pensada no paradigma da racionalidade indolente

impede-a de conceber outras visões do mundo (outras totalidades) sejam pensadas como heterogeneidades. Desta

maneira, as tensões sociais essenciais no mundo contemporâneo, as tensões entre a

regulação e a emancipação socais, que se traduzem em diferentes experiencias sociais, não podem ser resolvidas. A teoria

e a prática são separadas. Apresentadas como discrepantes, instaurando um hiato

de possibilidades para o pensamento e a ação. Essa impossibilidade de pensar é particularmente evidente nas realidades

dos chamados áreas periféricos e semi-prefiféricas, porque procura pensar

realidades a partir da sua própria matriz constitutiva.

Torna-se necessário, segundo Sousa

Santos criar uma alternativa a este pensamento hegemónico das ciências sociais. É aí que surge a sua proposta de

formular uma “sociologia das ausências” e uma “ecologia dos saberes”, organizadas a

partir de novas formas de racionalidade que surgem precisamente nas periferias desse mundo hegemónico.

A sociologia das ausências é um procedimento de conhecimento que procura transformar objetos improváveis

em possíveis, como forma de transformar as ausências em presenças.

Page 23: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 23

Trata-se também de uma forma de resistência a esse pensamento que emerge da “razão indolente e preguiçosa” – que

não se exercita porque se considera única e exclusiva. A sociologia das ausências é também um procedimento metodológico

rebelde e emancipatório. É necessário demonstrar que existem pensamentos

alternativos, é necessário reconhecer que a ausência não é mais do que uma negação das existências, ou uma

incapacidade, voluntário ou não, de reconhecer o real.

O pensamento produzido pela razão metonímia e proléptica traduz uma visão hegemónica do mundo ignorante, residual,

inferior, local e improdutiva. A sociologia das ausências visa sobretudo criar uma carência e transformar a falta ou o

desperdício de experiência social em campos de trabalho como forma de

ampliar o mundo presente. Por isso, a razão cosmopolita exige uma ecologia de saberes que combatam as monoculturas.

Na sociologia ocidental, as ausências são produzidas por meio de cinco modos (ou

“monoculturas”): a monocultura do saber e do rigor; a do tempo linear; a da naturalização das diferenças; a da escala

dominante; e, finalmente, aquela do produtivismo capitalista.

Para a razão indolente tudo que não é considerado produtivo no contexto neo-liberal e de capitalismo global é

considerado “improdutivo”. Estas ausências que deixam de lado, como não-existentes, outras formas de experiências

sociais e outras visões do mundo. É esse o objetivo da sociologia das ausências:

subverter a ordem de produção de ausências transformando-as em objetos presentes. Tornar possível como objeto de

conhecimento o que está escondido, ignorado ou esquecido pelo pensamento

dominante. Propõe a substituição das monoculturas por “ecologias”. A inversão, segundo Boaventura Sousa Santos é

possível por meio de cinco modos, que caracterizariam a prática da sociologia das

emergências. a ecologia dos saberes; a

das temporalidades; a do reconhecimento;

a das escalas locais e globais; e aquela das produtividades. Cada uma dessas

ecologias diz respeito às monoculturas acima enumeradas, apresentando contrapontos frutíferos entre a sociologia

das presenças e a sociologia das ausências.

A sociologia das emergências enfrenta o mundo procurando encontrar nele os sinais existentes no presente como possibilidades

de criar futuros. Trata-se de viver no presente os sinais do futuro. Propõe pensar a realidade a partir das

experiencias do presente como emergências do futuro.

Ora a sociologia das emergências é constituída por uma ecologia dos saberes, que tem como objetivo identificar as formas de saber e outros critérios de rigor.

Parte do princípio que não há ignorância e não há saber completo. Considera que

todo o saber é uma superação duma ignorância. Opõe-se assim à monocultura do saber. A ecologia das temporalidades,

parte do princípio de que o tempo não é linear, e que as relações de poder são

acentuadas peloa conceção do tempo de cada conjunto social. Cada conjunto social

tem as suas próprias temporalidades. A ecologia dos reconhecimentos procura revelar as identidades e as diferenças. A

colonialidade do pensamento indolente diferencia a igualdade e a diferença. A

ecologia das trans-escalas parte do princípio de que o local não é uma parte do global. Cada espaço existe

independentemente das dinâmicas globais e não se subordina a uma única escala de

temporalidade. Pelo contrário, a ecologia das trans-escalas procura revelar os tempos vividos. Finalmente a ecologia da

produtividade procura valorizar modos alternativos de produção e colocar em

como prioritário objetivos de produção ao invés de objetivos de distribuição e de consumo.

A sociologia das ausências procura substituir o vazio do futuro dado pelo

Page 24: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 24

tempo linear (vazio porque é previsível)

por um tempo de possibilidades plurais. Este feixe de possibilidades é operado no

presente. O presente é então uma possibilidade. Um modo de viver e ver o mundo. O movimento do mundo vistos

como possibilidade resulta da perspetiva de carência (algo que falta), da perceção

da tendência (algo em processo) e a perceção de latência (o que está na frente do processo, o que já existe).

A sociologia da emergência opera então sobre a possibilidade de ampliação dos saberes, das práticas e dos agentes, no

âmbito da identificação das possibilidades de futuro. Ora essa semântica de

expectativa manuseia possibilidades e potência social.

Contudo as sociologias das ausências e a das emergências terão como resultado a

produção de uma grande quantidade de realidades e objetos antes não existentes.

São objetos mais fragmentados, formas mais caóticas e plurais do que aquelas antes vividas. Importa portanto afinar a

operação metodológica capaz de compreender e ressignificar essas outras

realidades. Esse procedimento metodológico deverá constitui um

“procedimento de tradução” que contemple sua heterogeneidade e aponte, sobretudo, a não-univocidade de sentidos no mundo

contemporâneo.

A tradução das legibilidades reciprocas das experiencias do mundo, dos saberes e das

praticas exige uma hermenêutica diatópica . Uma hermenêutica diatópica é produção de uma teoria da interpretação do

conhecimento por zonas de contacto das visões do mundo. (um exemplo será a

conceção dos Direitos Humanos, da Umma e do Dharma). As zonas de contacto são zonas de transformação em que cada um

tem que se redescobrir através do outro.

O procedimento metodológico de tradução exige portanto um rigor na definição do

que se quer traduzir, quando traduzir, quem é que traduz e como se traduz. Em

relação ao que traduzir, apenas se torna

possível quando à convergência de sensações. A tradução é um processo

holístico. Por seu lado, só é possível traduzir quando há contacto. A questão de quem traduz é provavelmente a mais

complexa. A representatividade do agente no grupo pode ser um indicador de

seleção. Contudo, na sociologia das ausências e das emergências é necessário dar voz aos atores. Finalmente a questão

de como traduzir abre a necessidade de construção de topoi (lugares de consenso),

que permitam ultrapassar as dificuldades criadas pelas diferencias de línguas e linguagens, de locais e de situações. As

práticas sociais articulam as palavras e os silêncios. O gesto do silêncio e a tradução

do silêncio são os elementos mais exigentes do trabalho de tradução.

Em suma através da re-invenção da experiencia procura-se criar novas constelações de saberes e de praticas sociais suscetíveis de produzir alternativas

credíveis.

A hermenêutica Diatópica e uma conceção multicultural dos Direitos

Humanos

Trata-se de um texto publicado em 2002 e parte duma questão sobre a interpretação

dos direitos humanos como tema da politica internacional É um debate que situa a questão dos DH como um duplo

debate, ora como um instrumento de emancipação social na Europa, ora como

um instrumento de dominação europeia sobre o mundo.

No primeiro caso, no âmbito europeu, os DH tornaram-se um tema polémico, com

as força emancipatórias a defenderem, sucessivamente as questões das liberdades

políticas, dos direitos económicos e dos direitos culturais e qualidade de vida,

naquelas que são habitualmente consideradas as três gerações dos DH. Por outro lado, na afirmação a hegemonia

europeia, os DH a par com a Democracia, eram um instrumento de afirmação

Page 25: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 25

política, onde a duplicidade de aplicação

era frequentemente revelada no âmbito das querelas da guerra fria. Uma

duplicidade que tinha em linha de conta. “Duplos critérios na avaliação das violações dos direitos humanos,

complacência para com ditadores amigos, defesa do sacrifício dos direitos humanos

em nome dos objectivos do desenvolvimento - tudo isto tornou os direitos humanos suspeitos enquanto guião

emancipatório”. No entanto, face ao colapso dos vários projetos de

emancipação social vários grupos recorrem aos DH como forma de reeinventar o seu discurso emancipatório.

A questão que o autor procura tratar neste artigo é sobre a validade do discurso como projeto emancipatório. O autor afirma que

isso é possível desde que sejam entendidas “as tensões dialécticas que

informam a modernidade ocidental. A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os

problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opinião, a

política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise”.

Segundo o autor no final do milénio verificam-se três tensões. Uma tensão entre os sistemas de regulação social e o

sistema de emancipação social. Uma tensão entre o sistema do Estados

Moderno e a sociedade civil, e uma tensão entre os Estado-Nações e a Globalização.

A tensão entre a regulação e a emancipação, a tensão entre a “ordem e o

progresso” deixou de ser uma tensão criativa. Os discursos e as práticas

emancipatórias deixaram de ser um outro para passaram a ser um duplo da regulação. A crise do estado providência e

a crise da revolução social são sintomas dessa situação. O discurso sobre os

direitos humanos é um campo particularmente evidente desta crise, mas é também uma possibilidade de a superar.

A tensão entre o Estado e sociedade civil, revela-se na formulação contraditória entre um Estado cada vez mais

minimalista, por contraponto a uma sociedade civil que é cada vez mais um mimetismo desse estado, que se organiza

e se auto-reproduz através das leis desse estado que alrga a sua influencia a todos

os setores e atividades da vida dos cidadãos. Ora os DH estão, na sua primeira geração, no centro desta questão,

ao mesmo tempo que a aplicação dos temas da segunda e terceira geração dos

DH implicam que o Estado é o agente e o garante dessa mesma aplicação.

Finalmente a tensão entre o Estado-Nação

e a globalização revela-se na erosão acentuada no modelo de soberania política pela intrusão de cada vez maiores campos

sujeitos a regulação globais por organizações supra-nacionais. O modelo

político da modernidade ocidental está alicerçado no Estado-nacional como unidade fundamental de soberania. O

sistema interestatal é um sistema de estados soberanos que se autorregulam

através de por compromissos. Os sinais da erosão do sistema de Estados é hoje evidente por via de vastas parcelas das

funções soberanas e serem deslocadas para outros atores. A questão é portanto

saber se a regulação social e a emancipação social também deverão ser deslocadas para o campo da globalização,

ultrapassando o quadro moderno do Estado-Nação , falando das questões da

equidade global.

Nesta campo, os Direitos Humanos, um processo que tem vindo a ser traduzida

como um processo global poderá encontrar uma campo de afirmação. A tensão, porém, repousa, por um lado, no facto de,

tanto as violações dos direitos humanos, como as lutas em defesa deles

continuarem a ter uma decisiva dimensão nacional, e, por outro lado, no facto de, em aspectos cruciais, as atitudes perante

os direitos humanos assentarem em pressupostos culturais específicos. A

Page 26: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 26

política dos direitos humanos é

basicamente uma política cultural.”

Mas, coloca o autor a interrogação, sendo um campo oriundo duma cultura

hegemónica poderá ser ampliado. Como poderão ser construídos diálogos para

além dessa hegemonia. Os Direitos Humanos não poderão constituir um espaço de debate e ação em torno das

diferenças, das particularidades e da universalidade.”Como poderão os direitos

humanos ser uma política simultaneamente cultural e global?”

O trabalho avança de seguida para uma proposta analítica e para uma proposta de

prática diatópica Como proposta analítica Santos defina e a globalização é o

processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a

capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival.”. E esta

é uma definição que implica entender a globalização atual como um domínio do ocidente sobre um determinado localismo,

e implica entender o que é o local. Ou seja, aquilo que a ciência moderna estuda

é o resultado da globalização num local. O domónio de um sobre o outro. Portanto,

eleger o local como ponto de partida da análise é assumir uma sociologia das ausências. Cada local tem uma dimensão

específica. E local aqui é o espaço através do qual se afirma. O inglês como língua

franca implica a localização de outras línguas globais. A afirmação de um local reflete-se na afirmação de outros locais.

A compressão do espaço e do tempo que se associa à globalização deve ser analisado como um processo social que

combina situações diferenciadas. Como um processo de tensão onde se defrontam as tensões da regulação e da emancipação.

Se por um lado as relações de poder se tendem a afirmar como hegemónicas, as

força de emancipação também procuram espaços de afirmação. Assim, por exemplo os movimentos migratórios são espaços de

afirmação de de uma globalização contra-

hegemónica. Entre os turistas que vivem

esta compressão do espaço-tempo e os camponeses ou moradores agrilhoados a

espaços urbanos cercados vivem diferentes modos de compressão do espaço tempo.

Para analisar as diferentes formas de

globalização assimétricas há que considerar diferentes formas de produção. O autor propõe uma análise de quatro

modos de produção de globalização, que dão origem a outros tantos modos de

globalização.

O primeiro é o localismo globalizado. “Consiste no processo pelo qual determinado fenómeno local é globalizado

com sucesso, seja a actividade mundial das multinacionais, a transformação da

língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou da sua música popular, ou a adopção mundial

das leis de propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.”

A segunda forma de globalização é globalismo localizado. “Consiste no impacto específico de práticas e

imperativos transnacionais nas condições locais”. Resultam disso a restruturações e desestruturações variadas, subordinadas

às lógicas das transnacionais. Constituem-se hoje no saque aos recursos naturais e a

destruição maciça de recursos naturais e culturais, a conversão da agricultura de subsistência para monoprodução agricoloa,

ajustamentos estruturais e desvalorização do trabalho.

Nesse processo a “divisão internacional da produção da globalização” estrutura-se nos países centrais como centros de especialização de “localismos

globalizados”, onde os países periféricos cabem com ”globalismos localizados”. “O

sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e localismos

globalizados.”

No entanto, a intensificação das interações globais entre estes dois processos são acompanhados por outros dois processos:

Page 27: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 27

o cosmopolitismo e ao património comum

da humanidade. Como cosmopolitismo entende o autor, os modos de organização

e de diálogo criados pelas relações entre os atores internacionais. O cosmopolitismo constitui-se como a ampliação dos modos

de organização social, que existem nos quando dos estado-nações à escala global.

Em relação ao património comum, derivam da emergência de questões de consciência que apenas fazem sentido quando

analisadas à escala global, tal como as alterações climáticas, a sustentabilidade

ambiental e a biodiversidade, os modelos de produção energética. Trata-se de um campo de interção física e simbólica que

exigem “fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações

presentes e futuras.”

As questões do cosmopolitismo e do património comum da humanidade são

campos de tensão entre a globalização hegemónica e a contra-globalização emancipatória. É portanto útil, em tenros

de análise distinguir a globalização de cima para baixo, da globalização de baixo para

cima.

É neste contexto que a questão dos Direitos Humanos emerge como questão

complexa. Ela tanto pode ser formulada, quer pela globalização hegemónica, quer pela globalização emancipatória, como

localismo globalizado ou como cosmopolitismo.

O autor apresenta uma a proposta de analisar a complexidade dos Direitos Humanos por via das condições culturais como forma de cosmopolitismos na

globalização contra-hegemónica. “A minha tese é que, enquanto forem concebidos

como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado - uma forma de

globalização de-cima-para-baixo. Serão sempre um instrumento do «choque de

civilizações» tal como o concebe Samuel Huntington (1993)”. Ora contra esta guerra do Ocidente contra o resto o Resto

do mundo onde os direitos humanos se

integram numa globalização contra-

hegemónica e emancipatória, é necessário que os Direitos Humanos se afirmam de

“baixo para cima”. Os Direitos Humanos devem se reconceptualizados como multiculturais. Haverá que articular a

legitimidade local com a competência global. “O multiculturalismo, tal como eu o

entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a

legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-

hegemónica de direitos humanos no nosso tempo”.

A metodologia de processo proposta parte

da necessidade de desuniversalizar os Direitos Humanos como forma de superar o seu cartar hegemónico para assumir um

caráter contra-hegemónico.

Atualmente há pelo menos quatro regimes internacionais da aplicação de direitos

humanos: o europeu, o inter-americano, o africano e o asiático. Como já noutros trabalhos salientou, cada cultura tendem a

considerar os seus valores fundacionais como os mais abrangentes. No entanto

apenas o ocidente os formula como universais. Por essa razão, a pretensão da

universalidade do cultura ocidental não é mais do que uma questão da própria cultura ocidental. Os seus pressupostos

tem vindo a ser revelados pela suposta “possibilidade de reconhecimento racional

da natureza humana, onde o individuo dispõe duma dignidade absoluta e irredutível, cuja defesa cabe ao Estado.

Ora, como nota Sousa Santos, esta formulação exige que todos os indivíduos

estejam colocado no mesmo plano (principio da igualdade) e que as sociedade não sejam hierárquicas. A sociedade como

resultado da soma de indivíduos livres e iguais é um pressuposto claramente

ocidental.

O entendimento da sobreposição do princípio sociológico aos princípios filosóficos deriva do desenvolvimento da

História dos Direitos Humanos no contexto

Page 28: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 28

da Guerra Fria, onde o liberalismo

enfrentava o comunismo e que levou, a uma predominância clara dos princípios

eurocêntricos na formulação da declaração de 1948 e a subordinação dos povos coloniais ao direitos cívicos, e durante

muitos anos ao direito à propriedade como único direito económico.

Apesar disso, muitos são os agentes e as organizações, que lutam pelos direitos humanos no mundo. Nessa campo

emergem muitas práticas e ações emancipatórias que devem ser mobilizadas como campo de dialogo intercultural. “A

tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar a

conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita”

Essa tarefa exige uma transformação na prática dos Direitos Humanos. Em primeiro locar é necessário superar o debate entre

universalismo e relativismo cultural. São dois falos conceitos. O universalismo cultural é um conceito incorreto, tal como

o relativismo cultural. É necessário diálogos interculturais na busca de

preocupações isomórficas que produzam “coligações transnacionais a competir por

valores ou exigências máximas.

A segunda premissa é de quer todas as culturas possuem conceções de dignidade humana, mas nem todas estão traduzidas

na conceção ocidental dos direitos humanos. É portanto necessário identificar

as preocupações isomórficas em diferentes culturas para promover um diálogo. A terceira premissa é a necessidade de

entender que todas a s culturas estão em processo, e em certa medida são

incompletas e problemáticas.

A quarta premissa é de que todas as culturas têm visões diferentes da

dignidade humana, sendo que algumas são mais abertas do que outras. Finalmente em todas as culturas os indivíduos são

distribuídos em grupos de pertenças identitários, que se organizam de formas

hierárquicas que formam categorias sociais

homogéneas, articuladas pelo princípio da igualdade; ao passo que o princípio das

identidades opera pelo principio da disjunção (da diferença). Género, raça, orientação sexual, grupo). “Os dois

princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem

todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais”.Segundo estas premissas, pode-

se constitui uma conceção mestiça dos Direitos Humanos, que se organiza em

constelação, mutuamente legíveis e em rede de referência.

A hermenêutica Diatópica

A hermenêutica diatópica é uma proposta teórica de construção da cultura do outro a partir da leitura a a partir do outro. Trata-se de colocar universos diferentes

(saberes, modos de estar, modos de sentir). Os universos de sentido formam

constelações de topoi forte. Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura.

Funcionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem,

dada a sua evidência, tornam possível a produção e a troca de argumentos. Um

topi forte usado noutra constelação cultural perde o sentido. A hermenêutica diatópica procura ultrapassar essa

dificuldade, procurando conhecer os outros a partir do seu próprio discurso.

A hermenêutica diatópica tem por base “a ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que

pertencem. No interior duma cultura essa incomplitude não é visível, pois o desejo à

totalidade leva a que a parte seja confundida com o todo. “O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém,

atingir a completude - um objectivo inatingível - mas, pelo contrário, ampliar

ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé

Page 29: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 29

numa cultura e outro, noutra. Nisto reside

o seu carácter dia-tópico”

Essa é a vantagem de usar a hermenêutica diatópica no âmbito dos Direitos Humanos,

como metodologia de ação das possibilidades e exigências emancipatórias

a partir do contexto local e dos atores em cenas, evitando-se a canibalização cultural. Os exemplos de topos podem ser

considerados o topos de Dharma na cultura hindu e o topos de umma na

cultura islâmica. A combinação destes topos com os Direitos Humanos revelam a a sua incomplitude. Dharma e em certa

medida a umma colocam o ndividuo numa ordem geral do universo como elemento

processual, sendo que a conceção do Direitos Humanos est´+a organizada em termos de espelho de direitos e deveres,

sendo que apenas podem ser conferidos direitos a quem se exigem deveres.

O reconhecimento das incompletudes mútuas é condição para o diálogo intercultural. A hermenêutica diatópica é um processo coletivo, feito a diversas

mãos. O seu objetivo a ampliar a consciência da incompletude mutua

através do diálogo. Através do processo diatópico, literalmente variação de lugar,

evitam-se os epistemicídios de outras culturas. A hermenêutica diatópica abre um campo de possibilidade para busca e a

afirmação de outras culturas e colocar em cena outros atores em simultaneidade.

A questão do diálogo implica contudo a partilha de canais de comunicação e de posições sociais. Se as culturas partilham processos de troca desigual, que

possibilidades existem de diálogos. “O dilema cultural que se levanta é o

seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das aspirações à dignidade

humana por parte da cultura subordinada, será agora possível pronunciá-las no

diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a sua impronunciabilidade?” Como facilmente se

pode deduzir, os processos partilhados

também afetam a organização social,

criando grupos hegemónicos. A hermenêutica diatópica pode ser um

processo que permite ultrapassar a distribuição desigual.

Conclui então o autor que o campo dos

Direitos Humanos aplicados com hermenêutica diatópica poderá contribuir com eficácia para a emancipação social e

para a construção duma ecologia dos saberes no âmbito dum apolítica

cosmopolita.

3ª Questão: Qual é a relação entre Epistemologias do Sul e Estudos Africanos. Iniciamos esta reflexão colocando como fundamentação epistemológica a

necessidade do procedimento científico delimitar com rigor o seu objeto de

investigação como forma de assegurar a sua objetividade. Simultaneamente verificamos que a investigação deve incluir

um questionamento sobre a utilidade da investigação.

Verificamos que em determinadas circunstâncias se constituem procedimentos de investigação que

agregam investigadores e metodologias de diferentes disciplinas com o objetivo de

produzir determinadas investigações sobre fenómenos complexos. Figurativamente representam agregações de disciplinas,

procurando responder a problemas mais complexos. Afirmamos que este tipo de

campo disciplinar se afirma mais pelo processo de formação das sínteses que produz, pelo local onde se exerce, do que

pela delimitação do objeto, ou seja pela sua epistemologia. A formação de áreas de

saber transdisciplinares constitui uma das propostas para responder aos problemas

da complexidade. (MORIN, 1994). De seguida analisamos a proposta teoria das Epistemologias do Sul, desenvolvida

por Boaventura de Sousa Santos. Nesse trabalho teórico, o autor apresenta uma

proposta de análise sobre a “Sociologia das Ausências e a Ecologia dos Saberes” como um procedimento que se enquadra na

Page 30: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 30

busca dum novo paradigma científico. O

autor parte duma crítica ao paradigma atual das ciências, que considera esgotado,

porque incapaz de dar respostas inovadoras aos problemas das comunidades nas suas relações com o

mundo. A emergência desse novo paradigma científico nas ciências deverá

olhar para o mundo como uma totalidade complexa (Santos, 2002). Uma proposta duma nova abordagem

metodológica que advém do que o autor considera como “esgotamento do modelo

de racionalidade” (op. cit., 88). O modelo de conhecimento da racionalidade tem sido construído pela relação entre sujeito que

conhece sobre objeto que é conhecido através do método de observação. Este

método implica distanciamento e não interferência, para além da verificação da

sua reprodutibilidade Este procedimento tem vindo a ser questionado desde os trabalhos sobre a relatividade de Einstein,

onde se infere que a observação dum objeto por um determinado sujeito cria

uma interação mútua. Ou seja um objeto não pode ser reconhecido fora do sujeito que o conhece e fora do seu sistema de

pensamento. O modelo da racionalidade nega uma ontologia a tudo o que se

encontra fora da sua própria racionalidade. O modelo pós-moderno (o autor propõe o vocábulo cosmopolita) necessita de

reconhecer que o conhecimento seja hoje entendido como uma constelação de

complexidades interdependentes e em processo. A ciência deve ser entendida como um modo de explicar a realidade,

através de determinados procedimentos que interferem com essa mesma realidade.

Com esse reconhecimento o conhecimento é entendido como probabilidade que dever ser observado pela interdisciplinaridade .

Advoga-se inclusive a reorganização dos processos de formação dos saberes, com

base na inclusão da complexidade dos sistemas, da indeterminação dos processos, da incerteza dos movimentos a

adoção de sistemas abertos com fonte de inovação que se opõem aos sistemas

fechados que tendem para a entropia (ibidem).

A busca de novas linhas de reflexão para a

ciência, apontadas por Sousa Santos implica a relativização dos conceitos

usados e enfrentar as evidências que na matriz da produção do conhecimento se encontram as relações de poder

estabelecidas na sociedade. Relações que são hierárquicas e horizontais e que

determinam os próprios limitem desse conhecimento. O conhecimento é então uma possibilidade dada pela relação da

função da sua capacidade de reprodução com a sua adequabilidade como resposta

às questões colocadas. O conhecimento provável emerge da tensão processual entre conservação e inovação, ou com

defende o autor um confronto entre a ação conformista e a ação com “quiddam”

(Santos, 2006, 83). Como afirma o autor da “Gramética do

Tempo” (Santos,2006), os contextos sociais e políticos contemporâneos exigem que o conhecimento formule problemas

para os grandes questionamentos da humanidade. Esse conhecimento é hoje

um procedimento que implica a criação de diálogos que partem das situações concretas dos indivíduos e das suas

comunidades. Formular perguntas pertinentes é um primeiro passo para a

questionar as suas relevâncias. Na formulação das pertinências, partindo da fundamentação sobre o relevante como

afirmação de relações de poder, é necessário segundo o autor questionar as

ausências como um primeiro passo para entender o que está a emergir. A relação entre a ausência e a emergência

advém da incorporação no processo de conhecimento da experiencia cognitiva do

mundo. A experiencia intersubjetivas permite identificar as emergências. Ainda segundo Sousa Santos, a experiencia e o

conhecimento do mundo são diversos, infinito e os seus limites encontra-se na

capacidade de captar razão, as sensações, e os afetos. Ou seja a capacidade de assumir uma forma de consciência do

mundo como vontade de representação. Revelar a diversidade cognitiva do mundo

é questionar o mundo, assumir a

Page 31: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 31

experiencia intersubjetiva de

transformação que é emergente. Sistematizando a sociologia das ausências

é um procedimento de conhecimento que procura uma fenomenologia de transformação de objetos improváveis em

objetos possíveis. Trata-se de uma forma de catalisar as ausências em presenças,

configurando a necessidade de incorporar um sociologia das emergências, que permite ultrapassar as razões metonímicas

e prolépticas . A redução do presente e á ampliação do futuro que o com que o

modelo da racionalidade moderna se implicou, contrapõe o autor com a necessidade da razão cosmopolita ampliar

o presente e reduzir a possibilidade de futuro.

A sociologia das ausências visa essencialmente criar uma carência e

transformar a falta ou o desperdício de experiência social em campos de trabalho como forma de ampliar o mundo presente.

A sociologia das ausências procura substituir o vazio do futuro dado pelo

tempo linear (vazio porque é previsível) por um tempo de possibilidades plurais. Este feixe de possibilidades é operado no

presente. O presente é então uma possibilidade. Um modo de viver e ver o

mundo. O movimento do mundo vistos como possibilidade resulta da perspetiva de carência (algo que falta), da perceção

da tendência (algo em processo) e a perceção de latência (o que está na frente

do processo, o que já existe). Ainda segundo Sousa Santos o modelo de racionalidade conduziu o conhecimento

para um campo de “monoculturas” de saberes. A essa monocultura que conduziu

o conhecimento à sua esterilização é necessário uma “ecologia de saberes”. A ecologia dos saberes constitui-se por via

da incorporação dos sabres locais. A ciência deverá encontrar soluções para

explicar o mundo a partir da riqueza das experiencia e vivências locais. A sociologia da emergência opera então

sobre a possibilidade de ampliação dos saberes, das práticas e dos agentes, no

âmbito da identificação das possibilidades de futuro. Ora essa semântica de

expectativa manuseia possibilidades e

potência social que se traduzem numa ecologia de saberes. (ibidem, 112)

A questão do rigor relativo à prática da sociologia das ausências e das emergências na busca duma ecologia de

saberes obriga a uma prática de diálogo entre diferentes linguagens e modos de

pensamento. Para é enfrentar esses problemas, o autor propõe aquilo a que chama hermenêutica diatópica para

enfrentar a produção de uma grande quantidade de realidades e objetos antes

não existentes (ibidem, 113). Trata-se de objetos mais fragmentados, formas mais caóticas e plurais do que aquelas antes

vividas e inteligíveis. Importa portanto afinar a operação metodológica capaz de

compreender e de ressignificar essas outras realidades. Esse procedimento

metodológico constitui-se como um “procedimento de tradução” que contemple a heterogeneidade do real e aponte,

sobretudo, a não-univocidade de sentidos no mundo contemporâneo. A hermenêutica

diatópica é produção de uma teoria da interpretação do conhecimento por zonas de contacto das visões do mundo,

considerando que é nessas zonas de contacto que se encontram os processos

de transformação. Do ponto de vista epistemológico a reconstrução de processos de significação

a partir desses elementos comuns poderá constitui-se como uma proposta no campo

doe Estudos Africano. Bibliografia ALMEIDA, Miguel Vale de, BASTOS, Cristina e

FELDMAN-BIANCO, Bela (2002) Trânsitos

Coloniais: Diálogos Críticos luso-brasileiros,

Lisboa, ICS, 422 paginas

ALTHUSSER, Louis (1980). Ideologia e

Aparelhos Ideológicos de Estado, Lisboa,

Editorial Presença, 120 pag.

ALTHUSSER, Louis, (1978). Sobre o trabalho

teórico, Lisboa, Editorial Presença, 85 pag.

AMARO, Rogério Roque, (2003).

“Desenvolvimento – um conceito ultrapassado

ou em prática de renovação”, in Cadernos de

Estudos Africanos, Lisboa, CEA /ISCTE, pp 35-

70.

AMIN, Samir (1970). L‟accumulation à l‟échelle

mondiale, Paris, Antropós, 2 volumes

Page 32: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 32

ANDERSON, Perry (2005). As Origens da Pós-

modernidade, Lisboa, Edições 70,181 páginas

CASTELO, Cláudia (1996) “O Modo Português

de Estar no Mundo”: Luso-tropicalismo e a

ideologia colonial portuguesa (1933-1961),

Lisboa, Tese de Mestrado em História dos

Séculos XIX eXX , Universidade Nova de Lisboa

CÉESAIRE, Aimé (1971). Discurso dobre o

Colonialismo, Porto, Cadernos Circunstância

DELEUZE, Gilles. e GUATARI, Félix (2007). Mil

Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia 2, Lisboa

Assírio e Alvim, 253 páginas

FOUCAULT, Michel & BOUCHARD (1977).

Language, Counter-memory, practice, selected

essays and interviews, New York, Cornel

University, 240 páginas

FOUCAULT, Michel ( 1969), L‟ archeologie du

savoir , Paris, Gallimard, 288 p

FOUCAULT, Michel (1966) As palavras e as

coisas, Lisboa, Portugália Editora, 501 páginas.

FREITAS, Lima de e MORIN, Edgar,

NICOLESCU, Besarab (1994). Carta da

Transdisciplinaridade, Arrábida, Encontros da

Arrábida,

FREUD, Sigmund (1991). Sobre o Mecanismo

Psiquico do Esquecimento, Lisboa, Assirio e

Alvim, 73 páginas

GALTUNG, Johan (1998). Direitos Humanos:

Uma nova perspetiva, Lisboa, Instituto Piaget,

252 páginas

GIL, Fernando (2000). “Ciência Disciplinar e

Ciência Categorial”, in Enciclopédia Enaudi,

Volume 41: Conhecimento, Lisboa, Imprensa

Nacional Casa da Moeda, pp 288-328

GILROY, Paul (1993) The Black Atlantic:

Medernity and Double Consciouness,

Cambridge/Massachusetts, Harvard University

Press, 259 páginas

GILROY, Paul (2006).”Cultura e Multicultura na

era da rendição” ,in O Estado do Mundo,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp 161-

190

GRAMSCI, António (1974). Obras Escolhidas: 2

Volumes, Lisboa Editorial Estampa

GUERRA, Isabel C. (2007) Fundamentos e

Processos de Uma sociologia de Acção, Oeiras,

Principia, 253 páginas

HABERMAS, Jürgen (2010) Fundamentação

Linguística de Sociologia, Obras Escolhidas,

Volume I, Lisboa, Edições 70, 350 páginas

Heimer, Franz-Wilhem (2001). “Estudos

Africanos em Portugal, Balanços e Perspetivas”,

in Cadernos de Estudos Africanos, Lisboa, CEA,

pp 11-26

HONNET, Axel (2011). Luta pelo

Reconhecimento: para uma gramática moral

dos conflitos sociais, Lisboa, Edições 70, 287

páginas

HOUNTONDJI, Paulin J. (2009). “Conhecimento

de África, Conhecimento de Africanos: Duas

perpectivas sobre os Estudos Africanos” in

SANTOS & MENESES, Epistemologias do Sul:

Série Conhecimento e Instituições, Coimbra,

Almedina, pp 119-131

KI-ZERBO, Joseph (2002). História de África

Negra, Lisboa, Publicações Europa-América, 2

volumes, 452 páginas e 464 páginas

KUHN, Tomás, (2009) A Estrutura das

Revoluções Científicas, Lisboa, Guerra e Paz

M‟BOKOLO, Elikia (2003). África Negra:

História e Civilizações, Tomo I- Até ao século

XVIII, Lisboa, Editora Vulgata, 584 páginas

MARGARIDO, Alfredo (1964), Negritude e

Humanismo, Lisboa, Casa dos Estudantes do

Império, 44 páginas

MARGARIDO, Alfredo (1975), “As Ideologias do

Colonialismo” in Cadernos de Circunstância,

Porto, Afrontamento, pp 101-145

MARGARIDO, Alfredo (2000) A lusofonia e os

lusófonos: novos mitos portugueses, Lisboa,

Edições Lusófonas, 88 páginas.

MARGARIDO, Alfredo (2002) “A participação

dos Africanos –Escravos ou livres – na

mudança cultural em Portugal e no Brasil” in

Escravatura e Transformações Culturais:

África-Brasil-Caraíbas, Lisboa, Editora Vulgata,

pp 29-50

RICOEUR, Paul, (2006). A memória, a história

e o esquecimento, Campinas, Editora

UNICAMO, 535 páginas.

SAID, Ernest W. (2004). Orientalismo, Lisboa,

Livros Cotovia, 457 páginas

SANTOS, Boaventura de Sousa. (1978). “Da

Sociologia da Ciência à Política Científica” in

Revista Crítica de Ciência Sociais, nº 1,

Coimbra, pp 11-56.

SANTOS, Boaventura de Sousa. (1987). Um

Discurso sobre as Ciências, Porto, Edições

Afrontamento, 59 páginas.

SANTOS, Boaventura de Sousa, (1994). Pela

Mão de Alice, Porto, Afrontamento, p 282-288.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2000). A

crítica da Razão Indolente: Contra o

desperdício da experiencia, Porto, Edições

Afrontamento, 374 páginas

SANTOS, Boaventura de Sousa (2006). A

Gramática do Tempo: para uma nova cultura

política Porto, Edições Afrontamento, 464

páginas.

SANTOS, Boaventura de Sousa. org (2008).

As Vozes do Mundo: Reinventar a Emancipação

Social – para novos manifestos, Porto, Edições

Afrontamento, 535 páginas.

Page 33: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 33

SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES,

Maria Paula, org. (2009). Epistemologias do

Sul: Série Conhecimento e Instituições,

Coimbra, Almedina, 532 páginas.

SENGHOR, Léopold Sédar (1977). Anthologie

de la Nouvelle Poésie Nègre et Malgache de

langue française précédés de L‟Orphée Noir de

Jean Paul Sartre, Paris, PUF

SILVA, Augusto Santos (1986). Metodologia

das Ciências Sociais, Porto, Afrontamento, 318

páginas

SMITH, Adam (1776/1987). Inquérito sobre a

Natureza e Causas da Riqueza das Nações,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian

WALLERSTEIN, Immanuel (1994). O sistema

Mundial Moderno, (2 volumes), Porto, Edições

Afrontamento, 400 paginas e 363 páginas

Page 34: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 34

Museologia Informal e Investigação-ação

Page 35: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 35

A proposta da museologia informal como campo de investigação-ação9

Este artigo constitui uma reflexão sobre as metodologias de

investigação-ação aplicada na museologia informal.

Iniciamos o artigo com uma reflexão sobre os Horizontes da

emancipação social, a proposta de Boaventura Sousa Santos

apresentada em 2000 no seu livro “Critica da Razão Indolente”, para

de seguida fazermos uma atualização da nossa reflexão sobre a

Investigação-ação aplicada na museologia informal.

Constitui o nosso principal objetivo fazer uma reflexão crítica sobre as

metodologias que temos vindo a testar.

9 Por Pedro Pereira Leite- CES.UC

Page 36: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 36

Horizontes da emancipação Social: As epistemologias do Sul, o Barroco e a Fronteira

Quanto em 2000, Boaventura de Sousa

Santo Publica a Sua Crítica da Razão

Indolente, o primeiro volume de uma série

de quatro onde o autor se propõe a

construir uma crítica ao paradigma a

racionalidade ocidental e a construir uma

teoria crítica assente na transição

paradigmática, apresenta uma reflexão

sobre os horizontes da emancipação social

(Santos, A Crítica da Razão Indolente:

Contra o Desperdício da Experiencia, 2000).

A análise crítica da mudança paradigmática

que o autor enuncia neste livro é sustentada

na tensão dialética entre regulação e

emancipação que, segundo o autor,

caracteriza a emergência e a hegemonia do

pensamento moderno ocidental. Segundo o

autor o pensamento ocidental é um

pensamento dual, que se vai constituir

como dominante no mundo global é um

pensamento abissal que se caracteriza num

sistema de distinções visíveis e invisíveis. A

componente visível do sistema expressa-se

através da tensão entre a apropriação e a

resistência; e a sua componente invisível

expressa-se através da tensão entre a

regulação e a emancipação social. As

tensões internas do sistema são portanto

reveladas pelo confronto entre a

emancipação e a regulação.

Este pensamento dual expressa-se em

múltiplas representações. Uma dessas

formas é aquilo a que o autor chama a

“cartografia moderna dual”, que se exprime,

na sua componente visível pela cartografia

jurídica e na componente invisível na

cartografia epistemológica (Santos,

Boaventura Sousa & Menezes, Maria Paula,

2009, p. 30). Se a primeira regula o que é

incluindo e o que é excluído, criando os

termos das “legalidades” e da “ausências”

dos não-lugares e dos grupos humanos

sacrificados; a segunda linha invisível,

determina o que é conhecimento e exclui os

não-conhecimento dos excluídos10.

É uma questão é complexa, sobre a qual já

nos temos vindo a debruçar noutros

trabalhos, sobretudo na sua dimensão

relativa às epistemologia do Sul (Leite,

Cassa Muss-am-ike: O Compromisso no

Processo Museológico, 2011). As

epistemologias do Sul, como já analisámos

em artigo anterior, é uma proposta

epistemológica que o autor propõe logo de

início em “A Gramática do Tempo: para uma

nova cultura política” (Santos, 2006). O

trabalho a que autor se propõe, a de

identificar a emergência dum novo

paradigma, é feito a partir duma reflexão

sobre o atual paradigma. De certa maneira,

o novo ainda não existe e apenas se poderá

ter conhecimento dele através de sinais.

Essa falta de distância e de perspetiva

produzirá certamente, como o autor

reconhece, sérios limites na análise.

O autor reconhece a impossibilidade de

evitar a contaminação do trabalho de

reconhecimento do futuro por formas de

pensamento construídas no paradigma

atual. Mas, como o autor também refere é

necessário efetuar esse esforço de reflexão

para ousar traçar caminhos que a prática do

trabalho científico se encarregará de validar

ou infirmar. É esse ensaio de procurar os

elementos que enunciam a possível

transição da modernidade (a razão

indolente) para uma outra razão

cosmopolita (que integra as diversidades e

as experiencias do mundo) que o autor vai

aprofundar no seu trabalho inicial (Santos,

2000).

10

Uma primeira abordagem desta questão é feita em

(Santos, 2013)

Page 37: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 37

Depois de revisitar os papeis que a ciência e

o direito tiveram na constituição da

modernidade (liberalismo político e

marxismo) e na racionalidade (ciência), o

autor ensaia na segunda parte do livro “as

armadilhas da paisagem”: onde faz uma

crítica à epistemologia do espaço-tempo

através da análise aos sistemas de

representação cartográfica e a crítica da

“epistemologia da cegueira”, que é

responsável pela representação dos limites

do atual paradigma científico. Nesta

proposta analisa a determinação da

relevância, dos graus de relevância, a

determinação da identificação, a

impossibilidade da duração, e a

determinação da interpretação e da sua

avaliação. Esse será o processo que

permitirá o reconhecimento dos limites da

atual “epistemologia da cegueira” e a

emergência duma “epistemologia da visão”.

Será na busca dessa nova epistemologia

que o autor fundamentará a pertinência da

sociologia da ausências e das emergências,

que conduzirá à proposta de inclusão das

ecologias do saberes e dos procedimentos

de transição, com que o autor

fundamentará as suas epistemologias do sul

(Santos, 2006).

Mas será ainda nesse livro de 2000 que o

autor aprofundará a proposta apresentada

em 199411incluirá esse sul emergente como

proposta duma constelação tópica onde se

inclui a fronteira e o barroco como topoi

da transição. Ora por razões das nossas

investigações, e das leituras que temos

vindo a fazer do autor, temos vindo a

explorar sobretudo a riqueza teórica destas

“epistemologias do sul”, tendo deixado de

lado a riqueza destes outros elementos

desta constelação tópica. O nosso objetivo

neste momento o de integrarmos a questão

da fronteira nossa reflexão.

11

Apresentado igualmente em (Santos, 2013)

Revisitemos brevemente esta terceira parte

do livro. Como temos vindo a salientar o

autor procura que as construções destes

novos horizontes estejam ligadas às

práticas sociais. Às lutas emancipatórias,

também elas diversas e distintas. É uma

prática que procura a reconstrução do

conhecimento que recuse a objetivação do

outro, que o conheça reconhecendo a sua

capacidade de, autonomamente, produzir

conhecimento sobre si próprio e sobre nós

mesmos. Um conhecimento crítico que

tenha por base a intersubjetividade (Leite,

2012)

Não procuramos neste artigo dar conta da

riqueza e do esforço crítico desta parte da

obra, mas penas destacar os aspetos mais

relevantes para o projeto de investigação

que estamos e desenvolver no CES da

Universidade de Coimbra12, nomeadamente

a questão da reflexão crítica sobre as

comunidades de fronteira.

Regressando ao trabalho de Boaventura

Sousa Santos Continuar, em “Os horizontes

são humanos: da regulação à emancipação”

(Santos, 2000, p. 239 ss) vale a pena

destacar a sua crítica ao poder, sobretudo a

sua reflexão à teoria de poder em

Foucault13, à qual contrapõe uma cartografia

12

Heranças Globais: A Inclusão dos Saberes das

comunidades no desenvolvimento integrado dos

territórios, (BPD SFRH / BPD / 76601 / 2011).

No nosso trabalho temos vindo, para além da

investigação nos vários espaços, a proceder à

critica dos fundamentos teóricos que presidiram

ao estabelecimentos dos objetivos de

investigação. Como, na nossa perspetiva a

Teoria Crítica não reduz a realidade ao que

existe, tudo é deve ser entendido como o feixe

de possibilidades. A análise crítica deverá então

analisar e avaliar a natureza e o âmbito das

alternativas empíricas. Essa busca da procura

das alternativas ao que existe conduzi-os à

crítica da teoria do desenvolvimento integrado e

à crítica dos conceitos de comunidades, no qual

este artigo se enquadra 13

Em Poder e Conhecimento

Page 38: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 38

relacional dos podres, que formam uma

constelação de espaços e dimensões sociais,

em torno das quais se manifestam outras

tantas relações de poder. É nesse âmbito,

na vontade da ação que emergem as novas

possibilidades de poder social solidário.

A procura dos dispositivos da ação leva

Boaventura Sousa Santos, no sexto e último

capítulo desse livro, a procurar os caminhos

da transição paradigmática. Em "Não

disparem sobre o utopista" (Santos, 2000,

p. 305) o autor (retomando e reformulando

alguma reflexões deita em “Pela mão de

Alice”, (Santos, Modernidade, Identidade e

Cultura de Fronteira, 2013) envereda pela

reflexão sobre as formas da ação possível. É

nesse capítulo, que apresenta as propostas

utópicas com base nos sinais emergentes

dos bloqueios do paradigma da

modernidade. Sinais, que como acima já

salientamos são detetados, nas fronteiras,

no barroco e no sul.

Antes de avançar para a identificação

dessas propostas utópicas, ensaia uma

cartografia da transição paradigmática. O

seu mapa orientador, que parte das

incapacidades de respostas pertinentes para

as questões socialmente relevantes do

paradigma modernos, propõe pontos de

observação. Esses pontos de observação,

que se constituem como pontos de

relevância para os processos de

emancipações social nas suas tensões com

os poderes de regulação social, são

delimitados pelos espaços - estruturais

definidos no capítulo anterior, a saber

(espaços doméstico, de produção, de

mercado, de comunidade, de cidadania, e

mundial), aos quais correspondem formas

de poder (o patriarcado, a exploração, o

feiticismo das mercadorias, a diferenciação

identitária desigual, a dominação e a troca

desigual) que como vimos se relacionam de

formas e intensidades diferentes, daí

resultado unidades sociais, instituições,

dinâmicas de desenvolvimento, formas de

direito e propostas epistemológicas que

configuram as diferentes formas de

realidade fenomenológica.

A importância do entendimento destas

possibilidades de real constitui o filtro a

partir do qual de pode observar as ações

rebeldes. As ações que visam ultrapassarem

os bloqueios e as opressões na sociedade.

Estas ações sociais rebeldes são as formas

de resistência social contra essas formas de

poder e, na medida em que se organizam

segundo articulações locais ou globais,

constituem-se como campos de ação e

investigação do paradigma emergente.

As diferentes dimensões espaciais do poder

relacionam-se com uma ou várias das

formas que assume, tornadas visíveis pelas

suas expressões simbólicas. As

comunidades cooperativas domésticas, os

processos de produção solidários, os

consumos responsáveis e solidários, as

comunidades amiba (comunidades abertas e

plurais), o socialismo sem fim, as

sustentabilidades democráticas e soberanias

dispersas. Uma transição que segundo

Sousa Santos tem que ser simultaneamente

epistemológica e societal. Isto é que novos

modos de conhecimentos, devem estar

alicerçados em formas de estar, de fazer de

ser e de organização social.

É nesta experiencia, na vivência da função

da experiencia que precede a determinação

do objeto, que radica a pertinência da

observação que desencadeia a ação. Como

tudo o que é observado se relaciona com

tudo, (como identificou John Locke no seu

“Ensaio sobre o entendimento humano”), o

conhecimento produzido pela ciência é ao

mesmo tempo universal e infinito.

Simultaneamente redundante e inovador. A

ultrapassagem desse paradoxo é possível

Page 39: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 39

pelo diálogo processual entre o sujeito e o

objeto. A subjetividade do objeto é

reconstruída na ação. A construção duma

inquietação. A intersubjetividade é uma

destas respostas teóricas que permite

reconstruir, a partir da inquietação formas

de emancipação social.

Os lugares de fronteira

Os lugares de fronteira constituem-se como

formas de sociabilidade privilegiadas para a

observação. As comunidades de fronteira

são espaços onde se cruzam as tradições

locais e as tradições que resultam dos

movimentos de confronto (Santos, 2000, p.

321). São espaço de se reconstituem com

base na mestiçagem, construindo normas e

hierarquias dinâmicas, estabelecem relações

fluidas. São processos onde se confrontam

tempos diferenciados, produzidos em

espaços diferenciados. Há portanto uma

certa instabilidade no ar. As relações

estabelecidas são simultaneamente

horizontais e verticais.

A emergência do novo paradigma nestes

territórios de fronteira, segundo Sousa

Santos deverá ocorrer nas suas margens. A

fronteira do mundo global é o espaço onde

o paradigma dominante encontra as

maiores resistências em se implementar,

sendo dessa resistências que deverá

emergir as novas formas de organização e

conhecimento paradigmático. Será também

nesses espaços afastados dos centros que

deverão ser mais percetíveis as incoerências

das formas de dominação.

Pela sua natureza fluida estes espaços

marginais são espaços difíceis de

caracterizar. Tanto são visíveis formas

estruturais dominantes, como formas de

poder emergentes. São espaços de conflitos

estruturais. É esse conflito que importa

analisar a constituir como espaço de ação.

Uma ação que tem que ser construída a

partir dos protagonistas da transição.

A fronteira, ou melhor a experiencia dos

limites é um local onde se torna possível a

intensidade da existência. A vivência dos

limites no espaço é uma experiencia

possível em comunidade. Não interessa

neste domínio as experiencia dos limites

individuais, uma vez que essas experiências

não se traduzem em interações sociais. No

entanto, na fronteira há espaço para a

intervenção do individual na inovação. Dada

a instabilidade dos processos nos espaços

de fronteiras, a inovação é um elemento

que permite ultrapassar problemas. A

construção desse novo paradigma é um

esforço de fronteira.

O Barroco

O segundo elemento que Boaventura Sousa

Santo explora nesse capítulo é o Barroco

(Santos, 2000, p. 330). O Barroco como se

sabe é uma forma de expressão artística

que se constitui no sul da Europa no século

XVII, como resposta à iconoclastia

protestante e calvinista do norte da Europa,

e que é posteriormente exportada para as

colónias americanas e asiáticas. Uma

excentricidade da modernidade.

O termo barroco é usado nesse livro como

expressão metafórica duma forma de

cultura capaz de ultrapassar os limites da

forma para procura processos de

emancipação social. Ou seja, segundo

Sousa Santos, a excentricidade desta forma

cultural que surge nos países periféricos do

então centro (o Barroco manifesta-se em

nos espaços do catolicismo, como realºao

ao movimento protestante, num momento

em que a hegemonia do sistama mundo se

desloca do mediterrâneo para o Norte a

Centro da Europa). Como reação ao porque

se reproduz em cada espaço de acordo com

as especificidades de cada lugar, que se

Page 40: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 40

traduz na constituição de formas específicas

desses mesmo lugares, apenas é possível

devido á fragilidade dos centros de poder

colonias. Ou seja é uma manifestação

inversa da tendência hegemónica do centro.

E é nesta asserção que o termo adquire

significância no campo da análise da

emancipação social no âmbito do paradigma

emergente.

O caráter aberto e inacabado do Barroco em

cada espaço é sinónimo metafórico da

criatividade das margens em relação ao

centro. E é essa criatividade inovadora que

Boaventura Sousa Santos procura para

exemplificar, como em termos sociais, a

organização social deverá criar alternativas

às formas hegemónicas da globalização.

É certo que o Barroco se constitui também

como uma forma de afirmação do poder.

Um poder fraco, diluído, mas um poder

hegemónico. Mas será esse modo de

afirmação que servirá de suporte às ações

emancipatórias que mais tarde surgirão

nesses espaços. Assim, segundo o autor, o

Barroco constituirá a base das narrativas

nacionalistas com que os países da América

enfrentarão os poderes coloniais.

Mas a metáfora tem também um outro

alcance, que o autor procura salientar.

Sendo uma expressão cultural que se

manifesta pela exuberância da forma,

sugerindo a sua incompletude, propiciando

a diversidade dos olhares e dos pontos de

vista, o barroco exemplifica a incompletude

da forma e abre caminho a interrogação, à

busca de alternativas e a novas formas de

expresso. Assim, continuando pelo discurso

metafórico, o paradigma sócio-político

emergente deverá ser encontrado nas

margens do sistema hegemónico. Estamos

portanto praticamente a prenunciar a

emergência das epistemologias do Sul.

Mas antes disso, interessa ainda explorar a

metáfora barroca na relação da forma como

representação do real. O barroco procura a

ilusão e a aparência. O barroco procura a

subjetividade da aparência. Captar a

transcendência pela pluralidade das formas.

O contrário portanto da objetividade do

conhecimento científico, que procura a

delimitação do objeto. A forma barroca é

uma forma transitiva. Uma forma que

estimula a criatividade do olhar. A

dificuldade em definir os limites, uma das

características da pintura barroca permite

dissimular as transições. As formas

misturam-se, fundem-se criando sombras

passíveis de ser elas próprias outras formas

que se revelam nessa mistura. Anuncia-se

assim a emergência de novas formas de

organização e ação social pela mistura de

formas existentes. O novo paradigma

emergirá das velhas formas. Ele estará já

em formação nessas formas de organização

atual. Importa portanto afinar os

instrumentos de análise para os capturar.

Uma captura de algo que está movimento,

algo que ainda é fluído.

Um derradeiro elemento que o autor

salienta em relação ao Barroco como forma

cultural, é a presença da festa como

primeiro elemento das modernas culturas

de massa. A festa barroca é uma festa

ritualizada, ensaiada, com fortes

investimentos sociais para uma vivência

fulminante. A festa barroca, tais como os

eventos contemporâneos são fenómenos

fugazes. Há um tempo e um espaço de

concentração de energia, que é rápida e

intensamente consumido. Mas é essa

intensidade vivenciada que constitui o

catalisador para as novas manifestações.

Ora esta metáfora aplicada à ação

emancipatória permite facilmente entender

que uma ação social que concentre uma

determinada intensidade de movimento

Page 41: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 41

sociais emancipatórios criará um efeito de

reprodução no tempo. A festa é de certa

forma uma metáfora para a o fenómeno de

catalisação da emancipação social. Ao

contrário do cientista moderno, onde a

investigação está separada da ação, a

investigação do novo paradigma emergente

não pode deixar de ser concebida na própria

ação. Mais do que um comprometimento

com a ação, a investigação constitui-se

comum compromisso com a ação

emancipatória.

Mas a festa barroca transporta igualmente

uma componente de proximidade com a

vida real. Quer o teatro, quer as formas

burlescas, quer as manifestações profanas

que ocorrem em paralelo com as festas

religiosas, constituem como espelhos da

vida. Os problemas retratados são os

problemas vividos diretamente pelas

comunidades. Os seus resultado são visíveis

e imediato. É possível uma apropriação

dessa realidade. Os movimento sociais

emancipatórios deverão também eles estar

em sintonia com os problemas das

comunidade. Deverão dar resultados

concretos para os problemas vividos.

Tomando como exemplo a ação dramática é

de salientar o efeito do riso. A comédia é

uma manifestação dramática que emerge

nos séculos XVI e XVII como espelho

burlesco da sociedade, das suas

personagens e das suas preocupações.

Entre outras manifestações, como noutro

local veremos, o riso14 constitui um espaço

de reflexão sobre o si que as sociedades

indolentes procuraram condicionar e

cercear. A capacidade de rir de si mesmo é

uma unidade de reconhecimento duma

comunidade.

14 Ver a “Oficina do Riso”, mais à frente nesta

Revista

Como salienta Boaventura Sousa Santos a

partir dos trabalhos de Max Weber, o riso é

ostracizado pela ética capitalista. Ao

desencantamento das sociedades modernas,

contrapõe a festa do movimento

emancipatório. Na tradição das festas

operária, a transição paradigmática também

emerge no riso.

A última característica da festa barroca,

para além da representação do real e do

riso, é o efeito subversivo que se permite

intuir. O carnaval barroco é uma

manifestação subversiva. A transgressão e a

inversão dos papéis sociais que o carnaval

permite, conduzem quer ao reconhecimento

de si, quer ao reconhecimento dos outros. A

inversão das hierarquias, na festa e no

carnaval é um passo para a experiencia da

inovação (também não é por acaso que o

carnaval é um fenómeno mediterrâneo). Da

inversão da hierarquias à vontade da

experiencia de mudança é um pequeno

passo. A festa traduz-se dessa forma como

um imenso potencial emancipatório a

explorar pela ação social. Uma ação que é

primeiramente experimentada e vivencias

pela estética e pela ética do prazer.

O Sul

O último topos tratado por Boaventura

Sousa Santo nesse livro é o Sul (Santos,

2000, p. 340). Já dele falamos mais acima

nesta revista. Resta salientar que para o

autor este constitui um meta-topos, ou seja

um lugar que preside à “constituição dum

novo senso comum ético. O sul é também

ele uma metáfora cultural para uma

“arqueologia da modernidade”. Como o sul

é o espaço de colonização do outro, dos

outros, das margens do sistema mundial,

ele próprio é um mundo de fronteiras e

barroco, de hierarquias e subordinações.

Sendo a transformação da modernidade

construída na base duma dupla dicotomia,

Page 42: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 42

entre Norte-Sul e Ocidente-Oriente, sendo

que a primeira tem uma conotação

fundamentalmente sócio-económica e a

segunda sócio-cultural, rapidamente as

relações na globalização de fundem. No

século XIX deixa de ser possível esta ma

delimitação geográfica, porque em todo o

lado há uma dominação do outro e uma

subordinação dos mercados e das formas de

produção aos interesses do centro.

Mas será nesse sul que durante o século XX

emergirão as forma de consciência dos

outros, da violência dos sistemas de

dominação, será neles que emergirá a

vontade de rebelião, a consciência do

sofrimento humano. Segundo o autor é no

sul que existe a experiencia de luta por um

mundo alternativo.

A vontade de emancipação social sairá

segundo Sousa Santos, da conjugação

destas três tipologias tópicas: dos

fenómenos de fronteira, com características

barrocas, nos espaços do sul. Três formas

metafóricas de entender que se deverão

relacionar para evitar o esvaziamento do

potencial emancipatório. Esta condição

defrontará o paradigma da modernidade nos

seus espaços estruturais. O paradigma

emergente continua uma incógnita, mas

Ester trabalho é um importante contributo

teórico para a investigação ação.

----------------------------------------

1. A Metodologia de

investigação-ação

Há uma longa tradição nas ciências sócias

na utilização de metodologias qualitativas,

nas quais se insere a metodologia da

investigação-ação. A propósito desta

questão já nos debruçamos na nossa tese

de doutoramento, onde procuramos refletir

a museologia a partir das práticas da teoria

da conscientização, proposta por Paulo

Freira (Leite, 2011). No cerne desta

questão, como então notávamos estava a

relação entre o sujeito e o objeto, um dos

axiomas da ciência moderna.

Posteriormente desenvolvemos essa

reflexão em “Objetos Biográficos” (Leite,

2012), onde procuramos apresentar a

proposta da poética da intersubjetividade

como metodologia na museologia. Uma

metodologia qualitativa de investigação-

ação. Uma metodologia que procura, na

sequência das propostas de Boaventura

Sousa Santos, olhar a partir do Sul, da

Fronteira e do Barroco (Santos, 2013) e

(Santos, 2002).

A questão da dissolução do objeto de

investigação no sujeito dessa investigação

onde assenta onde assenta o paradigma da

ciência moderna permite intuir as

possibilidades de emergência de padrões de

inteligibilidade intersubjetiva. O

conhecimento construído a partir do sul

emerge na relação entre as dimensões

subjetivas dos indivíduos que criam õu

estabelecem constelações de compromissos

e consensos, através dos quais se vão

desenvolvendo as diferentes ações sociais.

Algumas dessas constelações cristalizam-se

em formas organizacionais, outras nem

tanto. Em todas elas encontramos formas

de estruturação, mais ou menos formais,

formas simbólicas e de legitimação.

Ao traçar os objetivos da investigação ação

no âmbito desta postura, o investigador

para além de procurar o outro15 não pode

deixar de se procurar a si mesmo. O

15

Como temos vindo a trabalhar nas questões da memória e do esquecimento, a alienação do outro é uma forma de esquecimento do eu. Ou seja, a teoria crítica ao afirmar que a ciência moderna o estabelecer a distinção entre sujeito e objeto cria uma alienação do objetos (que explica o fetichismo da mercadoria), estabelece igualmente a alienação do sujeito. Uma arrogância epistemológica que é um resultado do auto-esquecimento ( (Santos, 2013, p. 293)

Page 43: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 43

conhecimento que vai produzir, os seus

objetivos de conhecimento, não pode

constituir-se como a validação do que já

está adquirido (gerando a redundância),

mas adotar uma postura dialogante, de

procura de informação original acerca de

situações ou de atores em processo. A

produção dos conhecimentos teóricos

deverá ser obtida através de um processo

de diálogo (entre o investigador e os

membros representativos das comunidades

que vivenciam as situações ou problemas

investigados.

Por outro lado, a Investigação-ação não

procura um conhecimento teórico sobre um

determinado fenómeno. Ela procura

produzir guias ou regras práticas para

resolver os problemas e planear as

correspondentes ações de resolução através

da implicação e da participação daqueles

que são afetados por esses problemas.

A Investigação-ação permite analisar as

possíveis generalizações a estabelecer a

partir de várias pesquisas semelhantes.

Cada processo em que o investigador

participa é um enriquecimento pessoal,

assim como o é para os membros das

comunidades envolvidas.

Os processos de investigação-ação

aumentam o envolvimento das pessoas em

causas que lhe são próximos, desenvolve o

interesse das pessoas e dos grupos em

processos de mudança social.

Um investigador envolvido num processo de

investigação-ação envolve-se com a

comunidade em que trabalha. Dispoõe por

isso duma distância muito reduzida em

relação aos outros. Um bom pesquisador

não pode deixar de ser aceite pela comum

idade.

Este envolvimento com as comunidades e

com as suas causas não deve impedir o

investigador de publicar os resultados das

sua pesquisa. Para alem de assegurar que

os resultados da investigação não se

restringem a um pequeno grupo de

pessoas, a publicação dos resultados da

investigação também deverá assegurar a

filtragem entre o que é socialmente

partilhado.

A investigação ação gera mudança social

com base em elementos concretos da vida

dos grupos. Estas ações são filtros que

permitem adequar as ideias e os projetos às

condições sociais de intervenção e permitem

ao investigador verificar ou não a utilidade

do seu trabalho.

O procedimento metodológico da

investigação-ação, como método qualitativo

implica a formalização de um conjunto de

regras que permitam a recolha da

informação em diferentes momentos do

processo, para que a sua análise seja

possível e acessível em qualquer momento

da investigação. O ciclo de diagnóstico,

planeamento, ação experimental e

validação/descrição do conhecimento, é pois

um ciclo aberto, em que a cada momento se

utilizam procedimentos dos momentos

anteriores.

A questão que nos interessa neste momento

refletir, é a adequação desses

procedimentos de Investigação ação no

âmbito do nosso projeto “Heranças Globais:

A inclusão dos saberes das comunidades no

desenvolvimento integrado dos territórios”.

No estabelecimento dos objetivos de

investigação deste projeto, afirmávamos

que íamos procurar analisar as tensões na

memória social das comunidades através

dum conjunto de procedimentos que

evidenciava a adesão à metodologia da

investigação ação. Vamos agora refletir

Page 44: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 44

sobre a atualidade do uso desta

metodologia a partir dos diferentes

instrumentos de trabalho, e dos mais

recentes contributos.16

O seminário realizado no CES em Coimbra,

em dezembro do ano passado foi útil para

reproblematizarmos a questão da

Investigação-ação no contexto dos

movimentos sociais. É sabido a reflexão que

tem vindo a ser feita sobre esta questão a

partir das experiencias sociais na Europa17,

sobretudo nos campos da sociologia urbana.

Como Sérgio Rodriguez Gravitto nos

recorda, não menos relevantes são os

legados das das décadas de 60-70 com os

trabalhos de Orlando Fals Borda18 na

Colômbia e Paulo Freire19 no Brasil, este

último já acima referenciado.

Desde essa altura, as metodologias da

investigação-ação tem vindo a ser aplicadas

em diferentes latitudes, em diferentes

campos do saber procurando aplicar a

investigação académica no campo das

diferentes disciplinas. Ele tem constituído

um importante instrumento de intervenção

e negociação no âmbito da formação das

políticas públicas, através das quais os

16Para este trabalho baseamo-nos na utilizamos

os contributos do Seminário “Investigation-ación

2.0” feito por César Rodriguez Gravitto na

Cátedra Boaventura Sousa Santos em 11 de

Dezembro 2012, Faculdade e Economia da

Universidade de Coimbra. 17

Veja-se nomeadamente (Guerra, 2007). 18 Orlando Fals Borda (1925-2008), Colombia.

Em 1959, junto con Camilo Torres Restrepo,

fundou a primeira Faculdade de Sociologia da

América Latina na Universidade Nacional, na

qual foi o decano. Foi um dos fundadores dea

Investigação-ação Participativa (IAP), método de

investigación qualitativa que pretende con hecer

as necessidades sociaies de uma comunidade, e

juntar esforços para transformar a realidade

com base nas necessidades sociais 19 Paulo Freire (1921-1997) . É o criador da

Pedagogia do Oprimido e influencia a pedagogia

crítica

diferentes movimentos sociais vão

procurando garantir processos

participativos.

A investigação-ação tem-se vindo a tornar

num saber aplicado nas lutas sociais. Busca

um saber produzido com as comunidades e

fundamenta-se no pensamento com os

atores sociais. A IA é hoje aplicada numa

escala local mas continua a ser trabalhada

numa escala muito próximo das

comunidades, criando compromissos na

ação.

A investigação-ação como instrumento de

sua aplicação no local é um bom desafio

para localmente pensar o global. Como tal é

uma metodologia que tem vindo a ser usada

nas universidades populares, nas escolas

dos movimentos sociais.

Localmente, na comunidade, na cidade ou

nos estados a IA mostra-se hoje como um

processo adequado à formação das políticas

públicas. Nos novos modelos de governação

democrática20, as políticas públicas são

estabelecidas por negociação. A organização

em grupos e cidadão revela-se como um

instrumento eficaz para intervir na

comunidade, para captar recursos e para

disseminar modelos de intervenção.

A utilização deste modelo permita ao

investigador criar uma agenda de

investigação no âmbito de intervenções

públicas e conciliar o processo de

investigação com o ativismo público. O

ativismo do investigador torna-se um

processo de cidadania no âmbito de

construção de instituições. Tanto mais

relevante é esta questão, quanto sabemos,

que por tradição, as universidades,

enquanto centros de saber hegemónico

20

Na formulação de políticas públicas joga-se hoje a capacidade de afirmação dos sistemas de poder democrático. (Pasquino, 2007, p. 287)

Page 45: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 45

criadas na modernidade, são estruturas

hierárquicas, filtrando e reproduzindo as

formas de saber hegemónicas. A

participação do investigador nos processos

de cidadania é ela própria uma possibilidade

de inovação social na construção de

instituições de saber

A investigação-ação é um processo

metodológico que permite transformar a a

imagem social em imaginação pública. Ao

desenvolver intervenções públicas com base

na participação, a permite um entendimento

do real mais consistente e uma abordagem

construída a partir de diferentes ângulos de

entendimento. Aumenta com isso o

envolvimento dos atores nos movimentos

sociais, e permite escolher as relevâncias

nos processos. A investigação-ação, por

estar mais próxima dos processos, está

numa sintonia mais elevada em relação às

questões relevantes para cada comunidade

a cda momento. Uma das críticas feitas à

investigação tradicional, feita com base no

paradigma moderno, é a de quando formula

os problemas, já eles estão ultrapassados.

Enquanto a investigação tradicional, por

norma chega tarde aos fenómenos que

procura explicar, a investigação-ação

constitui uma forma de ultrapassar os risco

de falta relevância na ação.

Finalmente uma última vantagem nos

processos de investigação-ação para o

investigador. A proximidade e a participação

nos processos de investigação cria um efeito

efeito emocional, que facilita a motivação. A

ação é uma presentça constante. Há claro o

risco de um envolvimento excessivo, quer

com atores, quer com os processos. Uma

situação em que apenas a experiencia e a

maturidade dos investigador@s permite

ultrapassar a calibrar.

Há contudo alguns dilemas que a

investigação-ação continua a enfrentar. Não

há um caminho único, nem um caminho

linear para a construção do presente. A

Utopia é diversificada e polissémica.

Sabemos que o mundo em que vivemos

continua a ser contraditório, injusto e

problemático. A investigação-ação não

procura resolver todos os problemas das

relações desiguais, do modelo energético

com base no carbono, dos diferentes

conflitos no mundo, do modelo económico

com base na fetichizarão da mercadoria, da

economia predadora dos recurso naturais. É

no entanto uma metodologia que contém na

sua formulação os elementos necessários

para trabalhar sobre a transição

paradigmática.

A investigação-ação é um instrumento

adequado para trabalhar na construção da

transição paradigmática. Na América Latina,

um continente que enfrenta hoje uma forte

pressão para explorar os seus recursos

naturais, gerando diferentes conflitos e

alimentando uma espiral de procura de

recursos, alimenta o modelo económico que

deixou de se basear na indústria para se

centrar na venda de matérias-primas. A

América Latina centra-se na exploração das

últimas fronteiras terrestres.

Os processos de investigação-ação têm

vindo a evidenciar a necessidade de intervir

e denunciar um conjunto de ações, ao

mesmo tempo que contribui para a criação

de novas sociabilidades e novos sentidos de

comunidade. À ocupação dos territórios

indígenas da amazónia, a sua inclusão nos

processos de produção extrativista da

economia global, tem vindo a produzir

denuncia de violação dos direitos humanos.

A criação desta relação tem favorecido a

criação de instituições e ações comuns nos

movimentos indígenas.

Este envolvimento nas lutas sociais e nos

processos de ação e na construção de

Page 46: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 46

instituições comuns constitui um dos

principais desafios que a investigação-ação

enfrenta na atualidade.

Será a investigação-ação uma empresa

quixotesca? Uma forma de solucionar os

problemas do mundo. É claro que a

resposta é negativa. A investigação-ação é

um instrumento de trabalho. Uma forma de

intervir para solucionar problemas. É

necessário não esquecer que a investigação-

ação composta riscos. Não podemos estar

envolvidos com o objeto de investigação

durante demasiado tempo sem sermos

contagiados por esse mesmo objeto. Há

portanto que balizar bem o tempo de

intervenção. Ultrapassar o tempo de

investigação, é de certa forma deixar de ser

investigador e assumir a uma condição de

ator cidadão. A fronteira entre ambos é

difícil de distinguir.

Um outro risco da investigação-ação é o

voluntarismo. A participação nos processos

sociais e o ativismo social é absorvente. A

implicação nos processos sociais absorve a

ação do investigador. Esse envolvimento

pode conduzir ao abandono dos princípios e

objetivos iniciais da investigação ou a uma

acomodação aos ritmos do mundo. A

investigação é prática, mas não dispensa

uma reflexão, individual e em grupo sobre

os resultados que a cada momento vão

sendo obtidos, bem como dos processos que

a cada momento se devem tomar.

Verifica-se também que o investigador em

ação corre também o risco de criar

dependências em relação aos atores com

que se envolve. A criação de cumplicidades,

de redes de solidariedade é normal no ser

humano em processo. No entanto

dificilmente resistem à quebra de laços e de

compromissos criados. Quando o

investigador enfrenta o dilema da escolha

entre a razão e a emoção a decisão é quase

sempre problemática.

Finalmente, o investigador em ação corre

também o risco de esgotamento. A prática

de investigação ação é esgotante. O

envolvimento permanente e as exigências

sociais são cansativos. O investigador, a

cada momento tem que se adaptar aos

contextos de investigação. Sair de sí para

procurar o outro é um exercício que obriga

também o reconhecimento de sí. Isso pode

conduzir a conflitos individuais ou sociais

que obrigam o investigador a tomar opções.

Visto as condições de aplicação da

metodologia, há que avaliar os processos

onde a metodologia de investigação-ação

pode ser usada. Temos vindo a defender o

seu uso em torno dos conflitos de memória.

Determinar quem fala, como fala e quando

fala e de onde fala é um dos objetivos da

oficina “cartografia das memórias”.

Mas como temos vindo a defender, o mundo

atual apresenta uma diversidade de modos

de produção de conhecimento, de escritas

científicas e de modos de produção de

conhecimentos e saberes, que a

investigação-ação não pode olvidar. Implica

isso que a produção de instrumentos de

investigação seja mestiços.

A escrita científica, produzida na academia

tem uma gramática própria, ancorada na

tradição. Há outras formas de escrita,

plurais. Os suportes das escritas e a

formação de redes são também plurais. A

investigação-ação 2.0, tal como propõe

Servgio Rodriguez Gravillo, é também uma

proposta de intervenção na produção de

escritas mestiças. É necessário utilizar as

diferentes formas de narrativa. As

jornalísticas, as literárias, as académicas a

partir do rigor das ciências sociais.

Page 47: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 47

Mas na atualidade é a produção de

multimédia o grande espaço de

oportunidade que é necessário aproveitar. O

multimédia tem vindo a constituir-se como

uma espaço emergente na construção de

narrativas, de plataforma colaborativa para

trabalho em rede, incluindo a criação de

redes de investigação.

É nesse sentido que temos vindo a

aprimorar e a aperfeiçoar os processos de

disseminação dos conhecimento e dos

resultados. Criamos para isso diferentes

plataformas de intervenção, procurando

agtravés dos procedimentos de tradução,

aplicar e refletir sobre os diversos sentidos

produzidos nos diferentes espaços, nas

diferentes comunidade.21 Esse espaço

constituem também eles espaços de

intervenção em rede22 estando ainda em

processo de maturação e desenvolvimento.

Em suma as metodologias de investigação-

ação que temos vindo a aplicar resultam

duma necessidade de criar uma maior

empenhamento na construção dum mundo

sustentável. Parte da constatação de que é

necessário alterar os mapas e os roteiros da

investigação. Uma investigação empenhada

numa cultura dos saberes produzidos a

partir da proposta das epistemologias do sul

e dos territórios da fronteira. Alterar o ponto

de projeção. Projetar a ciência a partir do

sul a partir da construção de processos

participativos que favoreçam a construção

de ações coletivas.

Tem sido a partir dessa premissas que

temos vindo a construir as nossas oficinas

de participação: A cartografia das

memórias, a oficina biografia, a aula do riso

21

Veja-se em http://globalherit.hypotheses.org/ 22

Veja-se a página de museologia informal no Face Book em www.facebook.com/groups/investigacaosociomuseologia/, ou os blogos desenvolvidos em http://globalheritages.wordpress.com/

e as estratégias de mediação. Elas visas

responder às perguntas de se saber o que

se faz, através de quem faz, como fazem e

de onde fazem. Um caminho para criar uma

clínica de Direitos Humanos como projeto

que a seu tempodesenvolveremos.

Bibliografia:

Guerra, I. (2007). Fundamentos e Processos de Uma

Sociologia de Acção. Principia: Celta.

Leite, P. P. (2011). Casa Muzambique: O compromisso no

processo museológico. Ilha de Moçambique: Marca d'Água.

Leite, P. P. (2012). Objetos Biográficos: A Poética da

Intersubjectividade em Museologia. Ilha de

Moçambique/Lisboa: Marca D' Água.

Pasquino, G. (2007). Curso de Ciência Política. Oeiras:

Principia.

Santos, B. S. (2002). A Crítica da Razão Indolente: Contra o

desperdício da Experiencia. Porto: Afrontamento.

Santos, B. S. (2013). Modernidade, Identidade e Cultura de

Fronteira. In B. S. Santos, Pela Mão de Alica: O social e o

político na pós-modernidade (pp. 139-161). Coimbra:

Almedina.

Santos, B. S. (2013). O norte, o sul e a utopia. In B. S. Santos,

Pela Mão de Alice: O Social e o Plítico na Pós-modernidade

(pp. 235-305). Coimbra: Almedina.

Page 48: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 48

Page 49: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 49

Narrativas Biográficas

Page 50: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 50

As Narrativas Biográficas e as metodologias de investigação-ação23

A integração das narrativas biográficas nos processos de investigação

constitui uma proposta metodológica do empirismo crítico que desloca o

centro de produção de conhecimento para os objetos de investigação,

permitindo ultrapassar os bloqueios e os desvios da observação do real por

parte dos atores científicos.

Na sua crítica ao paradigma científico eurocêntrico, hegemónico na produção

dos discursos dos atores, Boaventura Sousa Santos (2000) propõe as

“epistemologias do Sul” como um processo de investigação e inclusão dos

saberes dos atores. Neste artigo vamos procurar olhar para o processo de

produção das narrativas biográficas a partir da leitura desta proposta

epistemológica.

Neste artigo fazemos uma revisão das metodologias de trabalho sobre

objetos biográficos e apresentamos os estudos e investigações que temos

vindo a fazer em comunidades no Sul de Moçambique com ápio do Centro

Comunitário de Djabula. São resultados duma investigação em processo que

deverá ser completada com outros trabalhos no terreno, e que aqui abrimos

como processo de discussão na comunidade científica.

O projeto será completado nos próximos meses, através da proposta de uma

“Casa das Memórias” a desenvolver com a população local através de

objectos, histórias, sons e danças que são escolhidos e darão suporte às

narrativas escolhidas pela comunidade.

Os projetos criados com os atores locais, a partir dos seus problemas

permitem a aproximação e o diálogo entre os diferentes saberes.

O presente artigo constitui o corpo da comunicação apresentada no 5º

Congresso Europeu de Estudos Africanos, realizado em Lisboa, em Junho de

2013

23

Ana Fantasia – CEA-IUL, e Pedro Pereira Leite –CES-UC -Comunicação apresentada no 5th Europeean Congress on African Studies, realizado em junho de 2013 no ISCTE-IUL

Page 51: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 51

A integração das narrativas biográficas nos

processos de investigação constitui uma proposta metodológica do empirismo crítico

que desloca o centro de produção de conhecimento para os objectos de investigação, permitindo ultrapassar os

bloqueios e os desvios da observação do real por parte dos atores científicos.

Na sua crítica ao paradigma científico eurocêntrico Boaventura Sousa Santos

(Santos, 2000) propõe as “epistemologias do Sul” como um processo de investigação

que parte da inclusão dos saberes dos atores locais para a produção do processo de investigação. Neste artigo vamos

procurar olhar para o processo de produção das narrativas biográficas a partir da leitura

desta proposta epistemológica.

As epistemologias do sul constituem-se

como epistemologias horizontais, construída sobre as diversidades dos saberes, numa

perspectiva de procura de diálogos construtivos, na busca da emancipação social e na construção de comunidades

solidárias.

Segundo o autor que tem vindo a questionar as ciências sociais sobre a natureza do conhecimento produzido, a

“epistemologia do norte” depois de fortes avanços no conhecimento da natureza nas

últimas centenas de anos, tem vindo a enfrentar fortes bloqueios e redundâncias, mostrando-se incapaz de responder aos

grandes problemas da humanidade: Os problemas da distribuição dos recursos

disponíveis, a criação e a distribuição da riqueza e os modos de organização social.

Segundo o autor as narrativas científicas permitiram ao longo das últimas décadas a

consolidação dos projectos de poder coloniais, patriarcais e de exploração da mão-de-obra assalariada. Entre outros

mitos, estas narrativas tem produzido o fetichismo da mercadoria e tem vindo a

conduzir a dominação identitária e a processos de troca desigual. O paradigma científico do norte, enquanto componente

do processo de dominação conduziu as ciências sociais a problemáticas teóricas

estéreis, tais como: A análise das relações

entre estrutura e acção, ou entre a análise macro e a análise micro.

Ora segundo o autor a ciência deve interrogar a partir das condições de acção.

De condições duma acção emancipatória e transformadora. É a partir dessa acção

rebelde (por contraponto à acção conformista da ciência do norte, que almeja compreender sem transformar), que o autor

procura alicerçar todo o trabalho de consolidação do novo paradigma crítico. Um

trabalho observado a partir do Sul, a partir dos territórios e dos saberes esquecidos e dominados, na busca da pluralidade dos

saberes. Aquilo a que chama a “ecologia dos saberes” a partir do qual procura resgatar

do esquecimento praticas, modos de ser e de estar que tem sido dominados em nome dos valores da ciência e do progresse.

Este empenhamento a partir das acções

rebeldes permitem, segundo Boaventura Sousa Santos, observar práticas de conhecimentos construídos por processos

cognitivos diferenciados, que geram experiencias sociais alternativas de

resistência e emancipação social. A proposta de conhecer a partir da perspectiva do sul implica uma posição do conhecimento feito

a partir dos grupos marginalizados, dos grupos sociais vítimas do sofrimento e da

opressão das operações de globalização. O conhecimento torna-se assim numa prática global que procura ultrapassar o

conformismo que reduz a realidade a processos de conciliação. A epistemologia

do sul é uma proposta de transição paradigmática construída sobre a poética e as utopias geradas a partir da observação

das injustiças do mundo.

É neste sentido que a abordagem das narrativas biográficas, enquanto metodologia qualitativa, construída a partir

do empirismo crítico, nos parece relevante como proposta de trabalho.

Na construção das diferentes narrativas sobre o real, o investigador procura captar,

através de diversos instrumentos, a realidade percepcionada. Esta colheita de

Page 52: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 52

dados é o que lhe permite, nas fase

posterior, partir para o processo narrativa de produção de conhecimento, validando ou

não as suas hipóteses de investigação.

Uma das críticas que as epistemologia do

sul fazem ao processo metodológico centrado no sujeitos cientista enquanto

produtor de conhecimento, é o de que na maioria dos casos, o que o investigador social reproduz, enquanto pesquisador não

é mais dos que as suas preocupações, validando, ou invalidando as construções

teóricas dominantes ao seu universo de conhecimento.

Ao deslocar a produção do discurso para os próprios sujeitos, as narrativas integram a

diversidade dos olhares do mundo, as pluralidades das experiencias. Estas narrativas, trabalhadas pelo investigador,

permitem a integração de outras vozes na produção da racionalidade. A construção do

conhecimento torna-se um processo de diálogo intersubjectivo.

O próprio processo de produção de conhecimento, desde a recolha dos dados,

da escolha dos processos de registo, a experiencia das narrativas, os trabalhos de validação e análise dos resultados, bem

como a construção dos processos de comunicação e devolução do conhecimento

traduzem uma prática em que o investigador se envolve, transformando-se a si próprio. Ao interpretar os dados do

mundo, ao destingir na experiência o que é individual e o que é colectivo, o olhar

biográfico permite a construção duma experiencia relacional que estrutura a acção.

Mas, para além da experiencia do

investigador, a mobilização e o reconhecimento das experiências dos atores sociais traduz igualmente um processo de

emancipação social. O reconhecimento das experiências de vida, da participação social

dos actores é mais do que uma simples experiencia reflexiva. Ela pode constituir um processo de acção, um catalisador da acção.

Ao solicitar a palavra aos diferentes atores, a metodologia está também a fornecer

instrumentos de reconhecimento do poder

da emancipação social que cada um dispõe. Instrumentos que podem ser utilizados em

processo de construção de acção e de inovação social.

As narrativas biográficas partem duma problematização transitiva e reflexiva dos

objectos sociais. Se as relações ente o sujeito que observa e o objecto que é observado são transitivas (a ciência como

técnica de analise da probabilidade e da imprevisibilidade) a sua expressão, como

processo é uma relação entre a forma de comunicação (uma linguagem) e o compromisso que se cria como resolução

dos conflitos das partes (uma dialéctica). O compromisso não anula o conflito, apenas o

procura superar.

Por outro lado se a relação entre o sujeito

que observa e o objecto que é observado é reflexiva, (ciência como processo de

interacção comunicativa) a sua expressão, como processo comunicativo é dialéctica. Isto é: o que é narrado, ainda que seja

reportado a outro tempo e a outro espaço e reflectido sobre outras experiências; não

deixa de constituir uma acção que transporta um potencial transformador. O potencial da acção, como possibilidade

advém da sua relação com a adequação e conformidade ao contexto e aos papéis dos

diferentes actores sociais.

Objectos Biográficos

O processo de investigação sobre objectos

biográficos tem vindo a incluir uma reflexão sobre o sujeito implicado nas narrativas; seja do investigador sobre o seu objecto de

investigação ou seja do narrador de si mesmo como implicado na construção duma

memória de si, que se constitui como um processo de formação da consciência de si e das suas acções.

Esta problemática tem vindo a ganhar

espaço de reflexão na academia, herda um património que tem vindo a ser trabalhado em diversas abordagens das ciências sociais

e humanas. A sociologia na escola de Chicago iniciou a utilização deste objecto

Page 53: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 53

por volta da década de vinte do século

passado, no entanto a emergência do quantitativo e da crença no domínio da

natureza pelos modelos objectivos, veio submergir a questão das abordagens biográficas para um plano de menoridade

científica. As metodologias qualitativas e os fenómenos subjectivos são alvo de pouca

reflexão fora de círculos muito restritos das academias.

Nos anos sessenta a historiografia inglesa influenciada pela escola dos Analles, através

da História Oral, inicia nesta ciência uma abordagem metodológica a resgate de memórias e eventos do movimento operário

por via de entrevistas a indivíduos que testemunharam os acontecimentos.

Paralelamente, durante essa década, a emergência das independências africanas, permitirá o desenvolvimento das

metodologias sobre História Oral aplicadas às comunidades “sem história”. Recorde-se

que na época a base da História era sinónimo de “domínio da escrita”, pelo que a associação da ciência ao símbolo gráfico

que expressa o pensamento era considerada uma das distinções entre “selvagens e

civilizados”. Quem não dominava os instrumentos simbólicos da notação escrita

era considerado primitivo, e através dessa operação mental legitimava-se os processos de hegemonias colonial que o conceito de

civilização transportava. Em nome da civilização geraram inúmeros processos de

violência e destruíram-se inúmeras formas de saberes, formas de estar e perderam-se inúmeros processos e técnicas de

transformação que as comunidades em todo o mundo tinham acumulado.

Ainda no âmbito das políticas culturais defendidas pela UNESCO nos anos setenta,

para resgate de tradições, que se procede em vastos territórios africanos e americanos

à recolha e registo de tradições orais, sejam por via dos contos tradicionais, seja por via da música, da dança ou do trabalho. Esta

tradição entroncava na velha tradição europeia nacionalista que havia iniciado com

o movimento romântico, durante o século XIX, a fixação da “tradição” através da

escrita24. Através do estudo das línguas,

procurava-se encontrar e legitimar a natureza distintiva das nações. Um

movimento que contrariava a devesa da modernidade universal que o movimento iluminista procurava.

No campo da antropologia e da educação,

nos anos setenta do século passado, podemos verificar igualmente uma “apropriação” desta metodologia qualitativa

para abordagem da relação de subjectividade construída pela “história de

vida” como processo formador.

Em suma interessa-nos aqui acentuar o

argumento que o uso das narrativas biográficas entronca numa tradição

qualitativa das ciências do humano. Pontuamos igualmente que como metodologia de trabalho de pesquisa e

recolha de informação, as narrativas biográficas nos permite trabalhar a partir de

problemáticas da intersubjectividade.

A problemática da intersubjectividade parte

do confronto do olhar sobre o real a partir da interacção entre os sujeitos produtores

de conhecimento perante a consciência do seu próprio conhecimento. Trata-se de procurar uma relação dialéctica de

superação. Uma relação que ultrapassa a relação tradicional entre o sujeito-objecto

que funda a ciência moderna, bem como não se satisfaz pela busca do conhecimento pelo conhecimento.

O intersubjectividade ao procurar situar-se

no campo relacional assume que o processo potencia a criação duma dialéctica de transformação. Na narrativa biográfica, nos

diferentes interlocutores, podem emergir formas de consciência de si próprio como

ser social e experiencial. É igualmente um processo que catalisa formas de consciência de si através da acção. A operação de

narrar a biografia é uma forma de tomar consciência de si e dos outros, de reelaborar

os olhares sobre si e sobre o mundo. Narrar o si mesmo é uma forma de experiência.

24 Um movimento que encontra nos Irmãos

Grimm um exemplo paradigmático.

Page 54: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 54

Trata-se portanto duma acção comunicativa

que se traduz numa narrativa de representação que contem, para além de o

ser individual o ser social em contexto. Mais, esta acção transcende ainda a relação entre o individuo e o todo pela possibilidade

de inclusão do sentido estético e ético na relação. É por isso, igualmente uma poética.

Trata-se portanto duma meta narrativa que contém uma pluralidade de histórias individuais que se constituem como

fragmentos discursivos duma narrativa comum, de sentido emancipatório porque

incorpora o reconhecimento (HONNET, 2011).

Uma narrativa constitui-se como um enunciado comunicacional, onde o emissor

produz um discurso em função do destinatário. Ainda que essa narrativa seja feita no foro privado, ela constitui-se como

um discurso reflexivo, onde o resultado alcançado depende da consciência do social

desse sentido. Uma reflexividade que é tanto mais evidente quanto sabemos que no domínio da investigação, seja por parte do

investigador que utiliza a metodologia, seja por parte do objecto de investigação, que

não há uma neutralidade na representação. Os discursos, como acção, implicam uma

vontade. Desse modo a produção do sentido na narrativa biográfica constitui como uma epistemologia e como uma fenomenologia

que se verificam no domínio da intersubjectividade.

Os objectos biográficos transportam a densidade de significados que compõem as

diferentes experiencias dos sujeitos, as suas expectativas de acção e a natureza relacional onde a interacção se

processualiza. Esta riqueza pode ser apropriada pelo olhar museológico para

construir uma prática de relacionamento entre o individual e o social ou vice-versa,

na medida em que para além da sua natureza reflexiva, como forma de consciência do real a interacção biográfica

assume-se como uma prática de integração de dados e como uma prática

transformacional.

É neste domínio: o da utilização das práticas

biográficas nos processos de investigação, que queremos salientar a sua pertinência

como um elemento catalisador de processos de prática de transformação social. O olhar biográfico transporta um ato de narração.

Uma acção de relatar a experiência vivida como construção do seu sentido. Esta

poética da palavra ou dos gesto emerge como um reflexo do mundo experienciado e traduz o questionamento sobre a adequação

da experiência a cada situação do presente. Uma inquietação que é gerada em função

das vontades de reconhecimento como vontades de futuro

A construção da narrativa social processa-se portanto numa dupla dimensão processual.

No plano do individuo comunicante que processualiza a experiencia individual em função do receptor da mensagem; e no

plano do individuo como ser social, que igualmente se concretiza através do

processo comunicacional, que transporta a consciência social do mundo. É nesse ato de comunicação que se processualiza a

adequação dos saberes das comunidades, enquanto herança social, para a

reconstrução dos sentidos e das orientações do social. Uma luta pelo reconhecimento e

pela emancipação.

É esse movimento de reconhecimento e

reconstrução dos sentidos que se constitui como um movimento libertador, um momento que ao ser socialmente partilhado

se constitui como criador de solidariedades pela emergência da consciência da

alteridade.

O utilização das metodologias sócio

biográficas permitem recentrar a produção dos saberes nos indivíduos como produtores

das suas próprias experiencias e permitir o exercício de construção dos sentidos do social solidário. Se o exercício de

biografização, a produção individual de sentidos é um momento experiencial,

potencialmente libertador pela verbalização ou pelo ato performativo; o desafio essencial das metodologias biográficas

decorre no processo da formação da consciência do individual como parte do

Page 55: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 55

social. É nesse diálogo entre o “eu” (na sua

múltipla dimensão consciente e inconsciente) e os outros (também nas suas

múltiplas dimensões), entre as linguagens da alteridade, que emerge o saber mestiço. Um saber que se alicerça na partilha das

experiências como vontade de futuro.

Como método de conhecimento a biografia e a narrativa biográfica é simultaneamente um modo de conhecimento onde os autores

se assumem como produtores conscientes dos caminhos das suas vidas. Desse modo,

o processo de conhecimento obtido não é apenas referencial (construído pelos currículos predeterminados) mas é um

saber que decorre da experiência pratica intercultural (do acto de narrar, do acto de

pensar, do acto de partilhar, do acto de transformar, do acto de sentir, do acto de imaginar) integral. É esta capacidade

transformadora que constitui a riqueza epistemológica dessa proposta na

museologia e que a permite alicerçar no interior dum paradigma emergente da transição no interior duma ecologia de

saberes para uma emancipação social.

Ora, como afirma Elsa Lechner “Independentemente do olhar disciplinar de onde se parte, as histórias de vida e relatos

de experiencia têm ainda o poder de emancipar. Desde logo porque levam a

tomadas de consciência, porque depois ultrapassas a fronteira dos estereótipos e permitem ao sujeito ressituar-se face à sua

história e papéis sociais. Assim conceber a pesquisa biográfica também nos seus

efeitos significa reconhecer a carga política que comporta, quer como método, quer como forma de apreender as realidades

humanas” (LECHNER, 2009, 9). Importa reconhecer às narrativas biográficas,

quando assumidas como narrativas sócio biográficas, como temos vindo a defender, o

seu valor epistemológico como processo de partilha solidária de experiencias significativas para a construção dum

mudança participada onde o local se funde no global.

Em suma, ao invés de uma recolecção de elementos valorizados característicos das

fenomenologias com base no empirismo

lógico, que geram redundâncias que apenas comprovam e reproduzem os processos de

reprodução das narrativas hegemónicas, as narrativas biográficas, como método qualitativo, busca o reconhecimento de si

como processo de mudança. Com a narrativa biográfica o discurso científico

transfere-se para os sujeitos, que se tornam protagonistas da acção

Esta metodologia da investigação-acção tem-se mostrado adequadas à recolha de

informação original acerca de situações ou de actores em processo, à concretização de conhecimentos teóricos obtidos através do

diálogo entre os investigadores e os membros das comunidades analisadas, e

permite criar soluções adequadas aos problemas com que a comunidade se defronta. Como resultados da investigação-

acção verifica-se o envolvimento dos membros das comunidades e o aumento da

motivação para a mudança. A investigação-acção torna-se um processo de transformação que dá um indicador da

utilidade do trabalho de investigação

As narrativas biográficas, finalmente, permitem ultrapassar as redundâncias do empirismo lógico, onde todos os fenómenos

são capturados como imagens (fragmentos das experiencias vividas) que são analisados

inseridos num quadro de significações, preestabelecido que se justifica a si mesmo. Como todos os fenómenos são referenciados

no campo da híper categoria espaço/tempo, e como tal relacionados com os seus

contextos a procura da sua lógica narrativa, construída a partir do quadro de referência de quem observa, impede a verificação da

inovação em contexto.

O Centro Comunitário de Djabula

Djabula é hoje um Centro Comunitário

situado a meia centena de quilómetros a sul de Maputo, no distrito da Bela Vista, na

estrada para a Ponta do Ouro. Há vinte anos, quando o régulo de Matatuíne concessionou as terras à pequena ONG

portuguesa Vida, que havia trabalhado em Matíno na construção duma escola, o local

Page 56: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 56

era um deserto. O objectivo foi criar um

centro comunitário. A oferta do uso da terra foi para concretizar essa ideia. Na cerimónia

oficial da cedência do espaço foi feito um compromisso falado. A ONG comprometeu-se a ficar no local durante o tempo que

fosse necessário para dar um uso adequado à terra.

Esta cerimónia, criou relação afectiva com uma comunidade que vivia dispersa no

mato em torno de tabancas. No início foi necessário construir uma estrada. Havia

apenas uma picada um caminho trilhado a pé pela população local. A abertura duma estrada, com cerca de trinta quilómetros de

extensão permitiu a acessibilidade ao local do centro. Com acessibilidade foi possível

fazer chegar materiais de construção para criar um Centro Comunitário.

A ideia inicial do centro foi de desenvolver um trabalho de apoio à comunidade para a

geração de rendimentos. Os poucos habitantes de Djabula viviam da venda de carvão, obtido no desbaste da floresta, e

que produzem em pequenos fornos artesanais. Alguns tinham pequenas hortas

junto das habitação e criavam pequenos animais domésticos. Era uma população escassa e com várias ligações à Suazilândia,

para onde os homens partiam para a criação de gado.

As primeiras ideias do Centro foram de desenvolver a agricultura para abastecer o

mercado em Catembe e daí chegar ao Maputo. Rapidamente ficou claro que a

agricultura era uma actividade marginal. Tão marginal quanto a área. O tipo de solos e a dificuldade em captar águas eram dois

dos principais problemas. A principal vocação de Matatuíne era a pecuária e não

a agricultura. Uma observação mais atenta e um melhor entrosamento com as populações locais fizeram entender que fora

das margens de aluvião dos rios não havia condições para a agricultura.

Paralelamente aos projectos de apoios à geração de rendimentos, desenvolviam-se

diversos projectos de desenvolvimento integrado. Foram feitas intervenções na

melhoria das condições de habitação e

construção de poços. Foi construído um centro de saúde, e foram feitas diversas

acções de educação para a saúde. Os cuidados de saúde primários, a saúde materno infantil, os cuidados com o

consumo de águas salobras. Como o objectivo da intervenção era o de criar uma

autonomia na comunidade, o Centro Comunitário foi concebido para ser um centro das actividades da comunidade. Por

isso deveria ser desenvolvida a sua autonomia e sustentabilidade. Foi por isso

estimulada a criação duma associação de desenvolvimento local, através da participação da comunidade, que tem como

objectivo fazer, no futuro, a gestão do centro, ao mesmo tempo que, actualmente,

com o apoio da ONG, procura assegurar a sustentabilidade do centro pela criação der

renda.

No centro pensam-se e são aplicados e

testados os projecto. Com apoio nos programas de cooperação internacional de ajuda ao desenvolvimento, cujos maiores

dadores são os Italianos e Espanhóis e portugueses, apresentam-se projectos, que

normalmente têm uma duração de dois anos a partir dos quais se procura criar

dinâmicas próprias. Por exemplo, um dos projectos foi a capacitar mulheres para obtenção de rendimentos alternativos ou

complementares das actividades agrícolas. Desse projecto resultou a criação duma

associação de artesanato com uma marca própria (a marca Djabula).

A associação de artesanato produz Batiques e outros trabalhos de tecelagem e costura. Foram instaladas cinco máquinas de costura

e formadas várias mulheres. Foram criados cinco grupos de trabalho, todos voltado para

a actividade do artesanato, através da transformação de materiais locais.

Com o projecto procura-se criar condições de financiamento para o investimento

inicial, devendo, no final do projecto, a associação ganhar a sua autonomia através da venda dos produtos que fabrica. No caso

do grupo dos Batique, por exemplo, era preciso panelas para fazer os tingimentos.

Page 57: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 57

Era necessário dinheiro para comprar as

matérias-primas que não se encontravam no local. O projecto permitiu financiar os

investimentos necessários. Através da venda dos produtos em Maputo, as receitas revertiam para a Associação, que as deve

aplicar na compra de mais materiais. Actualmente no Centro existe uma sala de

costura onde estão instaladas as máquinas de coser. O trabalho é remunerado em função do número de horas de trabalho de

cada costureira.

O artesanato tem um grande problema que é sua sustentabilidade. A associação gere o rendimento gerado por esta actividade e as

costureiras só trabalham quando há encomendas. Há alguma procura mas não

se consegue é vender nesses mercados sem um sistema de comercialização a funcionar. Para criar esse sistema de comercialização é

necessária uma maior diversidade de produção. O sucesso do artesanato está

muito ligado á sua comercialização. A ONG deu apoio à comercialização dos produtos em Maputo, através da exploração de

contactos comerciais nas lojas e feiras, que acontecem duas vezes por ano na Fortaleza.

Mas são ainda poucas as oportunidades de venda.

O trabalho no terreno na ajuda ao desenvolvimento é um trabalho lento e com

resultados demorados. A Associação do Centro Comunitário de Djabula passou, a partir de 2010 a ter uma maior

responsabilidade na gestão da sua infra-estrutura e na partilha dos rendimentos. A

comunidade tem uma palavra a dizer na distribuição dos rendimentos. Por exemplo, no último ano houve vários casamentos e

funerais em que a comunidade decidiu contribuir. Ao despender essas verbas há

uma menor capacidade de comprar matérias-primas para a Feira de Artesanato

em Maputo, onde se costumam fazer boas vendas e contactos.

A sustentabilidade do centro é hoje assegurada através da sua manada. Através da venda das cabeças de gado

excedentárias torna-se possível pagar as despesas correntes - os pastores, a

alimentação das famílias e criar ainda um

pequeno fundo para investimento nas outras actividades. A compra da manada

resultou também de um projecto onde foram adquiridas cinquenta cabeças. A partir das cem cabeças faz-se a venda do

excedente.

Actualmente discute-se se no trabalho com as comunidades em África se deve apoiar os processos associativos ou os chamados

inovadores em cada comunidade. Esta é uma questão interessante que conduz a

resultados diferentes. A organização VIDA tem vindo a apostar no desenvolvimento do trabalho associativo. Segundo os seus

princípios, é aquele que melhor permite a participação da comunidade e uma

distribuição de rendimentos mais equitativa. Os defensores do investimento nos chamados atores privilegiados,

concentrando o investimento da ajuda ao desenvolvimento em novas dinâmicas,

procuram potenciar o efeito multiplicador do investimento. Nestes casos há uma menor participação das comunidades e um menor

distribuição dos benefícios.

O trabalho com as associações como meio privilegiado de intervenção na comunidade implica que se tome em atenção o trabalho

de organização interna do grupo associativo, que se treinem capacidades de

comunicação e reivindicação. Na ajuda ao desenvolvimento tudo se passa pela proposta e pela execução de projectos.

Tudo está referenciado a acções que se desenvolvem no tempo e implica um

controlo das diferentes actividades para monitorizar os seus resultados.

A ONG Vida tem vindo a vocacionar-se mais para uma intervenção no apoio às

associações de agricultores. Para esse trabalho a sua experiência no Centro Comunitário de Djabula é uma importante

mais-valia pelo exemplo de organização que esta Associação dispõe. É hoje possível

verificar que ao longo destes anos, os seus membros dominam os mecanismos da vida associativa, de organização de reuniões, de

concepção de projectos. É muito interessante olhar para os seus membros e

Page 58: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 58

verificar que dispõem de capacidade de

argumentação e reivindicação em situação de negociação social.

O trabalho com as diferentes associações veio ampliar os interlocutores. Actualmente

estão identificadas 15 associações do Distrito. É um trabalho extenso e complexo

numa região de povoamento disperso com uma densidade de 7 habitantes por Km2. Percorrer todas essas associações é um

trabalho muito moroso, mas muito rico em contactos humanos e na diversidade das

situações. Há associações agrícolas que produzem determinados produtos que poderão ser trocados na região, ou

associados a outros na rede de comercialização. Hoje, um dos seus

principais problemas é o desafio de se sustentar todo este projecto. Uma peça essencial desse processo é a criação duma

Casa Agrícola, numa zona mais central, a partir da qual se possa fazer um apoio a

esta diversidade associativa que encontramos.

A proposta de trabalhar as narrativas biográficas na comunidade de Djabula

O rosto gretado pelo sol olha-nos altivamente. Oferece-nos a mão. Aberta e

receptiva ao contacto. Olha-nos nos olhos à procura do nosso olhar. Sente-nos e Vê-nos

antes de soltar a palavra. A palavra tem peso. Cada som é aferido ao seu sentido. Procuram-se significados. Reunir partes do

todo. Dar sentidos. Em Matutuíne, a palavra do chefe tem peso e valor. Sentimos isso

quando falamos com ele. Quando o procuramos para conhecer a sua história de vida. Para conhecer os seus modos de vida.

Este encontro com João Khoma, capataz da

fábrica, dirigente associativo, por direito de linhagem chefe local fez-nos entender que

há discursos sobre o silêncio. Há vozes

que se dizem e não se ouvem, enquanto que há outras vozes que ultrapassam as

sombras para darem sentido ao

momento vivido. “Porque é que as pessoas pobres são alegres”, perguntou-

nos a certa altura. Talvez porque a

pobreza que nós vemos seja apenas

uma parte da matéria. Se basearmos a medida na felicidade, os bens materiais

não perderão espaço.

Ao encontramos estas palavras, entendemos que o que se diz em Matutuíne.

As palavras são projecções dos conflitos na mente. A mente confronta-se com o real.

Procura dominar esse real. As narrativas são pontos de emergência do consciente que transporta os sentidos do mundo.

O nosso desafio foi então entender de que

forma essas narrativas, enquanto projecção da consciência do mundo e o do

inconsciente colectivo, reflectiam modos de olhar esse mundo. Olhar como eram integradas as ordens do mundo e procurar

as sombras dos discursos como espaços de transição expressam os conflitos não

resolvidos. É nestas tensões que a acção se gera, com sucesso quando se adequa

ao real, com insucesso quando dele se desadequa.

As narrativas biográficas transportam toda essa carga energética no discurso.

Os fenómenos biográficos concentram a energia dos modos como cada um

racionaliza o mundo, como o sente. Transporta os modos como cada

indivíduo integra o todo. São portanto fenómenos visíveis no espaço da

narrativa, vividos no tempo da narrativa. Escutar os sons, sentir o

momento do discurso é uma experiencia

que transporta sentidos plurais sobre os quais importa pensar.

Nesse discurso de João Khoma, sobre a questão da pobreza e da felicidade,

sentia-se essa tensão. Dizia-nos, ainda

de mãos dadas, balanceando à sombra dum embondeiro: “-Há um tempo atrás,

foi criado um Fundo de Desenvolvimento Local, para apoiar projectos agrícolas,

dotado com sete milhões de U$. A ideia era fazer as populações saírem da

Page 59: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 59

pobreza absoluta. Eram beneficiários

agricultores individuais. Cada um trazia o seu projecto. Uns para comprar

motores de rega, outros para

comprarem ferramentas, sementes. Este projecto acabou por beneficiar

sobretudo os comerciantes, pois era quem conseguia fazer o projecto. Eles

recolhiam os empréstimos e subcontratavam os agricultores para

cultivarem o que queriam vender. ”.

E continuava: “Mas, aqueles que conseguiram fazer projectos, com apoio

das associações, de acordo com os regulamentos, cada pessoa apenas se

podia candidatar a um apoio máximo de 200.000 meticais para comprar o que

necessitasse. No final, como o valor foi dividido por todos os candidatos,

acabaram por receber apenas ¼ do que se havia solicitado”. E concluí com

perspicácia. “Ora assim cada um fica com uma dívida, e como o dinheiro

recebido não chega para completar o

investimento, acaba por gastar noutras coisas. O comerciante, com está sempre

a vender consegue desenvencilhar-se. Mas o agricultor individual fica mais

pobre. Antes eram pobres e sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.

Nestas palavras nota-se amargura de

quem vê com clarividência o que se vai passando, A forma como esta gente de

fora chega, cheia de projectos que trazem promessas, deixando atrás de si

os rastos da pobreza quando, findo os seus projectos regressam às suas

terras. “O fundo acaba apenas por beneficiar uns quantos: Os fundos são

para os amigos”. Os agricultores são marginalizados. Só lhes resta

adaptarem-se a mundo e fazerem amigos.

Mas também estes novos amigos se vão

transformando. A rede de interesses vai-

se instalando. Vai irradiando da cidade

para o interior. Muitas vezes, aparecem por ali dadores que pedem a

apresentação de projectos. Como os

projectos vaiáveis são poucos, em regra, as avaliações são negativas. Mas quem

aprecia o projecto sabe o que está a fazer. Pouco tempo depois eles

aparecem com outro promotor. Eles acabam por ser apropriados pela “máfia”

que se instala entre os dadores e os beneficiados.

Conclusão

Neste artigo procedemos a uma revisão

das propostas teóricas das “epistemologias do sul”, de Boaventura

Sousa Santos, a partir da aplicação das metodologias de investigação-ação com

base nas narrativas biográficas. A partir dos exemplos de “oficinas biográficas”

desenvolvidos por Elsa Lecnher (2012) e da proposta dos “círculos de memória”

de Pedro Pereira Leite (2012), procuramos analisar as suas condições

de produção nas comunidades do sul de Moçambique. Nesse processo

descrevemos e analisamos a metodologia de trabalho.

De seguida apresentamos em linhas

gerais o desenvolvimento do trabalho que levou à formação do Centro

Comunitário de Djabula, no Sul de Moçambique. Durante os trabalhos de

diagnóstico identificámos alguns atores

locais relevantes e analisamos as condições de desenvolvimento dos

trabalhos.

Na sequência dos trabalhos a

desenvolver vai ser proposto um projeto

de “Casa das Memórias” a desenvolver com a população local no Centro de

Desenvolvimento Comunitário de Djabula. A Casa das memórias será

elaborado pela população local através de objectos, histórias, sons e danças

Page 60: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 60

que são escolhidos e darão suporte às

narrativas escolhidas pela comunidade.

A negociação deste tipo de projeto com os actores locais permite partir dos

partir dos problemas locais, das pessoas. Permite uma aproximação e

um diálogo entre os diferentes saberes, ao invés de fazer projectos em

gabinetes. Olhar para os problemas das

comunidades de múltiplas perspetivas e ganhar profundidade nas análises.

Bibliografia

Delory-Momberger, Christine. Formação e socialização. Os ateliês biográficos de

projeto. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 359-371, 2006

Delory-Momberger, Christine. Les Histoires de Vie: de l‟invention de soi au projet de formation. Paris: Anthropos, 2004.

Ferrarotti, Franco. Sobre a Autonomia do Método Biográfico. In: NÓVOA, António;

FINGER, Matthias (Org.). O Método (auto)Biográfico e a Formação. Lisboa:

Ministério da Saúde, 1988. P. 17-34. Farroti, Franco, (1991). “Sobre a autonomia do método biográfico”, in Sociologia:

Problemas e Práticas, nº 9, 1991, pp 171-

177 Honnet, Axel (2011). Luta pelo

Reconhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais, Lisboa, Edições 70, 287 páginas

Lechner, Elsa, (2009). “História de Vida: Olhares Interdisciplinares” Porto,

Afrontamento Lechner, Elsa (2012), “Oficinas de Trabalho Biográfico: pesquisa, educação e ecologia

de saberes” Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 1, p. 71-85, jan./abr

Leite, Pedro Pereira (2011). Olhares Biográficos, A Poética da intersubjetividade em museologia, Lisboa/Ilha de Moçambique,

Marca D‟Agua, 61 páginas Santos, Boaventura de Sousa (2000)

“Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da Experiência”,Porto Edições

Afrontamento. Santos, Boaventura de Sousa (2006). Gramática do Tempo. Porto, Edições

Afrontamento Santos, Boaventura de Sousa; Meneses,

Maria Paula. (2009). Epistemologias do Sul. Coimbra, Almedina

Page 61: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 61

A Saúde Materno-Infantil e os Problemas do Desenvolvimento25

A saúde materno-infantil é um tema que tem vindo a preocupar técnicos de saúde, investigadores e agentes de cooperação a nível

mundial, tornando-se numa estratégia internacional, desenvolvida pela Organização Mundial de Saúde, com o objectivo de promover serviços

de qualidade, de forma a reduzir o número de mulheres e recém nascidos afectados por doenças preveníveis e tratáveis durante a

gravidez ou parto. Com os acordos de Alma Ata, promovidos em 1978 pela Organização

Mundial de Saúde, iniciou-se um processo a nível mundial de difusão dos cuidados primários de saúde. Na declaração que resultou deste

encontro, expressou-se a necessidade de acção urgente de todos os

governos, todos os trabalhadores da saúde e do desenvolvimento bem como da comunidade mundial, para proteger e promover a saúde de

todas as pessoas do mundo, sem qualquer discriminação. Na Cimeira do Milénio realizada no ano 2000, os líderes de 191 Países

definiram alvos concretos para a melhoria de vida da população mundial. Na declaração resultante desta cimeira, foi definido como

objectivo concreto a “redução, até 2015, da mortalidade materna em três quartos e da mortalidade de crianças com menos de 5 anos em

dois terços, em relação às taxas actuais” (Nações Unidas, 2000), no que se refere aos cuidados de saúde materno-infantil. Entro os oito

objectivos gerais traçados nesta declaração, este objectivo, o quarto, tem sido um dos mais difíceis de alcançar. No relatório de 2013 a

mortalidade materna e das crianças continua bastante elevada em muitos países da África subsariana, onde uma em cada nove crianças

morre antes dos cinco anos (Nations, 2013).

Para se atingirem estes objectivos foram apontadas como acções prioritárias a vacinação dos bebés, a sua nutrição adequada, o incentivo

do aleitamento materno, e a aplicação de comportamentos nutricionais adequados. Um conjunto de projectos que implicam um importante

apoio às comunidades, quer na implementação dos serviços de saúde, quer de assistência à comunidade no campo da Educação para a saúde.

Perante estes resultados tem vindo a ser salientada a necessidade de se efectuarem mais estudos que aportem outros olhares e novos

conhecimentos que permitam inverter estes resultados. (Nations, 2013) Entre os novos modos de olhar para estes problemas, tem-se vindo a

defender a necessidade de se colocar perguntas pertinentes para os problemas concretos das comunidades. Por exemplo, saber qual é a

percepção das mulheres em relação à sua própria vulnerabilidade na comunidade, como é que as mulheres imaginam, compreendem e

atuam face á saúde no dia-a-dia. Quais os seus modos de relação com

os serviços de saúde implementados.

25 Por Ana Fantasia – CEA – ISCTE: Trabalho apresentado no Curso de Doutoramento

em Estudos Africanos

Page 62: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 62

Torna-se portanto necessário compreender a relação entre a percepção

de vulnerabilidade reprodutiva das mulheres e as estratégias de saúde implementadas. É importante perceber de que modo a mulher decide e

aceita participar nas propostas de melhoria da saúde que lhe são feitas,

bem como é necessário entender de que forma os contributos e a participação da comunidade podem ajudar a implementar os diversos

objectivos estabelecidos. Na Guiné-Bissau os dados oficiais sobre a mortalidade materno-infantil

são muito escassos, contudo, segundo o relatório de desenvolvimento humano de 2013, em cada 10.000 nados vivos morrem 150 crianças

com menos de 5 anos. No que se refere à taxa de mortalidade materna, esta era de 790 óbitos (dados de 2008), sendo um dos países que

apresenta uma maior taxa de mortalidade materna e infantil. Nesta situação importa entender o modo como os servições e as

medidas de saúde materno-infantil estão a ser implementadas e qual o grau de proximidade e adesão das mulheres a estas medidas. A

relevância desta investigação encontra-se nesta proposta de procurar entender, por um lado a extensão dos serviços de saúde a uma

comunidade, e por outro lado o modo como as mulheres actuam face à

proposta de saúde. Neste documento faremos, num primeiro momento uma leitura crítica

sobre a ideia do desenvolvimento, de seguida apresentamos as contribuições mais relevantes da análise no campo da saúde

reprodutiva. No final procuraremos concluir sobre a relevância desta questão para as comunidades Felupes.

A ideia de Desenvolvimento

A ideia do desenvolvimento como

objectivo ou como processo, tem vindo, desde o discurso de investidura

em Janeiro de 1949 do segundo mandato do presidente Harry S.

Truman, a impregnar o vocabulário das ciências sociais.

O presidente Truman, para além do

Plano Marshall, com o qual em 1947 havia iniciado o ERP (European

Recovery Program), programa de assistência financeira à reconstrução

europeia, concebido como ajuda às

nações democráticas europeias a conter o avanço do projecto comunista,

propunha, no seu segundo mandado, assegurar o funcionamento das

instância de regulação mundial, com

base nas Nações Unidas e suas agências, assegurar o apoio às nações

fundadas nos princípios da democracia liberal (com base na livre iniciativa e

no livre-câmbio), e propôs um novo

programa que permitisse o crescimento das regiões subdesenvolvidas através

da aplicação dos resultados do progresso científico e industrial das

nações democráticas. A proposta do desenvolvimento como

caminho de resolução do subdesenvolvimento, é portanto uma

proposta que vai impregnar uma história de mais de meio século de

debates de políticas, programas, debates teóricos e propostas. É um

tema que é recorrente nas ciências sociais: tendo na economia, na

sociologia, na antropologia, nas

relações internacionais e na história

Page 63: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 63

campos férteis de investigação e

debate. Ele impregna igualmente o discursos e as narrativas das demais

ciências, como a psicologia do

desenvolvimento, o desenvolvimento urbano, o desenvolvimento cultural,

através de uma análise diversificada de problemáticas, todas elas procurando

reflectir os programas de acção, sobre o humano, sobre o social e sobre a

cultura. Nesta abordagem da dualidade

Desenvolvimento/Subdesenvolvimento, como processo, para além do

determinismo processual (onde se evidencia uma relação de causa-efeito)

podem-se igualmente notar, como elementos integrantes desse

paradigma, a importância da

centralidade do Estado, como forma organizacional da condução e

concretização das diversas agendas. Uma centralidade através da qual

passava toda a negociação dos programas de ajuda ao

desenvolvimento, negociação que se efectua sobretudo através de

programas que canalizam as “ajudas ao desenvolvimento”. Ainda que

marginalmente outros parceiros como as ONG possam a emergir como

atores, com diferentes capacidades de negociação, a convicção sobre o

princípio de alocar recursos a

determinado fins permanecia o elemento paradigmático.

É certo que a crítica à ideia de Desenvolvimento, como processo de

“ultrapassagem” da condição de subdesenvolvimento sempre esteve

presente. Por exemplo, com a emergência das políticas neo-liberais,

os estados europeus tenderam a distanciar-se duma intervenção directa

e a incentivar a intervenção das empresas e a estimular a emergência

de trocas nos “mercados”; enquanto, por outro lado, alguns críticos tem

vindo a chamar a atenção, não só para

o desgaste semântico do conceito, como fundamentalmente para a

constatação que apesar de todo o

esforço aplicado, para além das retóricas discursivas e em políticas

públicas, as questões da pobreza, de desigualdade, da desregulação

ambiental se vinham mantendo e ampliando.

Não é todavia de subestimar que nos anos iniciais, sobretudo entre os anos

sessenta e setenta, em África, e para além dos diversos conflitos que

periodicamente assolaram diversas regiões, após as independências

importantes avanços na promoção do bem-estar das populações, na

promoção da saúde, na educação, na

infra-estruturação dos diversos territórios foram alcançados. Os novos

estados nacionais através de políticas públicas e os diversos programas de

“ajuda ao desenvolvimento”, seja por via das organizações internacionais

(UNESCO, UNICEF, OMS, FAO); seja por via de políticas de cooperação

entre estados ou através de ONG‟s, alcançaram num primeiro momento

importantes resultados mas que rapidamente estagnaram.

Esta “modernização social e seu crescimento económico” estagnou na

década de oitenta: “a década perdida”

nas palavras de Frederico Mayor, o que levará a busca de novas práticas e

novos objectivos pelas organizações internacionais, que ficará conhecido

como os “Objectivos de Desenvolvimento do Milénio” (ODM),

um conjunto de indicadores que procuram concentrar a acção num

processo de construção de mudança social, com o objectivo a melhorar os

índices de Desenvolvimento Humano. Vejamos como essa mobilização da

vontade de mudança, de transformação das sociedades, medida

Page 64: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 64

por vias de indicadores do progresso,

se foi ajustando ao longo destes anos. Em 1996, Gilbert Rist propôs-se

construir uma “História do

Desenvolvimento” (Rist, 2002). Segundo o autor, depois de apresentar

a sua raiz protestante, criada por Adam Smith na “Riqueza das Nações”, o

autor analisa como ele se transforma num mito “eurocêntrico”. Um mito que

radica no “espírito de cruzada” dos primeiros actos de ocupação europeia

do sul, que dará origem ás diversas colónias, colónias que são alimentadas

por um intenso tráfico negreiros, que faz produzir uma debandada de

milhões de seres humanos das áfricas para as Américas. Depois, com a sua

transformação “em Missão

Civilizadora”, através da partilha e ocupação da vastidão dos territórios

africanos, até aí inacessíveis ao homem branco. Uma ocupação que em grande

parte é devida à necessidade de procura de matérias-primas para

alimentar o mercado europeu. Um programa que é bem visível no

projecto da Sociedade das Nações (Rist, 2002).

Rogério Roque Amaro, em 2003 propôs igualmente uma leitura crítica deste

conceito através da sua releitura (Amaro, 2003). Roque Amaro percorre

a formulação conceptual, desde a sua

formulação inicial com Adam Smith na “Riqueza das Nações”, passando pela

sua aplicação à industrialização das sociedades do centro, aos conflitos

entre os defensores do desenvolvimento, versus crescimento

económico. Aborda o problema dos conflitos Este-oeste versus Norte-sul

que marcou os “gloriosos trinta anos” do pós-guerra, até chegar à crítica

formulada a partir dos anos 70. Nos três últimos pontos do seu trabalho vai

apresentar, o que na sua opinião, são

os argumentos da potencialidade do

conceito. A questão do modelo de

desenvolvimento como uma sucessão

de técnicas aplicadas no terreno da economia é criticada sem grande

sucesso por economistas no pós-guerra. A emergência das

independências das colónias africanas a partir da década de sessenta criara o

terreno fértil para a aplicação dos planos de desenvolvimento. As

avaliações feitas dos planos rapidamente revelam que, se por um

lado, as campanhas de saúde pública e vacinação, tinham aumentado a

esperança média de vida e diminuído a mortalidade, especialmente a

mortalidade infantil, a aplicação dos

planos de educação tinham aumentado a taxa de escolaridade de muitos

destes países, os esperados progressos da produtividade e económica e do

aumento generalizado do Bem-estar social não se tinha verificado. Alias, em

muitos casos, tinha havido mesmo um retrocesso aos níveis dos indicadores

de desenvolvimento. Se o “arranque” das economias do

“terceiro mundo” não se tinha verificado, também é verdade que

muitos outros problemas foram começando a ganhar visibilidade,

nomeadamente o desregulado

consumo de matérias-primas, e os impactos do crescimento económico ao

nível do ambiente. Ao mesmo tempo, é necessário não esquecer, toda a

intervenção é legitimada com presença da ciência e de inúmeros consultores

hiper-especializados (Amaro, 2003). É também a época, em que quebrada a

cortina de ferro na Europa central e de leste, a utopia colectivista do

socialismo se revela como incapaz de construir uma sociedade de indivíduos

sem a presença do mercado; e ao mesmo tempo as sociedades do

Page 65: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 65

progresso e do bem-estar vêem a

economia de mercado transformar o indivíduo no centro do consumo, numa

“sociedade de indivíduos” (Elias, 1993).

E a partir da crítica destes modelos vão emergir as ideias da participação da

comunidade, a mobilização das capacidades a partir da própria

comunidade e a necessidade de abordar os vários problemas de forma

integrada (Amaro, 2003). Esse novo modelo vai ser defendido como modelo

de intervenção das Nações Unidas, onde, para além de outras questões,

integra ainda a questão da Paz, como elemento estruturante das relações

humanas. Como consequência dessa consciência

crítica emergem novas formulações

sobre o conceito de desenvolvimento. Rogério Roque Amaro salienta o

surgimento de seis, por ordem cronológica: sustentável, local,

participativo, humano, social e integrado. O autor organiza-os em três

“fileira conceptuais, em função do paradigma dominante” (Amaro, 2003).

O ambiental, centrado nas condições do sistema vital de subsistência e

sobrevivência. O das pessoas e das comunidades, centrado na dimensão

social e cultural do humano. E a dos Direitos Humanos, centrada nas

questões da filosofia e da ética.

Não vamos aqui detalhar a análise do autor sobre estes paradigmas, mas

interessa salientar, entre eles, a dominância do paradigma

“desenvolvimento humano”, que através do contributo do PNUD tem

vindo a reformular os paradigmas de intervenção do âmbito do

Desenvolvimento Social, com base na criação dum conjunto de indicadores

que dão um retracto sobre o “processo de criação de condições sociais

mínimas, de produção de bem-estar humano nos vários países do mundo”,

e que devem balizar a intervenção dos

estados membros e organizações internacionais. Este é um conceito que

emerge nas organizações

internacionais, por via das contribuições das ONG de

Desenvolvimento que se centravam no desenvolvimento e empoderamento

das comunidades. A análise do Rogério Roque Amaro é,

como aliás ele refere, um modelo de reflexão. Não podemos generaliza-lo

directamente a casos concretos, tanto mais, que a noção de

“Desenvolvimento Integral”, defendido pela UNESCO com um valor de fim e

como processo, se cruza com todos os paradigmas, acrescentando outros

valores, tais como o são os da

multidimensionalidade dos processos, da interdisciplinaridade, da

complexidade e da participação. Este último conceito, de

desenvolvimento Integral, “pode ser concebido como um processo que

conjuga as diferentes dimensões da vida, dos seus percursos de mudança

de melhoria, implicando por exemplo a articulação entre o económico, o social,

o cultural, o político, o ambiental; a quantidade e a qualidade, as várias

gerações, a tradição e a modernidade, o endógeno e o exógeno, o local e o

global, os vários parceiros e

instituições envolvidas, a investigação e a acção, o estar, o fazer, o criar, o

saber e o ter (as dimensões existenciais do desenvolvimento); o

feminino e o masculino, as emoções e a razão, etc (Amaro, 2003), acaba por

se transformar numa dimensão disjuntiva dos processos de acção

sobre o social. E é nesse quadro que os objectivos de

“desenvolvimento do milénio” são concebidos. Os oito compromissos que

emergem desses objectivos passaram a balizar a acção e o projecto do

Page 66: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 66

futuro. Esse é todavia, como refere

Roque Amaro um dos desafios que o conceito transporta, a que se junta

muitos outros, nomeadamente o

desafio do novo paradigma científico baseado na complexidade e na ruptura

da pós-modernidade. É com base nessa reflexão que se interroga sobre a

utilidade desse conceito como conceito operativo. O autor defende a ideia de

desenvolvimento, enquanto conceito, como uma ideia operativa: Como algo

sobre o qual se exerce a reflexão com o objectivo de criar melhores condições

de vida. Algo, através da qual se podem realizar os grandes desígnios da

humanidade. (Amaro, 2003) Ora aqui chegados importa então

reflectir como é que a questão do

desenvolvimento se tem vindo a situar no âmbito das epistemologias das

ciências sociais. A arquitectura do campo semântico dos Estudos do

Desenvolvimento é um campo complexo. A perspectiva do Pós-

Desenvolvimento, tal como é apresentada por Adam Ziai (Ziai, 2007)

tem sido apontada como um caminho teórico para ultrapassar os impasses na

crenças das transformações sociais e económicas com base no plano da

acção. A análise dos Pós-desenvolvimentistas, para além de

abordar a questão da génese

eurocêntrica do projecto, introduz na análise das narrativas da acção, a

análise das relações de poder e o papel dos atores, nomeadamente a questão

do direito da participação das comunidades na concepção, gestão e

avaliação dos programas e medidas que lhe digam directamente e

indirectamente respeito. A crítica do pós-desenvolvimento

procura ir para além da crítica ao eurocentrismo das políticas de

desenvolvimento como processo de ultrapassagem da dependência criadas

pelos sistemas coloniais e pós-

coloniais. Procura ultrapassar a crítica ao mecanicismo dos processos de

desenvolvimento, concebidos como um

conjunto de passos pre-derminados que contem moldam a realidade social,

e procura a reproblematização dos fenómenos económicos a partir da sua

complexidade e da diversidade de relações entre os actores em

interacção. Em “Exploring Post-development

Theory and Practice. Problems and Perspectives” Arama Zial, apresenta

uma interessante síntese das problemáticas do pós-desenvolvimento.

(Ziai, 2007; Ziai, 2007) Assumindo a natureza polémica das fundamentações

teóricas dos Estudos do

Desenvolvimento como um campo de problemáticas controversas e

fracturantes, procura fundamentar uma crítica aos seus limites teóricos no

âmbito do paradigma científico hegemónico. Procura portanto

ultrapassar a ideia da sacralização Desenvolvimento, concebido quer como

um fim (o objectivo a alcançar, mensurável através de determinados

indicies, como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano, ou os

Índices de Desenvolvimento Económico), quer como um processo

(concebido como um caminho de

determinadas práticas e procedimentos) para atingir um

objectivo. A ideia de uma pós-desenvolvimento, na esteira do que

vinha sucedendo nas demais ciências sociais com a ideia do pós-

modernismo. (Ziai, s.d.) A nova proposta do pós-

desenvolvimento, de acordo com a proposta de Arturo Escobar parte da

abordagem ao problema da criação da riqueza, através duma análise

multidisciplinar. Para Escobar a criação da riqueza deve partir das condições de

Page 67: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 67

cada comunidade numa perspectiva de

criar uma emancipação. A questão do que é a pobreza, torna-se aqui numa

questão chaves, para a definição dos

conceitos de emancipação. A pobreza, no pós-desenvolvimento, é mais do

que ausência de bens-materiais. A Pobreza tem essencialmente a ver com

a capacidade de cada comunidade, assegurar ou não, a sua

sustentabilidade no espaço e no tempo. (Escobar, s.d.)

Finalmente, esta proposta dos estudos do Pós-Desenvolvimento só é viável a

partir dum conjunto vasto de estudos de base. O livro citado, na parte final

procura apresentar um conjunto de casos, onde partindo da análise das

realidades das comunidades,

resultaram processos que conduziram à construção dos programas de

desenvolvimento. É nesta dimensão que emerge a importância dos atores

locais, como protagonistas dos processos, a importância da

incorporação dos processos de negociação informal e das práticas

reflexivas nos processos de construção dos projectos. A análise da proposta de

Zial implica que de alguma forma é necessário fazer diminuir as exigência

formais das agências de financiamento, abandonar a rigidez formal dos

processos burocráticos e partir para a

construção de projectos com base na observação das condições das

comunidade, na negociação da acção com esses atores, procurando, através

do seu protagonismos, alcançar processos de emancipação social.

Ora a incorporação das teorias do Pós-Desenvolvimento implica igualmente

olhar para a forma de organização dos processos da actividade. No fundo, há

uma linha que atravessa o olhar sobre estas problemáticas que continua a

dividir os campos de problematização. Dum lado temos as teorias do

mercado, que defendes a necessidade

de reduzir a actividade económica à troca de mercadorias, que implica a

continuidade dos processos de

globalização. No outro lado desta linha, temos as teorias críticas, que olhando

para os diversos bloqueios que a mercantilização do mundo produz, que

conduz a impasses ambientais, energéticos, alimentares, obriga a

pensar formas de transição. Uma transição que é emergente e deverá

partir duma análise da emergência. A proposta da “Economia Solidária”

(Hespanha & Santos, 2011) é uma proposta que entronca nesta

perspectiva. A Economia Solidária baseia a sua proposta na investigação

sobre as formas económicas de

carácter associativo, cooperativo e autogestionário. A compreensão das

práticas económicas marginalizadas, são na economia solidária a chave da

construção dos novos projectos. Isso permite a incorporação das alternativas

de desenvolvimento, o estudo e a reflexão sobre as diversidades de

cenários e o pensar, a vontade de ultrapassar a escassez de recursos e

pensar na realização do ser humano. Cada caso é um caso singular, que se

integra numa ecologia de saberes. É essa singularidade que enriquece a

pluralidade de análise dos casos e

fundamenta a análise teórica e pratica. Como tal, nesta abordagem é

necessário repensar o papel do Estado e das políticas públicas. O Estado,

como organização matricial, é repensado como instrumento de

regulação das fórmulas descentralizadas de produção. Ao invés

de se concentrar na construção teleológica do mercado, os dos

objectivos nacionais primordiais, o Estado fornece um conjunto de

serviços que assegura a distribuição e o acesso aos recursos.

Page 68: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 68

Em suma sintetizando as actuais

problemáticas dos Estudos do Desenvolvimento, à questão do

mercado e da globalização neo-liberal

que temos vindo a assistir como processo hegemónico, propõe-se a

integração dos processos locais, das diferenças e da heterogeneidade que

as características endógenas e de contexto das comunidades permitem.

A ideia do crescimento económico com base num processo pre-determinado e

a ideia do desenvolvimento como um “fim desejado” acabou por produzir um

espaço global, sem configuração específica fora do quadro de

referências hegemónico, que apenas sobrevive na manutenção de centros

hegemónicos em dominação das

periferias. Nesse processo, a globalização mobiliza os diferentes

agentes (Estado, empresas, Organizações Internacionais), que

formata e instrumentaliza em função dos seus fins, ao qual é necessário

contrapor outros processos de organização, legitimação e

estruturação social. Processos que devem resultar das condições

concretas de cada comunidade, da produção de conhecimento

emancipatório, de formas de organização solidárias com base na

participação das comunidades, onde

são integradas as questões da igualdade de género, da resolução de

conflitos pela negociação de compromissos, assegurando a livre

expressão e o debate de ideias como processo de construção da acção

social. A questão do desenvolvimento não

pode ser uma questão teleológica, mas tem que resultar duma vontade de

desenvolvimento. Como todas a acções e processos sociais a vontade de

desenvolvimento é uma narrativa. O processo de construção das narrativas

alimenta-se dos desejos e das

capacidades de negociação de cada um dos actores. Na formulação dos desejos

estão implícitos os modelos. Nesse

sentido, não pode haver vontade de desenvolvimento sem vontade de

emancipação e sem vontade de construir a acção. Essa questão levanta

o problema dos limites da vontade do desenvolvimento. Saber até que ponto

uma comunidade se empenha na sua própria transformação, seja por

contágio de outros contextos, seja por vontade própria. Esse aspecto reforça o

carácter multidisciplinar dos processos e dos agentes de desenvolvimento e

reforça a necessidade de concretizar processos de investigação implicados

numa acção emancipatória que permita

a construção de compromissos com as comunidades.

Esta aparente complexidade epistemológica conduz a investigação

para a sua implicação na acção. É nesse sentido, o valor da acção da

investigação nos Estudos para o Desenvolvimento, que importa

igualmente equacionar. Quando abordamos a teoria da acção e a

estratégia da participação dos atores, referimo-nos à sua “vontade de

desenvolvimento”. Como verificamos, mais acima, esta vontade, é muitas

vezes enunciada a propósito do

desenvolvimento como vontade de futuro. Nos Estudos sobre o pós-

desenvolvimento, em particular no campo epistemológico das

Epistemologias do Sul, defende-se que há uma necessidade de recentrar a

acção no presente. Formular perguntas pertinentes para obter respostas fortes.

(Santos, 2006) O saber e as prática das comunidades, muitas delas alvo de

processo de hegemonização e dominação, foi alvo de um processo

que conduziu ao esquecimento e à dissimulação. Muitas dessas formas

Page 69: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 69

transformaram-se e misturaram-se

produzindo outras formas de acção, que a sociologia das emergências

procura resgatar. Ora segundo o autor

é necessário descentrar as formas de pensar das ciências sociais.

A domesticação do pensamento levou a que a produção do conhecimento tenha

passado a ser feito fora da sociedade, criando-se instituições (escolas e

universidades) que são instâncias legitimadoras das narrativas. Esta

separação entre o saber e o fazer em instituições que apenas se dedicam à

produção de conhecimento impede a emergência do conhecimento sobre as

acções rebeldes porque produz conhecimento padrão. Ou seja,

segundo o autor verifica-se uma certa

impossibilidade de gerar uma ideia revolucionária numa instituição

conservadora. A implicação com a acção permite transportar a produção

de conhecimento para a comunidades, implicando-a nesse processo,

partilhando com essa comunidade o processo de emancipação. (Santos,

2006).

A saúde reprodutiva em Africa

Os debates actuais no âmbito da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas

públicos de Saúde nos países menos avançados evidenciam a relevância dos

processos de sustentabilidade dos

sistemas de saúde públicos: A extensão e a qualidade dos cuidados de

saúde fornecidos ou a fornecer dependem da capacidade de financiar e

manter esses serviços. Este é um processo complexo onde se confrontam

diferentes visões e formas de construção de políticas públicas.

Quando em 1978 é aprovada e

assinada por 134 países a “Declaração

de Alma-Ata”, um conjunto alargado de

actores sociais exortam os vários governos do mundo, as organizações

internacionais, nomeadamente a

Organização Mundial de Saúde e a UNICEF, bem como as instituições

financeiras (o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional) a aplicar os

princípios da Conferência Internacional de Cuidados Primários de Saúde.

Nessa conferencia promovida pela Organização Mundial da Saúde, na

antiga União Soviética defendia-se, entre outros aspectos, que a

universalidade do acesso e das redes de cuidados primários de saúde

constituíam a chave para, até ao ano 2000, alcançar “um nível aceitável de

saúde para todos os povos do mundo

(…) mediante o melhor e mais completo uso dos recursos mundiais,

dos quais uma parte considerável é actualmente gasta em armamento e

conflitos militares”. (World Health Organization;, 1978)

Para além da retórica política, característica da época da Chamada

Guerra Fria, nesta declaração sobressai nitidamente uma defesa da importância

da Saúde e dos serviços de Pública no atingir dos fins do desenvolvimento.

Realça que “a saúde - estado de completo bem- estar físico, mental e

social, e não simplesmente a ausência

de doença ou enfermidade - é um direito humano fundamental” (World

Health Organization;, 1978) na qual concorrem os diferentes sectores da

sociedade. Através destes serviços Universais de

Saúde pretendia-se corrigir “a chocante desigualdade existente no estado de

saúde dos povos, particularmente entre os países desenvolvidos e em

desenvolvimento, assim como dentro dos países” (United Nations, 1978).

Para além da importância dos serviços e acesso a serviços de Saúde na

Page 70: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 70

construção do “desenvolvimento” a

declaração defendia ainda no seu itam IV o “direito e dever dos povos

participar individual e colectivamente

no planeamento e na execução de seus cuidados de saúde. (ibidem, IV). Ainda

no ponto seguinte definia a principal responsabilidade pela implementação

aos governos, essa mobilização da participação das comunidades na

resolução não deixa de ser da maior relevância, pois nem sempre este

princípio estará presente em todas as propostas.

Realça-se ainda que nesta declaração os cuidados de saúde primários foram

definidos como sendo “cuidados essenciais de saúde baseados em

métodos e tecnologias práticas,

cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao

alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua

plena participação e a um custo que a comunidade e o país possam manter

em cada fase de seu desenvolvimento(…). Fazem parte

integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função

central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e económico

global da comunidade. Representam o primeiro nível de contacto dos

indivíduos, da família e da comunidade

com o sistema nacional de saúde, qual os cuidados de saúde são levados o

mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e

trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo

de assistência à saúde”. (World Health Organization;, 1978)

Contudo, após a forte crise do petróleo de 1979, na década de oitenta o

mundo assistirá ao imergir, na política económica, dos princípios do

neoliberalismo. Para estimular a economia e promover o funcionamento

dos mercados, os Estados deveriam

centrar-se na regulação e abster-se de intervir directamente na prestação de

serviços à sociedade. Através dos

programas de apoio ao desenvolvimento e ajuda humanitária,

ou de ajustamentos estruturais, as grandes instituições mundiais

(sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial)

defendem a restruturação e renegociação das dívidas externas.

Como contrapartidas das ajudas e apoio aos projectos direccionados ao

crescimento económico e social exige-se, que todas as trocas de bens e

serviços se desenrolem no mercado. O impacto desta orientação tem vindo a

repercutir-se nos ajustamentos dos

serviços públicos de saúde. Um ajustamento que tem vindo a ser

executado sobretudo com a exclusão dos mais pobres e dos menos aptos a

participar nos processos de mercantilização da vida social. (Pfeiffer

& Chapman, 2010) Vários estudos realizados, sobretudo

sobre o impacto do domínio da medicina baseada no mercado, ou seja

da mercantilização da saúde, especialmente nos EUA, vêm

demonstrando que as políticas neoliberais aplicadas, têm posto em

causa a qualidade dos serviços

prestados. Na equação que resulta da aplicação na saúde do princípio da

rendibilidade do produto pode existir uma contradição com a correcção dos

procedimentos médicos e dos serviços de saúde. O facto de se permitir que as

forças do mercado ditem os mecanismos de cuidados de saúde,

favorece o aumento de uma gestão ineficiente e a desigualdade de

condições de acesso: o serviço mais rentável não é, necessariamente, o

mais adequado às necessidades do paciente, aqui transformado em

Page 71: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 71

cliente. Paralelamente, a

mercantilização do acesso ao serviço, gera uma desigualdade de

oportunidade em função da

disponibilidade de renda para pagamento desses mesmos serviços.

Nesta alteração de lógicas, também se verifica que tendencialmente se

desvaloriza a relação paciente – médico. Ainda que no procedimento

unitário se possa verificar uma economia de recursos, a tendência, a

prazo, no conjunto social mostra ser um aumento de custo social e perda de

eficiência do serviço e crescimento das desigualdades no acesso aos serviços

de saúde (Rylko-Bauer & Farmer, 2002).

Este é um processo que acentua a

importância da participação dos indivíduos e das comunidades nos

processos de decisão de formação de políticas públicas. No âmbito das

narrativas dos profissionais de Saúde e dos serviços de Ajuda Humanitário a

reflexão sobre os impactos dos mecanismos de ajustamento estrutural

nas comunidades tem permanecido ausente. Os seus efeitos, no

afastamento dos grupos mais vulneráveis começa actualmente a

emergir como um campo de investigação, onde se procura

relacionar os processos de

marginalização económica com as percepções sobre os riscos na saúde

pública e as diferentes estratégias de gestão da saúde dos indivíduos e das

comunidades. (Chapman, 2006) Os ajustamentos nos sistemas públicos

têm sido conseguidos aumentando a desigualdade no acesso aos serviços

públicos de saúde. Esta problemática relaciona directamente a produção dos

serviços de saúde pública com a problemática dos Direitos Humanos e

com os Objectivos do Milénio (ODM), estabelecidos em 2000, no qual as

mulheres e o seu empoderamento,

através da protecção à gravidez à saúde materno-infantil constituem

objectivos prioritários.

Segundo dados das Nações Unidas, publicados anualmente nos seus

relatórios de Desenvolvimento Humano ou nos relatórios da OMS (Organização

Mundial de Saúde), as metas previstas para o desenvolvimento do milénio,

estão longe de ser atingidas. Em muitos países do mundo, sobretudo

situados na África subsaariana, a vulnerabilidade e as desigualdades de

acesso aos sistemas de saúde são extremamente marcantes. Revelando-

se ainda elevados índices de mortalidade materno-infantil, por

causas que são, actualmente possíveis

de prevenir. A saúde materno infantil (SMI) é uma

estratégia internacional desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde, a

qual tem por objectivo promover serviços de saúde de qualidade

acessíveis a todos. Com esta estratégia, pretende-se reduzir o

número de mulheres a sofrer de doenças preveníveis ou tratáveis que

possam provocar danos irreparáveis ou mesmo a morte durante a gravidez ou

o parto. (Chapman, 2010) Nos estudos realizados por Jónína

Einarsdóttir numa comunidade da

Guiné Bissau entre os anos de 1993 e 1998, foi possível observar que a

mortalidade infantil era, há data, bastante comum, sendo que cerca de

um terço das crianças nascidas não chegaram à idade de cinco anos.

Verificava-se que a grande maioria destas mortes era provocada por

causas perfeitamente preveníveis. (Einarsdóttir, 2004)

Neste estudo, a autora defende que as construções culturais, valores e

considerações éticas relacionadas com religiões ou outras ideologias, assim

Page 72: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 72

como as relações de género e os

processos de subsistência são, todos eles, factores fundamentais na

formação das práticas reprodutivas das

mulheres. (Einarsdóttir, 2004) Nos trabalhos apresentados (por

exemplo em Chapman, 2006) verifica-se uma estreita correlação entre a

construção da percepção dos riscos na gravidez nas mulheres, criando uma

situação de vulnerabilidade para a qual os serviços de saúde, com as suas

práticas de ajustamento, não possuem mecanismos de resposta. E face a essa

percepção, as mulheres grávidas, encaram a sua diferença social e

encontram mecanismos alternativos nos sistemas de medicina tradicional,

recorrendo à feitiçaria e curandeiros,

afastando-se, para a maioria das questões relacionadas com problemas

da gravidez, dos sistemas de saúde promovidos pelo Estado.

Em várias investigações desenvolvidas até agora, parece evidenciar-se uma

correlação entre a diferenciação dos processos cognitivos do risco das

grávidas e as práticas biomédicas utilizadas. A noção antecipatória de

risco influência de forma significativa o risco efectivo na saúde materno-

infantil. Dessas evidências empíricas aponta-se a necessidade de levar em

linha de conta, nas práticas de

intervenção médicas, a sua relação com as práticas sociais dominantes. As

conclusões apontam no sentido de que, para garantir o desenvolvimento da

saúde materna nos serviços públicos, é necessário levar em linha de conta os

processos sociais em que as comunidades estejam envolvidas.

(Chapman, 2010) A questão da participação das

comunidades, e sobretudo das mulheres grávidas nos processos de

planeamento e produção de serviços de saúde tem vindo a ser apontado em

vários trabalhos como um dos

caminhos a trilhar. Dar voz às mulheres, construindo as suas

narrativas de vida como parte

integrante dos processos, é hoje um campo de investigação que necessita

de ser analisado e reflectido.

Conclusão

Procurando agora sintetizar e sistematizar as principais questões que

resultam deste trabalho. Iniciamos esse questionamento com a

evidenciação de que a saúde materno-infantil se constitui como uma das

principais preocupações da comunidade técnica e científica no campo das

organizações internacionais. No que se refere aos oito objectivos do milénio a

atingir em 2015, é o objectivo que se

mostra mais difícil de alcançar na áfrica Subsariana. Evidenciamos que esta

questão se encontra por estudar na Guiné-Bissau, um dos Estados mais

pobres de áfrica, onde existem grandes problemas na implementação das

políticas públicas. Perante a fragilidade das políticas publicas e da dificuldade

de implementação das acções propostas pelas organizações

internacionais, evidencia-se a importância das acções desenvolvidas

por via da participação das comunidades.

De seguida passámos em revista a

“teoria do desenvolvimento” onde procurámos evidenciar que a ideia de

desenvolvimento procura, na actualidade, novos caminhos. Há hoje

um entendimento que o fenómeno do

desenvolvimento buscou implementar modelos e concepções construídas fora

dos contextos e dos processos das diferentes comunidades. Verificámos

que uma das vias propostas para repensar os problemas do

Page 73: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 73

desenvolvimento passava pela procura

de respostas aos problemas concretos das comunidades, construindo esses

processos a partir da incorporação das

experiencias e dos saberes das comunidades. Dar voz ás comunidades

e construir os processos a partir da sua participação tem sido considerado

como uma das alternativas a prosseguir no campo das

epistemologias. Trata-se portanto de repensar os conceitos de eficácia e

eficiência da ajuda ao desenvolvimento, agora proposto como

processos de diálogo sobre as experiências dos actores sociais na

comunidade, procurando incorporar os seus saberes e as suas práticas na

construção de acções socialmente

significativas. A partir deste diálogo, centramos a

nossa problemática na questão da saúde reprodutiva nos países da África

Subsaariana onde se evidencia a sua relevância no debate sobre a eficácia e

eficiência da ajuda ao desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde.

Procuramos relevar que sustentabilidade dos sistemas de saúde

públicos: A sua extensão e a sua qualidade nos cuidados de saúde

fornecidos ou a fornecer dependem não só da capacidade de financiar e manter

esses serviços, mas sobretudo da

inclusão da participação das comunidades, dos seus saberes e das

suas práticas, procurando através deles criar diálogos sobre conhecimentos

rivais. Salientamos que este é um processo

complexo onde se confrontam diferentes visões e formas de

construção de políticas públicas. Os debates actuais no âmbito da ajuda ao

desenvolvimento dos sistemas públicos de Saúde nos países menos avançados

evidenciam a relevância dos processos de sustentabilidade dos sistemas de

saúde públicos: A extensão e a

qualidade dos cuidados de saúde fornecidos ou a fornecer dependem da

capacidade de financiar e manter esses

serviços. Este é um processo complexo onde se confrontam diferentes visões e

formas de construção de políticas públicas.

Revelamos ainda que nos mais recentes trabalhos sobre a percepção

do risco na gravidez em mulher se evidencia a estreita correlação entre a

percepção da vulnerabilidade da grávida sobre a sua condição face às

práticas dos serviços de saúde. A implementação de práticas estranhas

às comunidades e a relativa falta de diálogo na implementação das práticas

médicas levam a uma procura de

alternativas nos sistemas tradicionais e alternativos. A incapacidade do

ajustamento aos saberes rivais dos serviços de saúde impede diálogos

construtivos. Por outro lado, a fragilidade dos sistemas públicos em

estados frágeis, leva a que perante a insuficiência ou a descontinuidade do

serviço de saúde público, sejam incentivados os modos alternativos nas

comunidades. Realçamos que as várias investigações

desenvolvidas apontam que, para garantir o desenvolvimento da saúde

materna nos serviços públicos, é

necessário incorporar as comunidades nos diferentes processos. Nestes

processos é necessário dar voz às mulheres grávidas, incorporar a sua

participação nos processos de planeamento e produção de serviços de

saúde é um desses modos. Propomo-nos no desenvolvimento

deste trabalho procurar analisar as formas como a construção de

narrativas biográficas se podem constituir como um campo de

investigação inovador neste domínio. Propomos executa-lo na Guiné-Bissau,

Page 74: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 74

na região dos Felupes, uma das regiões

com menor incidência dos serviços públicos de saúde e com menor

conhecimento dos processos sociais.

Bibliografia Amaro, R. R., 2003. Desenvolvimento -

Um conceito ultrapassado ou uma renovação? Da teoria à prática e da

prática à teoria. Cadernos de Estudos Africanos, Janeiro, pp. 34-70.

Bond, P., 2007. Microcredit

Evangelism, Health, and Social Policy. International Jpurnal Of Helth Services.

Chapman, R., 2001. Endangering Safe Motherhood in Mozambique: Prenatal

Care as Pregnancy Risk. Chapman, R., 2006. Chikotsa -

Secrets, Silence, and Hiding. Medical anthropology quarterly.

Chapman, R., 2010. Family Secrets - Risking Reproduction in Central

Mozambique. Nashville: Vanderbilt University Press.

Einarsdóttir, J., 2004. Tired of Weeping - Mother Love, Child Death, and

Poverty in Guinea-Bissau. England: The

University of Wisconsin Press. Elias, N., 1993. A Sociedade dos

Individuos. Lisboa: D. Quixote. Escobar, A., s.d. Post-development as

concept and social practice. In: A. Ziai, ed. Exploring Post-development -

Theory and practice, problems and perspectives. s.l.:s.n., pp. 18-33.

Hespanha, P. & Santos, A., 2011. Economia Solidária: questões Teóricas

e Epistemológicas. Porto: Afrontamento.

Nações Unidas, 2000. Declaração do Milénio, Nova York: s.n.

Nations, U., 2013. The Millennium

Development Goals Report 2013, New York: Unites Nations.

Pfeiffer, J. & Chapman, R., 2010. Antropological Perspectives on

Structural Adjustment and Public

Health. Annu. Rev. Anthropol. 39, pp.

149-165. Pool, R. & Geissler, W., 2005. Medical

Antropology - understanding Public

Health. England: s.n. Rist, G., 2002. El Desarrollo: historia

de una creencia occidental. Madrid: Los Libros de Catarata.

Rylko-Bauer, B. & Farmer, P., 2002. Managed Care or Managed Inequality?

A call for Critiquess of Market-Based Medicine. Medical Antropology

Quarterly, Vol.16, Nº 4, December, pp. 476-502.

Santos, B. d. S., 2006. A Gramática do Tempo: por uma nova cultura política.

Porto: Edições Afrontamento. United Nations Development

Programme, 2013. Human

Development - The Rise of the South: Human Progress in a Diverse World,

s.l.: s.n. United Nations, 1978. Declaration of

Alma-Ata. World Health Organization;, 1978.

Declaração de Alma-Ata, s.l.: s.n. Ziai, A., 2007. Exploring Post-

development - Theory and Practice. Problems and Perspectives. London:

Routledge. Ziai, A., s.d. Development discourse

and critics: an introdution to post-development. In: A. Ziai, ed. Exploring

Post-development - Theory and

practice, problems and perspectives. s.l.:s.n., pp. 3-17.

Page 75: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 75

Poética das viagens museológicas

Page 76: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 76

Diário de Bordo26

Damos início neste número à publicação dos Diários de Investigação. Inicialmente

publicados no nosso blog “Cadernos de Investigação” na plataforma Hypotheses. .

São notas tomadas na espuma dos dias, sobre os quais mais tarde construímos

reflexões de pesquisa. Tratam-se portanto de textos em bruto, com uma edição

mínima.

Em relação ao projeto publicado na plataforma, trata-se duma iniciativa recente,

que corresponde a componente de divulgação do nosso projeto de Investigação

“Heranlas Globais. Ele pode ser consultado em

http://globalherit.hypotheses.org/diario-de-bordo.

Neste número apresentamos dois Cadernos. O de Moçambique (parte 1) e o da

Raia Transfronteiriça (parte 1).

26

Pedro Pereira Leite- CES-UC

Page 77: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 77

Moçambique

r

No Caderno de Investigação Moçambique (parte 1) apresentamos os resultados dos

nossos trabalhos de investigação realizados em Moçambique. Neles contamos com

o apoio da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, com particular destaque

do nosso amigo José Teixira; da ONG Vida, através da Patrícia Maridalho e da Filipa

Zacarias; e como sempro da Isa e do Sérgio, quer criaram as condições logísticas

no terreno. No texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes

são alterados.

Fly TAP 281 From Lis-Mpt

A 31 mil pés de altitude em rota de cruzeiro de

789 Km/h. Estamos mais ou menos em cima do

Atlas sobre o continente africano. Esperam-me

dez horas de viagem. São 11 horas e tenho

chegada prevista para as 21:00. Em Maputo serão

10 da noite.

No aeroporto ficaram os sorrisos de despedida da

Ana, do Gabriel e do Santiago. A apreensão de

mais uma viagem a Moçambique. Talvez mesmo

algum ciúme de ficar. São sempre as mesmas

queixas de ser mal-amada. Deixei para trás a

cidade de Lisboa mergulhada na Crise.

O avião está cheio. Alguns passageiros com

crianças de colo ajeitam-se como podem. Pobres

coitados. São horas de tormento para quem está

fechado num espaço minúsculo. Eu estou nas

cadeiras do meio. Aqueles bancos de quatro

lugares. Mas sobre a coxia o que dá jeito para de

vez em quando me levantar para esticar as

pernas.

É tempo de olhar par o que vou fazer. Os

objetivos da viagem estão estabelecidos. Recolher

informações, fazer contactos, organizar ações de

investigação. Levo na bagagem Paul Ricoeur. A

memória, o silêncio e o esquecimento. Vai-me

acompanhar nesta viagem.

Reencontro com José Forjaz- O homem,

o arquiteto e o professor.

Saio de manhã cedo e sinto de novo o cheiro da

cidade das acácia vermelhas. Dormi apenas

algumas horas. Após a chegada a I e C estavam à

espera no aeroporto e fomos comer qualquer

coisa rápida. Depois pusemos as conversas em

dia. S está a descer da Ilha e Y de regresso a

Maputo para repensar os objetivos. Saio para

comprar um cartão de telemóvel. A Ana trocou-

me o meu velho cartão de Moçambique com o de

São Tomé. Um dos meus trabalhos será sentir a

poética da cidade. Vaguear pelas ruas. Sentir os

seus movimentos. Os seus cheiros.

Page 78: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 78

Logo à saída do Centro Comercial Polana, passo

pelo atelier do Arquiteto JF e marco uma reunião

com a secretária. Levo de Coimbra o pedido de

recolher alguma informação sobre a obra do

arquiteto.

Prossigo pela cidade. No palácio dos casamentos a

música invade o ar. É sexta-feira e é sempre um

dia de muitos casamentos. Foi uma ideia

importada dos antigos países de leste após a

independência. Funciona como um registo. Em

Maputo é uma ocasião para ver ao vivo a cor e o

som.

Continuo pela Julius Nyerere. Entro no Centro

Cultural Português, no piso térreo da embaixada

de Portugal. Apresenta uma exposição de

fotografias sobre o lixo de Maputo. A lixeira de

Maputo é um ponto de atracão para crianças à

procura de alimentos. É um olhar sobre a miséria

que nos é proposto. Par uns é um modo de vida,

para os europeus é uma mostra do atraso. Uma

narrativa que nos remete para a passividade da

contemplação. É uma exaltação do lixo.

Sigo a minha busca do sabor da terra. Procuro o

perfume das acácias rubras. Sigo para o Jardim

dos namorados. Toca o novo telefone. É uma

chamada o atelier do Arquiteto Forjaz a marcar a

reunião para o meio-dia. Regresso a casa

apresado para apanhar o gravador.

Ao meio-dia entro na vivenda ao lado do Polana.

José Frojaz recebe-me de camisa branca. É a

segunda vez que o visito, depois de em 2009 ter

trabalhado nos seus arquivos. Tem um Mac em

cima da mesa. Conversamos sobre a exposição.

Exlico-lhe que pertendia uma entrevista para

construir um guião. Ele mostra-me o livro “José

Forjaz” que foi feito pela Escola Portuguesa. Tem

uma compilação da sua obra. Oferece-me o livro.

Diz.me que tem uma exposição organizada por

um amigo. O arquiteto Keil do Amaral (o Pitum de

Canas de Senhorim). Tenho os contatos. Logo no

primeiro dia tenho matéria para trabalhar.

A exposição, marcada para dezembro em

Coimbra. O livro que me oferece chama-se a

“Poética do Espaço”. Curioso não é. A arquitecto

contina a rabiscar nos esquiços que tem em cima

da mesa. É um mestre da arquitetura.

Será que as palavras mudam o mundo?

O dia amanheceu ventoso. Sento-me a trabalhar

na varanda sobre a baía de Maputo. Tenho a

cidade e os seus sons a meus pés.

Tomo o pequeno-almoço. Um croisant tostado e

um sumo de laranka servido por A a cozinheira de

mão leve da tia I.. Trago na bagagem um texto

para finalizar sobre a poética da

intersubjectividade. Escrevo toda a manhã. O

texto fica vançado.

Por volta da hora de almoço chega I. Temos um

caril de amendoim. Conversamos longamente no

terraço.

Por volta das três horas I regressa ao trabalho e

eu volto ao texto. Há que finalizar as memórias de

São Brás. Anoitece rápido sobre a cidade.

Tia I regressa com a proposta de jantar de Salada

de Marisco no porto. Saímos os três. Eu I e C.

Conversas sobre os destinos cruzados da vida. Os

filhos crescido, os que estão a crescer. Depois do

jantar uma visita à noite de Maputo. Passamos

pelo bar Shima na MaoTse-Tung. Estranho nome

este para uma avenida. Afinal era o nome que

existia em 1975, que depois mudou para Mao-

Tse-Dong. Enfim afinal ninguém liga aos nomes

das ruas na noite de Maputo. A avenida está na

fronteira com o Caniço. Os frequentadores dos

dois lados da avenida misturam-se aqui no bar.

Une-os a cerveja e o gosto pela música.

Ao fim de algumas horas regressamos a casa de

C. Mais umas horas de conversa. Olhamos paras

os cruzamentos da vida sobre vários pontos de

vista. Por vezes parece que estamos em circuito

fechado tal é a redundância. Parece que

queremos mudar o mundo com as palavras. Será

que as palavras mudam o mundo? Há que

procurar os traços da mudança.

Palavras ditas e não ditas

Amanheceu cinzento e chuvoso. Acordo à nove

horas e leio um bocado na cama. Sinto o silêncio

da cidade domingueira. A cabeça pesa um bocado

das Laurentinas e sabe bem este descanso.

Temos marcado o mata-bicho para a Baixa. A

Cristal. Damos uma volta pela cidade. Vamos ao

Shopright fazer compras para C que mudou de

casa. Vive agora numa vivenda ao pé da

residencial Palmeiras. Vamos almoçar um

esplêndido cozido à portuguesa na Matola.

Estamos em território do pai de I O avô C é uma

personagem curiosa que foi para Moçambique nos

anos cinquenta. Por lá ficou com muitas histórias

para contar. Passou pela independência. Lá ficou.

Sempre na Matola.

Page 79: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 79

Chegamos ao restaurante. O ambiente está tenso

e cheio de tugas. Não deixa de ser curioso comer

o cozido, na matola, num sítio cheio de Tugas.

Aliás isto está cheio de tugas. Vamos ver o que aí

vem. As tensões são razões familiares. Caminhos

cruzados que pouco interessam à investigação.

Mas a suas histórias de vida são um aspeto

importante para a compreensão destas

cartografias urbanas que vou construindo.

Voltemos ao cozido. A refeição estava boa. Mas é

curioso como as tensões rapidamente tomaram

conta do ambiente. A conversa azeda nos

detalhes e acusações mútuas. Há palavras que

ditas magoam. Há palavras que não são ditas e

que também magoam. Cada um faz um juízo do

que deve ser ou não dito. Mas cada um também

acha que há coisas que não devem ser ditas. Num

tempo de inflação da palavra e da imagem a

realidade multiplica-se aos nossos olhos. Os reais

e os irreais misturam-se. Torna-se difícil marcar

uma linha de rumo.

E a propósito…Onde está o meu passaporte. Não

me digam que perdi o passaporte?

O Caminho de Djavula

Saída às 7 da madrugada para Djavula. Regresso

às 19:30, já noite dentro. Debaixo de trovoada

tropical sob Maputo acabei por gastar 200 paus

em táxi mas valeu a pena.

O dia foi espectacular. Atravessado o rio Maputo

no batelão logo pela manhã pudemos observar a

azáfama no cais. Do Catembe chegam rios de

gente para a grande cidade. Um dia de pequenos

negócios. Produtos da horta, carvão em sacas.

Todos se dirigem apressadamente para as ruas

perdendo-se no cinzento da chuva. No Catembe a

lama forma lagoas. No cais as vendedeiras de

pescado oferecem os seus produtos. Espero pelo

jeep debaixo do telheiro duma cantina.

Espero pela boleira de F á saída do cais. Encontro

dois espanhóis que vão visitar o projeto de

Djabula. Arrancamos pela picada. A estrada

nacional 201 em direcção a Bela Vista.

Atravessamos a ponte sobre o rio Tembe e

passamos por Salamanga. O grande templo Hindu

do Sul de Moçambique.

Pelo caminho fomos conversando sobre o projeto.

Os seus vários problemas e as oportunidades de

futuro. Chegados ao de Formação descemos do

Todo o Terreno. Debaixo dum embondeiro a Filipa

fez um briefing. Depois visitamos a oficina, o

velho galinheiro onde foi ensaiada uma criação de

galinhas e ovos para venda em Maputo, um

projeto que não resultou devido à distância ao

mercado. Uma oficina de mel. Olhamos a horta.

Foquei com a sensação de que o projeto está num

impasse.

Regressamos por Bela Vista. No caminho o jipe

tem um furo. Macaco com pouco balanço. O

suporte a entrar-se na lama. Falta altura.

Demorará duas horas até mudar o peneu.

Persistência e desenrascanço. Finalmente com

roda seguimos. Em Bela Vista um almoço já pela

tarde dentro de frango assado. Encanto

partilhamos uma 2M anoitece. Cheira a chuva. O

céu escurece e rebenta a chuva. Fazemos o resto

do caminho na lama, debaixo de intensa chuva.

Apanho o último batelão por uma unha negra.

Nem compro o bilhete. Vai cheio de gente.

Encontro um lugar no convés. Atravesso debaixo

duma grande agitação. Três travestis seguem no

convés para a noite da Bagamoio. Loiraças

vistosas que agitam o barco.

Discursos Cruzados

Começo o dia com uma reunião na Eduardo

Mondlane na Karl Marx, por cima da Livraria

Universitária. No edifício parece existir uma

residência universitária e uma cantina. É muito o

movimento de jovens. Pelo contrário, a livraria

parece estar em processo de dissolução. Poucos

livros nas prateleiras. Subo ao 2º andar, onde

está o escritório de AC.

Enquanto espero olho para o espaço de exposição

de arte. Entretenho-me a folhear o jornal

comemorativo dos 50 anos da UEM. Olhos os

discurso do Prof. Manuel Garrido Araújo. Professor

de Geografia e docente da UEM. Representa a

geração do 8 de Março, a geração que em 1977

toma conta da Universidade na sequência do

discurso de Samora Machel afirma que a

Universidade tem que estar ao serviço da

construção do socialismo. A questão que o jornal

levanta é procurar como é que essa geração

macrou os destinos da universidade. Um discurso

que contrasta com o discurso atual da busca de

Excelência. De procurar ligar a investigação ao

trabalho. Como é se se liga o m undo do trabalho

à universidade.

A conversa decorre com afabilidade. Falamos dos

projetos. Da questão da Rota dos Escravos da

UNESCO. A propósito de exposições conversamos

sobre a exposição “os filhos da Lua” que levou

milhares de pessoas à fortaleza de Maputo. Mais

tarde encontrarei o catálogo. Foi uma exposição

interessante que levou milhares de pessoas à

Page 80: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 80

fortaleza e que ilustra as novas dinâmicas da zona

portuária. Com a instalação do novo museu das

pescas e a criação de uma zona de animação

turística o centro vai ter uma nova centralidade.

Será curioso saber o que vai acontecer à urna do

Gugunhanha, o herói nacional moçambicano no

interior do museu. Ficará ou será remetido para o

cemitério.

Olhares exteriores

O passaporte desapareceu. Depois da declaração

à polícia local, ala para o consulado na busca de

solução. O Consulado de Portugal em Maputo é

um edifício na Mao-Tse-Tung. É interessante

entrar no espaço e observar os funcionários.

Todos eles matem o ar de cansados como

estivessem em Portugal, o que contrasta com a

alegria de viver em Maputo que todos mostram.

Visita ao espaço de CES Aquino de Bragança.

Situado numa rua paralela á 24 de Julho, numa

vivenda ao estio colonial, é um edifício sóbrio,

limpo com guardas afáveis. Parece que se procura

uma legitimidade perdida. Uma busca às origens.

O problema da cooperação entre países é o da

aplicação dos modelos. A aplicação de modelos

exteriores sem levar em consideração as

dinâmicas instaladas leva à construção de novas

realidades. Realidade diferente das projetadas,

altaraçoes das tradições. Ligar capacidades das

pessoas é afinal isso mesmo.

Ao fim da tarde mais uma reunião sobre Roteiro

da Escravatura em Moçambique. C é um indivíduo

afável. Cortez e simpático que rapidamente se

prestou a manter uma conversa sobre a

actualização da investigação. O relatório sobre

Moçambique data de 1981 ou 91. Entretanto na

Ilha foi feito o projeto de Sidel Fumá “o Jardim da

Memória. Uma exposição que está também

presente no Museu de Arte de Maputo.

No Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique,

no nº 8 encontra-se bastante trabalho sobre a

escravatura na Ilha. Quase tudo o que existe foi

feito por Gerad Lizang e Luís Filipe Pereira. No

entanto os estudos sobre a escravatura em

Moçambique têm um problema de base. O silêncio

sobre os traficantes. Quase todos os que têm

possibilidade de se dedicar ao estudo da

escravatura são descendentes de traficantes.

Em Inhambane encontram-se ligações entre os

libré-engagés e o envio de negros para as ilha

reunião no Indico. A banja, era o momento em

que os chefes locais e os comerciantes

portugueses que desciam de Quelimane fazia

negócios. Era entre 1727 e 17989. Ver o número

da revista do Arquivo Histórico de Moçambique

sobre Inhambane.

Page 81: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 81

As culturas na Cidade

Ontem, em casa da I. Jantamos como o Z e a I O

jantar foi esmerado. Entradas de geleia com atum

e prato principal de camarão no forno.

Saio de manhã para a cidade. Inicio a busca da

Poética. Andar pela cidade. Fazer a sua

cartografia. As ruas da cidade de Maputo são

coloridas. É curioso como as capulanas estão a

desaparecer da cidade. Em vez das roupas

coloridas, das longas peças de tecido enroladas ao

corpo da mulher e das camisas tropicais dos

homens, surgem agora os fatos cinzentos dos

executivos. As mulheres, é certo, ainda ostentam

a sua africanidade nos penteados elaborados.

Aproximam-se da imagem sul-africana. Mas a

concentração urbana e o delírio do excesso e do

consumo passaram a ser um sinal característico

da cidade.

Há uma grande carga energética no ar. Os

fenómenos concentram energia. São mais visíveis

do espaço e menos duradouros no tempo. Tudo

passa rapidamente. Procuramos na cidade olhar

para alem dos olhos. Escutar o som da cidade.

Olhar para o movimento. Sentir os cheiros da

cidade.

Á porta da pastelaria Surf sou quase atropelado

por um todo o terreno vermelho. Para em cima do

passeio. Sai uma negrinha formosa. Voluptuosa

nas formas. Roupas finas ondulando ao vento.

Transporta a arrogância de quem sabe que

concentra os olhares. Será a amante do ministro?

Mas para além da ostentação da riqueza há ainda

a ostentação da pobreza. Não será bem

ostentação. Será mais um novo tipo de pobreza.

No Norte do País foi criado num Fundo de

Desenvolvimento Local com sete milhões de U$

para fazer as populações de Cabo Delgado saírem

da pobreza absoluta. Os pescadores e os

comerciantes de peixe são os beneficiários. O

objetivo é ajudar na compra de motores e novas

artes de pesca.Mas quem acaba por beneficiar são

os comerciantes, porque acabam por ter

condições para aceder aos projetos.

De acordo com os regulamentos, um pescador

pode candidatar-se a um apoio até 200.000

meticais para comprar o novo motor ou arte. No

entanto, como o valor é dividido por todos os

candidatos, acaba por receber apenas ¼ do que

solicita. Fica com uma dívida. Como o dinheiro

não chega para investir, acaba por gastar noutras

coisas e fica mais pobre. Antes eram pobres e

sem dívidas. Agora são pobres com dívidas.

O fundo acaba apenas por beneficiar uns quanto.

“O fundo é para os amigos”. Os pescadores são

marginalizados. Pouco são os projetos viáveis, e

quando eles surgem, são apropriados pela “máfia”

que se instala entre os dadores e os beneficiados.

Por exemplo, o caso da bomba de gasolina

apresentado em Q. foi regeitado, para um ano

mais tarde ser apresentado pelo governador de C.

que assim se apoderou dum projeto feito e pago

por outro.

Há discursos sobre o silêncio. Vozes que não se

ouvem. Ouvimos estas palavras a caminho do

complexo industrial de Salamanga. Falara A e K.

Ambos são dirigentes associativos e sentem os

problemas.

Porque é que as pessoas pobres são alegres.

Perguntou F à entrada do barco quando

regressamos de Catembe. Fiquei com a pergunta

no ar enquanto olhava ao longe os prédios de

Maputo e sentia a brisa do mar a bater-me no

rosto.A minha volta sentia a concentração de

gente. Olhei os seus rostos sorridente. F tinha

razão, eles mostram-se felizes. Vinham de muitos

lados, juntavam-se ali, naquele momento e

naquele barco, para logo que chegarem a terra

partirem lestos à procura do seu destino. Eis um

pergunta a que tenho que tentar responder.

Nessa noite fomos ao bar da estação. Estava

cheio de tugas à procura dos corpos das miúdas.

Encontros com álcool e tabaco. Fumo e ritmo. A

emergência do corpo. Realça-se o contraste com

os que vinham no barco. Há aqui uma opção de

investigação que é necessário seguir.

Participação

Trabalho em casa. Finalizo os textos sobre a

“Memória de São Brás” e o texto sobre as

“Estratégias de mediação”27. Preparo as propostas

para apresentar em Moçambique sobre os

trânsitos dos africanos pelas suas memórias.

Heranças e História. Ouço ecos de Portugal. O

encontro de Setúbal e das vontades da L. de

colocar as suas vontades sobre todas as outras.

Parece que fica demonstrado a incapacidade de

entender o que é participar. Vamos jantar a casa

de C frango assado com Piri-piri.

Marracuene

Domingo de manhã vamos ao Marracuene. Vamos

mata bichar numa nova padaria duns tugas. Em

Maputo abrem-se novas padaria. Os tugas quando

27

Publicados no nº1 desta Revista, Dezembro 2012

Page 82: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 82

chegam gostam de instalar padarias. Há uma

padaria no novo Centro Comercial ao pé do

Tribunal Administrativo que tem um pão bem

tuga. Nas padarias estabelecem-se diálogos. A

reprodução dum país através dos seus gestos

como estratégia de sobrevivência. Conversas

sobre os negócios. O patrão sempre de olho

atento no balcão.

Saímos pela EN 1 em direção ao Xai-Xai. Mais ou

menos a 25 de distância surge a FACIL. Na

estrada, de início, a habitual confusão de

domingo.

A história dos Moçambicanos é igual a tantas

outras. Famílias desestruturadas. Estamos

perante 3 gerações. Uma que aqui chega, na

época colonial, para procurar sobreviver. Outra,

nacional, nasce em Moçambique e faz toda a sua

vida em Moçambique. Está hoje bem na vida e

sabe mexer-se no território, aproveitar as

oportunidades e evitar as dificuldades. A terceira

geração vive os tempos da globalização. Nasceu

em Moçambique mas tem os olhos postos no

mundo. Tem acesso ao mundo, mas não sabe

muito bem distinguir o real do virtual. São sinais

dos tempos. Uns assistiram e fizeram construir

uma nação. Criaram afilhados. Viram chegar e

partir muita gente. Uns chagavam cheios de

esperança. De vontade de fazer. Outros

chegavam com vontade de ganhar. Partiam. Uns

com saudades, outros sem vontade de voltar.

A emergência duma nação foi feita numa aliança

entre os combatentes do norte e os aculturados

do sul. A influência sul-africana vai emergindo

como contágio. O lodge sul-africano marca a

paisagem no Marracuene. Piscina, e bungalaws no

meio do mato. O mato é ainda um espaço

selvagem.

Estávamos sentados. De repente a I. levanta-se e

exclama: - Uma cobra! Uma Mamba. Rápido, dois

rapazes saltam para a estrada. Com dois paus

esmigalham a cabeça do pobre bixo que se

aventurara nos domínios dos veraneantes. Estava

à hora errada no locar errado. Não tinha

estabelecido alianças duradouras.

Descansado, mergulho no Indico. – Olha lá tem

cuidado com os Tubarões! Gritam-me. Este é sem

dúvida um mundo perigoso Regresso. Sento-me

numa cadeira à conversa com C Olhamos para o

mar. Ele diz-me: “sou capaz de estar uma tarde a

olhar para as ondas.“

No bar há um emregado que não fala. Ele passa

silencioso por entre as pessoas, diligente. Tem

uma estratégia de sobrevivência que passa por

não se fazer notado. Acabamos a almoçar pizza.

Regressamos atravessando o Nikomati numa

lancha. Na saída vendedores de camarões e

amendoins enxameiam o espaço. No caís uma

rapariga no bar. Um bar vazio. O que é que há de

estranho no bar vazio. Será uma estratégia de

sobrevivência.

Cai a noite em Maputo. Nesta altura do ano cai

rápida. Vamos jantar ao alentejano. J. e a sua

mulher macua vão apresentar o filho da Ilha. O

problema é sempre o visto. Aparentemente um

alemão não pode ter um filho moçambicano. Um

filho moçambicano não pode ter um visto

moçambicano para visitar a Alemanha num

passaporte alemão. A Alemanha não pevê a dupla

nacionalidade. A mulhar macua ostenta o seu

orgulho swahili.

Memorando

Mais uma reunião na UNESCO. Sou bem recebido.

Sinto o calor e o afeto dos participantes. Termino

a reunião e regresso a pé. Passo pela cooperação

holandesa. Tem como lema “Ligar as capacidades

das pessoas”. Como se ligam fragmentos de vida

perdidos. No passado domingo, quando fomos a

Marracuene assitimos a um acidente na EN1. A

dada altura, na passagem dum cruzamento, um

carro vermelho destravado atravessa-se na

estrada levando vários indivíduos pela frente e

passando por cima de outros. No carro vejo o

barulho. Corpos projetados no ar. Corpos a

controcer-se no chão. O carro perde-se no meio

da multidão. Um bramido de gente acompanha o

louco. Nós seguimo em frente. A imagem do

acidente fica. Lamentos que ecoam.

Durante a reunião caio-me a haste dos óculos.

Aproveito para procurar um oculista. Paaso pela

embaixada para saber do passaporte e ao lado

encontro um É uma loja moderna na avenida

Mao-Tsé-Tung onde fui arranjar as hastes dos

óculos. Tipo simpático. Não levou nada. Deixo

ficar quinhentos paus à mulatinhas. Frescas na

manhã abafada de Maputo. Atenderam-se com

um sorriso franco. A amante do patrão, roliça, de

pequena estatura torce o nariz à rapariga macua

de nariz largo. Presente que tem que dominar a

rapariga. Evitar que a sua frescura contagio o

entusiasmo que o patrão lhe dirigir. A vida é uma

competição.

A loja está vazia. Fresca. Mas lá fora a cidade

move-se. O movimento da rua pressente-se. O

ruído entre por entre as frestas das portas. A

Page 83: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 83

frescura ordenada da loja contrasta com o bulício

da cidade. Este é um mundo isolado.

Artificializado pelo ar condicionado. O telefone

toca. A patroa atende. A rapariga macua mete

conversa comigo. Mexe em diversos objetos. Ri-

se. Levanta-se da mesa e passa à frente. Olhar

guloso por se mostrar.

Hoje janta-se em casa. De regresso passo pelo

museu de de Arte. Esqueço-me que está fechado

à segunda-feira. Tenho que lá voltar noutro dia

para ver a exposição sobre a ilha de Moçambique.

Vou visitar o Muzarte e ver se encontro alguma

coisa. Está encerrado para obras. Azar. Volto para

casa trabalhar.

O jardim da Memória

Trabalho sobre o memorando de entendimento.

Escrevo as suas linhas principais e envio por email

e saio para dar uma volta. Passo pelo museu de

geologia à procura do seu diretor. Prece que tem

um museu em mãos lá para os lados de Tete. Não

tenho sucesso. Sigo para o museu de Arte para

visitar a exposição sobre a Ilha de Moçambique. O

Jardim da memória. Olha para a exposição, tiro

umas fotos e trago os folhetos de Informação.

Sigo para a Bagamoio na baixa. Procuro a Escola

de Artes. Deixo o telefone. Regresso a casa para

trabalhar. Procura estratégias alternativas.

A noite cai depressa. Troveja e relampeja. Falta a

energia durante um bom pedaço de tempo.

Passamos o serão a jogar às cartas.

Os círculos da memória

Ainda não recebi notícias do protocolo. Vou ao

CES Aquino de Bragança, e passo pelo consulado.

De caminho encontro o Centro de Estudos

Estratégicos da CPLP. Converso com o diplomata.

Trata-se dum espaço, duma vivenda à procura de

um uso mais intenso. Não havia luz e net. O

diplomata escritor estava com os nervos em

franja. Estava com ar de quem não queria estar

por ali.

Regresso pela Nekrumah, onde está instalado o

quartel ao pé das construções de Pancho Guedes

e regresso pela 24 de Julho. Volto a trabalhar em

casa.Tento alguns contactos e não encontro

niguem. É o fim do mês será por causa disso que

não encontro ninguém.

Há noite fui jantar a casa do L e I Estava lá dois

colegas. Falamos da exposição da ilha, dos

círculos da memória. O W, o chato do W sempre a

brincar. Porque é que os manequins são brancos?

O Jardim da memória está construído em círculos.

O círculo íntimo, da família, o círculo do grupo, e

o círculo do mundo. A escravatura é uma

experiencia limite de ultrapassagem dos círculos

de sobrevivência.

A dualidade

Acordo cedo e leio um pouco a saborear o tempo

da manhã. Tomo banho e desço ao Natilus para

comer o croissant prensado e um sumo de

laranja. Encontro Z. Conversamos sobre Maputo.

O Z é uma personagem atenta da vida de Maputo.

Olhar arguto observa o que se está a passar.

Tenho que me despachar porque fiquei de ir à

fortaleza falar com M. Z dá-me boleia até à baixa.

Entramos na estação para beber uma Manica. É

cedo e nunca bebo antes do meio-dia, mas o bar

da estação tem aquele encanto. Aproveito par ver

a exposição sobre o Museu dos Caminhos de Ferro

que se anuncia e olhar para a galeria

Kulungwana. Tem uma exposição sobre viagens.

Trânsitos e inquietações. Conversamos

amenamente. O telemóvel toca. Era M a

perguntar se podemos alterar o encontra para a

tarde. Continuamos na conversa. Uma conversa

agradável que corro sobre o que é Moçambique,

como são os Moçambicanos.

Às duas horas despeço-me de Z e atravesso a

Bagamoio Falamos dos públicos. Dos problemas,

dos recursos disponíveis. Da motivação para fazer

coisas. Como gerir um espaço museológico de

natureza militar, que concentra heranças

coloniais, objetos de memória da libertação. A

estratégia passa por se assumir como um centro

de arte contemporânea. A fortaleza como uma

porta de entrada para a cidade. Não há galerias

em Maputo.

Saio e regresso a casa. Passo pelo CES Aquino de

Bragança. Encontro-me como J. Falamos sobre as

questões das estratégias para o Indico. Uma

conversa amena que poderá ser recuperada mais

tarde. Passo pela livraria Conhecimento na 24 de

Julho. A velha livraria Europa-America

desapareceu. Transformou-se numa loja de

decorações. Compro um livro do José Luís Cabaço

sobre a Luta de Independência. A dualidade de

Simmel A dualidade resulta das energias que se

confrontam. Uma dialéctica interpretativa do real.

Penso na questão da dualidade. Partindo duma

determinada posição, no espaço e no tempo cada

Page 84: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 84

um depende do outro para observar. A

observação individual está em contexto (depende

do social). Logo os olhares são transcalares e

transtemporais. –A relação de subordinação, que

emerge da relação social potencia ou a ordem ou

a subversão da ordem. A transtemporalidade

como subversão da ordem. A tatuagem e os

piecingos como marcas do tempo. Donde que

resulta que ordem e poder é uma oraganização do

espaço e do tempo.

O silêncio das palavras escritas

Olhar para o tempo que passa. Andar por aí a

olhar o tempo. As coisas estão aqui mesmo à

nossa frente. Nós é que não as vemos. Nós não

vemos o que não perguntamos. Olhar para o

silêncio das palavras escritas. Está na altura de

criar a poética do café. Quem faz o quê e como

faz?

As personagens do Nautilus

A pastelaria Nautilus, nas esquina da 24 de Julho

com a Julius Nyerere é uma pastelaria de

monhés. Durante o dia são várias as personagens

que por aí passam. Ensaio um retrato social da

cidade.

A matrona de calças largas, longos cabelos

negros, caídos em caracóis sobre as costas, entra

apressada no café e corra para o banheiro. Está

certamente apertada com alguma inconveniência.

A cooperante, que não copera mas dá lições de

inglês e uma mulatinha de cara espantada. Ao

lado, um casal misto. Ela moreninha. Esguia. De

linhas direitas. Elástica como uma gazela. De

bunda redondinha e cheia. Ele com ares de tuga.

Com aquele ar mal-encarado, com uma espécie

de buço sobre o lábio. De camisa aos quadrados

por fora das calças, à moda dos trópicos, testa

enrrugada, franja sebenta a cair para o lado.. A

qualquer momento parece que vai cantar o fado.

A barriga já sobressai. Toma o pequeno almoço

tardio. Nos olhos pressente-se a noite escaldante

entre lençóis.

Mais ao lado, uma consultora financeira. Branca e

loura, de fato de executivo entre apressada. Que

diabo quem se lembra de andar de fato de

executivo com este calor. Tem, é certo, uma

camisa branca. Mas uma saia travada e uma

casaquinha cinzenta retiram-lhe o sal. Usa colar

de metal e tem um olhar sem brilho. Triste!. De

quem passa horas e horas a olhar para números.

Sente-se uma ausência de vida. Está a viver

angustiada em África. Não entende a sua poética.

Será que trabalha para o FMI ou para o Banco

MUndial

Entra um casal com uma criança. Sentam-se

numa mesa e pedem sumo para a criança, bolo e

cafés para eles. Tem ar de quem vem de viagem.

Devem viver longe, no mato e parecem

incomodados com o movimento da cidade.

Sentem prazer no ar condicionado do café. A

criança faz uma birra. A birra é um sinal do seu

incómodo. Não está habitada ao frio do ar

condicionado.

Reparo que lá na montra está uma mulatinha.

Ponto estratégico para observar. Dedilha

freneticamente mensagens no telemóvel. Entra

um militar e encontra-se com ela. São dois

jovens. Ele é militar graduado com ar de que foi

tratar de qualquer assunto ao ministério enquanto

ela esperava. Têem o mundo e o tempo pela

frente.

É curioso como dentro do espaço do Nautilus os

fregueses de organizam no espçao. Os africanos

ficam à janela. No balcão. Os indianos preferem

juntar-se do lado direito de quem entra. Lá fora,

na esplanada, juntam-se da tarde as senhoras da

terra. Com o decorrer da tarde vão sendo

substituídas pelos homens. Com eles o fumo toma

conta do espaço. Os estrangeiros flutuam como

borboletas, sem saber onde cair. Em regra caiem

na primeira mesa vaga.

Em Maputo os modos de vestir mostram quem

são. Na pastelaria Nautilus, no cruzamento da 24

de Julho com a Julius Nyerere o espaço é um

ponto de encontro. Os empregados são todos

negros. Atrás do balcão, estão os donos.

Indianos. Cada um assume a sua posição no

espaço com um ar distinto. Assumir o papel diria

eu.

Os pilares da museologia informal

O Puto S faz hoje 4 anos. Estas doem.Estou de

novo à mesa do Nautilus. Hoje não tenho nada

marcado e vou perder-me pela cidade. Percorrer

as ruas de Maputo. Procurar fazer um retrato das

suas gentes e dos seus movimentos. Vou até ao

mercado do pau. A cor das gentes. O movimento.

Entro outra vez na fortaleza. O que fazer da

fortaleza. A fortaleza é um ponto de encontro e

um ponto de memórias.

De tarde sento-me no terraço a escrever. Revejo

os sete pilares do saber do Eduardo Morin.

Conhecer para além da paralaxe; Conhecimento

pertinente; Responder à condição humana;

Page 85: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 85

Reconhecer a identidade de terceiros; Enfrentar

as incertezas; Compreender por meio do diálogo;

Exercitar a ética. Cruzo isso com um texto sobre

os “tempos do presente” do Miguel. Um tempo

social, de ostracismo; um tempo público que é

cada vez mais reduzido; um tempo científico que

procura relevância; um tempo de intervenção,

que procura novos caminhos; um tempo de

memória que procura a criatividade; um tempo de

parceria que procura novos parceiros.

Bem-vindo ao nosso mundo

Cruzamos Maputo em direção à Matola á procura

dum restaurante no campo de tiro. No caminho

fala-se da esperteza moçambicana. Um polícia

manda parar o carro e pede pela inspeção. O

carro novo, com menos dum ano, não precisa.

Resultado. Um estrangeiro incauto paga uma

multa sem saber. O restaurante estava fechado

para obras.

Regressamos para Maputo em direção ao mercado

do peixe, com as suas cores garridas, à procura

de caranguejo. Decidimos almoçar em casa. No

caminho olho para o movimento do espaço. Olho

para as esquinas de Maputo. Trata-se dum

modelo de venda. O monhé, com supermercado

aberto, distribui uma determinada quantidade de

mercadoria a pequenos vendedores para

venderam nas ruas da cidade. Multiplicam-se os

pontos de venda No espaço e não há faturação.

Ao invés de se concentrar numa superfície,

distribui-se. Porque é que o museu não se

constitui como uma rede de pontos de memória

ao invés de procurar concentrar. O que é que está

a desaparecer. São as donas que vendiam gasosa

na marginal A marginal, a rota do domingo está a

desaparecer.

S fez um caranguejo à moda dos Capelas. Parte-

se caranguejo em pedaços. Pica-se cebola e

cebolinho e frita-se juntamente com os pedaços

do caranguejo. Coloca-se um copo de uísque, um

piripiri. O segredo está em escolher os

caranguejos com ovas. As fêmeas não estão

secas. Almoçamos do Terraço, com vista para a

cidade. Foi um bom repasto e um fim de tarde

fantástico. Lá mias para o fim, as tensões do clã

saltaram. Não há bom sem mau.

Hoje consome-se o imaterial. Na parede do

prédio, lá longe em letras garrafais a Vodacom

escreveu “bem-vindo ao nosso mundo”. Reflexos

da construção do mundo como um momento.

A borboleta da Nelson Mandela

No final da tarde viajamos à Matola para visitar a

casa-museu da A onde está uma belíssima

coleção de pinturas de Malagatana e Noémia de

Sousa. Retenho uma homenagem a Nelson

Mandela. Uma belíssima borboleta.

A senhora da fortaleza

A questão da cooperação portuguesa, neste

mundo de interesse parece que tem andado a

apanhar bonés. É certo que tem havido vários

projetos. Mas tenho a sensação de que em vez de

olhar para a realidade, deixa-se levar pela teoria.

Se é que tem teoria. Trabalhar com as

associações de camponeses é um desafio

interessante. Ouvir as histórias contadas pelos

mais velhos. Vozes de experiencia de vidas,

contadas na primeira pessoa, através das quais

ressoam os dramas coletivos. Histórias à volta da

fogueira são sons que falam dos tempos. Da

experiencia do passado. Dos olhos do presente.

Dos desejos de futuro.

Em Maputo ando a circular entre a Urbanidade, a

Sub-urbanidade e a agricultura. Há que pensar se

a questão da dualidade social não é uma ilusão se

não incluirmos a uma terceira dimensão A poética

como gramática do tempo e do espaço

Entre histórias de vida, regresso à fortaleza para

conversar com M a senhora da fortaleza. Formada

em gestão de eventos culturais, dedica-se à

medicina tradicional. De cabelos vermelhos, cara

jovem e arguta. Procura modernidade no

trabalho. Formada em História na Eduardo

Mondlane, tem formação em Conservação e

gestão do Património da Unesco. Dualidade entre

a tradição e a modernidade.

Mostra uma boa capacidade de fazer uma leitura

do que é a realidade em Moçambique. Tem

algumas ideias para desenvolver na Fortaleza.

Uma liga de amigos. Olha para o monumento

como um monumento património moçambicano,

Assume a sua herança. Defende que os museus

podem ser mediadores entre as universidades e

os públicos. Os monumentos devem alargar a sua

intervenção aos estudantes. A construção da

identidade moçambicana como representação

social. Procura resolver a questão de como os

maputenses se podem apropriar da fortaleza.

Interroga-se sobre o que fazer para programar.

Defende que a fortaleza deve deixar de ser um

espaço cultural aleatório. Faria falta um curso de

curta duração sobre gestão de monumentos e

Page 86: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 86

conservação de objetos. Fiquei de fazer um

seminário.

Depois, da fortaleza, vamos falar com J da escola

de Artes. J tem colaborado com o Museu de Arte à

mais de 10 anos. Tem feito um trabalho com

escolas. Foi o trabalho com as escolas que levou

aos museus públicos diferentes. O problema é

fazer trabalho em dois espaços diferentes. Há que

pensar em questões com interesse para os alunos

se puderem motivar. Agora está com um projeto

para as comemorações dos 35 anos da

independência. Procura utilizar estudantes em

estágio. Vão procurar levar objetos, replicas, para

os visitantes tocarem. Algumas Histórias de vida

que vão sendo registadas.

As narrativas de Maputo

O dia amanheceu claro. O ruído da cidade invade

lentamente o quarto e insinua-se pelas cortinas.

Estou quase a terminar o livro do José Luís

Cabaço sobre os contextos da independência de

Moçambique e sobre os seus primeiros anos. O

dia anterior correu bem.

Ontem à noite apareceu lá em casa L uma

massagista Reiki. Ia fazer umas massagens, de

modo informal. Ficamos horas na conversa. A

ideia do Reiki é a busca das energias do corpo.

Fazer fluir as energias, criar equilíbrios. Procurar

os pontos de tensão, para os libertar. Uma busca

de soluções que andamos todos a procurar

Estou novamente no Nautilus a olhar o mundo

que aqui circula. A negra pestanuda, de ancas

largas com o branco sebento. Vermelhinho como

um tomate. Esta é um mundo interessante. A

globalização de Maputo traz uma aculturação. Na

outra mesa o grupo discute as questões da chuva

e de desentendimento que houve no dia anterior.

São fragmentos de vida que circulam no ar.

Os olhares de Maputo é um texto a construir.

Uma narrativa sobre as oralidades. As narrativas

mudam com as pessoas. Os homens com as

camisas de fora das calças estão a ser

substituídos pelos fardamentos da globalização.

Direitinhos, de fato e casaco, com mala de

executivo, de andar apressado, sem ligar a

ninguém. São seres que vivem no seu mundo.

Imunes aos outros. Os homens de cinzento. Eles

e elas. A conquistarem o planeta. Elas de saltos

altos. Bem cheirosas. Com cuequinha de tanga

cor de laranja a sair da calça baixa. A perna bem

torneada. Cultivada em ginásios. Ao fim da tarde,

depois dos relatórios bem elaborados ao chefe. As

suas boquinhas debochadas. Sempre prontas a

chupar e o corpinho oleado pelo óleo de coco.

Assim à distância são intocáveis. Sentam-se e

cruzam a anca. Seduzem a todo o momento, com

todo o arsenal. Mas é só para ver. Não se pode

tocar. São intocáveis.

Chega o perito em agricultura para conversarmos

sobre projetos. Por exemplo o gado nguni: “Nguni

Catle Breed, é um boi sul africano. Era um gado

guardado pelos pastores, resultante da mistura de

zebus com os bois (Bos Indicus, com Bos Taurus).

Foi criado em África, mas preterido para criação.

Falamos dos problemas da agricultura em África.

Das queimadas como processo de fertilização das

terras. Do controlo das espécies. Projetos.

Histórias e sonhos constantemente revividos. Por

vezes tenho a sensação que estes fragmentos da

realidade trazem sons. Vozes do mundo em

movimento. É por isso que gosto de os escutar

Maputo tem as suas horas. A cidade tem cor e

movimento. A melhor hora do dia é as três da

tarde. Hora em que se sai do trabalho. As moças

arranjam-se e aperaltam-se. Nas sextas-feiras

pressente-se a festa no ar. Os perfumes tomam

conta das esquinas. Os vendedores agitam-se nos

preparativos para vendar os últimos produtos.

Estas tardes no Piri-piri, com uma imperial e uma

chamuça dão para observar a rua. Os aceleras de

Maputo. Os Honda Civic que aceleram à procura

do último rasto da luz verde tomada pelo

vermelho.

Olhares Índicos

Encontro-me ao princípio da manhã com JP no

CES Aquino de Bragança. A conversa corre solta.

O CES procura centrar o seu discurso na região a

sul. Falara do sul a partir do sul. Na região há um

comércio de bazar. É preciso entender as lógica

do comércio de bazar. É um “mercado” com as

suas características próprias. Diferente do

comércio “global” embora conviva e se aproveite

dele. Sem compreender isso é difícl atuar no

mundo indico. Os tugas ainda andam a sonhar

com o império perdido e não vêm claramente

isso.

A segurança do Indico está nas mãos da África do

Sul. A AS posiciona-se como guardiã do Índico e

da rota do cabo. Tem três submarinos e 4

fragatas. Tem feito exercícios com a marinha da

nato. A conceção de defesa da AS centra-se no

indico e estabelece alianças com a Europa e com

a Índia. Assumir a segurança do continente,

assegurar as rotas marítimas e os bancos de

pesca.

Page 87: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 87

O Norte ainda olha o sul como espelho da culpa.

Hoje é preciso multiplicar os saberes alternativos.

O homem é como como retábulo do tempo. Umas

vezes abem-se algumas portas, noutras alturas

fecham-se. Nestes tempos vivem-se os tempos do

sul

No CES procura-se o Homem do Indico. Faz-se

uma antropologia das comunidade índicas

Seguindo algumas ideias de Omar Ribeiro

Thomaz. Os olhares Indicos de hoje são um

caminho de investigação.

Se olharmos para Maputo, que é uma cidade em

mudança, podemos escutar o eco dos sons da

construção. Mas essa construção vai dar aonde. O

que é que a história e a memória nos dizem. A

consciência duma narrativa desloca o olhar –

serve para passar a voz do outro.

Saio com estas palavras a ecoar. Os dias estão

curtos em Maputo. Escuta-se o vento do Indico. A

monção.

Dias curtos em Maputo

Passo pela Eduardo Mondlane. Ontem jantei chez

L com I e L uma rapriga maconde, nascida em

Moçambique, expatriada e dedicada à animação

teatral, retornada à busca das raízes. Falou-se da

moçambicanidade, dos retornos a Moçambique.

Aprender a reinventar a moçambicanidade

Aprender a cozinhar a cozinha do Índico. Vinda

dum colégio de freiras em Santarém, parte com

os pais para Tete. Retornada com saudades da

terra. Regesso numa noite de chuva. Amanhã

parto. Os dias da partida são curtos.

Aeroporto

Entro no aeroporto com antecedência para evitar

as confusões. Os objetivos traçados para a

viagem foram alcançados. Na bagagem mais

alguns livros, e material de investigação para os

próximos meses.

Passei a tarde a comer tapas com Z no Cantinho

dos Sabores. Pão e queijo acompanhados de

tinto. Depois um passeio pela baixa, passagem

pelo Vida para dizer adeus. Almoçamos na cantina

dos professores em Maputo. Sopa de cozido com

piri-piri. Duas Manicas para fechar. Conversa com

S, uma arquiteta que esteve a trabalhar na Ilha.

Passeio pela cidade antes da última chamada para

o voo para Lisboa. Na bagagem levo a Poética de

Aristóteles e a História, Memória e Esquecimento

de Ricoeur, para acabar de ler sobre na passagem

sobre África. A História trata do particular. A

poética trata do Universal.

Page 88: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 88

Viagens na fronteira (parte 1)

r

No Caderno de Investigação Viagens nas Fronteiras (parte 1) apresentamos os

resultados dos nossos trabalhos de investigação realizados na fronteira luso-

estremenha. Neles contamos com o apoio da Rede Transfronteiriça Museion.

Devemos uma palavra de agradecimento às nossas colegas Mercedes Stofel, Ana

Carro, Aida Rechena e Juan Valdés que possibilitaram as condições no terreno. No

texto, para respeito com a privacidade dos protagonistas os nomes são alterados.

Estas viagens tiveram o grande mérito de permitir interrogar o real de descobria

caminhos de diálogos sobre as memórias e os esquecimentos.

Page 89: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 89

Viagem pelos museus da Raia.

Saímos de Lisboa ao raiar da manhã em

direção a Norte. Passada a lezíria ribatejana,

infletimos para leste, ao longo do curso do

Tejo. A medida que as suas margens se

estreitavam e as arribas aumentavam, o

pinhal tomava conta da paisagem. Á direito o

Tejo encaixado nos vales de xisto. Terras

enxutas onde medram eucaliptos e

escasseiam as gentes.

Primeira paragem em Castelo Branco. A praça

da cidade, reabilitada pelos programas Polis.

Percorremos o centro a pé. Olhamos para os

novos equipamentos que surgem.

A biblioteca, um Centro de Informática, Cafés

e esplanadas. Uma casa da música em

construção. Seguimos pela antiga via de

contorno do recinto medieval em direção á

igreja matriz. Panos de muralha encontram-

se a descoberto. No final da rua surge a

residência episcopal onde está instado o

museu Manuel Gonçalves Proença Júnior.

O palácio setecentista, amplo no janelame,

com jardins ao gosto da época. Nas antigas

hortas estão agora instalados equipamentos

para jovens e crianças. Parque infantil em vez

de rosas. Já dentro do museu fomos

recebidos pela Diretora AR. Um percurso de

luxo onde passamos pelas suas várias

secções. Começamos pela arqueológica. A

coleção recolhida pelo jovem arqueólogo que

deu o nome ao museu, recolhida no princípio

do século e reabilitada nos projetos do IPPAR,

Instalado no piso térreo olhamos para dentro

de vitrinas onde víamos pontas de seta e

facas do paleolítico, pedaços de ferro e

bronze da idade dos metais, conjuntamente

com estelas e colunas. Tudo

harmoniosamente distribuído pelo espaço.

De seguida subimos ao primeiro piso. No

consulado de Catarina Vaz Pinto o museu

passou a ter um novo conceito dedicado à

tapeçaria. Depois duma galeria dedicada aos

bispos de Castelo Branco, uma diocese criada

no século XVIII aquando da elevação da vila a

cidade e extinta cento e dez anos (1771-

1881), surgem as tapeçarias encaixadas em

grandes módulos que convidam à descrição.

Enquanto de preparava uma exposição de

arte sacra para o período da Páscoa, com

base num conjunto de obras locais. De saída

ainda apanhamos o grupo de bordadeiras que

trabalham no espaço do museu resgatando o

bordado tradicional de castelo Branco.

Bordados a seda, com cores garridas e

motivos orientais, refletem heranças de

outras viagens

No final um almoço de cozido à portuguesa

num restaurante local. O vinho do Fundão,

tinto carregado a regar as carnes generosas.

Conversas soltas sobre museologia. Os

trabalhos com as comunidades ciganas foram

pontuais com algumas reclusas do

estabelecimento prisional Um museu que tem

vindo a procurar incluir a comunidade e o

território na planície albicastrense.

O Caminho da Serra da Gardunha

Partida para o Fundão em direção à Serra da

Gardunha. Paragem no Fundão em busca do

Museu de Arqueologia e do grupo

Arquofundão de Pedro Mendes Rosa Em

terras do Fundão procuramos pelo edifício dos

museus, bem encaixado no tecido urbano da

velha vila. Ruas estreitas e pedonalizadas.

Nas ruas da aldeia miúdos ciganos a

brincarem A presença da comunidade cigana

é evidente nas ruas. Nas casas ouvem vozes.

Como estão as narrativas desta comunidade

nos museus.

Encontramos as portas do museu de

Arqueologia do Fundão encerradas. Estava-se

em tempo de trabalho de campo nas aldeias

da serra. J. Abriu-nos a porta e deu-nos

entrada. Uma visita guiada pelo neolítico,

pelas primeiras comunidades dos metais.

Pelos povos que ergueram as estelas

graníticas. A abundância de referências às

meimoas na toponímia. Resgates de tempos

esquecidos nas pedras.

O museu reconstrói cenários. Encena

situações e técnicas.

O Castelo Novo

Dormida em Castelo Novo. Na Casa de Petrus

Gutierrez encontamos uma antigo Hotel,

reformado por um casal de reformados. O

Filho arquiteto fez o projeto. De remodelação

e de vários apartamentos na serra da

Gardunha. Uma decoração moderna. Nas

paredes sobressaem os quadros do Pintor

Barata Moura

A povoação acastelada protege a fonte das

águas do Alardo. Numa terra de verões

soalheiros a presença de água é fonte de

Page 90: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 90

riqueza. Terá sido assim na idade da pedra.

Terá sido assim na época de reconquista. Al-

adro são fontes de riqueza.

O Castelo da Castelo Novo foi algo de

intervenção do IPPAR. A aldeia faz parte do

Roteiro das Aldeias Históricas de Portugal e

beneficiou de vários projetos de apoio ao

turismo cultural. São visíveis os processos de

requalificação. Hotelaria, Restauração. Aposta

nas atividades tradicionais.

A Grande Serra.

Subida à Serra da Estrela pelo lado da

Covilhã. De passagem pelo museu dos

lanifícios, até ao alto da Torre. Não restam

memórias do primeiro eco-museu de Hugues

de Varine nos anos setenta. A Serra está

voltada para o Turismo. O parque de

campismo. As antigas termas, das Caldas da

Saúde transformadas em Hotel, as pistas se

ski, a venda ambulante na torra. Descida

para Manteigas. Os trilhos da serra vão dar à

sede do parque Natural.

Visita às Fábrica de lanifícios de Manteigas. A

tradição moderniza-se pelo Design e pelos

mercados externos. Exportação e mercados

externos na vanguarda da produção da

riqueza. Produz-se lã na serra para vende no

Japão e nos Estados Unidos.

O Rio Zêzere. Nasce na Serra. Desce em

direção a Manteigas. Passa por Belmonte,

Fundão. Embrenha-se a norte da Gardunha e

desagua no Tejo em Vila Nova da Barquinha.

Barragem de Castelo de Bode.

Belmonte

Belmonte é terra de judeus. Conhecia nos

idos de oitenta quando tentava a agricultura.

Na época havia o castelo, a torre Centum

Cellase conhecia-se a presença dos marranos.

Hoje têm cinco museus. O Eco-museu do

Zêzere. O Museu dos Descobrimentos. O

Museu do Azeita. A Igreja de São Francisco e

o museu Judaico. Para não falar do Castelo,

alvo duma intervenção do IPPAR. A Pousada

de Belmonte, um equipamento turístico é

também ela própria num edifício histórico

Começemos pela recuperação da Pousada O

Convento de Belmonte, instalado no alto dum

morro com vista para o vale do Zêzere. O

claustro e a nave foram reconvertidos em

espaços de Lazer. Os quartos instalado em

novas células monásticas.

No núcleo urbano surge-nos com alguns

trabalhos de requalificação. Não é um pleno

geral de requalificação, mas o espaço

encontra-se cuidado.

Na antiga Tulha dos Cabrais encontra-se o

Eco-museu do Zêzere. Trata-se dum

equipamento voltado para a História Natural

do Rio, para os elementos sobre a sua

biodiversidade. Uma reconstrução dos vários

níveis do seu percurso, tipos de geologia,

espécies que o habitam. As questões da

produção de energia. É um equipamento

sobretudo didáctico. O equipamento é

revelador da estratégia museológica

adoptada. Fazer de Belmonte um ponto de

partida para diferentes roteiros. A maioria

deles no seu interior, sem esquecer o

território envolvente.

A viagem passa a Histórica no Museu das

Descobertas. Em frente, no paço dos Cabrais

uma instalação multimédia propõe uma

viagem ao Novo Mundo com partida de

Belmonte. Iniciando pela sua geologia, pela

sua história, chegando aos Cabrais. Relata a

grande aventura de Pedro Alvares Cabral, a

ciência e a náutica necessária para atravessar

o grande oceano ignoto. Uma grande sala

multimédia mostra e procuras dar a

experimentar o tempo do mar. No novo

mundo relata-se a exuberância e a

diversidade da natureza. Os primeiros

contatos. Um jogo permite negociar com um

índio através da troca de produtos. A floresta

é representada por fitas que caem do teto.

Uma parte sobre a escravatura. Uma

narrativa sobre o novo país e até algum

atrevimento na fala sobre a construção da

identidade brasileira, não faltando a música, a

comida e os seus autres de referencia.

Ainda no campo da História pode-se subir ao

castelo. De entrada gratuita, dotado dum

anfiteatro ao ar livre, dotado de janelas

manuelinas, tem um grande vista sobre o

Zêzere e o vale da Ribeira de Caria.

Descendo para a vila, passando pela

Sinagoga e pela Judiaria encontramos o

Museu Judaico. Um museu de consciência

sobre a herança judaica dos marranos. Uma

comunidade resgatada do esquecimento nos

anos 20 (1924). No seu interior peças de

culto, memória dos habitantes. Grelha de

leitura das marcas das famílias judaicas e um

pequeno memorial às vítimas da Inquisição.

Page 91: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 91

O Último Equipamento é o Museu do Azeite.

Um antigo lagar de Azeite transformado em

Lugar de Memória. Tem um ponto de venda

de produtos derivados do Azeite.

Sortelha

Sortelha é uma das outras Aldeia Históricas.

Em terra exaurida. Provavelmente numa

antiga via Romana entre Emérita Augusta e a

Guarda. Almoçamos um arroz de lebre num

restaurante instalado num antigo solar.

Olivenza

Olivenza é uma terra raiana. Chegados ao fim

da tarde, passado o Guadiana em Badajoz,

dirigimo-nos para Sul até à Ribeira de

Olivenza. Entramos em direção ao centro da

cidade. Percorremos a cerca medieval,

vigiada pela torre de Menagem do velho

castelo português.

Dentro do velho castelo, na antiga cadeia

encontra-se instalado o Museu Etnográfico

Gonzalez Santana. Trata-se dum museu

municipal criado com as colecções desse

filantropo local. Em 1980 a partir dum

pequeno núcleo expositivo foi fomentada a

ideia de criação do museu. O projeto de

museu desenvolve-se então para ser

instalado na “panaderia do rei”. É inaugurado

em 1991.

Instalado no interior dum conjunto de

edifícios históricos, o museu de agradável

visita apresenta um conjunto variado de

coleção etnográfica estremenha. O motivo a

visita é a exposição “El água en el hogar

antes da la década de los 60”, produzida por

Miguel Ángel Vellecillo Teodoro e Maria Teresa

Plaza Nuñes. Trata-se duma exposição

temporária, criada a partir das colecções dos

museus sob o tem da água. Através de

objetos e de fotografias é feita uma proposta

de revisitação aos modos de uso da água na

cidade.

A década de 60 é o momento em que a

cidade passa a ser abastecida pela rede

pública. A proposta é olhar para os modos de

uso da água antes desse tempo. Olivença

está situada numa região freática rica. Ali

perto, as antigas termas de São Francisco são

conhecidas desde o tempo dos romanos, são

um exemplo dessa riqueza freática.

A identificação dos pontos de captação de

água: As antigas fontes e os modos de

captação e transporte das águas são a

primeira proposta de interpretação. Nas

diferentes casas as águas são armazenadas

em cisternas. Vários filtros são apresentados.

O uso da água nas lavagens é um outro

elemento. As aguadeiras e as lavadeiras são

as personagens que surgem como as

principais profissões ligadas à água. Com a

chegada da água, os tanques passam a ser

espaços municipais.

O asseio e a higiene pessoal são uma outra

forma de uso da água documentada na

exposição. Os lavatórios, os banheiros, as

silas e até os bacios são objetos de outro

tempo. Na vila as necessidades dos seus

habitantes eram recolhidas de manhã por

carros de muares que passavam. A partir da

exposição documentam-se os vários ofícios

relacionados com a água.

A exposição dispõe ainda dum guia educativo

que permite desenvolver diversas actividades

pedagógicas com público escolar. O museu

editou O Guia do Visitante e seis monografias

sobre outras tantas salas do museu: Arte

Sacra, Arqueologia, Música, Jogos e

Brinquedos, Artefactos agrícolas e meteoritos.

Situada na raia Olivenza foi no passado um

território disputado entre a monarquia

castelhana e portuguesa. Com o tratado de

Alcanizes em 1217. Doada à ordem dos

Templários, e vila crescerá como terra de

fronteira. Um castelo altaneio, rodeado de

fosso fará a defesa duma cidade murada. No

seu interior cruzam-se duas ruas. Dom João

II e Dom Manuel farão importantes obras,

onde sobressai a imponente igreja de Maria

Madalena. Ampliadas as muralhas medievais,

a cidade será palco de disputa nas guerras

peninsulares. A muralha medieval dará lugar

à muralha de nove baluartes. Conjuntamente

será construída a imponente ponte da ajuda,

para permitir o abastecimento de tropas a

partir de Elvas. Em 1801 nas disputas das

guerras peninsulares passará para o domínio

espanhol.

A identidade portuguesa surge marcada na

tipologia de construção e nos materiais

urbanos. A calçada portuguesa marca as ruas

pedonalizadas. O oliventino, o português da

raia terá sido falado pelas gentes de Olivença

até aos inícios do século XX. Com o

franquismo acentua-se a centralização

castelhana. Os últimos anos permitem uma

maior liberdade de busca de referências.

Page 92: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 92

Olivenza surge-nos como um pequeno burgo

aristocrático. Com várias casas senhoriais

terá feito da Oliveira a sua principal riqueza.

Os Silêncios de Olivenza? Onde está a

identidade oliventina. Qual a relação de

Olivença com Badajoz.

Saídos da cidade vamos em direção ao

Guadiana. A ponte da Ajuda, uma ponte

fortificada sobre o Guadiana, destruída para

impedir o acesso de margem direita acentua

a dependência do território de Badajoz.

Passados os anos bélicos, uma nova ponte

facilita agora a comunicação entre as duas

margens.

Badajoz

Saídos do território de Olivenza regressamos

a Badajoz. Cidade grande da Estremadura,

rivaliza com Cáceres e Mérida em tamanho.

Situada entre a meseta e o Atlântico, sobre

as margens do Rio Guadiana é uma porta de

defesa fácil. No centro da cidade velha, o seu

alcazar, mostra uma construção nova onde se

instalou o museu da cidade de Badajoz “Luís

Morales”.

Um museu onde se propõe uma viagem à

história da cidade. Como elemento de

relevância sobressai a importância do período

moçárabe onde Badajoz é centro dum

importante Taifa. De Badajoz passaram Al-

Mansur (Ibn-al-Aftas) Muhamed al-Muzaffar e

Umar al-Mutawakikil, expoentes da época de

ouro dos Almóadas e Almorávidas. Até ao

século XVII Badajoz é uma terra de

mouriscos. Nessa data são expulsos e

escravizados. Badajoz será palco de guerras

importantes. No século XVIII durante a

guerra da sucessão (1705), na guerra

peninsular (entre 1808 e 1812) e na Guerra

Civil Espanhola (1934) onde Badajoz foi terra

republicana.

O museu, instalada na Casa de Luís Morales,

terá sido construída no século XVI, é ao longo

do tempo alvo de importantes benefícios, até

à instalação do espaço museológico. O espaço

propõe uma viagem de cinco mil anos,

contada através de objetos, de cartazes,

reconstituições, maquetas, audiovisuais,

reproduções, meios interativos.

Destaca-se neste museu a importância da

criação do Reino de Badajoz, (Batalyaws) e

da dinastia aftasi por Ibn Marwan, que em

875 mantém uma disputa com o califado de

Córdova. A herança muçulmana é alvo de

especial relevância., Considera-se que é um

período de particular progresso, onde se

cultivam as artes e as ciências e que a tornou

um importante espaço cultural peninsular. O

odor de Batalayaws é uma interessante

mostra dos cheiros da cidade islâmica.

Com a entrada da cidade no mundo moderno

a exposição, que continua a acentuar a linha

cronológica aborda a questão do

repovoamento, das batalhas por Portugal, das

guerras da sucessão, das laranjas e da

independência (peninsulares). Mostra o

turbulento século XIX e os primeiros anos do

século XX. Os exércitos de Badajoz eram

vistos como resistentes e ferozes.

No exterior, na Praça do Alcazar, junto às

casas mudéjar uma feira anima a cidade.

Bancas de artesanato, música, organizações

sociais mostram um pouco da vida urbana.

Elvas

Saídos de Badajoz atravessamos o Caia em

direção ao recinto amuralhado de Elvas.

Classificada como Património da Humanidade

em junho de 2012, Elvas foi uma cidade de

fronteira que agora se quer recolocar no

centro da modernidade através do turismo e

da cultura. O seu museu, o Museu de Arte

Contemporânea de Elvas é apontado como

um exemplo da intervenção modernizante do

antigo Ministério da Cultura.

Instalado numa casa senhorial, o museu

alberga a colecção dum benemérito local

“António Cachola”. Na visita, destaca-se a

exposição “Traços, Pontos e Linhas” onde se

apresentam o conjunto de desenhos dessa

coleção. Instalado num espaço generoso

dispõe das diversas condições dum museu

moderno.

Este museu contrasta todavia com o espaço

urbano envolvente. Ainda que sejam visíveis

importantes obras de intervenção e

requalificação urbana, a cidade, nesse sábado

soalheiro, parece adormecida. São visíveis a

não resolução dos conflitos entre carros e

peões. Entre desníveis. O turismo é aqui

levado à letra como elemento estruturante. O

guia urbano propõe um percurso pelos fortes

e fortins da cidade, pelos diferentes pontos de

relevância identificados. Um percurso

alucinante que termina no castelo. Uma

Page 93: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 93

espaço intervencionado pelo IPPAR, onde se

paga entrada. No exterior uma soberba vista

sobre a planície. Mais uma vez não se falam

dos ciganos. Não existem nos discursos,

embora estejam presentes nos rotos que

passam nas ruas.

Page 94: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 94

Oficinas

Page 95: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 95

Tertúlias na Baixa

Por. Pedro Pereira Leite28, Luísa Costa29, Rita Machado30, Claire Hognisbaum31, Isabel Vitor32

As “Tertúlias na Baixa” foram um conjunto de propostas de oficinas de

mediação com o objetivo de mostrar modos inovadores na exploração do

espaço sociomuseológico e de procurar a integração com as comunidades.

Foram realizadas no âmbito da “Exposição Baixa em Tempo Real”, uma

organização do Departamento de Museologia da ULHT, apresentada na

Galeria Milennium/BCP, na Rua Augusta em Lisboa de 1 de março a 30 de

Maio de 2013.

Em novembro foi proposto que cada um desenvolvesse um conceito

inovador e experimental de intervenção no campo da mediação cultural.

Entre março e abril de 2013 foram concretizadas no âmbito do progrmas de

ação cultural da exposição. De seguida apresentamos um resumo de cada

uma das ações desenvolvidas.

28

Investigador CES- Universidade de Coimbra 29

Designer- Universidade de Lisboa 30

Psicóloga Mediadora Cultural 31

Musicóloga, professora 32

Museóloga- Museu de Setúbal

Page 96: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 96

Namorar na Baixa 33

A partir do mote “Em fevereiro as lojas da

Baixa enchem-se de corações vermelhos. O

frio da pedra é aquecido pelo calor das

paixões. A paixão é um dos territórios

poéticos. A proposta deste sábado é explorar

a baixa como espaço poético e dos poetas”.

Luísa Costa apresenta uma proposta de

explorar os espaços a partir das múltiplas

dimensões poéticas.

Luísa Costa apresenta uma proposta de

exploração do espaço através da palavra do

poeta. Procura captar as emoções sentidas

ou pressentidas em casa espaço da cidade,

propondo reconstruir os roteiros da cidade.

No final da sessão, a partir dum conjunto

selecionado de poemas, cada interveniente é

convidado a colocar um poema em cada

espaço de baixa com o qual sinta

identificação.

Músicas da Baixa34

A partir do desafio “Em Março inicia-se a

primavera. A Sinfonia

da natureza toma conta

dos jardins da cidade. O

território da Baixa não

tem jardins floridos,

mas tem no seu coração os ritmos do

mundo. A proposta deste sábado é explorar

os ritmos do mundo na baixa”. Claire

Hognhisbaum

apresentou uma

proposta de mediação

musical construída com

base nos m ritmos do mundo.

Clair Hognisbhaum apresenta uma proposta

de construção das sonoridades

33

Proposta mediada por Luísa Costa, realizada no sábado 23 de fevereiro 34

Proposta mediada por Claire Hognhisbaum, realizada no sábado 9 de março

percepcioanadas por cada participante a

partir dos sons do espaço urbano.

A sessão inicia-se com a apresentação dos

participantes, através de exercícios de

sociometria. Subtilmente, são introduzidas

formas ritmas, através das quais cada um se

apresenta, sendo que o grupo reproduz as

sonoridades dos outros, procurando criar

uma ideia de conjunto.

De seguida é proposto construir um roteiro

musical, construído a partir da imitação de

sons da natureza. É apresentado numa folha

de papel A4 um desenho com diversos sons

básicos. Vento, Chuva, Trovão, Passo,

Pedras que caem, vozes humanas e sons

animais. Cada elemento do grupo escolhe

duma caixa de instrumentos disponível no

espaço, instrumentos que improvisa como

instrumentos musicais para reprodução do

conjunto dos sons de naturais. A partir da

reunião desses elementos é proposta a

criação dum ritmo uniforme. Construir uma

narrativa sonora da história apresentada.

No passo seguinte é proposto ao grupo

explorar a sonoridade do espaço urbano.

Cada elemento aplicará uma venda nos olhos

e explora o espaço urbano durante um curto

período de tempo. Por razões de segurança e

para estimular a confiança no outro, o

elemento com os olhos vendados é “guiado”

por outro membro do grupo sem olhos

vendados. Cada elemento deverá ter em

atenção as sonoridades envolventes

De regresso ao espaço museológico, cada

participante verbaliza as sonoridades,

Page 97: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 97

procurando nos instrumentos disponíveis, a

reprodução mais adequada. No processo de

seleção o grupo pode sugerir formas de

construção dos sons. Finalmente o grupo

procura criar uma sonoridade coletivas. A

construção duma opera.

A cartografia das memórias e poética do

espaço’ & 'Subjectivamente falando com

gente da Baixa’35

A tertúlia foi construída a partir da proposta

“Cartografia das memórias e poética do

espaço‟36, que explora

a expedição como

proposta de

construção de

processos

museológicos onde

ensaiamos a

inserção das

metodologias das

Histórias de Vida,

num trabalho desenvolvido com os

comerciantes da baixa. A proposta da

metodologia da viagem, que tem por base a

metodologia da Cristina Bruno, tendo sido

explorada em diferentes contextos, e

apresenta como suporte a publicação

„Saraswati Lisbon: as experiências da viagem

sobre as heranças de Lisboa‟. A proposta de

utilização das Histórias de Vida tem vindo a

ser explorada por nós em diferentes

contexos37, neste trabalho em colaboração

com Isabel Vitor, com o trabalho

“Subjectivamente falando com gente da

Baixa”: O trabalho parte das entrevistas a

três lojistas da Baixa, com o objetivo de

selecionar um objeto cuja memória seja

representativo da história do espaço. Esta é

35

Proposta Mediada por Pedro Pereira Leite e Isabel Vitor, realizada no sábado 23 de março 36

Ver Heranças Globais, nº 1 , 2012, pp 16-19 37

Veja-se artigo supra “As Narrativas Biográficas e as metodologias de Investigação-ação sobre a memória e o esquecimento.

um metodologia usada pelo Museu de

Trabalho de Setúbal38. Para esta tertúlia

foram apresenados as histórias de Horácio

Zagalo (cambistas na Baixa antiga); Manuela

Cutileiro (artes de curar bonecas e a

saudade); João Nunes (ofício de cravar

pedras preciosas e as antigas oficinas de

ourives); Vasco Melo (A Casa Campião, sorte

e Lotaria em jogo).

O objetivo foi o de explorar a Baixa como

edifício humano, espaço de múltiplas

confluências e identidades, lugar antigo

apresentado na primeira pessoa do singular.

Sai-se à rua e seguem-se as passadas de

quem conhece a Baixa como a palma da

mão. A Baixa, sobre certos pontos de vista -

quatro pessoas, quatro percursos, quatro

modos de contar e simbolizar, mapas

mentais bem guardados por quem viveu e

vive este espaço único da grande cidade.

Revelar a História da Baixa ou da Baixa

Esquecida.

Danças da Baixa

Rita Machado – Psicóloga. Tem trabalhado a

música e a dança como proposta de

construção de bem-estar na comunidade.

Rita Machado apresentou uma proposta de

trabalho que foi aplicada pela autora num

centro comunitário em Barcelona. Muitas dos

utentes do centro de dia estavam afastadas

dos seus espaços domésticos, dos seus

38

Ver encontros sobre Memória e Oralidade realizado em outubro de 2012 em Setúbal.

Page 98: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 98

objetos de memórias. Verificava-se que

tinham dificuldades em explorar os espaços

onde viviam e criar objetos identitários para

preencher os seus espaços de memória. O

trabalho desenvolvido à época baseou-se em

exercícios de construção de identidades,

através da apropriação do espaço e a da

recolha e partilha de objetos de memória. A

partir dos grupos de trabalho e das

especialidades funcionais de cada membro

do grupo foram reconstruídos objetos de

memória (por exemplo, através da aplicação

de botões, criar rostos de bonecas O

trabalho desenvolvido foi posteriormente

apresentado em exposição pública

A proposta de mediação para a tertúlia

procurou desenvolver o conceito da

adequação do espaço através das cores. A

atribuição de cores ao espaço vivido.

Distribuir cores pelos espaços da casa

Amarelo (alegria, leveza, criatividade,

energia), Azul (serenidade, contemplação),

Verde (serenidade, calma) e Laranja

(movimento, espontaneidade). A partir da

simbologia das cores, ao espaço doméstico,

cada protagonista foi convidade e atribuir cor

ao espaço da baixa. Espaço de recolhimento,

de moviumento, de contemplação de

convívio.

Page 99: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 99

Oficina do Riso

A proposta da Oficina do Riso tem por base os trabalhos desenvolvidos por

Pierre Mayland e Luísa Rogado no Museu do Homem e do Mar na

Carrapateira em Aljezur. Numa das viagens que efetuamos ao museu do

Mar no ano passado encontramos esta atividade e recolhemos os seus

principais elementos.

Depois de refletir sobre a proposta, a após a inclusão da algumas das

atividades que temos andado a desenvolver no âmbito da psicodança,

apresentamos uma primeira proposta de desenvolvimento ao Museu da

Ruralidade em Entradas, a integrar no programa de atividades do

Entrudanças. O Museu da Ruralidade é o espaço sede do grupo sobre

Oralidade, Memória e Esquecimento que temos vindo a acompanhar. Por

diversas razões não se concretizou nessa altura, tendo sido feita uma

primeira experiencia no Liceu Camões em Lisboa, em maio de 2013.

Trata-se duma proposta que se encontra em desenvolvimento, e que

procura desenvolver de formar experimental um processo de experiencia de

reconhecimento de si, dos outros e dos objetos menemónicos através do

riso.

Procura-se explorar a dimensão libertadora do Riso como instrumento de

reconhecimento de si e dos outros. Parte do reconhecimento de que o riso é

uma das mais poderosas formas de expressão dos sentimentos. A sua

função na construção do bem-estar pessoal e coletivo é reconhecida e

incorporada na organização e processo social. No caso concreto da proposta

apresentada ao musue de Entradas, procurava-se explorar a questão do

Entrudo como expressão do burlesco e da caricatura representa. Nas

sociedades que viveram o processo do Barroco, o processo de libertação

das tensões individuais e coletivas foi e continua sendo marcado pelas

expressões do burlesco.

Todas as comunidades vivenciam estas tensões da inversão dos papeis.. A

oficina do Riso procura construir a partir do riso, um conhecimento de si e

um reconhecimento do outro como forma de construção de ação

libertadora. Enquadra-se numa procura de metodologias de trabalho sobre

o Barroco, que mais acima desenvolvemos39.

39

Veja-se A Proposta da Museologia Informal como metodologia de Investigação-ação, na págiam 55

Page 100: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 100

A proposta de metodologia tem

por base a aplicação da Poética da

Intersubjetividade, constituída por

quatro momentos: A Formação do

cenário e a constituição do círculo

fenomenológico, o aquecimento, o

desenvolvimento e a

conscientização.

A proposta parte da utilização do

sentir do corpo e do movimento.

São pretextos para a catalisação

do riso. A partir do riso procura-se

criar uma predisposição para a

construção de ação social em

associação.

Procura-se através dos um acesso

ao eu. Sentir a liberdade do eu e

deixar o eu fluir. Há que aprender

a a escolher o riso e procurar

equilibrar a mente e sentir o

mundo. Todo o trabalho é feito

com o objetivo do reconhecimento

de si através da prática do riso

individual.

A procura da alegria permite

influenciar o ambiente de forma

positiva. A utilização do riso como

sensação natural explora

expressões de sentimentos, deixa

fluir as tensões e expressa a nossa

liberdade . “A essência do eu em

sociedade”. É um processo que

procura ultrapassa a dor e o

sofrimento que são uma ilusão

criada pelos pensamentos.

No Aquecimento procura-se falar

dos benefícios do riso, procura-se

que cada um recorde quando e

como se ri. Em regra, o riso é um

processo contagiante,

desencadeando rapidamente

situações vivenciadas pelos

membros do grupo.

Segue-se a ação. Através de

exercícios de relaxação e de

respiração vão ser simuladas

gargalhadas. Pode ser solicitado

para se imitar animais e tipos de

riso. Podem ser usados jogos,

dança, percussão, adereços. O

Objetivo é sentir o riso do grupo e

procurar a catarse40 coletiva

através do riso.

A ultima fase do processo implica

a reflexão. É um processo para

tomar consciência do que se

sentiu. É um tempo de relaxar e

de sentir no corpo o efeito

transformador do método. Pricura-

se entender o que aconteceu com

o grupo

Cada atividade deverá ter uma

duração de cerca de duas horas e

pode ser concretizado num espaço

museológico, com alguma

privacidade para que as ações

sejam pertença do círculo.

Há vários tipos de riso que

revelam estado emocionais e as

caratrísitcas de quem ri.

O Riso aberto expressa-se

através de gargalhadas sonoras é

característica de pessoas

extrovertidas, amigas do outro e

sinceras.

40

Catarse de integração. Um conceito desenvolvido por Moreno, parcialmente abordado em (Leite, Objetos Biográficos: A Poética da Intersubjectividade em Museologia, 2012). No próximo numero será desenvolvida esta questão

Page 101: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 101

O Riso verdadeiro: é um riso

que vem de dentro. Uma força

incontrolável que muda o rosto de

quem ri. É característico de

pessoas amigas e confiantes em

si.

O Riso largo: é próprio de

pessoas abertas e generosas.

O Riso permanente é

característico de alguém satisfeito

e otimista. É um riso que se

mantém durante o tempo de

comunicação.

O Riso contagiante: É próprio de

pessoas emotivas e otimistas, é

um riço que contagia.

O Sorriso de boca fechada: é

característico dos que controlam o

que dizem.

O sorriso de esguelha: é próprio

daquelas pessoas que disfarçam o

sorriso para que o outro não o

percebam.

O falso Riso: é rápido. Não altera

o rosto e não desencadeia

emoções.

O Riso rápido: É característico de

egoístas, pessimistas ou

introvertidas.

Existe uma vasta bibliografia sobre

o riso. Noutra altura darémos

contas destas leituras criticas e do

desenvolvimentos desta oficina.

Page 102: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 102

O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos

Entre os dias 6 e 9 de Maio de 201, realizou-se na delegação de Lisboa co CES, promovido pelo Comité português do projeto da UNESCO “A Rota do

Escravo”, em colaboração com o CES de Coimbr e o CEsA do ISEG, um ciclo de cinema “Escravatura e Tráfico de Seres Humanos: Ontem e Hoje. Uma

dúzia de filmes e dois debates constituíram o programa deste ciclo, que contou com a participação de várias dezenas de pessoas.

Page 103: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 103

Qual o sentido deste ciclo de

cinema, próximo das comemorações do dia de África a

25 de Maio. Tráfico de pessoas humanas é um fenómeno presente. Todos sabemos. O

Esquecimento é outro fenómeno que afecta as sociedades do norte,

aquelas que mais se envolveram no fenómeno histórico do tráfico negreiro. Um tráfico que favoreceu

uma determinada acumulação de capital num sistema pré-

capitalista. Uma alavancagem para a acumulação do norte. E qual o efeito do fenómeno da escravatura

nas sociedades do sul. Das novas sociedades constituídas com o

contributo e integração destes escravos. Terá o fenómeno da

dupla consciência de Paul Jilroy um oposto no fenómeno do esquecimento analisado por Jung,

Lacan e Riceur?

Vale a pena acentuar algumas

questões que este ciclo levantou. Em primeiro lugar a pertinência dum ciclo de cinema para discutir

fenómenos históricos. Sabemos que muitas das reconstituições do

passado são meras reinvenções. Conhecemos descrições sobre as condições de captura e transporte

dos cativos. Sabemos e imaginamos o que pode ser o ser

humano considerado como mercadoria. Como valor de uso e de troca, ultrapassando a sua

dimensão ontológica. Mas mais recentemente podemos olhar para

o cinema, quer na sua dimensão estética, quer na sua dimensão de documentário como um processo

narrativo de denúncia.

Deixem-me subir à palmeira,

filmado em Moçambique nos anos finais do colonialismo mostra, através duma narrativa poética

essa tensão entre o mundo

tradicional, o filha da terra que

parte para a cidade e regressa para o funeral. Já por seu lado, o

Amistad, do realizador Steven Spliberg, reconstrói através da gramática de Hollywood a

violência e o sofrimento do tráfico. Ensaia mesmo uma releitura sobre

a fundação da nação americana, com base nesse combate pela liberdade do ser escravo.

Por seu lado, o documentário “Not my live” mostra a dimensão atual

do fenómeno. Uma visão mais moralista, mês nem por isso menos violenta do que é o

fenómeno do tráfico de seres humanos na atualidade. Em suma.

O filme como documento e o debate como processo de

consciência.

Uma segunda questão que mercê ser acentuada, esta de natureza

mais histórica, relaciona-se com a análise do fenómeno da

escravatura. Em regra este fenómeno inclui três dimensões do problema: A questão da

escravatura como sistema; o tráfico de escravos; e o

abolicionismo.

No primeiro caso temos uma análise dum fenómeno que

acompanha a história dos grupos e das comunidades de forma mais

ou menos persistente. Seja como cativo de guerra, seja por nascimento, milhões de seres

humanos foram escravizados ao serviço de grandes estados ou

pequenas comunidades. Trata-se da análise dum sistema complexo e durável que leva um ser humano

a reduzir outro ser a um objeto.

No segundo caso, falamos dum

fenómeno que alicerça um processo de concentração de capital. O tráfico organizado,

Page 104: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 104

transatlântico de milhões de seres

humanos, destinado a serrem usados como mão-de-obra em

numa economia de plantação nas terras americanas e caribeanas. Um trafico que é organizado pelos

europeus, que se alicerça numa pratica antiga, mas que ganha

formas próprias no âmbito da formação do sistema económico capitalista.

Com efeito o “Tráfico” é uma forma de comércio que está

intimamente ligada às políticas mercantilistas europeias. É um fenómeno que deve ser analisado

no âmbito das responsabilidades (europeia e das chefatura

africanas), no quadro duma organização económica que forma

um sistema mundo (comércio triangular), com um objetivo de acumular capital na lógica dos

interesses europeus.

Trata-se da formação dum sistema

internacional e intercontinental que se tornou progressivamente autónomo, que criou os seus

atores próprios produzindo um enriquecimento dos intermediários

e das instituições de suporte. É um processo que paralelamente ao enriquecimento de uns se produz

uma desumanização do outro. O escravo torna-se um objeto:

Despersonalizado, dessacralizado, descivilizado, e desterritorializado. O escravo africano é retirado dos

seus quadros de referência africanos e obrigado a recriar

outras sociabilidades, noutros territórios, com outras comunidades. Quando não morre

no processo de transporte, ou no processo de trabalho, torna-se

ator de outras sociabilidades mestiças41. Um processo que é

41

Ver Claude Meillassoux (1986) Anthropologie de l'esclavage: le ventre de fer et d'argent

marcado pela barbaridade e pela

violência.

Trata-se, para a fenomenologia da

história duma questão que analisa o processo do tráfico negreiro como um processo que assegura a

desumanização do ser. O ser humano passa a objeto. “A

coisificação do se humano” como base dum processo social

Finalmente no terceiro caso, o

fenómeno do abolicionismo, que é não poucas vezes tratado como

que um processo de branqueamento do fenómeno. Uma forma de expiação da culpa.

Depois do reconhecimento do mal, valoriza-se o processo de abolição,

como que através do reconhecimento da “nobreza do

ato concedido” se procura o perdão. Um perdão moral que confere dignidade a quem o

reconhece, ao mesmo tempo que apela a quem foi vítima para se

erguer a partir do ponto em que está. Um processo que por vezes procura apaziguar a memória dos

fenómenos.

Estes três modos de abordagem

conduzem-nos a um terceiro ponto que gostaríamos de acentuar: O fenómeno da transformação do ser

humano em mercadoria. Trata-se duma questão da actualidade,

sobretudo na análise das questões do trabalho.

Sem procurar, nesta reflexão,

abordar as questões do trabalho, interessa revelar os processo

como, ao longo dos séculos, e ao longo dos diferentes processos a desvalorização do ser se confronta

com a dignidade da afirmação do ser e das suas formas de

( 1991) trad. The Anthropology of Slavery: The Womb of Iron and Gold)

Page 105: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 105

organização. O processo do tráfico

negreiro é um exemplo do modo como se constituem ideias tipo

(preconceitos) que perduram transformando o preto em escravo e em africano. No século XV, o

preto que qualifica um ser pela sua forma (adjetivo) transforma-

se num substantivo (confere-lhe substância pelo conteúdo). Trata-se dum processo estruturante que

mostra como a linguagem produziu a desubstancialização dos

africanos.

Um processo violento que retira valor e memória aos africanos,

que está na génese de criação de preconceitos em relação aos

outros, na recusa da aceitação da diferença, neste caso através da

cor da pele.

Um processo que nos conduz à questão da análise da memória. A

análise da memória social revela-nos mais as crenças do que as

verdades. Ou por outra, a crenças na verdade. A Memória da escravatura remeto-nos para a

análise dum fenómeno terrível, de visões divergentes de diferentes

comunidades, de memórias de diferentes atores

Situar os Estudos Africanos na

análise do fenómeno da escravatura.

A análise do discurso africano, da oralidade é situar a análise da palavra. O movimento da palavra

que é ritualizada. A palavra é o exercício de símbolos. Os simbolos

expressam a ligação com o mundo. A vida e a morte. A ligação à organização social, o

poder da comunidade, mediado pela sua sacralização. A

importância do parentesco. A família e os seus membros tem um lugar social. O estatuto dum

indivíduo liga-se ao da sua família,

e a sua família liga-se ao seu passado.

A dimensão coletiva do poder africano está ligada ao processo da sua relalção com os

antepassados. Os objetos do poder conferem prestígio e mostram a

sua riqueza. (Tecidos, armas, conchs, espelhos)

Apresentação de "La Route de

l’escalavage dans l´océnan Indien42

Resumo : Uma viagem por lugares da memória para resgatar do esquecimento o tráfico negreiro no

Oceano Índico. Este documentário mostra os resultados do projecto

da UNESCO, entre 2004 e 2010, que levou á criação de jardins de

memória em seis locais ligados entre si pelos laços do trato humano. Madagáscar, Reunião,

Moçambique, Maurícias, Mayotte e Pondcherry na India.

O oceano Índico é hoje um espaço de culturas mestiças. Espaço híbrido que resultou dos intensos

movimentos de pessoas e mercadorias que deixaram marcas

nos rostos e nos modos de ser e estar das gentes. Uma história feita de sofrimento no passado

que este projeto mostra hoje como um grito de liberdade em

defesa dos direitos humanos.

42Documentário de 65 „:realização: Sudel Fuma e Vitor Randrianazary, produzido por : Cátedra da UNESCO da Ilha de Reunião, 2011

Page 106: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 106

Notas de Blog

Pan-africanismo e negritude

Sob o signo de tornar a África

visível com objeto de conhecimento, proferiu hoje (Junho 2013) Elísio Macamo uma

intervenção no painel de reflexão “Pan-africanismo no processo de

produção de Ciência Social em África.

Defendeu a necessidade de olhar

para as raízes do pan-africanismo, anteriores à emergência da ideia

negritude com Leopold Shengor nos anos quarente do século passado.

O Tema pan-africanismo é discutido na passagem do século

XIX para o XX em três congressos Pan-africanisas (Paris, Londres e

São Francisco). Nessa época, onde a construção dos Estados de Homens Livres na Libéria e Costa

do Marfim, o Pan-africanismo emerge como uma proposta

política.

Desta relevância do Político sairá a linha do Pan-africanismo que

influenciará a produção da Ciência Social em África, que terá sempre

em linha de conta a ideia de ação política como projeto. Que levará entre outras questões à

constituição da OUA, em 1963, em simultâneo com outras ideias de

aglutinação regional (como por exemplo o pan-arabismo). Por essa razão, o Pan-africanismo,

enquanto projeto, acabará por ficar ancorado na ideia do Estado

como ator.

Um segunda dimensão do Pan-africanismo hoje discute-se no

domínio da Filosofia. A discussão da filosofia africana, da maneira

específica de pensar e produzir

conhecimento a partir de África.

Há quem defenda a existência duma filosofia Bantu. O que é

neste domínio relevante é que o debate sobe a africanidade é um raíz constitutiva.

Numa terceira dimensão, também política situam-se as dimensões

das experiências africanas ensaiadas nos anos sessenta. a Ujumma na Tanzânia, o Socialismo

africano, as experiências do Kenya e do Gana, a maioria delas

falhadas como projetos, mas que assumiram África como entidade política. Essa experiências criaram

uma agenda de investigação que marca a emergência das ciências

sociais e que acabaram por ser constituitivas dos Estudos

Africanos.

Nesse sentido a relação entre o Pan-africanismo e as Ciências

Sociais pode ser entendido como um processo histórico.

Museologia Informal e

Pensamento Contemporâneo

Para um novo senso-comum é

uma proposta epistemológica de Boaventura Sousa Santos. Desde a publicação em 1987 do “Discurso

sobre as Ciências Sociais”, posteriormente desenvolvidos na

Introdução a Uma Ciência Pós-Moderna em 1989 e na “Crítica da Razão Indolente: contra o

desperdício da Experiência”,publicado em 2000.

Sousa Santos defende que o conhecimento dominante criado pela Ciência Moderna não está de

acordo com o que sabemos

A crítica à epistemologia do norte

é feita a partir de três contextos

Page 107: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 107

de crise paradigmática. O contexto

do conhecimento, o contexto sociopolítico e o contexto cultural.:

O contexto da crise do conhecimento tem vindo a ser tratado por Boaventura Sousa

Santos a partir da análise crítica da relação entre sujeito que

conhece sobre objeto que é conhecido através do método de observação. O autor defende que

não há uma neutralidade axiológica nesta relação, uma vez

que quem questiona (ou observa) determina a resposta (a observação) A ciência é

comprometida e não há um conhecimento sobre o objeto que

não envolva também o sujeito que conhece.

A ciência não é mais de que um modo de explicar a realidade, através de determinados

procedimentos que interferem com essa mesma realidade. O

conhecimento é hoje mais uma probabilidade. Uma busca dum novo senso comum com base em

pergunta pertinentes.

Este novo senso-comum permite

conceber a existência duma realidade objetiva prévia ao sujeito. Uma realidade que é

anterior ao sujeito cognostente e que o estrutura. Uma realidade

que não é necessariamente conhecida por esse sujeito.

Ora todos nós, como sujeitos ou

como cientistas criamos modelos sobre essa realidade. Modelos que

procuram estar em correspondência e em conformidade prever essa

realidade. A validade do modelo, a sua verdade, advém desta

verificação.

Isto implica que não exista uma

verdade absoluta, nem tão pouco uma verdade incorporada no

sujeito. O que se verifica é apenas a adequação do modelo à extensão da realidade analisada.

Entre a realidade e o modelo verifica-se uma diferença de

extensão e de qualidade. É pois possível e muito natural que se verifique uma realidade para além

da que é analisada no modelo conceptual do sujeito. Um mundo

transcendente.

Uma vez que a realidade é modelada por uma ação, é essa

ação que, enquanto percurso, liga o conhecimento ao mundo

objetivo. Uma ação que é ela própria transcendente ao ligar o

sujeito ao mundo objetivo, produzindo um conhecimento da realidade que é apenas aquele que

conseguimos entender.

Ora se extensão da interrogação

determina a extensão da resposta a qualidade dessa interrogação determina a qualidade do

conhecimento obtido. O conhecimento é apenas uma parte

do real. O que se conseguiu extrair.

Esta interrogação sobre o sujeito

que conhece, o objeto que se conhece e o conhecimento em si

mesmo modula o pensamento contemporâneo. As interrogações sobre a unidade e a totalidade, o

contínuo e o descontínuo continuam a polarizar as

categorias do conhecimento.

O Tudo é parte de outro todo, o somatório dos descontínuos é um

contínuo, os recetores são também emissores e o objeto é

também um sujeito deixaram de se constituir como paradoxos e incorporaram a fenomenologia do

Page 108: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 108

conhecimento através dos

sisgtemas abertos. Sistemas de níveis em que cada elemento pode

ocupar diferentes posições nem diferentes sistemas.

Se a mente dum ser humano

opera num destes níveis, nada impede que se a mente social seja

um outro nível. Uma mente em que o conhecimento emerge como uma natureza relacional

intersubjetiva.

A proposta da intersubjetividade

na museologia permite articular as relações entre a unidade da mente com as interações sociais que

fundamentam a partilha social de objetos qualificados.

Museologia Informal e Planeamento Estratégico

O planeamento estratégico tem sido orientado pela lógica das necessidades. O desafio da

terceira geração de planeamento é fazer o planeamento a partir dos direitos.

Assim, em vez de projetar em função do futuro. Priojeta-se na lógica do presente. Os

equipamentos museológicos e as

ações museológicas desloca-se do

discurso das narrativas hegemónicas e centram-na nas

narrativas inclusivas.

Prevenir, proteger e participar são as palavras de orientação desta

museologia informal.

Museologia e Mimetismo

Quando as exposições são estéreis. Vazias de perceções. Sem inovação.

Quando o mimetismo é uma estrutura. Isto é quando se assume como uma conceção do

real, à qual se contrapõe uma estratégia. Um sistema de ação.

A Museologia Informal assume-se como uma reflexão sobre a ação

para criar processos inovadores Um sistema estruturado implica

um discurso legitimador através

da presença de narrativas. Os

discursos simbólicos como

narrativas de legitimação.

Page 109: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 109

O ponto da Bauhütte Em época de centenário de Almada celebremos celebremos a busca de almada.

No circulo, há um ponto interseccional com o quadrado e com o triângulo. É um ponto interior do triângulo equilátero.

A perfeição do ponto de Bahütte permite a construção do Pentagrama . No pentagrama estão presentes os quatro elementos (ar, terra, água, fogo) mais o

quinto elemento. A quinta essência. O Espírito.

Depois de Almada Negreiros, foi Lima de Freitas quem se dedicou ao estudo deste fascinante traçado geométrico: o Ponto da

Bauhütte. No seu livro Almada e o Número, Lima de Freitas desvenda-nos todo o mistério deste ponto secreto, bem como a sua origem e simbolismo:

A Bauhütte foi uma federação ou associação autónoma e secreta que uniu as lojas de pedreiros e construtores do Santo Império Germânico, incluindo

as da Suiça e dos países limítrofes de língua germânica"(Lima de Freitas, 1990, p.45)

Como os pedreiros viajavam de obra para obra, o ponto da Bauhütte servia de senha para identificar e creditar a competência do obreiro.

No entanto, a que enunciado deveria responder este traçado misterioso?

"o «Ponto daBauhütte» é aquele a que se refere uma quadra transmitida tradicionalmente pelos entalhadores de pedra da época

gótica e que fala de: «um ponto que está no círculo e se coloca no quadrado e no triângulo: conheces este ponto? Tudo irá bem. Não o conheces? Tudo será em vão» (Lima de Freitas, 1985, p.174)

Foi o próprio Almada Negreiros que traduziu esta quadra popular que Mössel encontrou no folclore germânico. Em suma, o Ponto da Bauhütte era um ponto interior ao círculo que determinava o quadrado e o triângulo

equilátero inscritos.

Eis o traçado de Almada Negreiros:

Segundo Lima de Freitas, o ponto encontrado por Almada Negreiros e que representou no painel Começar no átrio da

Gulbenkian, não responde totalmente à quadra dos entalhadores da Bauhütte:

"o traçado achado por Almada para determinar o ponto da Bauhütte constitui, quanto a mim, uma meritória aproximação, mas não responde

inteiramente às exigências postuladas pela célebre quadra (...) O ponto de

Page 110: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 110

Almada comanda, de facto, a construção do quadrado e do triângulo no

círculo, contudo não está no círculo; por outro lado, o triângulo obtido não é equilátero e não corresponde, portanto à perfeição do Três." (Lima de

Freitas, 1990, p.55)

Muitos anos depois da morte de Almada Negreiros, Lima de Freitas descobriu o ponto que correspondia às exigências da quadra:

No próximo número

Rota do Escravo

Memória e Esquecimento

O Museu Afro-digital

Page 111: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 111

Heranças Globais Memórias Locais é uma revista semestral que

apresenta os resultados do projeto de investigação ação em curso no

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra financiando

pela FCT com o nome “Heranças Globais: a inclusão dos saberes das

comunidades no desenvolvimento integrado do território”

(SHRH/BPD/76601/2011).

Page 112: Museologia Informal - Memórias Locais 2

Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 112

Apoios: Muss-amb-iki –

espaço de memória e saber