O TUTOR QUE NÃO FUI

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Reflexão sobre a experiência de tutoria.

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O TUTOR QUE NÃO FUI

Paulo Volker

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Ser tutor

não é uma tarefa trivial, não é

fácil e nem espontânea. Diz a palavra: tutor é aquele

“que coloca debaixo da vista”, “que protege”, “que orienta”, “que tutela”. Ou

seja, a tarefa do tutor é observar o outro, analisá-lo, orientá-lo. Nesse caso, o outro é alguém que

treina, que estagia, que se prepara para um futuro. Nessa formulação temos esse pressuposto básico, um “velho” (esse que

já sabe), o tutor, e aquele que treina, “o novo” (oi legoi, como dizia Hannah Arendt ao se referir à essa condição de quem chega e tem pela frente um mundo para modificar e inovar; esse sujeito que vai aprender

- sujeito da Paidéia- a conviver no mundo, através do processo de socialização). Percebi assim minha condição de “velho”, o que deve

conduzir. Percebi essa condição de forma crítica e em crise, quando comecei a me questionar sobre o que seria isso, se queria mesmo isso

e se daria conta disso. Ver o olhar de um “novo”, que busca em mim essa “condução”, foi assustador. Minha saída, vícios de formação, foi

procurar ler sobre aqueles que já passaram por essa situação. Achei algumas experiências interessantes.

O TUTOR QUE NÃO

FUIPaulo Volker

-texto dedicado a todos que participaram, direta ou indiretamente, do primeiro programa de trainee do SEBRAE Nacional -

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Comecei lendo sobre um tutor que não tinha um tutelado e necessitava urgentemente de um. Esse tutor não conseguia convencer nenhum trainee a seguí-lo e aprender as artes que ele tanto sabia. Avançando na leitura do livro, percebemos que, no fundo, esse tutor queria mesmo era um “fiel escudeiro”. Afinal, naquela época, lá pelas plagas de “La Mancha”, nos idos de 1600, era esse o conceito que se tinha de um trainee. Nesse caso, o tutor era conhecido como “Cavalheiro da Triste Figura” ou Don Quixote de La Mancha. Ele só consegue alguém para tutelar quando se empenha em “...persuadir um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se pode dar a um pobre), mas de pouca inteligência, a sair consigo como escudeiro: tanto lhe martelou, que o pobre coitado concordou. Dizia-lhe, entre outras coisas, que deveria ir de bom grado, pois poderia ocorrer de ter a sorte de ganhar uma ilha, da qual poderia ser governador”. E lá foi Sancho Pança, servir de exemplo para o mundo, como o trainee que é levado pelas promessas do tutor e passa a acreditar que assim sendo, um dia, “será governador de uma ilha”. Pensei muito sobre isso. Procurei recordar quantas vezes prometi, o que prometi e se prometendo, não seria eu também, como “El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha”, um tutor que tem do seu lado alguém movido por ilusões. 02

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De Don Quixote fui encontrar o seu contrário, antípoda como dizem os eruditos, um sujeito chamado de Tong Ki-tch‛ang, dado como

a grande referência para todos os tutores. Viveu retirado de todas as convivências e relações, dedicado exclusivamente

aos estudos e às artes, sendo procurado por centenas de jovens, para receberem orientações. É dito que

foi conselheiro de uma grande quantidade de trainees, dando-lhes orientações sobre a vida,

o trabalho e as letras. De tal forma foi um tutor de renome e competência, durante

os anos de 1600 na China, que, em 1620, um tutorando seu sobe ao

poder máximo do império. Tong Ki-tch‛ang é desses tutores que se

elevam à condição de sábio. Para tanto, se coloca “fora do mundo”,

esse modo de vida que Serge Moscovici define como “conditio sine qua”, para que alguém possa

ser reconhecido socialmente como “divino”. Lendo essa história, logo

percebi, pelo mínimo de lucidez que possuo, que nada em mim aponta

para esse tipo de tutor. Estou no mundo, mergulhado nele e, em alguns

casos, naufragado nele. Nunca fui ou poderei ser um tutor como Tong.

Por isso mesmo, essa história me me foi muito útil, tirou de mim a

ilusão de ser um tutor sábio. Mas, ao mesmo tempo, me levou a pesquisar

esses tutores que ficam entre a “engenhosidade” de um Don Quixote

e a sapiência de quem se coloca “fora do mundo”, ou seja, as pessoas

reais. 03

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Por proximidade com a cultura de Tong, descobri o código de formação do Samurai, o Bushido – considerado o maior clássico dos manuais para tutores. Imaginei que a cultura samurai, mesmo que distante no tempo, fosse um bom exemplo de processo de tutoria, afinal um samurai deve ter um exemplar processo de tutela; deve possuir

os melhores tutores, com os métodos mais eficazes. Afinal, um samurai

que não foi bem formado, morre na primeira luta. Depois de pesquisas

e leituras, cheguei à conclusão que não tinha como apresentar ao meu trainee, um “caminho de

guerreiro”, como é proposto no Bushido. De todo o estudo, me sobrou algo que trago para mim,

uma lição límpida e clara, que é um dos fundamentos do aprendiz de samurai: “Quando o guerreiro

assume uma responsabilidade, mantém sua palavra. O que promete e

não cumpre, perde respeito próprio, tem vergonha de seus atos e sua vida consiste em fugir, gasta mais energia

dando desculpas para desonrar sua palavra, do que o guerreiro usa para manter seu compromisso. Às vezes o

guerreiro assume uma responsabilidade que resultará em prejuízo. Não torna a

repetir esta atitude, mas honra o que disse e paga o preço de sua impulsividade”. Foram-se os

samurais, deixaram uma lenda de grandes guerreiros e, evidentemente, uma história pouco conhecida de

tutores e trainees, mas consigo retirar desse exemplo essa boa lição reproduzida acima.

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E segui meu caminho, em busca desses renomados tutores que o mundo registrou em livros e relatos. Encontrei então um conselheiro inigualável, Ranier de Maria Rilke. Sempre tive Rilke como poeta, do fantástico “Elegias de Duino”, onde um verso pode resumir essa minha busca sobre a prática da tutoria: “Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos Anjos?” e me ajudaria – completo eu a idéia. Lembrei-me de Rilke tutorando um jovem, algo estranho para um poeta tão solitário. Evidentemente, em se tratando de tutor com alta sensibilidade poética, sua postura de orientador é completamente diferente de todas. Rilke não se preocupa com os grandes momentos e ensinamentos que caracterizavam até agora os grandes conselheiros. A sua postura é fundamentalmente diferente. Rilke, em sua “Carta a um Jovem Poeta”, diz ao seu tutelado: “Fuja dos grandes assuntos e aproveite os que o dia-a-dia lhe oferece. Diga as suas tristezas e os seus desejos, os pensamentos que o afloram, a sua fé na beleza. Diga tudo isto com uma sinceridade íntima, calma e humilde. Utilize, para se exprimir, as coisas que o rodeiam, as imagens dos seus sonhos, os objetos das suas recordações. Se o quotidiano lhe parecer pobre, não o acuse: acuse-se a si próprio de não ser bastante poeta para conseguir apropriar-se das suas riquezas” (Primeira Carta). Lendo as cartas, escritas para o seu trainee, aprendi com Rilke que as pequenas coisas, os fatos triviais, os detalhes guardam profundas oportunidades de aprendizagem, pelo menos para mim, tutor perdido, em busca de uma identidade. No seu sábio conselho, o poeta de Praga diz ao tutelado para dar conta do seu cotidiano e não se empolgar com os brilhos esporádicos de eventos. Com isso cria uma relação essencial e significativa entre tutor e tutelado, partindo da realidade que os rodeia, deixando o foco nas coisas práticas e caminhando para o trato de questões de 05

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De Rilke cheguei em Pedro Abelardo, talvez o tutor mais paradoxal e emblemático de todos. Um representante típico dos anos 1000 na Europa, âmago da Idade Média francesa, quando conhecimentos mais inovadores começam a circular dentro da igreja. Pedro Abelardo é um desses circuladores. Adepto da linha nominalista, um dialético poderoso, que domina o conhecimento do seu tempo –naquela época isso era possível-, é um professor

brilhante, com tanta fama, que lhe foi possível, naqueles tempos, ter mais de 5000 alunos, que o acompanharam na sua trajetória tortuosa. Como tutor, ele se encanta pelas maravilhas intelectuais e estéticas da sua mais importante trainee, Heloisa, dando-lhe a sabedoria profunda da filosofia, o domínio de línguas mortas e vivas e uma imensa paixão. Esse seu amor pela mais bela e nobre trainee, o levou a jogar por terra todos os princípios de distanciamento e objetividade necessários a um tutor, para se entregar a uma paixão arrebatadora . Aberlado foi incriminado, julgado, excomungado e, num ato de extrema violência e covardia, foi castrado pelos familiares de Heloisa. Se tornou monge, foi de Nantes à Roma andando, conseguiu perdão e assumiu um monastério que se tornou famoso em toda Europa. Heloisa assumiu outro monastério, criou seu filho e recebeu mais tarde o corpo do seu amado, que foi enterrado onde trabalhava. Essa eterna trainee, quando morreu, finalmente foi enterrada ao lado do seu tutor.Abelardo é um mestre para os tutores por seus erros e acertos, por sua história espetacular, que virou um paradigma das venturas e desventuras dessa complexa relação tutor-tutelado (vale a pena ver “Em Nome de Deus” -The Magdalene Sisters- de Peter Mullan, sobre a história). 06

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Logo ali, depois dos anos 1000, em 1300, há outra relação tutor-trainee que se tornou clássica e referência para todos os estudiosos. Nesse caso, o trainee estava “nel mezzo del camin di nostra vita”, para os padrões da época, com 28 anos. Estava perdido em uma noite escura e no seu caminho cruza uma espécie de loba, que ele reconhece estar faminta e extremamente feroz. Vendo que sua vida corre perigo, se desespera e começa a entender que será dilacerado pela fera. Surge então, ao seu lado, uma voz calma que se apresenta. Ouvindo o relato de quem é, reconhece de imediato alguém que muito admira, que lhe diz:

“Agora, por minha vontade eu te ajudoLevar-te-ei comigo, te guiarei

Através do lugar de eterno sofrimento...”.Esse é o verso 113 do Canto I da Divina Comédia, que, para mim, estabelece o marco do “renascimento” da relação tutor-trainee, expresso no verso “che tu mi segui, e io sarò tua guida” - você me segue e eu te guio. Há aqui algo fundamental. O tutor conhece, então vai na frente. O tutelado (que estava perdido e em perigo), reconhece que o tutor sabe o caminho e o toma como guia. Esse pressuposto é fundamental para que o resultado da tutoria seja alcançado. Afinal, o que Dante e Virgílio encontram pela frente é um lugar perigoso. A tarefa de Virgílio como tutor inicia então, na Divina Comédia, na travessia do inferno, depois no purgatório, até as portas do paraíso. Então, já em um lugar que não oferece perigo, Virgílio termina a sua tarefa. Esse é um fator importante. O tutor só tem sentido e necessidade, enquanto o tutelado caminha por lugares que não conhece e que precisa de ajuda. Quando chega em lugar seguro, o tutor já se ausenta (“Ma Virgilio n‛avea lasciati scemi”), porque não é mais necessário. E o trainee, tendo feito o seu papel de seguir o tutor pelo caminho seguro, afirma a importância de Virgilio – “... a cui per mia salute die‛mi” – aquele que o salvou ele reconhece. Esse é o gesto final do acordo. 07

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Por tudo que li, estudei e entendi tutor é diferente de professor, pedagogo, mestre e orientador. O melhor exemplo é a relação entre Alexandre, o Grande e o filósofo Aristóteles. Achei que essa relação foi emblemática, porque Aristóteles foi professor, pedagogo, mestre, orientador e tutor e, na vida dele, cada uma dessas funções foi claramente diferente da outra. Como professor, obviamente, dava aulas, com uma metodologia e didática definida, na sua escola, o Liceu. Ali, portanto,

ele tinha um planejamento de lições teóricas e conceituais para ministrar – foi então professor. Foi pedagogo, quando inventou um método de dar aula e ensinar, o método peripatetico (de peripatus – andar), que pressupunha lições ministradas enquanto professor e alunos andavam. Foi considerado mestre, porque foi um dos primeiros pensadores que conseguiu referendar seu conhecimento em vários pensadores antigos,

organizando o passado do conhecimento e dominando a história da ciência da sua época (seu livro Metafísica, é um compêndio de história da filosofia, anterior ao conhecimento da sua época). Finalmente, como orientador, fez do seu Liceu uma escola de pesquisas e experimentações, que o tinha como referência.Como tutor, fez algo completamente diferente de todas as atividades listadas acima. Ele foi tutor de Alexandre durante 4 anos. Ainda como um pensador pouco conhecido, ele dá conselhos para a formação do futuro rei da Macedônia. Esse aconselhamento é do tipo “vade mecum”, fazer junto, estar junto. Diferentemente de todos as outras atividades que Aristóteles executou, nessa, especificamente, ele andou-junto com Alexandre e mostrou a ele como se faz. Leu com ele a Ilíada, não ensinou, não orientou, não conduziu de um modo especial – leu junto. Essa leitura conjunta, era anotada, discutida e, mais tarde, esse livro anotado por Aristóteles, passou a ser chamado de “Ilíada do Escrínio” – um produto da tutoria. 08

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Essa característica da tutoria como um “fazer junto” (vade mecum) é algo que determina a diferença de vários tipos de relações, como a que existe entre professor e aluno, por exemplo. Veja o caso de Wolfgang Ernst Pauli, o famoso físico, prêmio Nobel em 1945, com sua teoria sobre o “princípio de exclusão” dos elétrons e um dos fundadores da mecânica quântica. Um gênio, que foi capaz de, com 21 anos, apresentar uma pequena tese de doutorado de apenas

237 páginas para Einstein e receber dele um significativo elogio. Entretanto, depois de grandes feitos e grandes descobertas, com 31 anos, Pauli teve um colapso nervoso. Para tratamento, foi buscar ajuda no já famoso psiquiatra suíço Karl Jung, então com 56 anos. Pauli encontra Jung com um problema mental e necessita de ajuda para resolvê-lo. Submete-se então a uma terapia que, para um físico, é absolutamente estranha e bizarra, a psicanálise, fundada na interpretação dos

sonhos. A relação entre Pauli e Jung é tão fantástica, que resulta num “modelo ideal” de relação entre tutor e trainee.Num primeiro momento, Pauli se encontra em perigo (situação Dante), e busca o “fator Virgílio”, Jung. Por uma questão de fundamento científico, o método terapêutico aplicado por Jung (a psicanálise), estabelece uma relação de fazer-junto (“vade mecum”), afinal, Pauli deve contar seu sonho e Jung o conduz (“che tu mi segui, e io sarò tua guida”) para a interpretação. O processo se desenrola e, depois de mais ou menos 400 sonhos interpretados, a relação entre Pauli e Jung se inverte completamente. Pauli se cura e, com seu conhecimento da teoria da relatividade e da mecânica quântica, passa a tutorar Jung no entendimento das

“sincronias” (coincidências significativas), como diz Jung “...apesar de eu não ser um matemático, me interesso pelos avanços da física moderna, que está cada vez mais se aproximando da natureza da psique, como tenho visto há muito tempo. Muitas vezes falei sobre isso com Pauli” (cartas Pauli-Jung). Pauli se cura e, através de cartas, fundamenta com as teorias da física moderna, as pesquisas e experiências de Jung. Dessa relação surge, em 1952, o livro “A interpretação da natureza e a psique”.

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Depois de toda essa viagem, lendo, buscando e tentando entender a relação tutor-tutelado, concluo que não me adequo inteiramente

a nenhum dos exemplos apresentados acima. Me falta sempre alguma coisa, para que possa me aproximar de qualquer um dos exemplos apresentados. Mas me impressiona, em cada um desses tutores, a competência, a sapiência, a dedicação e, acima de tudo, a capacidade de, efetivamente, somar para a vida do tutelado. Mesmo Dom Quixote, que precisa iludir Sancho para ter alguém para tutelar, tem méritos históricos. Afinal, quem saberia de Sancho se não fosse a sua aventura ao lado do engenhoso fidalgo? Abelardo, esse

tutor arrebatado pela paixão, sábio e sacrificado, deixa sua história como ícone e alerta. Quem pode reprová-lo? Do oriente, a educação dos samurais e a tutela de Tong Ki-tch‛ang me surgem como demasiadamente distantes, pela relação quase impossível que possibilitam com o mundo moderno, apesar de indicar princípios importantes. De Virgílio tiramos essa “mão estendida” que deu a Dante, como algo realmente significativo na tutoria. Afinal, como pode o tutor, em momentos de “perigo”,

não ir na frente? Aristóteles nos deixa essa lógica vital do fazer-junto, algo tão simples e básico, que se torna pré-condição para o exercício do tutor. Finalmente esse modelo Pauli-Jung, talvez a grande meta de todo tutor, que mostra na prática aquela tese “3ª Tese sobre Feuerbach” que diz “...o educador tem ele próprio de ser educado”. Afinal não foi exatamente isso que ocorreu com Jung? Não foi ele inicialmente o tutor, que levou Pauli , através dos sonhos, para a cura e que depois teve de Pauli a “mão estendida” para solução dos seus problemas com a teoria da sincronicidade? 10

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Q u e r i a

ser esse

tipo de

tutor, com

a sensibilidade

de um Rilke, que

chama o tutelado para

o encontro de si mesmo;

que consegue dar algum

caminho para o trainee, nesse

mundo de descaminhos, e faz

isso de modo tão eficiente, que, um

dia, eu próprio, me torne também um

trainee, tutelado por aquele que tutelei.

Um ex-trainee, que se torna livre de mim,

pleno de si e em condições de me dizer “che tu

mi segui, e io sarò tua guida”.

– dezembro de 2008 - Brasília

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