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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Privado Rafael Del-Fraro Rabêlo REGISTRO DE IMÓVEIS E FÉ PÚBLICA REGISTRAL NO BRASIL Belo Horizonte 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito Privado

Rafael Del-Fraro Rabêlo

REGISTRO DE IMÓVEIS E FÉ PÚBLICA REGISTRAL NO BRASIL

Belo Horizonte

2018

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Rafael Del-Fraro Rabêlo

REGISTRO DE IMÓVEIS E FÉ PÚBLICA REGISTRAL NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Linha de Pesquisa: Reconstrução dos Paradigmas do Direito Privado no contexto do Estado Democrático de Direito Orientador: Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza

Belo Horizonte

2018

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Rabêlo, Rafael Del-Fraro

R114r Registro de imóveis e fé pública registral no Brasil / Rafael Del-Fraro

Rabêlo. Belo Horizonte, 2018.

232 f.

Orientador: Adriano Stanley Rocha Souza

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Direito

1. Segurança jurídica. 2. Direito notarial e registral. 3. Bens imóveis - Brasil.

4. Garantia (Direito). 5. Registro de imóveis - Legislação. 6. Direito imobiliário -

Brasil. I. Souza, Adriano Stanley Rocha. II. Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 347.235

Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito– CRB 6/2999

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Rafael Del-Fraro Rabêlo

REGISTRO DE IMÓVEIS E FÉ PÚBLICA REGISTRAL NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito. Área de concentração: Direito Privado Linha de Pesquisa: Reconstrução dos Paradigmas do Direito Privado no contexto do Estado Democrático de Direito

_____________________________________________

Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza – PUC Minas (Orientador)

_____________________________________________

Prof. Dr. César Augusto de Castro Fiuza – PUC Minas (Banca Examinadora)

_____________________________________________

Profa. Dra. Wânia do Carmo de Carvalho Triginelli – PUC Minas (Banca Examinadora)

_____________________________________________

Prof. Dr. Luciano Dias Bicalho Camargos – UNI-BH (Banca Examinadora)

Belo Horizonte, 1º de março de 2018.

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Dedico este trabalho a meus pais, Reginaldo e Climênia, meus maiores exemplos de dignidade,

força e amor.

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AGRADECIMENTOS

Aos colaboradores do 1º Ofício de Registro de Imóveis de Barbacena/MG,

que tiveram a sensibilidade de compreender minha necessidade de dedicação à

elaboração deste trabalho;

Ao Dr. Sérgio Jacomino, oficial do 5º Registro de Imóveis de São Paulo/SP,

por sua generosidade em disponibilizar seu acervo pessoal à biblioteca da Academia

Brasileira de Direito Registral Imobiliário, permitindo que estudiosos da área tenham

acesso a farta doutrina nacional e estrangeira;

À Cristina Viana, gentil bibliotecária da Medicina Animae, que tanto me ajudou

em minhas pesquisas.

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RESUMO

Este trabalho trata da eficácia produzida pelo registro de aquisição de imóvel ou

direito real sobre imóvel no Brasil, assunto cuja relevância pode ser traduzida pela

segurança que o Registro de Imóveis transmite a quem deseja negociar com

imóveis, inclusive pela concessão de crédito com garantia imobiliária, cuja

intensificação é essencial para o desenvolvimento do país. Busca-se investigar se tal

registro produz apenas presunção iuris tantum de veracidade e validade, podendo

ser cancelado diante de divergências com a realidade extrarregistral, ou se, diante

de algumas circunstâncias, pode produzir presunção iuris et de iure de veracidade e

validade, nos termos do denominado princípio da fé pública registral. Nos países que

adotam esse princípio, fatos jurídicos que não constam da matrícula do imóvel não

podem ser opostos ao terceiro adquirente, desde que atendidas algumas condições,

as quais variam de acordo com o ordenamento jurídico. Como metodologia, recorre-

se à doutrina brasileira e estrangeira especializada sobre o tema, bem como à

jurisprudência nacional. Analisam-se as características do sistema registral

imobiliário brasileiro ao longo de toda sua evolução. Verifica-se que o fundamento da

fé pública registral reside no princípio da tutela da aparência jurídica. No entanto,

embora se encontre consagrado no Brasil, até a entrada em vigor da Lei nº

13.097/2015, esse princípio não era suficiente para justificar a fé pública registral,

porquanto havia dispositivo expresso em sentido contrário no Código Civil de 2002 e

a obrigatoriedade de concentração de todas as informações do imóvel na matrícula

ainda não vigorava com efetividade. Foi somente com a referida lei que esses

obstáculos foram superados e o princípio da fé pública registral foi expressamente

reconhecido em seu texto, que dedicou proteção quase absoluta aos adquirentes de

lotes e unidades autônomas de condomínios edilícios, nas transações feitas

diretamente com o empreendedor. Apesar de tal lei prever quantidade considerável

de exceções à fé pública registral em sua regra aplicável às demais situações,

houve inegável evolução no sistema registral imobiliário, que passou a priorizar a

segurança do tráfico jurídico e, com isso, tende a incrementar as transações

imobiliárias e estimular o desenvolvimento socioeconômico.

Palavras-chave: Segurança jurídica. Direito Registral Imobiliário. Fé pública

registral.

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ABSTRACT

This work is about the efficacy produced by the registration of property acquisition or

the real right over the property in Brazil, a matter whose relevance can be translated

by the safety that the Registration of Property transmits to those who wish to

negotiate with properties, including through the loan concession with real estate

collateral warranty, whose intensification is essential for the development of the

country. This work seeks to investigate if such registration produces only a iuris

tantum presumption of veracity and validity, therefore being able to be cancelled

facing divergence with the extra-registrational reality, or if, facing certain

circumstances, it can produce a iuris et de iure presumption of veracity and validity,

in the terms of the known principle of the public faith of registry. In the countries that

adopt this principle, legal facts that aren’t present in the property’s registration cannot

be opposed to the third acquirer, as long as certain conditions are met, which vary

according to the judicial order. As a methodology, this work turns to the Brazilian and

foreign doctrine specialized on the topic, as well as to the national jurisprudence. The

characteristics of the Brazilian real estate registration system are analyzed

throughout their evolution. It is verified that the fundaments of the public faith of

registry reside in the principle of the protection of the legal appearance. However,

although it is consecrated in Brazil, until the entry into force of Law number

13.097/2015, this principle wasn’t enough to justify the public faith of registry, since

there was a device expressed in the opposite direction in the Civil Code of 2002 and

the obligation of the concentration of all the information from the property in the

registration wasn’t effectively present. It was only with the aforementioned law that

these obstacles were overcome and the principle of the public faith of registry was

expressively recognized in its text, which dedicated almost complete protection to the

acquirers of land and autonomous units of building condominiums, in the transactions

made directly with the entrepreneur. In spite of such law foreseeing a considerable

amount of exceptions to the public faith of registry in its applicable rule to other

situations, there was an undeniable evolution in the real estate registry system, which

began to prioritize the safety of the legal trade and, with it, it tends to increment the

real estate transactions and encourage the socioeconomic growth.

Keywords: Law safety. Real estate registry law. Public faith of registry.

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LISTA DE ABREVIATURAS

art. artigo

arts. artigos

atual. atualizada

coord. coordenador (a)

inc. inciso

org. organizador (a)

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LISTA DE SIGLAS

BGB Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão)

CPC Código de Processo Civil

LH Lei Hipotecária espanhola

STJ Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 23

2 FORMAS DE TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL E SISTEMAS DE REGISTRO IMOBILIÁRIO .............................................................................. 27

2.1 Formas de transmissão da propriedade imóvel ............................................. 27 2.1.1 Do consensualismo contratual ..................................................................... 28 2.1.2 Do sistema de título e modo .......................................................................... 29 2.2 Sistemas de registro imobiliário ...................................................................... 31 2.2.1 Conceito .......................................................................................................... 31 2.2.2 Origem ............................................................................................................. 32 2.2.3 Classificações ................................................................................................ 33 2.2.4 Sistemas de registro de documentos ........................................................... 36 2.2.5 Sistemas de registro de direitos ................................................................... 41 2.2.5.1 Registro Torrens ............................................................................................ 47 2.2.5.2 Registro de direitos fraco ............................................................................... 49

3 VÍCIOS DO REGISTRO E SUA OPONIBILIDADE A TERCEIROS: DIREITO ESTRANGEIRO .................................................................................................... 53

3.1 Vícios do registro e seu tratamento nos diferentes sistemas registrais ...... 54 3.1.1 Dos vícios do registro .................................................................................... 55 3.1.2 Classificação dos vícios do registro ............................................................ 55 3.2 Direito estrangeiro ............................................................................................ 60 3.2.1 Do sistema registral francês ......................................................................... 61 3.2.1.1 Características gerais .................................................................................... 61 3.2.1.2 Inexistência de proteção ao terceiro adquirente de boa-fé ............................ 65 3.2.2 Do sistema registral alemão .......................................................................... 67 3.2.2.1 Características gerais .................................................................................... 68 3.2.2.2 Proteção ao terceiro adquirente de boa-fé .................................................... 74 3.2.2.3 Críticas .......................................................................................................... 80 3.2.3 Do sistema registral espanhol ...................................................................... 81 3.2.3.1 Características gerais .................................................................................... 82 3.2.3.2 Proteção ao terceiro adquirente de boa-fé .................................................... 85 3.2.3.2.1 Legitimação registral .................................................................................. 85 3.2.3.2.2 Fé pública registral ..................................................................................... 86

4 SISTEMA REGISTRAL IMOBILIÁRIO BRASILEIRO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA, CARACTERÍSTICAS E desPROTEÇÃO DOS TERCEIROS ADQUIRENTES DE BOA-FÉ ........................................................................................................ 103

4.1 Do descobrimento do Brasil a 1843: inexistência de qualquer espécie de registro imobiliário .................................................................................... 104

4.2 De 1843 a 1916: adoção do sistema francês ................................................. 105 4.3 De 1917 a 1975: aproximação do sistema germânico, mas com

manutenção do fólio pessoal ......................................................................... 111 4.3.1 Tese da adoção do princípio da fé pública registral pelo Código Civil

de 1916: dominante na doutrina até a década de 1940 ............................. 117 4.3.2 Tese da não vigência do princípio da fé pública registral: dominante

após a intervenção de Soriano Neto ........................................................... 122

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4.3.3 O Decreto-Lei no 1.000/1969 e tentativa frustrada de introdução do princípio da fé pública registral no Brasil ............................................. 127

4.4 A Lei de Registros Públicos e a introdução do sistema do fólio real ......... 128 4.4.1 Concentração obrigatória ou não de todos os atos na matrícula ............ 130 4.4.2 Código Civil de 2002: tentativa deliberada de afastamento da fé

pública registral ............................................................................................ 132 4.5 De 2015 à atualidade: a ainda não compreendida introdução do

princípio da fé pública registral pela Lei nº 13.097/2015 ............................. 135

5 FÉ PÚBLICA REGISTRAL COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA TUTELA DA APARÊNCIA ........................................................................... 137

5.1 Dos princípios jurídicos .................................................................................. 138 5.2 Publicidade registral imobiliária .................................................................... 140 5.2.1 Publicidade jurídica...................................................................................... 141 5.2.2 Publicidade do Registro de Imóveis ........................................................... 144 5.2.3 Publicidade registral imobiliária e geração de aparência jurídica ........... 147 5.2.3.1 Da aparência jurídica ................................................................................... 147 5.2.3.2 Publicidade e aparência: semelhanças, diferenças e interconexão ............ 149 5.3 Proteção da aparência jurídica ...................................................................... 151 5.3.1 Fundamentos da tutela da aparência jurídica ............................................ 153 5.3.1.1 Cadeia principiológica que fundamenta a tutela da aparência jurídica ........ 155 5.3.1.2 Compatibilização da segurança jurídica estática com a dinâmica ............... 157 5.3.1.3 Princípio da confiança como fundamento imediato da tutela da aparência

jurídica .................................................................................................................. 161 5.3.2 Reconhecimento da tutela da aparência como princípio jurídico............ 163 5.3.2.1 Requisitos gerais do princípio da tutela da aparência ................................. 166 5.3.2.2 Efeitos do princípio da tutela da aparência jurídica ..................................... 169 5.3.3 Do princípio da tutela da aparência como fundamento do princípio

da fé pública registral ................................................................................... 171 5.4 Obstáculos à aceitação da fé pública registral no Brasil antes

da Lei nº 13.097/2015 ...................................................................................... 173

6 ADOÇÃO DA FÉ PÚBLICA REGISTRAL NO BRASIL – LEI Nº 13.097/2015 ... 179 6.1 Da necessidade de concentração de todas as informações relevantes

sobre o imóvel na sua matrícula ................................................................... 180 6.2 Das modalidades de proteção a terceiros instituídas pela

Lei no 13.097/2015 ........................................................................................... 184 6.2.1 Reforço ao princípio da inoponibilidade .................................................... 184 6.2.2 Regra geral da fé pública registral: proteção ao terceiro adquirente

de boa-fé ........................................................................................................ 189 6.2.2.1 Do efetivo acolhimento do princípio da fé pública registral .......................... 189 6.2.2.2 Requisitos da fé pública registral segundo a regra de aplicação geral ........ 193 6.2.2.3 Exceções à regra geral da fé pública registral ............................................. 201 6.2.2.3.1 Créditos tributários inscritos em dívida ativa ............................................ 206 6.2.2.3.2 Duplicidade de matrículas ........................................................................ 211 6.2.3 Regra especial da fé pública registral: proteção a adquirentes de lotes

e unidades autônomas condominiais ......................................................... 211 6.3 Caracterização do sistema registral imobiliário brasileiro após a entrada

em vigor da Lei nº 13.097/2015 ...................................................................... 214

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7 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 217

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 221

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como escopo verificar se o princípio da fé pública registral,

também denominado de eficácia material do registro, já se encontra vigente no

Brasil e em que termos.

Tal princípio significa que nenhuma situação jurídica pode ser oponível àquele

que adquire propriedade ou outro direito real sobre imóvel, desde que não tenha

havido em sua matrícula notícia a respeito de possível vício em registro anterior.

Pressupõe-se, assim, a existência real de vício que, em tese, afetaria, em sua

existência, validade ou eficácia, algum registro anterior ao do adquirente, mas que,

por tal situação não lhe ter sido alertada na própria matrícula do imóvel, não pode

ele ser prejudicado. A fé pública registral implica obrigatoriedade de que todas as

informações relevantes sobre o imóvel estejam concentradas na matrícula e não

impede discussões sobre vícios relativos ao registro do adquirente, enquanto o

direito não circula.

Discussões sobre a incidência de tal princípio no Brasil existem desde a

edição do Código Civil de 1916, que abrigou sistema registral imobiliário com

algumas características germânicas. Entre as décadas de 1920 e início de 1940, a

doutrina dominante entendia que referido Código havia adotado a fé pública

registral, mas obra publicada por Soriano Neto em 1940 alterou por completo o

panorama, de forma que, desde então, doutrina e jurisprudência, de forma

praticamente unânime, passaram a rechaçar a eficácia material do registro.

A discussão sobre o tema retornou apenas com a publicação de tese de

doutorado de Leonardo Brandelli, em 2016, sob o título Registro de Imóveis: eficácia

material, em que o autor sustenta a aplicabilidade da fé pública registral não como

decorrência de lei, mas com base em seu fundamento, constituído pelo princípio da

tutela da aparência jurídica.

Entre a defesa da tese e a publicação desse livro de vanguarda, foi editada a

Lei nº 13.097/2015, com dispositivos específicos que, ao menos aparentemente,

tratam da fé pública registral.

Foi a falta de atenção da doutrina e jurisprudência atuais à alteração

legislativa, aliada aos convincentes argumentos do referido autor sobre o

fundamento da fé pública registral, que motivaram esta pesquisa. Impressiona

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verificar que praticamente nada foi escrito sobre o tema desde a publicação da

mencionada lei.

Não se trata de assunto de menor importância. É notório que a maioria das

pessoas que possuem imóveis têm nestes a maior parcela de seu patrimônio. Quem

não os tem normalmente sonha em adquirir ao menos a residência própria. O

acesso ao crédito lastreado em imóveis é fundamental para o desenvolvimento de

qualquer país, pois representa a forma mais barata de se obter recursos para

investimentos. E só existe crédito imobiliário farto e acessível onde há propriedade

formal e sistema registral forte, apto a proteger adquirentes e credores de vícios

ocultos em registros anteriores.

Com efeito, a fé pública registral faz com que, preenchidos determinados

requisitos, com variações entre os diferentes ordenamentos jurídicos, passem a

gozar de presunção iuris et de iure de veracidade e validade as inscrições anteriores

ao último registro de título de aquisição de imóvel ou direito real sobre imóvel. Esse

efeito produz-se tão somente no tocante ao adquirente que registra seu título, com

relação a quem são ineficazes quaisquer vícios existentes em registros anteriores.

Tais vícios continuam podendo ser discutidos judicialmente, mas somente entre

prejudicado e causador do dano, o qual poderá ser condenado a ressarcir as perdas

causadas àquele, tudo sem afetar o atual titular do direito. Sendo aplicável a fé

pública registral, atos de inscrição anteriores não mais podem ser cancelados,

conquanto eivados de vícios.

Dinamizam-se, assim, as transações imobiliárias envolvendo imóveis, que se

tornam mais simples e seguras.

A elaboração deste trabalho foi dificultada justamente pela falta de discussões

sobre o tema no Brasil. Desde a obra de Soriano Neto, de quase 80 anos atrás, o

assunto foi praticamente esquecido. Na realidade, se repetiam as vetustas

conclusões, como se o ordenamento jurídico não evoluísse.

Por isso, além da doutrina nacional – farta apenas nas referidas décadas de

1920 a 1940 – e da repetitiva e uníssona jurisprudência brasileira, recorreu-se à

doutrina estrangeira, especialmente a autores espanhóis e portugueses, que tratam

dos sistemas registrais alemão e espanhol, nos quais a fé pública registral não é

novidade há muito tempo. A esses entendimentos sobre Direito estrangeiro, somou-

se a doutrina nacional sobre o princípio da tutela da aparência jurídica e, quanto a

esse tema, em especial à citada obra de Leonardo Brandelli.

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Com base nesse material, interpreta-se a recente Lei nº 13.097/2015 e se

sustenta que, somente a partir desta, houve o efetivo acolhimento do princípio da fé

pública registral no Brasil.

Para se chegar a essa conclusão, é preciso percorrer longo percurso. Assim,

inicialmente, discorre-se sobre conceitos fundamentais, como o de sistema de

registro de imóveis, relacionando-o com as diferentes formas de transmissão da

propriedade imobiliária, adotadas pelos diversos ordenamentos. Em um primeiro

momento, é importante compreender a distinção entre sistemas de registro de

documentos, de origem francesa, e de registro de direitos, de inspiração germânica.

É preciso assimilar por que a fé pública registral somente é um efeito do registro na

segunda espécie de sistemas registrais.

Como a fé pública registral é tema que adquire relevância apenas diante da

possibilidade de haver vícios no registro, estes são objeto de estudo na sequência. A

contextualização de como cada sistema lida com os vícios ocorre com a análise dos

sistemas registrais francês, alemão e espanhol. Os dois primeiros são de grande

relevância para o entendimento do próprio Registro de Imóveis brasileiro, pois no

país, em um primeiro momento, adotou-se o modelo francês, para, a partir do

Código Civil de 1916, acolherem-se características do modelo tedesco. Contudo, a

peculiaridade de se adotar, na Alemanha, um sistema jurídico de abstração entre os

planos obrigacional e real poderia dificultar a percepção de sua aplicabilidade no

Brasil. Por isso, recorre-se ao sistema registral da Espanha, onde, da mesma forma

como no Brasil, adota-se a causalidade relativa entre os planos.

Em seguida, analisa-se o sistema registral brasileiro desde sua introdução,

em meados do século XIX. Analisam-se todas as transformações importantes

ocorridas desde então, que, somadas, resultaram no sistema atual.

A publicidade do Registro Imobiliário e seus efeitos são analisados em

capítulo subsequente, quer seja para demonstrar o erro das antigas discussões

sobre a fé pública registral, que focavam no instituto da publicidade, quer seja como

contraposição à proteção da aparência jurídica, o real fundamento da eficácia

material do registro. Constata-se a aceitação do princípio da tutela da aparência

jurídica no Brasil, o qual deriva de uma cadeia principiológica, que se inicia no

Estado de Direito, passa pela segurança jurídica e, finalmente, pela tutela da

confiança. Questiona-se se o princípio da tutela da aparência, aliado às

características adquiridas pelo sistema registral imobiliário brasileiro até o Código

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Civil de 2002, seriam suficientes para a aceitação da fé pública registral. Leonardo

Brandelli sustenta resposta positiva a essa questão, com o que se diverge neste

estudo.

Ao final, trata-se dos dispositivos da Lei nº 13.097/2015 que efetivamente

introduziram o princípio da fé pública registral no Brasil, superando os óbices ainda

existentes. As análises anteriores sobre os sistemas registrais alemão e espanhol e

a respeito da tutela da aparência jurídica são fundamentais para a boa compreensão

da nova legislação, cuja redação não prima pela boa técnica. Discute-se, assim, em

que termos a fé pública registral foi adotada no Brasil, seus requisitos e exceções.

Enfim, espera-se contribuir para o debate de importante e intrigante tema,

cujas discussões ainda são bastante incipientes no país.

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2 FORMAS DE TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL E SISTEMAS DE

REGISTRO IMOBILIÁRIO

Cada ordenamento jurídico determina os requisitos exigidos para que se

considere perfeita a transmissão da propriedade sobre um imóvel, sendo bastante

comum que as exigências sejam as mesmas para a constituição ou transmissão de

outros direitos reais. Está-se, aqui, no âmbito do direito material, que, nas

sociedades ocidentais, costuma exigir também um registro – instituto de direito

formal – em repartição competente, o qual pode servir apenas para gerar

oponibilidade erga omnes à situação jurídico-real já consolidada (registro apenas

declaratório) ou ter efeito mais forte, de constituir ou transferir o direito real. Trata-se

de opção de cada legislador.

De qualquer forma, neste capítulo busca-se diferenciar dois fenômenos que,

embora tecnicamente distintos, estão intrinsecamente relacionados entre si: as

formas de transmissão da propriedade imóvel e os sistemas de registro imobiliário,

cujos modelos adotados nos principais ordenamentos jurídicos são também objeto

de análise.

Demonstra-se, ao final, a contradição existente no Brasil – ao menos segundo

o entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência – no sentido de que se

adota determinado modelo de sistema registral, ao mesmo tempo que se nega a

produção de seu principal efeito, que é a fé pública registral, cujas primeiras noções

são explicadas neste primeiro momento.

2.1 Formas de transmissão da propriedade imóvel

Analisam-se, a seguir, as duas principais formas de transmissão da

propriedade imóvel adotadas por países de influência romano-germânica: o

consensualismo contratual e o sistema do título e modo. A definição dos requisitos

cujo cumprimento é exigido para o aperfeiçoamento da transmissão da propriedade

imobiliária em cada ordenamento jurídico é pré-requisito para se compreender o

correspondente sistema registral imobiliário.

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2.1.1 Do consensualismo contratual

O princípio do consensualismo contratual, originalmente adotado pelo Código

Civil francês de 18041, tem origem filosófica no jusnaturalismo do século XIX, que

pregava a primazia da vontade, de forma que não se vislumbrava, no caso de

transmissão derivada de imóvel por ato inter vivos, a necessidade de nenhuma

formalidade complementar ao contrato para que este produzisse todos os seus

efeitos, inclusive no campo dos Direitos Reais2.

Nesse sentido, o art. 1.583 do Code Civil prevê expressamente que a venda

“é perfeita entre as partes, e a propriedade se adquire de direito pelo comprador

frente ao vendedor, desde a convenção da coisa e do preço, mesmo que a coisa

ainda não tenha sido entregue, nem o preço pago” (tradução nossa)3. Em outras

palavras, a propriedade sobre bens móveis e imóveis se adquire por simples efeito

do contrato que não padeça de vícios (o título), não se exigindo nenhuma

formalidade posterior (o modo), como a tradição e o registro, para se consolidar4.

Pode-se concluir, assim, que nos sistemas jurídicos que adotam o princípio do

consensualismo não há necessidade de se distinguir o negócio jurídico obrigacional

(e.g., a compra e venda) do negócio dispositivo (e.g., o acordo sobre a transmissão

1 O Código Civil Napoleônico é a origem moderna do princípio do consensualismo. Contudo, alerta

Mónica Jardim que “este regime de transmissão ou constituição solo consensu teve a sua origem no direito romano e foi consagrado pela primeira vez, no século IV, pelo Imperador Constantino”. Porém, a própria autora ressalva que, na verdade, “o sistema de aquisição de direitos reais que dominou no Direito romano foi o sistema do título e do modo. Assim, o título, em si mesmo – a doação ou a venda –, produzia apenas efeitos obrigacionais e a eficácia real pressupunha um modo: a mancipatio ou a in iure cessio, ou – o modo cada vez mais dominante e, finalmente, o modo exclusivo – a traditio”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 481-523, jul./dez. 2016. p. 483).

2 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 165-166.

3 Referido artigo, previsto no Título VI, específico sobre a venda, tem a seguinte redação original: “Elle est parfaite entre les parties, et la propriété est acquise de droit à l'acheteur à l'égard du vendeur, dès qu'on est convenu de la chose et du prix, quoique la chose n'ait pas encore été livrée ni le prix payé”. (FRANÇA. Code Civil (1804). Lei 1804-03-06).

4 Nesse sentido, Mónica Jardim explica que o princípio do consensualismo, “na sua rigorosa acepção técnico-jurídica em matéria de Direito das Coisas, significa que, nos direitos reais convencionalmente estabelecidos, para a produção do efeito real, regra geral, basta, ou é condição suficiente, um ‘título’ – o qual, por força do princípio da causalidade, há-de existir, ser válido e procedente –, sendo desnecessário um modo”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 481-523, jul./dez. 2016. p. 482).

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da propriedade), na medida em que os direitos reais são produzidos exclusivamente

como consequência da relação jurídica obrigacional5.

No entanto, observa-se que, nos países que adotam o princípio do

consensualismo, existe a tendência de haver número razoável de exceções, ou seja,

de situações jurídicas cuja constituição se dá pelo sistema do título e modo. Por

exemplo, em Portugal a constituição da hipoteca dá-se com o registro do título6, que

nesse caso é constitutivo. Maria Clara Sottomayor relata que existem tantas

exceções ao princípio da consensualidade que, na prática, “houve uma inversão da

relação entre regra e a exceção, restando, para a transmissão por mero efeito do

contrato, um lugar residual, em termos estatísticos”, o que seria devido “à sua

inadequação às necessidades do comércio e da circulação dos bens”7. O que

explica essa opinião da autora são as deficiências que esse modo de transmissão

da propriedade apresenta com relação à publicidade, porquanto se a constituição ou

alienação de direitos reais dá-se solo consensu, estimula-se a clandestinidade e

gera-se insegurança sobre a real situação jurídica dos imóveis.

O sistema de transmissão da propriedade francês inspirou legisladores de

diversos outros países, sendo exemplo de ordenamentos jurídicos que o adotam os

de Portugal e Itália8.

2.1.2 Do sistema de título e modo

Como visto, nos ordenamentos jurídicos que admitem o princípio do

consensualismo, as mutações jurídico-reais são efeito direto do título, que não se

restringe à produção de efeitos obrigacionais. Refere-se, nesse contexto, ao título

tanto em sentido próprio (a causa ou fundamento da aquisição, transmissão ou

mutação real, consistente, por exemplo, em um contrato de compra e venda ou

5 Nesse diapasão, Leonardo Brandelli afirma que, no sistema francês, “há uma vinculação de

causalidade absoluta entre o plano real e o obrigacional, isto é, a relação jurídica de direito obrigacional confere já efeitos reais; a causa imediata, da qual decorre o direito real, é o vínculo obrigacional; o contrato cria, por si só, o direito real”. (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 64-65).

6 Art. 687 do Código Civil português: “A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes”. (PORTUGAL. Decreto-Lei n. 47.344, de 25 de novembro de 1966. Aprova o Código Civil e regula a sua aplicação - Revoga, a partir da data da entrada em vigor do novo Código Civil, toda a legislação civil relativa às matérias que o mesmo abrange).

7 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 183-184 e 194.

8 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 70.

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doação, em partilha judicial etc.), como em sentido impróprio (isto é, o título formal,

consistente em sua exteriorização, que se dá por meio de escritura pública, carta de

sentença, instrumento particular etc.)9.

Em outros sistemas jurídicos, a transmissão da propriedade exige não apenas

o título, mas também um modo, ou seja, “o acto pelo qual se realizam efectivamente

a atribuição e a aquisição do direito real”10. Nesses ordenamentos, o título é apto

somente a criar direitos obrigacionais entre as partes, ficando o nascimento e a

transmissão do ius in re condicionados a uma formalidade, ou seja, o modo.

No Direito Romano foi bastante comum a exigência de um modo para a

transmissão da propriedade imóvel, não bastando o mero consentimento das partes.

Assim, explica César Fiuza:

O simples contrato de compra e venda não era bastante para que se operasse a adquisitio. No período clássico [...] o ato pelo qual se transmitia a propriedade denominava-se mancipatio. Dessa maneira, comprador e vendedor, celebrado que fosse o contrato de compra e venda, reuniam-se perante cinco testemunhas, procedendo à pesagem simbólica do preço do imóvel. Utilizavam para tanto balança e pesos, manuseados pelo libripens. [...]

O outro modo de aquisição deste período era a cessio in iure ou in iurecessio (sic), como se usa mais comumente dizer. A in iure cessio significa cessão em juízo e era a reivindicação simbólica do bem, objeto da aquisição, perante o magistrado. O adquirente reivindicava o bem como se já lhe pertencesse, e o alienante se calava. [...] Na verdade, tudo não passava de ato simulado, em que o alienante fingia estar abandonando o bem em favor do adquirente que o reivindicava. [...] Mas com o passar dos anos, a in iure cessio tornou-se meio habitual de transferência da propriedade, e o próprio magistrado, sabendo da simulação, já tomava parte no teatro. O que as partes desejavam de fato era a participação de magistrado no negócio, a fim de imprimir-lhe publicidade e autenticidade.

No período pós-clássico, o Direito Justinianeu, no século VI de nossa era, unificou as várias espécies de propriedade, determinando que a tradição seria o único modo de aquisição. Sendo assim, após a alienação, o alienante entregava o imóvel ao adquirente.11

As formas mais comuns de modo são o registro imobiliário e a tradição. No

caso de a transmissão dar-se pela tradição, como ocorre na Espanha, isso não

9 BERTHE, Marcelo Martins. Títulos judiciais e o registro imobiliário. In: PÉREZ, Diego Selhane

(Coord.). Títulos judiciais e o Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, 2005. p. 461-475. p. 466-467.

10 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 481-523, jul./dez. 2016. p. 490.

11 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 986-987.

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significa que se dispensa o registro imobiliário, cuja publicidade é infinitamente mais

segura do que a mera exteriorização da posse.

Da mesma forma como o princípio do consensualismo tem na França seu

modelo, que influenciou diversos outros ordenamentos jurídicos, o sistema de

transmissão da propriedade pelo registro tem como arquétipo o sistema alemão, em

que o registro é constitutivo das situações jurídico-reais decorrentes de atos jurídicos

inter vivos.

O Brasil adota o sistema do título e modo, de maneira que a transmissão da

propriedade ou a constituição de direitos reais sobre imóveis, por ato inter vivos,

opera-se pelo registro no Serviço de Registro de Imóveis competente. Em outras

palavras, à exceção dos casos em que a transmissão da propriedade decorre

diretamente da lei (e.g., em caso de sucessão causa mortis) e das formas originárias

de aquisição (e.g., usucapião), o registro no Brasil é constitutivo dos direitos reais

sobre imóveis12.

2.2 Sistemas de registro imobiliário

Faz-se necessário tecer algumas considerações sobre os sistemas registrais

imobiliários, que são responsáveis, no mínimo, pela publicidade das transmissões de

propriedade imóvel e demais alterações envolvendo os imóveis, tais como a

constituição e extinção de direitos reais sobre coisas alheias, inscrição de

constrições judiciais e administrativas. Como visto, o registro também pode ter

função constitutiva do próprio direito.

O que mais importa, neste momento, é a distinção entre duas espécies de

sistemas registrais: o de registro de documentos e o de registro de direitos.

2.2.1 Conceito

Os sistemas registrais imobiliários – também denominados de sistemas

hipotecários em outros ordenamentos jurídicos, como o espanhol, por razões

históricas – podem ser definidos como as regras e princípios de um ordenamento

jurídico que, sob o ponto de vista da publicidade imobiliária, regulamentam e

12 Nesse sentido, dispõe o caput do art. 1.245 do Código Civil: “Transfere-se entre vivos a

propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis”. (BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, 11 jan. 2002).

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organizam a propriedade sobre bens imóveis, a partir do Direito Registral

Imobiliário13. Trata-se de normas de direito formal, que atuam em consonância com

as normas de direito material sobre a propriedade, de direitos reais que incidem

sobre esta, de direitos obrigacionais com eficácia real e, até mesmo, de ramos

diversos do Direito Civil, tais como o Direito Processual Civil e o Direito

Administrativo, que também preveem hipóteses de situações jurídicas às quais se

deve dar publicidade por meio de inscrições no Registro de Imóveis (por exemplo, a

hipoteca judiciária e o tombamento).

Em termos mais simples, pode-se dizer que o registro imobiliário é o meio

publicitário adequado para que situações jurídicas constituídas entre duas ou mais

pessoas possam produzir efeitos perante terceiros, os quais não participaram da

relação jurídica entre as partes. A partir do registro imobiliário, que garante a

cognoscibilidade da situação jurídica objeto da publicidade registral, produz-se

presunção absoluta de que quaisquer terceiros dela têm ciência, não podendo

alegar desconhecimento. O efeito mínimo da publicidade registral é o de produzir

oponibilidade erga omnes da situação jurídica objeto do registro, podendo, em

outros casos, a depender do ordenamento jurídico, gerar outros efeitos, tais como a

constituição do próprio direito e até mesmo presunção absoluta de sua existência e

validade14.

2.2.2 Origem

A necessidade de dar-se ampla publicidade à propriedade e outros direitos

sobre esta é antiga na história do homem. Até que se chegasse aos sistemas

registrais imobiliários modernos, utilizaram-se outros meios, tais como a afixação de

marcos de pedra nos imóveis gravados com hipoteca (por exemplo, o horos da

Atenas clássica, que frequentemente continha os dados essenciais da garantia,

como o valor da dívida e o nome do credor), e a anunciação da transmissão da

propriedade diante de igrejas e muralhas perante toda a comunidade em tempos

13 CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 211. 14 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

17-19. O mesmo autor, na mesma obra (p. 18), acrescenta que: “Os registros públicos, e o registro de imóveis em matéria de direitos imobiliários, são o que há de melhor e mais atual em tecnologia jurídica publicitária, e, como meios de publicidade que são, embora sua eficácia possa diferir de um sistema para outro, a eficácia mínima existente, e que decorre naturalmente da sua natureza publicitária, é a de tornar as situações jurídicas publicizadas oponíveis contra todos”.

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priscos, na Europa. Esses eram meios de publicidade eficazes em pequenas

comunidades, onde todos se conheciam15.

Contudo, à medida que houve um incremento nas transações comerciais, que

não mais se restringiam às comunidades locais, mas crescentemente eram

realizadas entre desconhecidos, houve necessidade de criação de novas formas

publicitárias. Não é por acaso que cidades comerciais europeias, como Hamburgo e

Bremen, estejam entre as primeiras a desenvolver sistemas registrais eficazes16.

Considerando-se os modelos atuais de registro imobiliário, o primeiro a se

desenvolver foi o sistema francês, cujas origens e características fundamentais são

objeto de análise no próximo capítulo.

2.2.3 Classificações

A doutrina é rica na apresentação de diversas formas de se classificarem os

sistemas registrais imobiliários, adotando-se vários critérios17. A título

exemplificativo, arrolam-se algumas das classificações indicadas por Jose Manuel

Garcia Garcia, de acordo com os critérios indicados pelo autor18.

Levando-se em consideração os efeitos do registro, podem-se distinguir dois

grupos de sistemas registrais. Uma primeira classificação diferencia os sistemas de

inscrição constitutiva19 e o que o autor denomina de “sistemas de inoponibilidade

15 ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico.

Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 87-89. 16 ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico.

Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 90. Esse mesmo autor (p. 90-91) ressalta que: “el principal precedente del moderno registro de derechos es la antigua institución alemana de la Auflassung, en la que los documentos relativos a la transmisión eran presentados y examinados por la corporación municipal y más tarde por el juzgado antes de ser inscritos en un registro territorial”.

17 Para mais classificações dos sistemas registrais imobiliários, além das apresentadas neste estudo, vide CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 214-223.

18 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 340-341.

19 O termo “inscrição” será utilizado neste trabalho em sua acepção tradicional, em que é empregado como sinônimo de “registro”. Ressalta-se, porém, que no Brasil, anteriormente à entrada em vigor da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973), o termo inscrição tinha significado mais restrito e se contrapunha à transcrição. Com efeito, até 1975 (a referida lei entrou em vigor em 01/01/1976, nos termos de seu art. 298), a transcrição era ato de transmissão da propriedade, seja por ato inter vivos, seja causa mortis, ao passo que a inscrição era o ato registral pelo qual se constituíam direitos reais limitados, registravam-se loteamentos, incorporações imobiliárias etc.

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com relação a terceiro”, que correspondem aos sistemas declaratórios (ou

declarativos), também denominados de consolidativos pela doutrina portuguesa20.

Os sistemas constitutivos são aqueles em que o registro é ato indispensável

para a própria formação do direito real por ato jurídico inter vivos. Até a realização

do registro, o título produz efeitos meramente obrigacionais entre as partes e não

pode ser oposto a terceiros. Já nos casos de transmissão causa mortis e de

aquisição originária de bem imóvel, o registro também é fundamental, embora seja

meramente declaratório, pois implica a oponibilidade erga omnes do direito e sua

disponibilidade, isto é, até o registro o adquirente não pode dispor de seu direito.

Nas palavras do referido doutrinador, esse modelo é adotado pelos “sistemas mais

avançados”, tais como os da Alemanha, Suíça, Áustria e Austrália21. Conforme já se

referiu anteriormente, também o sistema brasileiro é constitutivo.

Por sua vez, o sistema declarativo é aquele em que o registro não acarreta o

nascimento do direito, mas sua falta torna inoponível o título não inscrito perante

terceiro que eventualmente tenha adquirido direito contraditório e, diligentemente,

haja promovido o registro de seu título, que adquire prioridade. Nesse mesmo

diapasão, o não inscrito é inoponível a quaisquer outros terceiros. Adotam esse

sistema países como França, Itália e Portugal22.

Ainda sob o mesmo critério, o autor espanhol opõe os sistemas de presunção

de exatidão àqueles que não a regulam. Os primeiros contemplam tanto a

presunção relativa de exatidão de todos os assentos registrais, perante quaisquer

pessoas, a exemplo do próprio oficial de Registro de Imóveis, autoridades e terceiros

interessados (princípio da legitimação registral23), como a presunção absoluta de

20 Com efeito, em um sistema em que os direitos reais nascem solo consensu, Mónica Jardim explica

que o registro atua “como forma de consolidar a oponibilidade erga omnes” de determinado direito real, “perante certos e determinados terceiros”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. Registo imobiliário constitutivo ou registo imobiliário declarativo/consolidativo? Qual deles oferece maior segurança aos terceiros? Uma falsa questão! In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Direito Notarial e Registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 871-890. p. 871).

21 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 340.

22 Antonio Macedo de Campos denomina esse sistema registral de “franco-italiano”, no qual, segundo afirma, “a única função dos Registros Públicos [...] é a comprovação e a documentação do negócio realizado e os efeitos terão lugar única e exclusivamente em relação aos terceiros que não tomaram parte na transação efetuada”. (CAMPOS, Antonio Macedo de. Comentários à Lei de Registros Públicos. Bauru: Jalovi, 1977. v. 3, p. 29).

23 O princípio da legitimação registral encontra-se previsto no art. 252 da Lei de Registros Públicos, o qual preceitua que “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”. (BRASIL. Lei

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exatidão dos registros perante terceiros que atendam a determinados requisitos, que

podem variar conforme o ordenamento jurídico (por exemplo, estar o terceiro de

boa-fé, ter adquirido o imóvel a título oneroso etc.). Esse segundo efeito do registro

denomina-se princípio da fé pública registral, cuja aplicabilidade no Brasil é o cerne

da discussão neste trabalho.

Considerando o critério da forma de organização, os sistemas registrais

podem ser divididos entre os de fólio real e os de fólio pessoal. Os primeiros têm no

imóvel a referência para a prática de todos os atos registrais, ou seja, adota-se um

mecanismo jurídico como a matrícula, prevista na Lei de Registros Públicos

brasileira, a qual se inicia com a descrição do imóvel ao qual se refere, sendo todos

os atos translativos de propriedade, de constituição de ônus, de cancelamento, de

averbações de modificações nas qualificações dos titulares de direitos e nas

características do imóvel, praticados em sequência. Tem-se, assim, um histórico do

imóvel na matrícula (ou outro mecanismo parecido, que nada mais é do que o fólio

real).

Outros sistemas existem que não se organizam em torno do imóvel, mas em

que os atos são praticados tendo-se como principal referência as pessoas nele

envolvidas. Trata-se do sistema de fólio pessoal, adotado no Brasil até 197524, em

que os diversos atos são praticados em livros ou fichas esparsos, causando uma

grande dificuldade para se conhecer a real e completa situação de um imóvel, pois

os atos relativos a este não se encontram reunidos em um mesmo lugar (como a

matrícula). A França adota esse sistema e, como se verá adiante em mais detalhes,

nesse país foi necessária a criação de uma espécie de índice por imóveis, de forma

a minimizar as dificuldades para se conhecer sua real situação jurídica.

Essas são algumas das classificações comumente utilizadas para a

caracterização dos sistemas de registro de imóveis, cujo conhecimento é bastante

útil para a compreensão dos sistemas registrais. Contudo, há uma classificação

ainda mais relevante para o entendimento do tema da fé pública registral, que leva

nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Diário Oficial da União, 31 dez. 1973).

24 Até esse ano, vigorou no Brasil o Decreto nº 4.857/1939, que previa o registro das hipotecas no Livro 2 – Inscrição hipotecária, o registro das transmissões da propriedade no Livro 3 – Transcrição das transmissões, o registro de outros ônus, tais como servidões e enfiteuse, no Livro 4 – Registros diversos etc. (vide arts. 182 e seguintes). Em suma, os registros ficavam espalhados em diversos livros e, para facilitar as buscas, havia os Livros 6 – Indicador real e 7 – Indicador pessoal, que se constituíam em índices classificados pelos imóveis e nomes das pessoas, que buscavam amenizar os problemas dessa organização caótica dos registros.

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em consideração a eficácia do registro e distingue entre os sistemas de registros de

documentos e de registros de direitos.

Inegavelmente, por melhor que possa ser um sistema registral imobiliário,

seja por sua completude, seja por prever diversos mecanismos de proteção contra

títulos que veiculem atos jurídicos inexistentes, inválidos ou ineficazes, é impossível

evitar, com 100% de sucesso, o ingresso de títulos maculados por algum defeito ou

mesmo a ocorrência de falhas no próprio procedimento de registro. Por isso, os

legisladores precisam optar pelo que deve prevalecer: o direito do “verdadeiro titular”

(ou verus dominus), isto é, daquele que foi prejudicado em razão de ato no qual não

interveio, ou o do terceiro de boa-fé que, confiando nas informações publicizadas

pelo Registro de Imóveis, realizou um negócio jurídico e inscreveu seu título

aquisitivo. A primeira opção privilegia a segurança jurídica estática (ou segurança

jurídica dos direitos subjetivos), ao passo que a última, a segurança jurídica

dinâmica (ou segurança jurídica do tráfico). Os sistemas de registro de documentos

e de registro de direitos, respectivamente, representam essas duas possibilidades.

2.2.4 Sistemas de registro de documentos

Os sistemas de registro de documentos têm como modelo o sistema registral

imobiliário francês25. Os órgãos que prestam os serviços de Registro de Imóveis são

verdadeiros “depósitos de títulos”26, que simplesmente centralizam a recepção dos

títulos cujo ingresso é admitido e, desde que atendidos simples requisitos formais,

publicam tais títulos (seja transcrevendo seu inteiro teor, seja arquivando uma via

destes), os quais poderão ser consultados por quaisquer interessados.

São basicamente dois os efeitos mais relevantes desse registro: a

oponibilidade erga omnes e a garantia da prioridade sobre outros títulos

contraditórios que eventualmente também venham a ser registrados. De fato, dado o

caráter absoluto dos direitos reais sobre imóveis, para que os efeitos de um título

deixem o âmbito das partes e alcancem toda a coletividade, adquirindo

transcendência real, é preciso dar-lhes publicidade e, consequentemente,

25 Embora a França já tenha promovido diversas reformas em seu sistema registral imobiliário, que o

distanciaram de suas características originais e o aproximaram de um sistema de registro de direitos, conforme se analisará adiante.

26 BRANDELLI, Leonardo. Abstração e causalidade entre o plano real e o obrigacional e as espécies registrais. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 79, p. 85-124, jul./dez. 2015. p. 87.

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cognoscibilidade de seu teor aos terceiros27. Esse intuito é alcançado pelo registro

de documentos, que também garante a prioridade do título registrado em primeiro

lugar, ainda que um título contraditório porventura registrado posteriormente seja de

lavratura mais antiga28.

O registro de documentos organiza-se de acordo com o sistema do fólio

pessoal, ou seja, os arquivos do órgão registral se ordenam levando-se em conta as

pessoas, e não os imóveis, sendo os registros (ou arquivamentos dos títulos) feitos

em ordem cronológica29.

Uma das principais críticas que se faz aos registros de documentos reside no

fato de haver limitação legal aos títulos passíveis de registro, que se restringem aos

negócios inter vivos, não se admitindo a inscrição das transmissões causa mortis30,

bem como dos atos judiciais, o que não lhes priva, porém, de eficácia real31. Em

outras palavras, as transmissões e constituições de direitos reais por sucessão

hereditária ou que decorram de atos judiciais são oponíveis a todos, a despeito de

não ser possível seu registro no órgão centralizador das inscrições imobiliárias.

Igualmente prejudicial ao tráfico jurídico é a característica de não se

qualificarem os títulos apresentados a registro tendo-se em vista tanto seus

requisitos de validade e eficácia como o cumprimento de princípios registrais

elementares, a exemplo da continuidade32. Em vez disso, o registrador analisa

27 A respeito da oponibilidade, Benito Arruñada explica que, “desde el punto de vista de los terceros,

los únicos títulos relevantes son los depositados en el registro y éste es, en principio, completo […]. Pueden existir contratos que no estén depositados en el registro y pueden tener efectos entre las partes que los contrataron, pero carecen de efectos frente a terceros”. (ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico. Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 92-93). O último aspecto posto em relevo pelo autor, de o não registrado não produzir efeitos em relação a terceiros, consiste no princípio da inoponibilidade.

28 Nesse sentido, Marcelo Augusto Santana de Melo aduz que no registro de documentos “apenas se traslada e conserva (sic) os contratos privados para proporcionar provas documentais da titularidade empregadas posteriormente pelos tribunais, que aplicam uma regra de prioridade, estimulando as partes a depositarem o quanto antes seus títulos”. (MELO, Marcelo Augusto Santana de. O Registro de Imóveis e o princípio da fé-pública registral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 30, n. 63, p. 53-81, jul./dez. 2007. p. 60).

29 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 516.

30 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 512.

31 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 28. O autor pondera que a falta de publicização dos atos causa mortis e judiciais “diminui a confiabilidade do sistema e torna ainda mais complexa a atividade de busca de informações a respeito dos direitos que se pretenda negociar”.

32 Segundo Afranio de Carvalho, o princípio da continuidade, também conhecido como trato sucessivo, “quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma

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38

apenas aspectos formais para o registro do título que lhe é apresentado, o que,

segundo Nicolás Nogueroles Peiró, é “consequência dos limitados efeitos que

produz o registro” (tradução nossa)33.

Ora, se o registrador, até mesmo por força de lei, nem sequer verifica

eventual contradição entre o título apresentado e outros que já tenham sido objeto

de registro, é evidente que podem surgir hipóteses em que o mesmo imóvel possua

duas ou mais cadeias dominiais. Não por acaso, nesse sistema o registro não prova

propriedade, tampouco goza de qualquer espécie de presunção de exatidão, nem

mesmo iuris tantum. Leonardo Brandelli explica didaticamente esse problema e suas

graves implicações:

Tanto situações jurídicas válidas quanto inválidas poderão ser igualmente publicizadas. Da mesma forma, cadeias duplas de propriedade poderão ser publicizadas, o que faz que a informação publicizada não seja confiável, e, mais do que isso, se não for bem depurada pelo interessado em adquirir o direito publicizado, poderá converter-se em uma armadilha jurídica. (grifo do autor)34

Essas falhas do sistema de registro de documentos, que em nada contribuem

com a fluidez do tráfico jurídico, fazem com que qualquer transação imobiliária se

torne de grande complexidade – a não ser que se queira assumir elevados riscos.

De fato, o maior grau possível de segurança somente é obtido após extenuante

verificação da validade dos títulos anteriores já registrados, regredindo-se até o

prazo máximo de usucapião; desde que não haja dúvida quanto à eventual

existência de outra cadeia dominial para o mesmo imóvel; e após a verificação de

informações extrarregistrais, afinal o registro não é completo, podendo existir direitos

com eficácia real que não foram publicizados e ações judiciais em curso com

potencial de afetar a situação jurídica do imóvel. Apenas haverá certa tranquilidade

quanto à situação jurídica de um imóvel após o transcurso do prazo mais longo da

usucapião.

cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente”. (CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 253).

33 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 513.

34 BRANDELLI, Leonardo. Abstração e causalidade entre o plano real e o obrigacional e as espécies registrais. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 79, p. 85-124, jul./dez. 2015. p. 88.

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39

Não é sem razão que Benito Arruñada afirma que os registros de documentos

“contabilizam e conservam os contratos privados (escrituras ou deeds) para

proporcionar provas documentais da titularidade, provas que são empregadas a

posteriori pelos tribunais para adjudicar direitos reais em caso de litígio” (tradução

nossa)35. Ou seja, diante da falta de depuração do título antes de seu registro, por

meio de uma forte qualificação registral que impediria o registro de títulos que

veiculassem atos jurídicos inexistentes, inválidos e ineficazes, bem como que

violassem os princípios registrais (tais como o da continuidade, a que já se referiu),

na prática haveria uma espécie de qualificação a posteriori, em juízo, em um

momento no qual já existe litígio relativo à verdadeira titularidade de determinado

direito sobre um imóvel.

Com efeito, os conflitos se resolvem de acordo com uma “regra de

propriedade”, de forma que a comprovação em juízo de invalidade do direito de um

transmitente qualquer da cadeia dominial (dentro do prazo da usucapião) faz com

que o último adquirente perca a propriedade sobre o imóvel, restando-lhe o direito

obrigacional de ser indenizado por seu transmitente direto.

A insegurança gerada por esse sistema, especialmente no caso de negócios

de aquisição da propriedade de imóveis, faz com que haja todo um mercado de

profissionais especializados na avaliação prévia da situação jurídica dos imóveis,

como é o caso de advogados, ou mesmo impõe a prática de contratação de seguros

contra a perda do imóvel, de forma a garantir ao menos uma indenização nessa

situação – prática bastante comum nos Estados Unidos da América. Em suma, a

transmissão da propriedade imóvel no sistema de registro de títulos é insegura, lenta

e de alto custo36.

Em razão dos problemas desse sistema registral, Nicolás Nogueroles Peiró

noticia que não mais existem sistemas de registros de documentos com todas as

suas características originais na Europa, cujos países têm introduzido reformas

legislativas, sempre no sentido de fortalecimento do registro, e encontram-se em

diferentes estágios de evolução. Todas essas reformas têm como objetivo a

35 ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico.

Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 91. 36 Assevera Leonardo Brandelli que “Toda essa busca de informação extrarregistral, decorrente da

não tutela do terceiro adquirente de boa-fé e, por consequência, da não garantia do direito inscrito, implica labor de grande monta, cujo custo e insegurança conduzirão certamente ao aumento dos custos de transação, podendo resultar até mesmo na não realização do negócio jurídico translativo”. (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 23).

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proteção dos terceiros adquirentes, isto é, vêm em busca de certo nível de

segurança jurídica dinâmica37. Nesse diapasão, os ordenamentos jurídicos cujo

sistema registral é o de documentos vêm adotando medidas tais como a

possibilidade de inscrição de títulos de transmissão causa mortis de direitos, a

adoção do princípio da continuidade e a introdução do fichário imobiliário, que nada

mais é do que um índice catalogado pelos imóveis, que complementa o tradicional

fichário levando em consideração o nome das pessoas mencionadas nos títulos

registrados38.

Mesmo com essas evoluções, cuja tendência é de aproximação do sistema

de registro de documentos ao sistema de registro de direitos, ainda se está longe de

afirmar que houve a superação de seus principais defeitos: a falta da garantia de

higidez dos títulos registrados – o que demonstra que nem sequer se alcança o

objetivo de se proteger o verdadeiro titular – e a ausência de tutela do terceiro

adquirente de boa-fé. Todos esses problemas não existem ou são reduzidos ao

mínimo possível em um verdadeiro sistema de registro de direitos, que, como

assinalado, dá prevalência à proteção do tráfico jurídico, em detrimento da

segurança jurídica estática.

Cumpre assinalar que, além da França, adotam o sistema do registro de

documentos, em maior ou menor grau de evolução, países como Estados Unidos

(maioria dos estados), parte do Canadá, Itália, Portugal, Holanda, Bélgica, Escócia,

Irlanda e Luxemburgo39.

37 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP,

Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 517.

38 Discorda-se de Leonardo Brandelli quando o autor afirma que a introdução das fichas imobiliárias significaria a “transposição de um sistema de fólio pessoal para um de fólio real”. (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 30). Com efeito, conforme esclarece Jose Manuel Garcia Garcia, o fichário real “no tiene valor sustantivo sino ‘instrumental’ como todo fichero" (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 256), com o que expressamente concordam José María Chico y Ortiz et al. (CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. 1, p. 52), embora ambos os doutrinadores espanhóis reconheçam que o fichier immobilier, introduzido pelo Direito francês, tenha grande importância prática na busca de informações sobre imóveis.

39 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 514-524, e ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico. Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 91.

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41

2.2.5 Sistemas de registro de direitos

Os sistemas de registro de direitos derivam de tradição jurídica germânica40 e

reúnem três características fundamentais, que os diferenciam dos sistemas de

registro de documentos: têm como objeto da publicidade registral a própria situação

jurídica gerada pelo título, e não exatamente este; procuram concentrar o máximo

possível das informações sobre os direitos, ônus e demais situações jurídicas que se

relacionem ao imóvel e gozem de oponibilidade; adotam presunções de exatidão

dos registros, em razão de forte qualificação registral, que não se limita às questões

formais, o que favorece o tráfico jurídico, na medida em que os terceiros podem

confiar na publicidade registral e, com base em suas informações, realizar

transações com tranquilidade41.

Diversamente do que ocorre com o sistema de registro de documentos, que

se constitui em um repositório de títulos, porquanto estes são transcritos nos livros

ou simplesmente arquivados em ordem cronológica, nos sistemas de registro de

direitos dá-se publicidade diretamente às situações jurídicas geradas pelo título que

devam ter eficácia real (as situações meramente obrigacionais nem mesmo são

publicizadas). Como estes sistemas se organizam de acordo com a lógica do fólio

real, existe um fólio para cada imóvel (que, no Brasil, denomina-se matrícula), no

qual são registrados os títulos mediante extratos, ou seja, de forma resumida,

contendo apenas os direitos reais ou obrigacionais com eficácia real, ou outras

informações cuja publicidade se faça necessária (por exemplo, registro de citação

em ação real pendente, relativa ao imóvel). O fólio fornece as informações

necessárias para se saber todo o histórico do imóvel, desde o início de sua

escrituração, bem como para se apurar sua completa situação jurídica atual (seu

proprietário, suas características físicas, se existem ou não direitos reais ou outras

espécies de ônus que o gravam etc.).

Com efeito, os sistemas de registro de direitos não impõem restrições ao

registro de transmissões da propriedade causa mortis e de atos judiciais, tal como

ocorre nos registros de documentos. Muito pelo contrário, o registro desses atos é

40 ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico.

Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 104. 41 BRANDELLI, Leonardo. Abstração e causalidade entre o plano real e o obrigacional e as espécies

registrais. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 79, p. 85-124, jul./dez. 2015. p. 101.

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42

obrigatório. Toda situação jurídica que deva produzir efeitos erga omnes deve ser

publicizada, sob pena de sua inoponibilidade a terceiros. Trata-se do que se

denomina mirror principle no Direito anglo-saxão, segundo o qual “o registro deve

refletir de modo preciso a situação do proprietário e dos direitos de terceiros que a

afetam [a propriedade]. Somente afeta a propriedade o que aparece no registro”

(tradução nossa)42. Essa mesma ideia permeia todos os sistemas de registro de

direitos.

Contudo, embora indesejáveis, há cargas ocultas em praticamente todo

sistema de registro de direitos, que será mais perfeito quanto menor for sua

quantidade. Chamadas de overriding interests no Direito inglês, consistem

basicamente de ônus (em sentido amplo) que derivam diretamente da lei e que têm

oponibilidade geral, conquanto não gozem de publicidade registral (por exemplo, no

Brasil, a hipoteca legal, o direito de preferência do arrendatário de imóvel rural na

compra deste etc.). Assevera Leonardo Brandelli que as cargas ocultas “não são

aceitas pacificamente em um sistema de registro de direitos, eis que maculam o

sistema e a segurança do tráfico”43.

A forte qualificação registral é outra característica acentuada dos registros de

direitos. Além dos aspectos formais, o Oficial de Registro examina questões

substanciais vinculadas ao título e à sua relação com o registro, sendo que tal

análise varia conforme seja abstrato ou causal o sistema jurídico. Em outros termos,

nos sistemas de registro de direitos a qualificação é de forma e de fundo.

Nos ordenamentos em que há abstração entre os planos real e causal, o

registrador de imóveis não se imiscui em questões atinentes ao negócio

obrigacional. Tomando-se o sistema alemão como paradigma, acrescenta-se que,

na maioria dos casos, ele também não analisa o acordo real44. No entanto, deve o

42 No original: “El “mirror principle” significa que el registro ha de reflejar de modo preciso la situación

del propietario y de los derechos de terceros que la afectan. Solo afecta a la propiedad lo que aparece en el registro”. (NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 526).

43 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 50.

44 Segundo leciona Maria Clara Sottomayor, na Alemanha, “O controlo do conservador não incide sobre o negócio causal obrigacional, em que se assenta o negócio real, porque a sua ineficácia não afecta a eficácia deste, nem incide sobre o acordo real, com excepção do caso do § 20 GBO, em que se trata de um negócio real transmissivo de um imóvel ou da constituição, modificação do conteúdo ou transferência de um direito de superfície, podendo o registro efectuar-se, apenas, quando seja declarado o acordo (Einigung) entre o titular legítimo e a outra parte (princípio do

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registrador atentar, por exemplo, para a continuidade (somente o titular de um direito

inscrito pode dele dispor), para a legitimação para a outorga do consentimento para

o registro, para a capacidade das partes, para a regularidade da representação (se

for o caso) e para a verificação do enquadramento do direito real nas exigências

legais de taxatividade e tipicidade45.

Já nos sistemas que adotam a causalidade entre os planos obrigacional e

real, a atuação do Oficial de Registro é bastante ampliada, pois abrange também a

análise de vícios que eventualmente maculem o negócio jurídico obrigacional, os

quais afetam o plano real, de forma que, acaso existentes vícios de tal espécie, o

registro não deve ser lavrado. Assim, o negócio causal deve ser analisado em seus

aspectos de existência, validade e eficácia.

Segundo explica Mónica Jardim, há uma correlação direta entre a intensidade

da qualificação registral e a proteção conferida aos terceiros. Nos sistemas registrais

em que existe apenas qualificação dos aspectos formais do título, é corolário que

não haja qualquer tipo de presunção de exatidão do registro (trata-se do que a

autora denomina de proteção mínima). Por sua vez, nos sistemas de registro de

direitos, é justamente por haver controle de forma e fundo dos títulos apresentados a

registro, que se permite aceitar que “o conteúdo do Registo se presuma íntegro e

exacto, e surja como a ‘verdade oficial’ em face de terceiros”46.

De fato, se houve forte depuração do título, que veio a ser registrado por

Oficial de Registro, que é um representante do Estado, gerando a aparência de bom

direito, é natural que os terceiros que venham a realizar transações com o imóvel

sejam protegidos com presunção iure et de iure de integridade do registro. Ou seja,

os terceiros adquirentes não podem ser afetados por eventuais vícios existentes nos

títulos que subsidiariam a lavratura dos registros anteriores, bem como por defeitos

no próprio procedimento de elaboração desses registros. A essa proteção dá-se o

nome de princípio da fé pública registral, cuja aplicação, nos diversos ordenamentos

acordo real)”. (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 632-633).

45 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 538.

46 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. Registo imobiliário constitutivo ou registo imobiliário declarativo/consolidativo? Qual deles oferece maior segurança aos terceiros? Uma falsa questão! In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Direito Notarial e Registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 871-890. p. 886-887.

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jurídicos, pode exigir requisitos peculiares a cada um, tais como as exigências de

que o negócio aquisitivo tenha sido realizado a título oneroso, ou de que o terceiro

estivesse de boa-fé.

De qualquer modo, é essencial compreender que, em qualquer sistema de

registro de direitos, o princípio da fé pública registral protege apenas os terceiros

adquirentes que constem do registro imediatamente seguinte àquele eivado de

algum problema (no título ou no próprio registro) e dos subsequentes, não se

aplicando essa tutela aos participantes do negócio jurídico viciado que tenha sido

registrado47 e 48. Assim, não tendo ainda circulado o direito, nada impede o

cancelamento do registro – respeitados, evidentemente, os limites de análise dos

vícios de inexistência, invalidade e ineficácia dos sistemas jurídicos abstratos ou

causais. A proteção é dirigida a quem já promoveu o registro de seu título confiando

no teor dos registros anteriores, não atingindo os terceiros que eventualmente

tenham títulos hábeis a registro, mas ainda não os inscreveram.

Ademais, não se pode falar em fé pública registral se houver algum assento

registral que alerte para a possibilidade de haver vício na inscrição anterior, pois o

terceiro que ainda assim realize novo negócio estará assumindo um risco que é de

seu conhecimento (a publicidade produz presunção absoluta de que os atos

registrais são de conhecimento de todos)49.

Desse modo, atendidos todos os seus requisitos, a fé pública registral garante

o direito do terceiro adquirente que registrou seu título, que prevalece sobre o do

“verdadeiro proprietário”, a quem cabe apenas o direito obrigacional de ser

47 De fato, explica Benito Arruñada que, “En general, los adquirentes no están protegidos in rem por el

registro frente a sus propios vendedores, sino que sólo están protegidos los terceros, después de una nueva transacción inscrita, siguiendo el principio de ‘irrevocabilidad diferida’ (deferred indefeasibility)”. (ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico. Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 109).

48 Contudo, há sistemas jurídicos em que o registro produz efeito convalidante até mesmo entre as partes do negócio, tal como ocorre no sistema Torrens, de origem australiana, mas que se aplica no Brasil somente para imóveis rurais, desde que adotado um complexo procedimento judicial previsto nos arts. 277 a 288 da Lei de Registros Públicos (Lei no 6.015/1973).

49 Nesse sentido, Mónica Jardim assevera que “as causas determinantes de inexistência, invalidade ou cessação da eficácia ex tunc das situações jurídicas registadas não afectam o terceiro que haja obtido a inscrição do correspondente facto aquisitivo, se em data anterior não constar do Registro um assento que alerte para a discrepância, existente ou futura, entre a realidade tabular e extratabular. O mesmo ocorrendo com os vícios registais que afectem registos anteriores ao seu”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. Registo imobiliário constitutivo ou registo imobiliário declarativo/consolidativo? Qual deles oferece maior segurança aos terceiros? Uma falsa questão! In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Direito Notarial e Registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 871-890, p. 883).

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indenizado, a ser exercido contra quem deu causa a seu prejuízo: a outra parte do

negócio, o Estado, o Oficial de Registro, ou quem mais tenha provocado o dano.

Nesses casos, em suma, o conflito é resolvido por uma “regra de responsabilidade”,

e não pela “regra de propriedade”, como ocorre nos sistemas de registro de

documentos50.

Outro efeito substancial do registro nos sistemas ora analisados é o princípio

da legitimação registral, definido por Jose Manuel Garcia Garcia como “aquele em

virtude do qual os assentos do Registro presumem-se exatos e verdadeiros e, em

consequência disso, o titular registral revelado nos mesmos se considera legitimado

para atuar no tráfico jurídico e no processo como tal titular” (tradução nossa)51.

Trata-se de presunção iuris tantum, que, resumidamente, produz dois principais

efeitos, um substancial e outro processual: quem consta do registro como adquirente

de um direito é considerado seu titular, podendo exercê-lo livremente – ao menos

enquanto não se provar que o registro não reflete a realidade; e gozando o registro

de presunção relativa de exatidão, cabe ao interessado o ônus da prova de

demonstrar seu vício e promover judicialmente seu cancelamento.

O princípio da legitimação registral não se confunde com o da fé pública

registral nem o exclui. Com efeito, o primeiro é mais abrangente, no sentido de que

se presume a exatidão de todo e qualquer assento registral, ainda que de forma

relativa. O segundo, por sua vez, protege, com presunção absoluta de exatidão dos

registros anteriores, o terceiro adquirente que promove o registro de seu título

(respeitados os requisitos de cada legislação e desde que não tenha havido nenhum

assento registral prévio dando notícia de possível vício em registro anterior). Ambos

os princípios, porém, têm em comum o fato de serem viáveis apenas em sistemas

de forte qualificação registral, em que se forma a aparência de bom direito, e na

realidade eles se somam, tendo o condão de proteger e estimular o tráfico jurídico.

Nesse contexto, é natural que, nos sistemas de registro de direitos, o registro

seja considerado prova da propriedade. Assim, complementa Nicolás Nogueroles

Peiró que “não se trata somente de publicar, mas também de garantir o publicado. O

50 ARRUÑADA, Benito. La contratación de derechos de propriedad: un análisis económico.

Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2004. p. 109-110. 51 No original: “El principio de legitimación registral es aquel en virtud del cual, los asientos del

Registro se presumen exactos y veraces, y como consecuencia de ello, al titular registral reflejado en los mismos se le considera legitimado para actuar en el tráfico jurídico y en el proceso como tal titular”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 540, grifo do autor).

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inscrito goza de presunção de exatidão e prevalece o assento em relação ao título”

(tradução nossa)52.

Assim, em países que adotam o sistema de registro de direitos, basta uma

certidão (no caso brasileiro, da matrícula) para que se saibam todas as informações

relevantes sobre a situação jurídica de imóvel: quem é seu proprietário, se está

gravado com ônus reais ou de outras naturezas, inclusive judiciais (por exemplo,

penhoras e indisponibilidades), entre outras. Ou seja,

Se todas as situações jurídicas imobiliárias devem ser publicizadas; se, para que haja a publicidade, há uma forte qualificação jurídica; e se o direito publicizado é garantido após ingressar no tráfico jurídico, há uma importante limitação na busca de informação, sendo suficiente que o adquirente do direito busque a informação registral, evitando-se, assim, a necessidade de análise da cadeia de títulos pelo prazo máximo de usucapião, bem como a busca de inúmeras informações extrarregistrais, sejam administrativas, sejam judiciais.53

Essa é a situação ideal, na qual há redução de custos de transação tanto com

relação à obtenção de informações – que são completas e facilmente obtidas por

todas as partes por valor irrisório –, como em razão da desnecessidade da

contratação de seguros para os casos de perda do direito em função de riscos

desconhecidos. O Registro de Imóveis dotado de todas as características de um

verdadeiro sistema de registro de direitos toma dimensão ainda maior como

facilitador e propulsor do crescimento econômico do país54.

Enfim, um sistema de registro de direitos provido de todas as suas

características elementares é bastante eficaz na busca da segurança jurídica

dinâmica, que se volta à proteção de um interesse maior, que envolve toda a

coletividade, de tutela do tráfico jurídico, ainda que, em alguns casos, seja

necessário sacrificar-se o direito do “verdadeiro titular”, que, em troca, adquire direito

obrigacional de ser ressarcido. O reconhecimento da superioridade desse sistema

52 No original: “no se trata sólo de publicar sino también de garantizar lo publicado. Lo inscrito goza de

presunción de exactitud y prevalece el asiento respecto del título”. A respeito da prevalência do registro sobre o título que o subsidiou, o autor observa que não há necessidade de o interessado consultar o título original arquivado no órgão registral, acrescentando que a doutrina alemã é unânime no sentido de que a fé pública registral alcança o registro, e não o título arquivado. (NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 513, 532-533).

53 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 51.

54 MÉNDEZ GONZÁLEZ, Fernando P. A função econômica da publicidade registral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 26, n. 55, p. 133-159, jul./dez. 2003. p. 155.

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pode ser visto na prática, pois diversos países fizeram a transição de um sistema de

registro de títulos para um de registro de direitos (por exemplo, Inglaterra, Grécia e

Escócia), ao mesmo tempo que países do Leste Europeu também adotaram o último

sistema, após o fim da União Soviética55.

2.2.5.1 Registro Torrens

Viu-se, no item anterior, que uma característica fundamental dos sistemas de

registro de direitos é a aplicação do princípio da fé pública registral, que protege

terceiros adquirentes que, confiando no registro, até mesmo por ter havido forte

qualificação registral empreendida por agente estatal, realizam transações jurídicas

e registram os respectivos títulos. É comum que os ordenamentos jurídicos

condicionem esse efeito a alguns requisitos, entre os quais são comuns a exigência

de boa-fé do adquirente – que não poderia conhecer o vício de registro anterior – e a

onerosidade do negócio.

Assim, a fé pública registral tem aplicação relativamente restrita, pois não

atinge a generalidade dos atos registrais e exige a circulação do direito. Isso decorre

de seu fundamento: o princípio da tutela da aparência jurídica, que, por sua vez,

decorre do princípio da confiança. Por isso, é absolutamente equivocado dizer-se

que, nos sistemas de registro de direitos, o registro possui efeito convalidante56.

Porém, existe um sistema registral de direitos em que o registro realmente

produz efeito convalidante, tanto entre as partes do negócio como em relação a

terceiros. A convalidação é, assim, efeito da simples publicidade do registro, e não

do princípio da tutela da aparência jurídica. Trata-se do registro Torrens,

55 MÉNDEZ GONZÁLEZ, Fernando P. Registro de la propriedad y desarollo de los mercados de

credito hipotecario. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 525-565, jul./dez. 2016. p. 540.

56 No Brasil é relativamente comum os doutrinadores dizerem que, na Alemanha, o princípio da fé pública registral faz com que o registro produza efeito saneador, o que não é tecnicamente correto, mesmo nas hipóteses em que os requisitos legais são atendidos. Se houvesse convalidação pela simples prática do registro, como seria possível explicar que, enquanto o direito não circula, é possível a uma das partes promover a anulação do registro, desde que presente uma das causas que a justificam? Por todos, vide CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 161.

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primeiramente adotado na Austrália57, em que o publicizado torna-se realidade

jurídica58.

Dada a eficácia absoluta do registro, esse sistema atinge, em seu grau

máximo, a segurança jurídica do tráfico, na medida em que o registro sempre se

considera correto. Os efeitos do registro Torrens podem ser assim resumidos:

A espécie registral em comento gera uma presunção absoluta de validade (tanto do registro quanto do título), integridade (de modo que tudo o que seja oponível a terceiros está no registro e o que nele não estiver presume-se inexistente), exatidão (a informação constante no certificado é exata) e posse (o titular registral tem a posse), que é invulnerável (característica da indefeasibility).59

Uma peculiaridade do sistema adotado na Austrália é a existência de um

fundo de seguro, cuja finalidade é a de compensar pessoas que, em virtude do efeito

absoluto do registro, venham a perder a propriedade de seus imóveis sem concorrer

com culpa. Esse fundo é formado por valor cobrado dos proprietários, proporcional

ao valor do imóvel, por ocasião do primeiro registro no sistema Torrens. Em caso de

prejuízo, a vítima deve voltar-se inicialmente contra aquele que lhe deu causa.

Somente se não lograr êxito nessa primeira tentativa de ressarcir-se, a vítima poderá

voltar-se contra o fundo60.

O registro Torrens vigora no Brasil em paralelo ao sistema geral de registro

imobiliário. Foi originalmente introduzido no país pelo Decreto no 451-B, de 1890, o

qual foi regulamentado pelo Decreto no 955-A, do mesmo ano61. Atualmente, seu

procedimento encontra-se previsto nos arts. 277 a 288 da Lei de Registros Públicos,

que somente admite o ingresso de imóveis rurais nesse sistema62. A referida lei

57 Ressalta-se que na Austrália vigoram, ao mesmo tempo, dois sistemas registrais: o mais

rudimentar, que é o sistema de títulos inglês, e o Torrens. (MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 141).

58 Maria Clara Sottomayor corrobora essa afirmação, explicando que no sistema australiano “é o registo que constitui toda a realidade jurídica, de tal forma que, se a administração comete um erro ou se o registo é efectuado por fraude, a vítima deste erro ou desta fraude será definitivamente privada do seu direito imobiliário, podendo apenas obter indemnizações pelos danos sofridos”. (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 201).

59 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 55.

60 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. 1, p. 68.

61 Essa antiga legislação admitia uma importante exceção à eficácia absoluta do registro Torrens: se houvesse “fraude reconhecida criminalmente”. (PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatoria do Registo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943. p. 145).

62 A doutrina em geral admite que o registro Torrens produz no Brasil o efeito da presunção absoluta de validade, tal como ocorre na Austrália. Contudo, Marcelo Augusto Santana de Melo relata fato

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prevê um complexo processo judicial de registro, que envolve notificação dos

confrontantes e publicação de editais. Caso o pedido seja julgado procedente, o

Oficial de Registro fará a inscrição da sentença na matrícula do imóvel. Na prática,

esse sistema nunca foi largamente utilizado no país.

2.2.5.2 Registro de direitos fraco

Comumente, a doutrina classifica os sistemas registrais quanto à sua eficácia

apenas em sistemas de registro de documentos e de registros de direitos.

Evidentemente, os sistemas registrais dos diversos países possuem peculiaridades,

mas estas, via de regra, situam-se em aspectos secundários, de forma que se

preserva a essência da espécie de sistema registral adotado63.

Contudo, Leonardo Brandelli vê-se obrigado a tratar do que denomina de

“registro de direitos fraco”, que seria aquele sistema dotado de todas as

características principais de um típico de sistema de registro de direitos – tal como

analisado anteriormente –, mas com uma diferença fundamental: a presunção de

exatidão do registro decorreria apenas do princípio da legitimação registral, não se

aplicando o princípio da fé pública registral. A consequência é a de que se trata “de

um registro fraco, porque fraca é a sua eficácia, uma vez que não há proteção do

terceiro adquirente de boa-fé. Possui eficácia relativa, mesmo após o direito ter

ingressado no tráfico jurídico”. Alega o autor que, apesar da forte qualificação

registral, o registro gozaria da mesma eficácia que seria produzida em um sistema

de registro de documentos.64

que tem passado despercebido: a Lei de Registros Públicos apenas trata dos aspectos formais do registro Torrens, sendo silente quanto a seus efeitos. Os aspectos materiais desse registro constavam dos Decretos nos 451-B e 955-A de 1890, mas ambos foram revogados pelo Decreto no 11, de 1991. Embora o último também tenha sido revogado (pelo Decreto no 761, de 1993), tal fato não teria o condão de restabelecer os efeitos dos vetustos decretos de 1890, pois se trataria de repristinação, expressamente vedada pelo art. 2o, § 3o, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Uma forma de se defender a vigência desses antigos decretos seria por meio da alegação de que teriam status de lei federal, pois à época de sua edição já tinha sido proclamada a República, mas ainda não havia uma nova Constituição, adequada aos novos tempos, o que só veio a se concretizar no ano seguinte. Trata-se de interessante discussão, em cujo mérito não se entrará neste trabalho por escapar a seu escopo principal. (MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 141).

63 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 41.

64 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 41.

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A importância do estudo dessa suposta subespécie de sistema de registro de

direitos reside no fato de que a quase unanimidade da doutrina e da jurisprudência

brasileiras rechaçam a vigência do princípio da fé pública registral no Brasil,

conforme se analisará com mais profundidade ao longo deste trabalho65.

Esse entendimento dominante faz com que haja um permanente estado de

insegurança na realização de transações imobiliárias, afinal um registro torna-se

inatacável não com a simples aquisição do imóvel por terceiro de boa-fé, mas

apenas com o transcurso do prazo máximo de usucapião, ou seja, os 15 (quinze)

anos da usucapião extraordinária, em seu prazo mais longo. Uma aquisição

imobiliária mais segura, nessas condições adversas, demanda do adquirente a

análise de todos os títulos transmissivos de propriedade registrados nesse período –

o que nunca é conclusivo, afinal há causas de invalidade que não são identificáveis

ictu oculi e permanecem ocultas ao observador que não participou do ato jurídico.

Os efeitos básicos da insegurança já foram apontados: aumento dos custos de

transação e desestímulo ao crescimento econômico.

Ocorre que é um absoluto contrassenso a adoção de praticamente todo o

arcabouço dos sistemas de registro de direitos, à exceção do principal efeito

substancial do registro, que é a fé pública registral. Como já se mencionou

anteriormente, é a intensidade da qualificação registral que determina os efeitos de

um registro. No caso de um registro de documentos, a simples análise dos requisitos

formais de um título acarreta apenas sua prioridade e a oponibilidade de seu

conteúdo. Já no caso de um registro de direitos, a forte qualificação registral, que é

de forma e fundo, implica também a natural presunção de exatidão do registro,

consubstanciada nos inseparáveis princípios da legitimação registral e da fé pública

registral.

Ao longo deste trabalho, se recorrerá ao Direito estrangeiro e aos princípios e

regras do próprio ordenamento jurídico brasileiro, inclusive recentes alterações

legislativas, para demonstrar que o entendimento dominante se encontra

65 Mónica Jardim destaca que, além do Brasil, a Holanda e a Grécia adotam sistemas registrais

constitutivos e de direitos, mas desprovidos do princípio da fé pública registral. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. Registo imobiliário constitutivo ou registo imobiliário declarativo/consolidativo? Qual deles oferece maior segurança aos terceiros? Uma falsa questão! In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Direito Notarial e Registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 871-890, p. 885).

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equivocado. Há, sim, no Brasil um verdadeiro sistema registral imobiliário de direitos,

provido de todos os seus efeitos principais, inclusive a fé pública registral.

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3 VÍCIOS DO REGISTRO E SUA OPONIBILIDADE A TERCEIROS: DIREITO

ESTRANGEIRO

Definidos os principais modelos de sistemas de registro de imóveis, conforme

a classificação que mais interessa a este estudo, tem-se a clareza de que a mais

importante característica que os diferencia é a presunção de exatidão dos registros,

que, como analisado, pode implicar até dois importantes efeitos: a legitimação

registral e a fé pública registral.

Viu-se que as inscrições nos sistemas de registros de documentos não

acarretam nenhuma presunção de exatidão, ao passo que os sistemas de registro

de direitos são dotados tanto do princípio da legitimação registral, como do princípio

da fé pública registral. Este é ainda mais marcante, pois é a nota distintiva entre os

verdadeiros sistemas de registro de direitos e os que, em tese, consistiriam em

sistemas de registro de direitos fracos (ou seria preferível os qualificar de “falsos”?).

Nitidamente, a fé pública registral decorre da aparência do bom direito, ou

seja, um terceiro negocia um bem ou direito a partir da confiança depositada em um

documento público (a certidão do registro), sabendo que o assento registral é

praticado por agente estatal, após qualificação de forma e fundo do título e

verificação de sua relação com o registro. Até por isso, enquanto o direito objeto do

registro não circula, admite-se, com menor ou maior intensidade – a depender de se

tratar de sistema jurídico abstrato ou causal –, a possibilidade de invalidação do

registro pela parte eventualmente prejudicada, sob a alegação de inexistência,

invalidade ou ineficácia do ato jurídico. Situação diversa ocorre no registro Torrens,

em que não existe princípio da fé pública registral, na medida em que o registro é

convalidante inclusive entre as próprias partes, o que ocorre como efeito direto da

publicidade registral.

No presente capítulo, pretende-se avançar no estudo da fé pública registral,

iniciando-se com uma análise, ainda que superficial, do que se pode chamar

genericamente de vícios dos atos de registro, em uma abordagem aplicável tanto ao

Brasil como a outros sistemas jurídicos.

Em seguida, para que essa situação se torne mais compreensível e até

mesmo para subsidiar a análise do desenvolvimento do sistema registral imobiliário

brasileiro, analisar-se-ão alguns dos principais sistemas de registro do mundo

ocidental, em suas principais características e sempre com especial atenção à

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aplicabilidade ou não da fé pública registral: o francês e o alemão, por serem os

clássicos modelos de sistemas de registro de documentos e de direitos,

respectivamente.

Por fim, adentrar-se-á no estudo do sistema espanhol, de bastante valor para

esta investigação, por se tratar de um registro de direitos causal que expressamente

adota a fé pública registral e possui muitos pontos de contato com o sistema registral

imobiliário do Brasil66.

Espera-se, ao final, atingir o principal objetivo deste capítulo: que se

esclareçam o conceito, o fundamento, a importância e os efeitos do princípio da fé

pública registral. O leitor poderá perceber que nos sistemas registrais que o adotam,

há algumas diferenças, seja quanto a seu alcance (por exemplo, aplicar-se ou não a

negócios jurídicos gratuitos), seja quanto a seus requisitos. No entanto, há um

núcleo essencial da fé pública registral que é mantido, independentemente do

ordenamento jurídico.

3.1 Vícios do registro e seu tratamento nos diferentes sistemas registrais

O tema da fé pública registral somente tem relevância nas situações em que

há alguma espécie de vício em ato jurídico, quer seja no título registrado, quer seja

no próprio ato de registro. Com efeito, somente diante de vício em ato pretérito é que

eventualmente pode atuar referido princípio – desde que atendidos seus requisitos –

, impedindo que o terceiro adquirente e que promove o registro de seu título seja

atingido por aquele vício.

66 Optou-se por não se dedicar um tópico ao sistema registral português – apesar da tradicional

proximidade entre Brasil e Portugal – justamente porque, ao contrário do que ocorre com o sistema espanhol, o português é deveras diverso do brasileiro, não tendo muito a contribuir para este estudo. Com efeito, trata-se de registro de títulos – embora mitigado pela adoção do princípio da continuidade e de presunção relativa de exatidão das inscrições –, declarativo e que adota a causalidade absoluta, ou seja, a propriedade e os demais direitos reais, como regra, são instituídos ou transmitidos solo consensu. Nesse sentido, vide: JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. Registo imobiliário constitutivo ou registo imobiliário declarativo/consolidativo? Qual deles oferece maior segurança aos terceiros? Uma falsa questão! In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Direito Notarial e Registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 871-890; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. A actual problemática a propósito do princípio da consensualidade. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 481-523, jul./dez. 2016; SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 204-209; MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 95-98.

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3.1.1 Dos vícios do registro

Neste trabalho, a expressão “vícios do registro” será utilizada em sentido

genérico, isto é, referindo-se a quaisquer questões que afetem diretamente o

registro em si ou o título que lhe deu causa. Para o estudo da fé pública registral, é

suficiente a discussão em torno da manutenção ou não de um ato de registro eivado

de alguma espécie de defeito – formal ou substancial –, bem como se eventuais atos

subsequentes serão afetados. É indiferente o plano em que se situa o vício, isto é,

se trata-se de vício que afeta a existência, validade ou eficácia do ato jurídico.

Quando se fala em “manutenção” de um ato de registro pela atuação da fé

pública registral, é preciso separar o ato registral em si do título em sentido próprio

(por exemplo, um contrato de compra e venda). No caso de o princípio da fé pública

registral garantir a subsistência de um registro, isso não significa que o ato jurídico

subjacente não possa ser, por exemplo, declarado nulo por autoridade judicial

competente. A questão é que, em razão do princípio da tutela da aparência,

decorrente da confiança gerada pelo registro, o ato registral será mantido,

protegendo-se o adquirente de boa-fé, mas isso não impede o desfazimento do ato

jurídico que gerou o título. A título de exemplo, imagine-se o caso da declaração

judicial de nulidade de uma compra e venda, por ter sido o vendedor prejudicado

pela utilização de procuração falsa, que ele supostamente teria outorgado,

autorizando a alienação onerosa do bem. Seu direito se resolve em perdas e danos,

isto é, fica adstrito ao campo do Direito das Obrigações, não podendo afetar o direito

real de propriedade do terceiro de boa-fé que adquiriu a propriedade do imóvel

desconhecendo o vício na procuração do suposto vendedor.

Neste subitem e no próximo, para facilitar a compreensão do tema, recorre-se

às normas do Direito brasileiro para se tratar das diversas formas de vício de

registro. Desde o início deve ficar claro que não necessariamente os exemplos

adiante citados se aplicam a todos os ordenamentos jurídicos, que podem ter regras

próprias bastante diversas.

3.1.2 Classificação dos vícios do registro

Os “vícios do registro” podem afetar os negócios jurídicos – os títulos mais

comuns – em seus três planos: existência, validade e eficácia, isto é, na terminologia

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utilizada por Antônio Junqueira de Azevedo, podem atingir seus elementos de

existência, requisitos de validade e fatores de existência67.

No plano da existência, o vício consiste na falta de um dos elementos gerais

do negócio jurídico, isto é, de partes, vontade, objeto ou forma68. Com relação aos

elementos categoriais69, ou seja, aqueles específicos de um tipo de negócio, pode-

se exemplificar com a falta de preço em uma compra e venda, que é elemento sem

o qual não se pode falar sequer na existência dessa espécie de contrato.

Os vícios mais recorrentes do negócio jurídico encontram-se no plano da

validade, definida como “a qualidade que o negócio jurídico deve ter ao entrar no

mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas”70. No Brasil,

os requisitos gerais de validade encontram-se arrolados no art. 104 do Código Civil e

consistem em agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e

forma prescrita ou não defesa em lei. Conforme “a intensidade do desvio, a natureza

do preceito legal afrontado ou descumprido, o interesse público ou privado a ser

resguardado, a sanção é mais enérgica, mais radical e o negócio é nulo; ou a

sanção é mais branda, moderada, e o negócio é, apenas, anulável”71.

Explica César Fiuza que “A nulidade pode ser alegada por qualquer

interessado, inclusive pelo Ministério Público e pelo juiz, ex officio”, sendo dever do

juiz declará-la de ofício, sempre que presente, por se tratar de defeito grave72. Por

outro lado, o “ato será anulável quando inquinado de defeito leve, passível de

convalidação”73. Com efeito, a anulabilidade não pode ser reconhecida de ofício pelo

juiz, tanto que, em prazo decadencial estabelecido em lei, os interessados podem ou

67 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2002. 68 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Método, 2014. p.

201. 69 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2002. p. 32. 70 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São

Paulo: Saraiva, 2002. p. 42. 71 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. 2. ed. Belo Horizonte:

Del Rey, 2005. p. 26-27. 72 Além da simulação (art. 167), o art. 166 do Código Civil brasileiro prevê as seguintes hipóteses

gerais de nulidade do negócio jurídico: incapacidade absoluta de uma das partes; se tiver objeto ilícito, impossível ou indeterminável; se o motivo determinante do negócio, comum a ambas as partes, for ilícito; adoção de forma não prescrita em lei; preterição de solenidade que a lei considere essencial para sua validade; se tiver por objetivo fraudar lei imperativa; em todas as hipóteses em que a lei declarar um negócio nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

73 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 332-333.

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questionar o ato, ou deixar o prazo transcorrer in albis, de modo que continue a

produzir seus efeitos, não sendo mais possível sua impugnação74.

Há ainda os negócios jurídicos que, embora existentes e válidos, não

produzem efeitos. Flávio Tartuce aduz que no plano da eficácia “estão os elementos

relacionados com a suspensão e resolução de direitos e deveres das partes

envolvidas”, sendo exemplos de fatores de eficácia a condição, o termo e o modo ou

encargo75. Nesse sentido, não deve o Oficial de Registro proceder ao registro de um

pacto antenupcial se ainda não sobreveio o casamento (condição suspensiva); o

registro imobiliário é, de regra, uma condição para que as transmissões ou

onerações de bens imóveis por atos inter vivos produzam efeitos reais.

É bastante intensa no Brasil a discussão acerca da possibilidade ou não do

registro de títulos anuláveis e ineficazes, naquelas situações em que a causa de

anulabilidade ou ineficácia possa ser, desde o início, detectada pelo Oficial de

Registro (por exemplo, venda de pai para filho sem anuência dos demais filhos e

venda de fração ideal de imóvel sem que se dê aos demais condôminos o direito de

preferência na compra, por igual preço e em iguais condições).

Por fugir ao objetivo deste trabalho, não se adentrará no mérito dessa

intrincada questão. Porém, é preciso apontar, por coerência, que na defesa de que o

Brasil possui um verdadeiro sistema de registro de direitos, que tem como uma de

suas principais características a concentração de todas as informações relevantes a

terceiros no registro, há apenas duas opções: ou se nega o registro do título

anulável ou ineficaz, ou o Oficial de Registro procede à sua inscrição, mas faz

expressa menção à causa de anulabilidade ou ineficácia no próprio registro, de

modo a dar-lhe publicidade. Com isso, busca-se resguardar os direitos dos terceiros

que, sem a publicidade apregoada, poderiam ser pegos de surpresa com a anulação

ou desfazimento do negócio que serviu de base para um registro anterior76.

Além dos títulos que veiculam negócios jurídicos, faz-se mister mencionar as

importantes categorias dos títulos administrativos (por exemplo, termo de concessão

74 No Direito brasileiro, são causas gerais de anulabilidade do negócio jurídico a incapacidade relativa

do agente e o vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores (art. 171 do Código Civil).

75 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Método, 2014. p. 213.

76 Nesse sentido, Leonardo Brandelli alerta que, “caso entenda-se ser possível o seu registro, o fato de ser anulável ou ineficaz deverá ser publicizado juntamente com o ato, para que essa situação seja igualmente oponível a terceiros”. (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 290).

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de uso especial para fins de moradia e os títulos de legitimação de posse e

legitimação fundiária) e judiciais (por exemplo, formais de partilha expedidos em

inventários ou divórcios processados em juízo). Nesses casos, o âmbito de

qualificação do Oficial de Registro é mais reduzido, pois não pode ele adentrar no

mérito, isto é, no juízo de conveniência e oportunidade da Administração Pública e

nas razões pelas quais um magistrado decidiu de determinada maneira. Porém,

cabe ao registrador de imóveis verificar o cumprimento de requisitos extrínsecos do

título e sua relação com o registro. Assim, deve-se negar o registro de formal de

partilha expedido em inventário, se não contiver a comprovação do imposto de

transmissão causa mortis (ITCD ou ITCMD) – por se tratar de requisito do título,

conforme as normas de Processo Civil77 –, ou se o imóvel partilhado não estiver

registrado em nome do de cujus, por violação do princípio da continuidade.

Os “vícios do registro” podem decorrer não somente do registro de títulos

inexistentes, inválidos ou ineficazes, seja qual for sua origem (negócio jurídico por

instrumento particular ou escritura pública e títulos de origem administrativa ou

judicial), mas também de vícios no próprio registro, ainda que o título (em sentido

próprio) que o embasou fosse existente, válido e eficaz. Nesse sentido, um registro

pode ser inválido em razão de falha em sua escrituração (por faltar remissão ao

título que lhe deu origem, por exemplo), por desrespeitar algum princípio registral

(por exemplo, registra-se um imóvel em Serviço Registral de circunscrição territorial

diversa daquela onde ele se situa) ou por decorrer de procedimento registral que

desrespeitou norma cogente (por exemplo, registra-se um loteamento sem que

tenha havido a publicação de editais para eventual impugnação por terceiros

eventualmente prejudicados).

Nessas últimas hipóteses, em que por vezes o vício é até visível no próprio

texto do registro, ou, se não o for, pode ser detectado a partir do exame da

documentação arquivada no Serviço Registral, o título pode ser registrado

novamente, afinal é existente, válido e tem sua eficácia limitada apenas pela falta de

um registro válido, cujo efeito pode ser a de criar um direito, nas hipóteses em que é

constitutivo, ou de garantir a oponibilidade e disponibilidade de um direito já

existente, nos casos em que é declaratório.

77 Art.. 655, inciso IV, do Código de Processo Civil.

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Finalmente, um vício pode atingir tanto o título em sentido próprio como seu

registro, isto é, em uma única situação as duas espécies de vícios até aqui

explicitadas podem ocorrer concomitantemente. Pode-se imaginar, por exemplo, o

registro de uma escritura pública de inventário e partilha na qual não houve

intervenção de advogado ou defensor público (violação ao disposto no art. 610, § 2o,

do Código de Processo Civil), em matrícula de imóvel que não pertencia ao de cujus

(desrespeito ao princípio da continuidade).

Essas três situações do que se está chamando genericamente de “vícios

registrais” foram identificadas por Miguel Maria de Serpa Lopes, que habilmente

classificava as “nulidades da nossa publicidade imobiliária” em três categorias:

a) Nulidade exclusivamente formal, inerente tão-sòmente ao próprio registo; b) Nulidade mista, isto é, a que alcança não só o título causal, como igualmente o seu respectivo registo, de modo a invalidá-los conjuntamente; c) Nulidade do título causal, decorrendo daí, oblìquamente, a nulidade do seu respectivo registo, o qual não é atingido diretamente, mas em conseqüência da invalidação do título que lhe serviu de fundamento.78

É verdade que o autor não distingue os planos de existência, validade e

eficácia dos atos jurídicos, tratando todos os vícios como “nulidades”, o que

certamente se justifica pelo estágio de desenvolvimento da ciência jurídica à época

em que escreveu seu Tratado. Isso, porém, não retira a utilidade de sua

classificação, que apenas merece ser atualizada quanto à questão ora apontada.

Pode-se, assim, falar em vícios registrais exclusivamente formais, mistos e do título

causal.

O princípio da fé pública registral, quando adotado, aplica-se a todas essas

espécies de vícios apontados por Serpa Lopes, pois a aquisição do imóvel por

terceiro de boa-fé, atendidos determinados pressupostos (que variam de acordo com

o sistema jurídico), faz com que os registros anteriores, com relação a ele, passem a

gozar de presunção absoluta de validade. Isso, repete-se, não impede discussões

no campo do Direito das Obrigações sobre o ressarcimento dos danos decorrentes

dos vícios nos títulos causais e na própria lavratura dos registros anteriores,

aplicando-se-lhes, assim, uma “regra de responsabilidade”, em vez da “regra de

propriedade”.

78 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Registo de imóveis (inscrição, transcrição e cancelamento) e

registo da propriedade literária, científica e artística. In: _____. Tratado dos Registos Públicos. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. IV, p. 355-356.

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Conquanto não reconheça a aplicabilidade do princípio da fé pública registral

no Brasil, Hamid Charaf Bdine Júnior esclarece que existe, no Direito Brasileiro, uma

tendência a se proteger a segurança do tráfico jurídico e a boa-fé – seja de

participantes dos negócios jurídicos, seja de terceiros – de forma que até mesmo

negócios jurídicos nulos podem produzir efeitos. Nesse sentido, sempre se referindo

ao Código Civil brasileiro de 2002, o autor exemplifica e conclui o seguinte:

Assim, é vedada a anulação do negócio celebrado por dolo de terceiro se o beneficiado o desconhecia (art. 148); é assegurada a preservação do negócio se a coação for proveniente de terceiro e o beneficiado não tiver conhecimento de sua ocorrência; o negócio simulado não atingirá o direito terceiros (art. 167, § 2o); preservar-se-á o negócio cujos requisitos estiverem presentes no negócio nulo (art. 170); não é permitida a confirmação do negócio anulável se houver prejuízo a terceiro.

Como se vê em uma análise superficial, de várias maneiras o Código Civil brasileiro estabeleceu regras em que os efeitos das invalidades não se produzirão em nome da proteção de interesses de terceiros, e também de interesses dos envolvidos no negócio – como nos casos de dolo e coação provenientes de terceiros –, nos quais forem identificados valores superiores do ordenamento jurídico cuja proteção se sobreponha aos decorrentes da invalidade e da ineficácia dos negócios.79

Em suma, não é estranha ao Direito brasileiro a ideia de que um negócio

jurídico inválido seja preservado em nome da proteção de elevados valores, como é

o caso da proteção ao tráfico jurídico. Este é o bem jurídico protegido pela fé pública

registral, que produz efeitos com relação a terceiros de boa-fé que confiam na

aparência de bom direito gerada pelo registro imobiliário. Contudo, antes de se

discutir a admissibilidade do princípio da fé pública registral no Brasil, é relevante

enriquecer o debate com elementos de outros sistemas registrais.

3.2 Direito estrangeiro

A compreensão do sistema registral imobiliário brasileiro exige que se

conheça sua evolução, que, como se verificará no próximo capítulo, sofreu, no início,

forte influência francesa e, em um segundo momento, não menos intensa inspiração

germânica. Reside aí a indispensabilidade de se estudarem os sistemas francês e

alemão.

Especificamente com relação à proteção do tráfico jurídico, ver-se-á que

existem grandes variações na forma de tratamento dos vícios do registro, seja em

79 BDINE JÚNIOR, Hamid Charaf. Efeitos do negócio jurídico nulo. São Paulo: Saraiva, 2010. p.

175.

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razão da adoção ou não da separação entre os planos obrigacional e real, isto é, de

se tratar de um sistema jurídico abstrato ou causal, seja em razão de o registro

produzir efeitos constitutivos ou declaratórios, seja em função da profundidade da

qualificação registral exigida para a inscrição de um título.

Também é preciso averiguar se o fato de um sistema jurídico ser causal,

como o brasileiro, acarreta ou não, como consequência necessária, a

impossibilidade da adoção da fé pública registral, até porque este é um princípio

tipicamente alemão. Verificar-se-á que o sistema espanhol oferece resposta

esclarecedora a essa indagação.

Todas essas questões justificam a necessidade de se analisar, ainda que de

forma sucinta, os sistemas registrais de maior influência sobre o brasileiro80.

3.2.1 Do sistema registral francês

O sistema registral imobiliário da França é, evidentemente, adaptado à forma

de transmissão adotada nesse país: o consensualismo. Adota-se, assim, o modelo

de registro declaratório, que, por diversos motivos, oferece proteção fraca a terceiros

adquirentes de boa-fé. Conforme se verá mais adiante neste trabalho, esse sistema

foi o modelo que inspirou o legislador brasileiro na segunda metade do século XIX,

quando se introduziu no país um sistema registral imobiliário.

3.2.1.1 Características gerais

Já se viu que o Direito Romano, tanto no período clássico, como no pós-

clássico, exigia formalidades (modos) para a transmissão da propriedade imóvel,

sendo que no primeiro havia a mancipatio e a in iure cessio, as quais foram

substituídas, no segundo, pela traditio.

Contudo, a França se apartou por completo desse sistema, adotando o

consentimento como forma de transmissão da propriedade. Explicam Marcel Planiol

e Georges Ripert que “O contrato, nas nossas leis, não somente produz obrigações,

como no Direito Romano, mas também é translativo da propriedade. [...] A

80 No caso do sistema espanhol, a influência é mais recente, sendo sentida, por ora, na crescente

publicação de livros e artigos de autores espanhóis no Brasil, como é o caso de diversos daqueles citados ao longo deste trabalho. Mas ainda não parece correto afirmar que, tal como acontece com os sistemas registrais imobiliários francês e alemão, o espanhol já tenha produzido influência decisiva a ponto de se refletir em alguma alteração da legislação brasileira.

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transmissão da propriedade chegou a ser um efeito tão direto e imediato do contrato,

como a criação de obrigações” (tradução nossa)81.

Em outras palavras, adotou-se na França o sistema do título, em que o

simples consentimento externado em contrato é hábil para a transmissão da

propriedade de bem imóvel, sem necessidade de um modo que o complemente,

como a tradição ou o registro. É nesse sentido que se diz que esse é um sistema de

causalidade absoluta entre os planos real e obrigacional82.

A circunstância de a transmissão do domínio de um imóvel dar-se solo

consensu acarreta a existência de um sistema registral mais rudimentar, cujas

funções são basicamente as de garantir a oponibilidade do direito a terceiros e a

prioridade deste a quem promove o registro com anterioridade83, tendo efeito

meramente declaratório de direito já constituído ou transmitido anteriormente, e não

constitutivo84.

Esse sistema registral imobiliário, segundo Luis Díez-Picazo, nasceu logo em

seguida à Revolução Francesa, tendo como primeiro marco a Lei de 11 de Brumário

81 No original: “El contrato, en nuestras leyes, no solamente es productivo de obligaciones, como en el

derecho romano, sino que es traslativo de la propiedad. […] La transmisión de la propiedad ha llegado a ser un efecto tan directo e inmediato del contrato, como la creación de las obrigaciones”. (PLANIOL, Marcel; RIPERT, Georges. Derecho Civil. Traducción de Leonel Pereznieto Castro. México: Editorial Pedagógica Iberoamericana, 1996. p. 455).

82 Leonardo Brandelli admite que isso é o que costuma dizer a doutrina, mas coerentemente se questiona sobre a procedência do raciocínio, pois “a absolutividade é uma das marcas centrais dos direitos reais”, isto é, não existe direito real somente entre dois ou alguns poucos indivíduos, mas sua existência pressupõe oponibilidade erga omnes, o que somente se alcança com a publicidade registral, inclusive na França. (BRANDELLI, Leonardo. Abstração e causalidade entre o plano real e o obrigacional e as espécies registrais imobiliárias. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 79, p. 85-124, jul./dez. 2015. p. 109).

83 Maria Clara Sottomayor esclarece que a inadequação da consensualidade acaba sendo reconhecida pela própria lei, que a contradiz com regras exceptivas: “Apesar da força do princípio da consensualidade, por razões ligadas ao pragmatismo da vida, necessidades de segurança e facilidade do tráfico, assim como de reforço do crédito, o registo teve que assumir um papel mais importante do que seria coerente com um consensualismo puro, tendo sido utilizado como uma forma de combate à clandestinidade imobiliária, sancionando o primeiro adquirente e verdadeiro proprietário com a perda do direito real, através da aplicação da regra da prioridade do registo, nos casos de dupla alienação. De acordo com as regras de direito material, trata-se de uma aquisição a non domino, uma vez que o vendedor não pode transmitir um direito de propriedade de que foi privado, aquando da celebração da primeira venda”. (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 639).

84 A definição do registro como modo teria como vantagens a publicidade da real situação jurídica do imóvel a quaisquer interessados, bem como a perfeita definição do momento da transmissão ou constituição de um direito real. No caso francês, porém, Mónica Jardim aponta um grave inconveniente decorrente do princípio do consensualismo: “a transferência da propriedade é, em princípio, ignorada pelos terceiros – sobretudo quando a coisa fica (por exemplo, até o pagamento do preço) nas mãos do vendedor que a pode ceder a um segundo adquirente, ao qual será posteriormente oposta a primeira aquisição”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal francês. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 453-510. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 456).

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do ano VII (1798), em que “se consolidou o chamado sistema francês, que é de

inscrição das hipotecas – todas as hipotecas, inclusive as legais – e de transcrição

dos atos de alienação: em ambos os casos se trata de uma publicidade no interesse

de terceiros” (tradução nossa)85. Havia, portanto, um interessante sistema de

registro declaratório que, ao menos, concentraria todos os atos de transmissão da

propriedade e sua principal forma de oneração, a hipoteca, em todas as suas

modalidades.

Contudo, o que acabou prevalecendo foi o sistema introduzido pelo Código

Civil francês de 1804, que representou um retrocesso em relação à Lei de 11 de

Brumário de 1798. De fato, a partir do texto legal, a doutrina da época entendeu que,

sendo os direitos reais transmitidos ou criados pelo simples consentimento, seria

desnecessária a transcrição dos atos de transmissão onerosa da propriedade.

Conservou-se a obrigatoriedade de inscrição e especialização das hipotecas

convencionais, mas dispensou-se a inscrição das hipotecas legais e mantiveram-se

no sistema diversos privilégios ocultos86.

Diante das falhas evidentes desse sistema que não privilegiava a publicidade

imobiliária, diversas modificações foram introduzidas, especialmente pelas reformas

de 1855, 1955 e 1959, quando o sistema francês assumiu suas características

atuais.

A Lei de 23 de março de 1855 teve como grande marco o estabelecimento do

registro obrigatório de todos os atos de constituição e transmissão de direitos reais a

título oneroso, sendo a inoponibilidade a terceiros a sanção pelo descumprimento

dessa obrigação. Por seu turno, a oponibilidade dos títulos registrados tem como

corolário a prioridade, isto é, quem primeiro registra seu título garante que seu direito

prevaleça sobre o de quem promover posteriormente a inscrição de seu título que

veicula direito contraditório, independentemente das datas em que os instrumentos

(títulos em sentido impróprio) tiverem sido elaborados.

Por sua vez, as reformas de 1955 e 1959 alargaram ainda mais o rol dos atos

cujo registro é obrigatório, que passou a abranger praticamente todos os atos de

85 No original: “En ella [Lei de 11 de Brumário] se consolida el llamado sistema francés, que es de

inscripción de las hipotecas – todas las hipotecas, incluidas las legales – y de transcripción de los actos de enajenación: en unos y otros se trata de una publicidad en interés de los terceros”. (DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 343).

86 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 32.

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transmissão e oneração de direitos reais, inclusive os causa mortis e os decorrentes

de decisões judiciais87. Outras alterações relevantes podem ser assim resumidas:

aumentou-se o papel do Oficial de Registros, que passou a exercer a qualificação

formal dos atos sujeitos à publicidade registral; instituiu-se um sistema mais

abrangente de sanções pela falta de registros obrigatórios, que passou a implicar,

além do efeito da inoponibilidade frente a terceiros, a imposição de multas e a

possibilidade de responsabilidade civil pela falta do registro nos prazos legais, nas

hipóteses em que é obrigatório88; introduziu-se o princípio da continuidade, chamado

pelos franceses de “efeito relativo da publicidade”; melhorou-se a publicidade

registral, agregando-se aos indicadores pessoais os chamados “fichários

imobiliários”, que nada mais são do que índices que permitem buscas, tendo-se

como parâmetro os imóveis; o tradicional termo “transcrição” foi substituído por

“publicação”89.

Não se aplica ao sistema registral francês, em toda sua amplitude, o princípio

da legalidade, de modo que o Oficial de Registros realiza a qualificação registral

averiguando unicamente seus requisitos extrínsecos, mas se abstendo de realizar

análise de fundo, isto é, dos elementos de existência, requisitos de validade e

fatores de eficácia do título, porquanto a garantia de perfeição do título seria de

responsabilidade do notário. Todavia, especialmente em matéria de cancelamentos,

tanto a doutrina como a jurisprudência francesas têm reconhecido ao registrador de

87 Aduz Luis Díez-Picazo que “La reforma amplía el campo de la publicidad, alargando sensiblemente

la lista de los actos sometidos a ella. Se suprime la dispensa de inscripción que, tradicionalmente, se concedió a algunas hipotecas legales y se impone la publicación de una serie de actos que, por su naturaleza, escapaban antes a la publicidad”. (DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 346).

88 Explica Jose Manuel Garcia Garcia que uma das inovações do Decreto de 4 de janeiro de 1955 é “la obligatoriedad de la publicación en el sentido de que la falta de ella da lugar a multas y a abonos de daños y perjuicios, en su caso. Ante todo, hay supuestos en que no es obligatoria la publicación […] en los que, lógicamente, no se produce ninguna multa por la falta de la misma. […] El plazo para obtener la publicidad es, por la regla general, dentro de los tres meses de la fecha del documento, aunque hay presupuestos especiales en que el plazo es de dos meses (compraventa y partición de bienes)”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 351, grifos do autor).

89 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 342-343; DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 346-347; BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 33-34.

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imóveis a função de realizar qualificação de fundo, para evitar possíveis danos

irreversíveis ao titular do direito90.

Uma sensível melhoria no sistema registral francês foi a adoção do princípio

da continuidade (ou trato sucessivo). Com base nele, uma transmissão de

propriedade ou oneração de direito real só pode ocorrer se houver registro anterior

do imóvel em que se apoie o novo registro, isto é, deve o imóvel estar em nome do

transmitente ou onerante91.

Outro importante progresso no sistema francês foi a incorporação do referido

fichário imobiliário, que, no mínimo, serve para facilitar as buscas, tendo-se como

parâmetros os imóveis92, além de continuar existindo a possibilidade de pesquisa

pelo nome dos proprietários e titulares de direitos. As buscas ficaram ainda mais

facilitadas com o intercâmbio de informações entre o Registro de Imóveis e o

cadastro, que normalmente desempenha função exclusivamente fiscal, mas na

França adotou-se a sistemática de que a descrição do imóvel deve ser a mesma no

Registro e no cadastro93 – nada mais lógico! Hoje há quem defenda até mesmo que

a França já não mais adota um sistema de fólio pessoal, mas um sistema misto, de

fólio pessoal e real94.

3.2.1.2 Inexistência de proteção ao terceiro adquirente de boa-fé

Ainda que com essas importantes evoluções, o sistema registral francês

continua sendo de registro de títulos, embora mitigado pela adoção de algumas

90 Nicolás Nogueroles Peiró aduz que “tanto la jurisprudencia cuanto la doctrina reconocen que en

algunos casos la función del conservador no es meramente pasiva en la llevanza de los registros de documentos y cuando de esta actuación pueden resultar efectos jurídicos irreversibles coinciden en otorgar al conservador facultades de control no sólo de la forma sino también del fondo, así ocurre con las cancelaciones”. (NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 524).

91 LACRUZ BERDEJO, José Luis et al. Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Elementos de Derecho Civil. 2. ed. Madrid: Dykinson, 2003. v. III bis, p. 47.

92 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 52.

93 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 517.

94 Nesse sentido, Maria Clara Sottomayor assevera que “a doutrina classifica o sistema registal francês, após a reforma de 4 de Janeiro de 1955, como um sistema misto, real e pessoal. Como consequência, a lei prevê a concordância entre o ficheiro imobiliário e o cadastro, o qual deixa de ter apenas uma função fiscal, passando a servir de suporte à publicidade fundiária, e estando informatizado, desde Agosto de 1984, de tal forma que hoje não existem terrenos que não tenham cadastro ou cujo cadastro não tenha sido renovado”. (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 638).

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características dos registros de direitos, pois o que se publica continuam sendo os

títulos (os livros de registro passaram a ser formados por vias dos próprios títulos), e

não os direitos deles decorrentes. E o mais importante: persiste ausente nesse

sistema uma forte qualificação registral de fundo para todos os títulos, o que facilita

em grande medida a publicação de títulos eivados de vícios. A consequência

necessária dessa última característica é a de que não se produzem os efeitos da

presunção de exatidão dos registros, isto é, a legitimação registral e a fé pública

registral. Continua-se, assim, diante de um sistema que não privilegia a segurança

jurídica dinâmica.

De fato, o principal efeito do registro no sistema francês continua sendo o de

gerar oponibilidade do direito perante terceiros e, como efeito inverso, produz-se a

inoponibilidade dos títulos não inscritos frente aos registrados, o que, ao menos,

privilegia a importante função de prevenção de litígios95. O registro também produz a

mutação do cadastro, dada a interconexão registro-cadastro, legitima

processualmente a parte interessada a ajuizar ações de anulação ou de declaração

de nulidade do título, bem como, se feito dentro do prazo, serve para evitar a

aplicação de sanções devido à sua não realização (multas e responsabilidade

civil)96.

Tais limitados efeitos são característicos de um registro “puramente formal”97,

o que já era percebido por Francisco Bertino de Almeida Prado, cuja lição continua

atual:

O direito francês consagra a transcrição para efeito de publicidade dos atos translativos ou constitutivos de direitos reais; de modo que os publica tais quais são, sem lhes emprestar qualquer força probatoria, além da do proprio ato, que é revogável, recindivel, anulavel e resoluvel, mesmo em vista de terceiros de boa fé.98

95 Com efeito, Mónica Jardim esclarece que o registro “é condição de oponibilidade do acto em face

de terceiros (para efeitos de registo), protegendo, assim, o titular inscrito perante terceiros que não hajam registado direitos conflituantes adquiridos anteriormente e cumprindo, nessa medida, o seu papel enquanto instrumento de informação e protecção que assegura a prevenção de conflitos”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal francês. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 453-510. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 457).

96 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 347-351.

97 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 638.

98 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo: Saraiva, 1934. p. 111.

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De fato, não havendo forte qualificação registral de fundo, mas apenas de

forma, o registro francês não poderia realmente produzir nenhuma presunção de

exatidão, nem mesmo a decorrente do princípio da legitimação registral. Desse

modo, tem total aplicação o aforismo nemo dat quod non habet, não havendo

possibilidade de aquisição a non domino, independentemente da boa-fé do terceiro

adquirente99. Leonardo Brandelli concorda com essa conclusão, aduzindo que,

sendo o registro imobiliário declarativo, “não há falar em proteção ao terceiro que

adquire, de boa-fé, um direito aparente, como decorrência do instituto da

publicidade. A publicidade não tem esse alcance”100.

Dessa forma, a efetiva segurança acerca da titularidade da propriedade

imobiliária somente é alcançada, no sistema francês, pelo cumprimento de todos os

requisitos da usucapião, ou seja, vários anos após a instrumentalização do título e

seu registro101. Com efeito, a eficácia extremamente limitada do registro, que

acarreta sensível insegurança para o tráfico jurídico, é a grande crítica que se faz a

esse sistema102.

3.2.2 Do sistema registral alemão

O sistema registral imobiliário alemão é um dos mais perfeitos do mundo, na

medida em que alcança com bastante sucesso o ideal de qualquer sistema de

Registro de Imóveis: a exata correspondência entre a situação jurídico-registral do

imóvel e a realidade fática. Some-se a isso a adoção do princípio da fé pública

registral e se tem na Alemanha um ambiente extremamente propício à ampla

circulação de imóveis e de títulos com lastro em bens de raiz. Consoante se

estudará adiante, esse sistema teve grande influência na legislação brasileira no

século XX, com a gradual incorporação de vários de seus princípios a partir do

Código Civil de 1916.

99 Assim, conclui Jose Manuel Garcia Garcia que, “Por eso, se ha dicho que lo único que puede

acreditar y asegurar el Registro francés es si el vendedor ha vendido o no la finca con anterioridad y si ha constituido o no derechos reales sobre el inmueble”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 346).

100 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 279.

101 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal francês. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 453-510. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 466.

102 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 56.

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3.2.2.1 Características gerais

Algumas regiões que hoje compõem a Alemanha foram precursoras na

instituição do registro como modo de transmissão da propriedade imóvel. Narra

Mónica Jardim que o registro tornou-se necessário para a aquisição da propriedade

na Boêmia e na Morávia já a partir do século XV. Esclarece a autora que, em outras

regiões, a publicidade registral passou a vigorar apenas no século XVII. Nessa

época, o registro atingiu nível surpreendentemente alto de evolução, pois já havia

sido instituído o fólio real, bem como o princípio da legalidade:

Com Frederico, o Grande, foi organizado o cadastro da propriedade nas cidades prussianas de Colónia e Berlim; tornou-se necessária a matrícula dos prédios no livro fundiário; foi imposto o registo constitutivo para todos os actos respeitantes a direitos sobre imóveis e instituído o exame prévio da legalidade, para averiguar a viabilidade do registo. Já no século XVIII o sistema prussiano foi aperfeiçoado e alargado a toda a Prússia.103

O sistema registral imobiliário alemão tem suas normas de direito material

previstas no Código Civil do país (o BGB, de 1896) e suas normas de direito formal

encontram-se na lei específica, o GBO, de 1935, e legislação posterior104.

Somente podem ser objeto de registro os atos previstos em lei, cujo rol é

numerus clausus, aplicando-se aos direitos reais, além do princípio da taxatividade,

o da tipicidade. Essa característica é relevante em um sistema de registro de

direitos, pois a possibilidade de as partes livremente definirem o conteúdo real de

um direito, além de dificultar o tráfico jurídico, traria inconvenientes à própria forma

de se praticar o registro – tanto que sistemas que não adotam a tipicidade, como o

francês, acabam empregando a técnica da transcrição do título ou do arquivamento

de uma via deste. Já na Alemanha o registro pode ser feito por extrato, ou seja, com

a indicação de dados básicos, tais como a natureza do direito instituído ou

transmitido, nome das partes e respectivas qualificações, valor do negócio jurídico

(se for o caso), pois a conformação jurídica do direito inscrito já se encontra

predefinida em lei.

Quanto à organização, adota-se o sistema do fólio real, isto é, o registro

imobiliário organiza-se de acordo com os imóveis. A cada imóvel corresponde uma

103 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo;

JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 424.

104 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 57.

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ficha, que é composta por quatro partes, sendo que a primeira (índex) contém a

perfeita caracterização do imóvel (princípio da especialidade objetiva), em total

coordenação com o cadastro, e as demais destinam-se à inscrição das transmissões

de propriedade, dos ônus sobre o imóvel etc.105

Não existe um livro diário de apresentação de títulos, como o Protocolo

previsto na legislação brasileira. Garante-se a prioridade, assim, pela ordem com

que são praticados os atos de registro106.

É interessante notar que o processo registral é considerado de jurisdição

voluntária107, motivo pelo qual a organização do Registro de Imóveis cabe aos

tribunais de primeira instância, aos quais incumbe decidir pela realização ou não dos

atos de inscrição. Relata Maria Clara Sottomayor que:

A competência do juiz consiste, todavia, num princípio regra meramente teórico, válido apenas na ausência de regras especiais. Na prática, desde a lei 6.8.1998, a competência judicial foi fortemente limitada, porque os negócios assegurados pelo juiz foram transferidos para a competência do funcionário judicial (Rechtspfleger). Este só apresenta um negócio ao juiz, em casos muito raros.108

A forma de transmissão da propriedade é a do título e modo, de forma que a

efetiva transmissão da propriedade ou a constituição de direitos reais ocorre apenas

com o registro nas hipóteses de aquisição derivada da propriedade. Contudo, para a

correta compreensão do sistema alemão, que é distinto de qualquer outro109, é

preciso perceber que ele adota uma rígida separação entre os planos obrigacional e

real, entre os quais não há causalidade, mas abstração. Refere-se aqui não às

aquisições que decorrem diretamente da lei, como a usucapião e a transmissão

causa mortis, mas às situações que envolvem negócios jurídicos.

Esse complexo sistema é didaticamente explicado por José María Chico y

Ortiz:

105 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal francês. In: DIP, Ricardo;

JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 453-510. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 428.

106 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 394.

107 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 56.

108 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 631.

109 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 84.

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No Direito alemão, em toda mutação jurídico-real produzida por negócio jurídico cabe distinguir dois elementos: a) o negócio obrigacional ou ato causal (causalgeschäft), contrato celebrado pelas partes que serve de causa à transmissão, mas que carece de transcendência real; e b) o negócio dispositivo, dirigido exclusivamente à modificação real, que, por sua vez, compõe-se de duas partes, que não devem ser consideradas como negócios ou atos jurídicos diferentes, mas como elementos de um negócio jurídico único, e que são: 1) o acordo real [...], que supõe um acordo de vontades entre o titular registral e o adquirente sobre a produção da mutação jurídica real; e 2) a inscrição (Eintragung), que unida ao anterior acordo é necessária para que a transmissão ou gravame se produza. (tradução nossa)110

A respeito do trecho da obra de José María Chico y Ortiz acima transcrito, é

relevante observar que o autor adota a posição de que o acordo real e a inscrição

(ou registro) formam, em conjunto, um único negócio jurídico, o que não é aceito por

toda a doutrina alemã. Com efeito, parece mais técnica a posição que não nega que

ambos se situem no plano real e se somam para operar a transmissão da

propriedade, mas faz clara distinção entre o acordo real, que contém declarações de

vontade das partes, como em todo contrato, o qual é instituto de Direito Privado, e o

registro, que é um ato estatal, regulado pelo Direito Público111.

Com efeito, no sistema jurídico alemão há uma vigorosa separação entre o

Direito das Obrigações – plano em que se situa o negócio obrigacional – e o Direito

das Coisas – plano em que se situam o acordo real e o registro112. É relevante

apontar que o acordo real não deixa de ser um negócio jurídico, motivo pelo qual se

lhe aplica toda a regulamentação dos negócios jurídicos em geral, inclusive aquelas

normas relativas à sua validade113.

Esclarece-se que o negócio obrigacional nada mais é do que a compra e

venda, doação, dação em pagamento etc., ou seja, o contrato, que somente gera

obrigações entre as partes, situando-se exclusivamente no campo do Direito das

Obrigações. Acresce Jose Manuel Garcia Garcia que a peculiaridade do sistema

110 No original: “En Derecho alemán, en toda mutación jurídico-real producida por el negocio cabe

distinguir dos elementos: a) el negocio obligacional o acto causal (causalgeschäft), contrato celebrado por las partes que sirve de causa a la transmisión, pero que carece de trascendencia real; y b) el negocio dispositivo, dirigido exclusivamente a la modificación real, que a su vez se compone de dos partes, que no deben ser consideradas como negocios o actos jurídicos diferentes, sino como elementos de un negocio único, y que son: 1) el acuerdo real […], que supone un acuerdo de voluntades entre el titular registral y el adquirente sobre la producción de la mutación jurídica real; y 2) la inscripción (Eintragung), que unida al anterior acuerdo, es necesaria para que la transmisión o gravamen se produzca”. (CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 58-59).

111 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 385-386.

112 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2011. [E-book]. 113 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2011. [E-book].

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alemão é que o negócio obrigacional simplesmente não afeta o plano real, ficando

seus efeitos restritos às próprias partes do negócio, cujas violações de direitos

geram pretensões que podem ser exercidas por meio de ações pessoais de uma

parte em face da outra, mas sempre sem atingir os direitos reais que surgem após o

registro114.

Por sua vez, o acordo real simplesmente traduz a vontade de uma das partes

(vendedor, doador etc.) de transmitir sua propriedade e a vontade da outra parte de

adquiri-la. Esse acordo costuma ser veiculado no mesmo instrumento do negócio

obrigacional, mas nada impede que venha em apartado. O acordo real não pode

estar sujeito a condição, sendo abstrato, na medida em que sua validade deve ser

analisada de forma isolada, isto é, eventuais máculas no negócio obrigacional não o

atingem115 e 116.

Contudo, não bastam o negócio obrigacional e o acordo real para a prática do

ato de registro da transmissão da propriedade. O acordo real é o denominado

consentimento material para a prática do registro, ao qual se deve acrescer o

consentimento formal do “prejudicado”, ou seja, do transmitente do domínio. Trata-

se de declaração unilateral receptícia de vontade, dirigida ao Oficial de Registro,

pela qual o transmitente o autoriza a praticar o ato registral. Remetendo-se à lição

de Enneccerus Kipp-Wolff, Jose Manuel Garcia Garcia explica que o consentimento

formal é abstrato, tendo como causa o cumprimento de um dever de assentimento,

que pode decorrer de um negócio jurídico, como a compra e venda. Porém,

acrescenta o autor que o consentimento formal não se vincula ao prévio negócio

obrigacional, nem sequer exigindo a sua existência e validade117.

Nesse contexto, a transmissão da propriedade imóvel na Alemanha é

bastante complexa, pois exige cinco atos sucessivos: negócio obrigacional, acordo

114 O autor aponta outra peculiaridade: enquanto o direito real não for transmitido a terceiro, cabe ao

transmitente prejudicado o direito de ajuizar ação de restituição da coisa, que, apesar de ter o condão de realmente devolver o imóvel ao alienante, possui caráter obrigacional. Contudo, após a aquisição por terceiro, resta ao prejudicado ajuizar ação de indenização por enriquecimento sem causa, igualmente de caráter pessoal, em face da outra parte com quem estabeleceu vínculo obrigacional. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 383-384).

115 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 84-85.

116 Explica Jose Manuel Garcia Garcia que, “Con esa separación entre negocio obligacional y negocio real, el Derecho alemán sigue lo que se ha denominado dogma de la neutralidad ética de los derechos reales”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 385, grifo do autor).

117 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 388.

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real, consentimento formal, pedido de registro118 e, finalmente, o registro119. Mónica

Jardim chega a afirmar que o sistema registral alemão não é de título e modo, mas

de “modo complexo”, pois prescinde da existência, validade e eficácia do negócio

obrigacional, de maneira que a transmissão da propriedade se dá apenas com o

modo, composto pela soma do acordo real e do registro120.

Diversamente do que sustentam diversos autores121, o fato de haver

abstração entre os planos obrigacional e real não torna o registro inquestionável, isto

é, o sistema registral alemão não tem eficácia absoluta, o que implicaria o

saneamento de quaisquer vícios existentes nos fundamentos do registro.

Com efeito, em razão da abstração, é verdade que vícios no negócio

obrigacional em nada afetam o registro, podendo gerar apenas demandas

envolvendo direitos pessoais. Contudo, o registro é afetado por vícios no acordo

real, de modo que entre ambos existe causalidade. Daí por que é totalmente

equivocado dizer-se que o registro alemão possui efeito sanante.

Na realidade, esse erro de compreensão deve-se não somente à abstração

entre os planos, que faz com que vícios no negócio obrigacional sejam irrelevantes

para efeitos reais, mas também à adoção do princípio da fé pública registral. Assim,

enquanto não houver aquisição do imóvel por terceiro de boa-fé, o registro pode ser

questionado com base em vícios no acordo real e do próprio registro, o que pode

acarretar seu cancelamento122.

118 Trata-se de decorrência do princípio da rogação ou instância. Na Alemanha têm legitimidade para

solicitar o registro o transmitente e o adquirente. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 438).

119 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 429.

120 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 426.

121 Essa falha de compreensão tão comum é notada por Leonardo Brandelli, que faz referência a autores estrangeiros para fundamentar essa constatação. (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 268).

122 Nesse sentido, Leonardo Brandelli esclarece que “no direito alemão, embora haja abstração entre o negócio obrigacional e o real, não há abstração entre o negócio real e o registro imobiliário, de modo que, se o negócio real contiver vício, este se estenderá ao registro. [...] o vício do próprio registro, ou do negócio real, afeta o registro e o direito real instituído ou transmitido, porque entre registro e negócio real há causalidade, e o registro não é sanante. Nesse caso, apenas será resguardado o terceiro que adquire de boa-fé, confiando no registro, porque há no direito alemão a atuação do princípio da tutela da aparência, amparado na tutela da confiança legítima, a proteger esse terceiro. Mas na relação direta, sem o tráfico jurídico, o direito real será maculado”. (BRANDELLI, Leonardo. Abstração e causalidade entre o plano real e o obrigacional e as espécies

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Justamente em razão da abstração, que torna irrelevantes, para efeitos reais,

eventuais vícios no negócio obrigacional, costuma-se dizer que o âmbito da

qualificação registral é bastante limitado no sistema alemão. Independentemente

disso, sem dúvida fortalece o sistema o fato de que somente instrumentos públicos

ou autenticados podem ser objeto de inscrição, de forma que o notário atua

ativamente para evitar quaisquer vícios, inclusive no negócio obrigacional.

A posição clássica, que deriva da lógica da separação dos planos

obrigacional e real, é a de que não cabe ao Oficial de Registro analisar o negócio

obrigacional, o que não significa, de forma alguma, que a atividade de qualificação

não seja intensa. Cabe ao registrador analisar o acordo real, o consentimento formal

(a legitimidade para outorgá-lo, a capacidade jurídica de quem o faz e, se for o caso,

a regularidade da representação), bem como os chamados pressupostos da

inscrição, tais como o respeito à regra da taxatividade dos direitos reais, ao princípio

da continuidade etc.123

No entanto, diversos autores têm apontado uma tendência na doutrina e

jurisprudência alemãs no sentido de que nada impede que Oficial de Registro negue

a inscrição com base em informações extrarregistrais que ele possua ou mesmo

com fundamento em vício no negócio obrigacional. Alega-se que o fato de o Oficial

não ter que analisar o negócio obrigacional não significa que não o possa fazer. O

que se entende é que o registrador não pode cooperar para a inexatidão do registro,

até porque se trata de questão de interesse público124.

Em caso de discordância do interessado quanto à recusa do registro, cabe

recurso à autoridade judicial competente.

registrais imobiliárias. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 79, p. 85-124, jul./dez. 2015. p. 110).

123 Observa-se que, de regra, o Oficial de Registro só analisa o acordo real nos casos de alienação da propriedade e de constituição, modificação e transmissão do direito de superfície. (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 632).

124 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 538-539; SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 634; GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 398-399; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 442.

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3.2.2.2 Proteção ao terceiro adquirente de boa-fé

Não se justificaria a forte qualificação registral existente no sistema alemão,

cuja menor amplitude é compensada pelo fato de vícios existentes no negócio

obrigacional não terem efeitos no plano real, se não se pretendesse proteger

terceiros de boa-fé, que, confiando na aparência de bom direito gerada pelo registro,

realizam suas transações com base neste. Em se tratando de verdadeiro sistema de

registro de direitos, tutela-se o tráfico jurídico, com predominância da segurança

jurídica dinâmica sobre a estática, por meio da produção de ambas as presunções

de exatidão: a legitimação registral e a fé pública registral.

O princípio da legitimação registral encontra-se positivado no § 891 do BGB,

cuja redação é a seguinte: “Se se encontra inscrito um direito a favor de alguém no

livro fundiário, presume-se que este lhe pertence. Se se encontra cancelado,

presume-se que esse direito não existe”125.

Esse princípio estabelece uma presunção relativa de exatidão do registro,

quer seja este constitutivo, quer seja declaratório, que opera tanto a favor como

contra os interesses de quem consta dos atos registrais. Com efeito, permite-se que

o titular do direito exerça o direito inscrito em seu nome, bem como que se defenda

de agressões a seu direito, mediante a simples exibição da certidão do registro,

cabendo a seu adversário provar que este não é exato. Inversamente, se o conteúdo

do registro não favorecer o suposto titular do direito, caber-lhe-á demonstrar seu

equívoco. Acrescenta-se que essa presunção não alcança fatos, como a descrição

do imóvel, nem a capacidade jurídica de quem consta dos registros.

O princípio da legitimação registral sozinho não é suficiente para uma tutela

eficaz do tráfico jurídico, justamente por produzir apenas presunção iuris tantum de

exatidão. Se existisse apenas esse princípio no sistema alemão, seria admissível a

declaração da nulidade de um registro de transmissão de propriedade bastante

anterior ao último e, como uma sequência de peças de dominós em que uma

derruba a outra, até a última, o registro do atual proprietário registral também seria

atingido, exceto se já houvesse sido atingido o prazo da usucapião. Por isso, apesar

125 Tradução retirada a partir da comparação das seguintes obras: PRADO, Francisco Bertino de

Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo: Saraiva, 1934. p. 223; GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 391; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 444.

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da utilidade da legitimação registral, esta exige um complemento, voltado

principalmente à proteção dos terceiros que, de boa-fé, adquirem imóveis com base

no registro e promovem a inscrição de seus respectivos títulos.

Nesse sentido, o BGB contempla o princípio da fé pública registral no § 892, o

qual prescreve em sua primeira parte: “Reputa-se exato o teor do registro fundiário a

favor daquele que adquire, por ato jurídico, um direito sobre um imóvel ou um direito

sobre um tal direito, a menos que esteja inscrita uma contradita contra a exatidão ou

seja conhecida do adquirente a inexatidão”126.

A fé pública registral somente produz seus efeitos se respeitados

determinados requisitos, que variam de acordo com o ordenamento jurídico. Na

Alemanha, esses requisitos são os seguintes:

a) Existência de inexatidão em ato de registro imobiliário. É evidente que

somente há lógica em se recorrer ao princípio da fé pública registral diante de um

ato de registro viciado, o que, neste trabalho, considera-se em sentido amplo: o vício

pode estar tanto no título como no ato de registro em si mesmo. Assim, há uma

dissonância entre a situação jurídica registrada e a real. Considerando-se a

abstração entre os planos real e obrigacional existente no sistema jurídico tedesco,

vícios no negócio obrigacional não afetam o registro, pois não repercutem no plano

real; por isso, com relação a defeitos no título, somente importam vícios no acordo

real.

b) O terceiro adquirente a ser protegido já deve ter obtido a inscrição de seu

direito. A fé pública registral somente produz seus efeitos com relação a quem não

somente confiou nas inscrições anteriores, mas já obteve o registro de seu título,

após todo o trabalho de qualificação do Oficial de Registro. Esse é um princípio

voltado à proteção do tráfico jurídico, de forma que exige a circulação do direito, cujo

titular anterior obteve a partir de um registro viciado (em caso de registro anterior

declaratório, obviamente o registro não foi essencial para a constituição do direito,

mas, sim, para sua oponibilidade erga omnes e disponibilidade).

c) A aquisição a ser tutelada deve ter-se dado por meio de negócio jurídico.

Excluem-se, assim, as aquisições que se deram por meio de atos judiciais ou por

sucessão causa mortis. É preciso ficar claro que esse é um requisito aplicável ao

126 Tradução retirada de obra de CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao

sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.2016, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 175.

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registro que se beneficia da fé pública registral. A título exemplificativo, se o último

registro for de aquisição de propriedade por sucessão hereditária, não se lhe aplica

a fé pública registral; mas se a última aquisição tiver-se dado por compra e venda,

fica esta a salvo – desde que atendidos todos os demais requisitos da fé pública

registral – ainda que haja vícios no registro anterior, referente a uma transmissão

causa mortis.

Destaca-se que o sistema registral alemão não impõe como requisito da fé

pública registral a onerosidade do negócio jurídico. A falta de distinção entre atos

onerosos e gratuitos para a aplicação do princípio da fé pública registral decorre da

abstração entre os planos obrigacional e real no Direito alemão127.

d) Boa-fé subjetiva do adquirente. Em princípio, presume-se a boa-fé do

adquirente, mas esta é afastada em duas situações: caso se demonstre que ele

tinha efetivo conhecimento da inexatidão registral ou se houve prévia inscrição de

um assento de contradição, dando conta de alguma situação que potencialmente

poderia prejudicar terceiros, como o ajuizamento de uma ação judicial de retificação

de registro.

Quanto à primeira situação, é relevante notar que o Direito alemão não exige

do adquirente nenhum tipo de diligência especial para a verificação da integridade

do registro, bastando que não tenha ciência quanto a eventual vício128 ou, mesmo

que o conheça, que ignore as consequências jurídicas desse vício sobre o registro

anterior129.

Por sua vez, o assento de contradição “tem uma finalidade muito concreta:

anunciar a um terceiro adquirente o início de um processo de rectificação registal”130.

Assim, o assento de contradição não impede novos registros de transmissão da

propriedade, pois não prova a incorreção do registro, nem impede a produção dos

127 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas,

1988. t. I, p. 393. 128 Como afirma Nicolás Nogueroles Peiró, “En los registros de inspiración germánica, la buena fe es

un concepto puramente negativo, la ignorancia de la inexactitud del registro. No se equipara el conocimiento con el desconocimiento inexcusable”. (NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 531).

129 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 87.

130 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 431.

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efeitos da legitimação registral131, mas como sua existência goza de presunção

absoluta de conhecimento erga omnes, exclui a aparência do bom direito inscrito.

Desse modo, os atos posteriores a esse assento serão declarados ineficazes, caso

quem o promoveu tenha seu direito reconhecido.

e) Cumprimento dos requisitos legais da aquisição pelo terceiro. A fé pública

registral faz com que sejam inoponíveis ao terceiro – que adquire de boa-fé seu

direito por meio de negócio jurídico e obtém o registro de seu título – os vícios de um

registro anterior. Contudo, esse princípio não sana os eventuais vícios da aquisição

do terceiro, de maneira que se afirma que somente se pode falar em aplicação do

princípio da fé pública registral se a inscrição do próprio adquirente de boa-fé for

válida. Nesse sentido, todos os requisitos para a regular aquisição do imóvel pelo

terceiro de boa-fé devem estar presentes e não conter vícios: acordo real,

consentimento formal, inexistência de proibições para dispor, entre outros.132

Desde que atendidos todos os requisitos expostos acima, a inscrição passa a

gozar de presunção absoluta de exatidão em benefício do terceiro adquirente133.

Como não poderia deixar de ser, essa presunção atua exclusivamente com relação

aos direitos, não se aplicando aos fatos constantes do registro134 (assim, por

exemplo, se a descrição do imóvel em sua ficha não estiver condizente com a

realidade, nada impedirá sua retificação no Registro de Imóveis).

Fala-se que a fé pública registral possui tanto eficácia positiva, como eficácia

negativa. A eficácia positiva significa que o princípio faz com que se torne irrelevante

o fato de faltar ao transmitente o direito que foi transferido ao adquirente. O princípio

revela sua força também com sua ineficácia negativa, que conduz à consideração de

inexistência de todo e qualquer gravame que não tenha constado do registro até a

prática da inscrição que beneficiou o adquirente (trata-se, na realidade, do já

mencionado princípio da inoponibilidade). Maria Clara Sottomayor explica mais

detalhadamente a eficácia negativa e faz uma importante advertência:

131 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 617. 132 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 616. 133 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial

Pons, 2000. t. I, p. 60. 134 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei

n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.2016, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 176.

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Os efeitos negativos consistem numa ficção de completude do registo, de acordo com a qual, o adquirente de boa fé adquire o direito sobre o imóvel, por exemplo, um direito de propriedade, livre de todos os ónus, que o registo não revele. Se uma hipoteca se extinguiu ilegalmente, a propriedade transfere-se desonerada desta hipoteca. O adquirente pode confiar que nenhum outro ónus incide sobre o imóvel, para além daqueles que estão inscritos no registo. A aquisição de boa fé tem como consequência a extinção de todos os direitos e ónus não inscritos no registo, desde que se trate de actos sujeitos a registo e não registados.135

Com efeito, existem cargas ocultas no sistema alemão, isto é, restrições a

direitos em geral, previstas em lei, tais como limitações urbanísticas, cuja eficácia

independe do registro, de forma que a fé pública registral não pode ser invocada

como proteção a elas. Como se afirmou anteriormente, as cargas ocultas nunca são

bem-vindas, pois atingem a segurança jurídica e, assim, enfraquecem o sistema.

Porém, a referida autora relata que vem aumentando a intervenção do Estado,

sobretudo no âmbito da propriedade urbana, o que restringe o alcance da fé pública

registral136.

Indubitavelmente, a fé pública registral pode trazer prejuízos ao verdadeiro

titular. Por exemplo, o transmitente da propriedade em título objeto do registro

anterior sofreu danos por ter havido vício de capacidade jurídica ou em sua

representação, contido no acordo real ou no consentimento formal. É verdade que

esse fato poderia justificar a inscrição de um assento de contradição, para advertir

terceiros sobre o fato, de forma a retirar-lhes a possibilidade de alegar boa-fé, mas

imagine-se que isso não tenha sido providenciado. A solução do Direito alemão para

esse problema é a de preservar o direito real em nome do adquirente de boa-fé –

logo, não se promoverá nenhuma retificação de registro, pois erro não existe para se

corrigir –, mas se admite que o prejudicado ajuíze ação em face do adquirente, para

reaver seus prejuízos, contanto que a aquisição haja sido lucrativa. Ou seja, o

problema sai da esfera real e passa a pertencer unicamente ao âmbito do Direito

das Obrigações137.

O sacrifício do direito do verdadeiro proprietário demonstra claramente a

prevalência da segurança jurídica dinâmica sobre a estática no sistema registral

alemão. Com efeito, Jose Manuel Garcia Garcia refere-se aos ensinamentos de 135 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 618. 136 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 618. 137 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo;

JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 446.

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Enneccerus Kipp-Wolff, que explica não ser a legitimação registral suficiente para a

proteção do tráfico imobiliário, pois seus principais efeitos produzem-se na esfera

processual (inversão do ônus da prova). Segundo alega este autor, quem deseja

adquirir um direito sobre imóvel não se sente seguro apenas com a presunção iuris

tantum de exatidão do registro a seu favor, mas aspira à segurança total quanto a

essa exatidão, o que só pode ser alcançado com o princípio da fé pública

registral138.

Publicidade, aparência e confiança. Essas são as três palavras-chave para a

compreensão da fé pública registral.

Realmente, a simples publicidade registral não tem o condão de acarretar

presunção absoluta de exatidão de um registro – à exceção do que ocorre no

sistema Torrens. Mesmo no sistema alemão, a publicidade gera a aparência do bom

direito, na medida que o direito publicizado passou por forte qualificação registral,

empreendida por agente estatal. Isso faz com que terceiros em geral tenham

confiança legítima no conteúdo do registro e aceitem participar de transações que

tenham aquele direito como objeto. No Direito alemão, essa proteção é ainda mais

forte em virtude de expressa disposição legal, que fundamenta o princípio da fé

pública registral no Código Civil (§ 872 do BGB). Conforme se verá adiante, onde

falta previsão legal expressa, a fé pública registral pode decorrer do princípio da

tutela da aparência jurídica139.

Por fim, é relevante verificar como um sistema de registro de direitos forte, tal

qual o alemão, comporta-se diante da usucapião de bens imóveis. Como é natural,

não existe nenhuma objeção à usucapião tabular, isto é, àquela em que a posse

animus domini é exercida por alguém que obteve o registro em seu nome de forma

indevida. O § 900 do BGB requer a posse pelo prazo de trinta anos, não havendo

qualquer exigência de justo título ou boa-fé140.

A questão é mais controvertida com relação à usucapião contratabular. A

regra é sua impossibilidade, com prevalência do registro, privilegiando-se, assim, a

138 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas,

1988. t. I, p. 392. 139 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

118; SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 617; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 425.

140 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 396.

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segurança jurídica. Porém, conforme relata Jose Manuel Garcia Garcia, Antonio Pau

Pedrón admitia como usucapião a situação prevista no § 927 do BGB, em que

“prescreve o domínio inscrito se o titular registral tiver falecido ou desaparecido e

tiverem transcorrido trinta anos, sem atualizações na situação registral do imóvel”

(tradução nossa)141.

Sobre essa situação, Mónica Jardim alega não se tratar tecnicamente de

usucapião, pois a sentença expedida na ação judicial, em um primeiro momento,

transformaria o imóvel em res nullius, para, em seguida, atribuir “ao possuidor um

direito (real) de apropriação (Aneignungsrecht), por força do qual aquele pode obter

a inscrição (do direito de propriedade sobre o imóvel) a seu favor no registo e,

assim, o direito de propriedade”142.

Tecnicismos jurídicos à parte, o que se pode concluir é que a aquisição de

imóvel pelo exercício de posse ad usucapionem, em contraposição com o conteúdo

do registro, é bastante difícil na Alemanha, o que já seria de se esperar de um

sistema registral que privilegia com tanta intensidade a segurança jurídica do tráfico.

3.2.2.3 Críticas

Como modelo de sistema de registro de direitos, que influenciou diretamente

diversos outros ordenamentos jurídicos, é indubitável que o registro imobiliário

alemão é um dos mais bem-sucedidos do mundo, notadamente porque atinge seu

principal objetivo, que é o de garantir a segurança jurídica do tráfico. Todavia,

convém pontuar algumas críticas tecidas pela doutrina.

A maior delas dirige-se ao suposto artificialismo da separação dos planos

obrigacional e real, de forma que seria preferível não se fazer distinção entre o

negócio obrigacional e o acordo real143. Isso justificaria os temperamentos que esse

141 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas,

1988. t. I, p. 397. 142 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo;

JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 425.

143 DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 350; GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 385; CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 60.

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sistema de transmissão abstrata da propriedade vem sofrendo144. Maria Clara

Sottomayor faz uma lúcida observação, que certamente não se aplica somente à

Europa, mas a qualquer sistema jurídico que adota a abstração:

Numa perspectiva de unificação do direito europeu, o princípio da abstracção tende a ser abandonado, pois, existem, hoje, na lei e na jurisprudência, cada vez mais casos de tutela da aparência ou da confiança, tornando desnecessário o princípio da abstracção. (grifo nosso)145

Nesse mesmo sentido há quem critique a excessiva complexidade do sistema

alemão146, o que certamente seria atenuado pelo abandono do princípio da

abstração.

Também não parece justificável a proteção ao adquirente por negócio jurídico

gratuito147, porquanto gera uma contradição com a situação da aquisição causa

mortis, que não está abarcada pela proteção da fé pública registral, mas também

não deixa de ser uma aquisição gratuita.

Finalmente, parece bastante procedente a crítica à falta de um livro de

apresentação diária de títulos148, que seria muito útil para o controle das prioridades,

quer seja no caso das garantias reais, que podem ser dotadas de diferentes graus

de preferência (por exemplo, hipoteca de primeiro e segundo graus), quer seja para

o controle da prioridade entre títulos que estabeleçam direitos contraditórios.

3.2.3 Do sistema registral espanhol

Para os fins deste trabalho, a grande contribuição do sistema registral

espanhol reside na demonstração de que não existe correlação entre a adoção da

abstração entre os planos obrigacional e real – tal como no sistema jurídico alemão

– e a consagração da fé pública registral. A Espanha é a prova concreta de que até

144 Nesse sentido, Clóvis do Couto e Silva exemplifica que “a circunstância de ser o negócio

antecedente [o negócio obrigacional] contrário aos bons costumes poderá afetar a validade do negócio jurídico dispositivo. Igualmente, quando o negócio jurídico do direito das obrigações e o real se originarem de um ato de vontade unitário, cabe a impugnação do negócio jurídico de direito das coisas. (SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2011. [E-book]).

145 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 263-264.

146 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 61.

147 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 61.

148 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 394.

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mesmo um sistema registral que, como regra, é declarativo, pode ser um verdadeiro

registro de direitos forte, com ampla proteção ao tráfico jurídico. Ademais, tem sido

crescente a influência da doutrina espanhola sobre a brasileira, seja por se tratar de

sistema relativamente semelhante ao brasileiro (é causal, adota a maior parte dos

princípios aceitos no Brasil), seja por causa do tema da fé pública registral, acolhida

com sucesso na Espanha e com debates incipientes, mas crescentes, sobre sua

vigência no Brasil.

3.2.3.1 Características gerais

A forma de transmissão da propriedade na Espanha é a do título e modo,

sendo que, de regra, este é representado não pelo registro, mas pela tradição, em

consonância com a regra do Direito Romano do período pós-clássico.

Nesse sistema, não se faz a abstração entre os planos obrigacional e real, tal

como na Alemanha. Muito pelo contrário, entende-se que o título causal é,

“simultaneamente, obrigacional e dispositivo, muito embora não seja suficiente para

produzir o efeito real e tenha de ser complementado pelo modo de adquirir”149,

consistente na tradição. Trata-se, assim, de sistema que adota a causalidade

relativa, na medida em que a aquisição de um direito real depende tanto da

inexistência de vícios no título – analisados aspectos obrigacionais e reais –, como

do cumprimento da formalidade representada pelo modo.

Contudo, na prática a tradição acaba sendo instrumental, pois há expressa

previsão legal150 de que, feita a transmissão por escritura pública, esta equivale à

entrega da coisa, exceto se o contrário resultar do texto do próprio instrumento

público.

Correspondendo a tradição ao modo de transmissão, evidentemente o

sistema espanhol não poderia prescindir de uma forma eficiente de dar publicidade

às situações júri-reais, papel esse desempenhado pelo Registro de Imóveis. É

149 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos

gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 244.

150 Redação do art. 1.462 do Código Civil da Espanha: “Se entenderá entregada la cosa vendida cuando se ponga en poder y posesión del comprador. Cuando se haga la venta mediante escritura pública, el otorgamiento de ésta equivaldrá a la entrega de la cosa objeto del contrato, si de la misma escritura no resultare o se dedujere claramente lo contrario”. (ESPANHA. Real Decreto de 24 de julio de 1889 por el que se publica el Código Civil. Boletín Oficial del Estado, n. 206, de 25/07/1889

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natural que nesse sistema o registro seja meramente declaratório, afinal a

consumação da constituição ou transmissão do direito real dá-se em momento

anterior à inscrição. Porém, a legislação prevê exceções, em que vigora o princípio

da inscrição, sendo o registro constitutivo, tal como nos casos de hipoteca e

superfície151.

Na realidade, a Espanha adota um sistema de registro de direitos verdadeiro,

seja porque o que se publica são os direitos, e não os títulos em seu inteiro teor,

seja porque se adotam outras características próprias desses sistemas,

especialmente a presunção de exatidão, alicerçada tanto sobre a legitimação

registral como sobre a fé pública registral152.

Assim, para que uma situação júri-real tenha oponibilidade erga omnes, para

que goze de presunção de exatidão e até mesmo para que se possam propor

determinadas ações judiciais, o registro é indispensável, conquanto, via de regra,

não seja constitutivo. Para se ter uma ideia da importância do registro, em caso de

dupla transmissão de um imóvel pela mesma pessoa, considera-se proprietário

quem apresentou o título para registro em primeiro lugar e teve êxito em alcançá-lo,

e não quem obteve a tradição com anterioridade153. Nesse sentido, Angel Cristóbal

Montes chega a afirmar que “no Direito espanhol a aquisição perfeita e íntegra do

domínio [de imóveis] implicará a concorrência de três elementos: o título, a tradição

e a inscrição”154.

Em termos de organização, o registro imobiliário espanhol adota o sistema do

fólio real, de modo que cada imóvel possui um fólio próprio, com numeração

151 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas,

1988. t. I. p. 540. 152 Nesse sentido, José Luis Lacruz Berdejo et al. explicam que o registro espanhol “no es un mero

archivo de documentos […] Por el contrario, nuestro Registro, que brinda un grado muy elevado de protección al titular inscrito, está estructurado con el propósito de que publique noticias lo más fidedignas posible en cuanto a las titularidades sobre los inmuebles que en él constan inmatriculados”. (LACRUZ BERDEJO, José Luis et al. Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Elementos de Derecho Civil. 2. ed. Madrid: Dykinson, 2003. v. III bis. p. 48).

153 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 245.

154 CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 251. Nessa mesma direção, Jose Manuel Garcia Garcia afirma que ainda quando o registro é declaratório, trata-se de requisito para a “perfecta configuración del derecho real. En ellos [nessas hipóteses], la inscripción ya no será ‘constitutiva’, pero sí conformadora o configuradora de la plena eficacia del derecho real en su actuación respecto a terceros, y, por tanto, en la configuración de su absolutividad o plena eficacia erga omnes”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 540, grifos do autor).

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individual, no qual são praticados todos os atos relacionados a seu histórico155. É

relevante acrescentar que tem havido uma coordenação cadastro-registro, de forma

a ajustar a descrição tabular dos imóveis à sua realidade física156, evitando-se

injustificáveis distinções entre as caracterizações dos mesmos imóveis no Registro e

no cadastro.

Esse sistema registral adota, entre outros, os seguintes princípios:

inoponibilidade157, rogação158, especialidade (objetiva, subjetiva e do direito)159,

continuidade (também chamado de trato sucessivo) e prioridade.

Quanto ao princípio da legalidade, o sistema registral espanhol acolhe a

obrigatoriedade de o Oficial de Registro, como profissional do direito altamente

qualificado e independente, efetuar qualificação de forma e fundo, de modo a vetar a

inscrição de quaisquer títulos que contenham vícios. Não havendo a adoção do

princípio da abstração, a qualificação é ainda mais ampla do que no Direito alemão,

porquanto também os aspectos obrigacionais, que se refletem no direito cuja

inscrição se pretende, devem ser objeto de rigorosa verificação.

Acrescenta-se que, na Espanha, essa tarefa é dificultada pelo fato de ser

empregado o critério do numerus apertus para os direitos reais160, o que exige do

Oficial a tarefa de depurar, do conteúdo dos títulos, o que tem natureza real e o que

se destina a produzir efeitos apenas inter partes, de modo a publicizar apenas o que

pode interessar a terceiros. Havendo constatação de qualquer vício, o registro é

suspenso (em caso de vício sanável) ou negado (em caso de vício insanável)161, em

155 CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto

Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 289. 156 LACRUZ BERDEJO, José Luis et al. Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Elementos de

Derecho Civil. 2. ed. Madrid: Dykinson, 2003. v. III bis. p. 51-53. 157 O princípio da inoponibilidade encontra-se expressamente previsto no art. 32 da Lei Hipotecária

espanhola, o qual estatui: “Los títulos de dominio o de otros derechos reales sobre bienes inmuebles, que no estén debidamente inscritos o anotados en el Registro de la Propiedad, no perjudican a terceiro”. (ESPANHA: Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria. Boletín Oficial del Estado, n. 58, de 27/02/1946).

158 Significa simplesmente que o Oficial de Registro não age de ofício, devendo ser instado para agir. Para a prática de um registro, não se exige o consentimento formal, tal como na Alemanha, mas, de regra, basta a simples apresentação do título, mediante solicitação verbal, sendo despicienda qualquer espécie de requerimento escrito.

159 Esse princípio, também conhecido como da determinação na Espanha, implica que as características do imóvel, as qualificações das pessoas mencionadas nos registros, bem como o conteúdo dos direitos devam ser descritos de maneira precisa, detalhada, de modo que a informação registral seja completa, inequívoca e não gere dúvidas em terceiros.

160 CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 291.

161 CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 283.

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ambos os casos cabendo recursos. Assim, o registrador de imóveis contribui para a

higidez do sistema registral imobiliário e a prevenção de litígios.

3.2.3.2 Proteção ao terceiro adquirente de boa-fé

Como consequência da adoção de forte qualificação registral, típica dos

sistemas de registro de direitos, o sistema registral espanhol utiliza as duas

presunções de exatidão: a legitimação registral e a fé pública registral.

3.2.3.2.1 Legitimação registral

A Lei Hipotecária espanhola expressamente prevê o princípio da legitimação

registral em seu art. 38162. Dizer-se que um assento registral constitui um “título de

legitimação” significa que representa “um sinal suficiente que habilita o sujeito, com

relação a todos, como titular de direitos na forma que manifesta o Registro (ainda

que possa não ser tal titular, ou não terem os direitos o alcance que o Registro

manifesta)”163. Trata-se de presunção iuris tantum a seu favor, no sentido de que os

registros são considerados exatos e íntegros, o que o habilita a atuar no tráfico

jurídico e no processo na condição de titular164. Para que seus direitos sejam

exercidos, nas esferas judicial e extrajudicial, basta a apresentação da certidão do

registro165.

Na Espanha, o referido art. 38 da Lei Hipotecária também prevê que o titular

tabular do domínio goza de presunção de posse. Trata-se igualmente de presunção

162 A primeira parte desse dispositivo prevê que “A todos los efectos legales se presumirá que los

derechos reales inscritos en el Registro existen y pertenecen a su titular en la forma determinada por el asiento respectivo. De igual modo se presumirá que quien tenga inscrito el dominio de los inmuebles o derechos reales tiene la posesión de los mismos”. (ESPANHA: Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria. Boletín Oficial del Estado, n. 58, de 27/02/1946).

163 No original: “Los asientos constituyen un título de legitimación, es decir, un signo suficiente que habilita al sujeto, respecto de todos, como titular de los derechos reales en la forma que manifesta el Registro (aunque pueda no ser tal titular, o no tener los derechos el alcance que el Registro manifesta)”. (BERNALDO DE QUIRÓS, Manuel Peña. Derechos reales de garantía. R. Propiedad. In: _____. Derechos Reales: Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Fundación Beneficentia et Peritia Iuris, 2001. t. II, p. 589).

164 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 540.

165 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 871-873.

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relativa, de modo que cabe a quem negue essa posse o ônus de provar

judicialmente que o assento registral não corresponde à realidade.

Por fim, há forte tendência jurisprudencial no sentido de se reconhecer que a

legitimação registral não alcança os dados físicos dos imóveis, tais como suas

medidas, área e confrontantes166.

3.2.3.2.2 Fé pública registral

Se o foco de proteção do princípio da legitimação registral é o verdadeiro

titular do direito, o terceiro é tutelado pelo princípio da fé pública registral, cuja

existência também pressupõe o da inoponibilidade167.

De fato, Fernando P. Méndez González afirma contundentemente que o efeito

fundamental dos sistemas de registro de direitos é a fé pública registral. Segundo o

autor, que tem como base as premissas do sistema registral espanhol,

Tal efeito consiste em que quem adquire, mediante contraprestação, confiando no que o registro publica, é mantido em sua aquisição, ainda que posteriormente se anule ou resolva o direito do transmitente, se a causa de anulação ou de resolução não constava do próprio registro e era ignorada pelo adquirente – bona fides. O Registro desempenha, assim, com relação ao adquirente, uma dupla função: de publicidade e de garantia do publicado. (tradução nossa)168

Assim, uma vez que o direito registrado venha a circular, sendo promovido o

registro de sua transmissão a outrem – ao terceiro que agiu confiando no conteúdo

do registro –, a aquisição do direito se faz “com a extensão e conteúdo com que

aparece publicitado, sendo mantido na sua aquisição, mesmo que o facto jurídico

aquisitivo do seu dante causa nunca tenha ocorrido, seja nulo, venha a ser anulado

166 DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Derecho de Cosas y Derecho Inmobiliario Registral. In:

_____. Sistema de Derecho Civil. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2004. v. III. p. 275-276. 167 DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In:

_____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 519. 168 No original: “Tal efecto, consiste en que quien adquiere, mediante contraprestación, confiando en

lo que el registro publica, es mantenido en su adquisición, aunque después se anule o resuelva el derecho del transferente, si la causa de anulación o de resolución de su derecho no constaba en el propio registro y era ignorada por el adquirente – bona fides –. El Registro desempeña así, respecto del adquirente una doble función: de publicidad y de garantía de lo publicado”. (MÉNDEZ GONZÁLEZ, Fernando P. Registro de la propriedad y desarollo de los mercados de credito hipotecario. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 525-565, jul./dez. 2016. p. 537).

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etc.”, ou mesmo que o assento padeça de vícios unicamente registrais, que também

o tornam inválido169.

Como aqui se tem reiterado, esse vigoroso efeito produzido pelo sistema

registral somente é possível a partir da existência de um severo controle de acesso

dos títulos ao registro, consistente na atividade da qualificação registral. Trata-se de

atividade levada a cabo pelo Registrador de Imóveis, profissional do Direito imparcial

e que exerce seu mister com responsabilidade pessoal e patrimonial170.

Tamanha é a importância do princípio da fé pública registral na Espanha que

Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón o elevam à condição de “farol ou diretriz do

sistema imobiliário registral”171. Com efeito, um sistema registral imobiliário só

encontra razão de existir se tiver o condão de gerar segurança jurídica, a qual não é

suficientemente alcançada apenas com o princípio da legitimação registral,

porquanto este gera presunção apenas relativa de validade dos atos registrais172.

Somente a presunção absoluta originada pela fé pública registral – desde que

atendidos seus requisitos – é capaz de garantir a segurança do tráfico, pois

assegura o direito do terceiro adquirente, ainda que haja vícios nos atos registrais

anteriores.

Ademais, nos sistemas registrais que adotam a fé pública registral há

significativa diminuição de custos nas transações, uma vez que se reduzem

substancialmente as assimetrias informacionais entre as partes. Com efeito, nesses

sistemas, tal como o espanhol, praticamente tudo o que importa para uma

transação, em termos jurídicos (exceto limitações que decorrem diretamente da lei),

reduz-se àquilo que consta do registro, não havendo necessidade de as partes

recorrerem a informações extrarregistrais, tais como certidões judiciais. Nesse

sentido, aduz Fernando P. Méndez González:

As inscrições registrais podem, assim, informar os potenciais contratantes sobre quem é o titular de cada direito, sua capacidade para dispor e as cargas que pesam sobre o imóvel, logrando, assim, idealmente, eliminar as assimetrias informacionais de caráter jurídico. Como consequência, a

169 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos

gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 250.

170 AMORÓS GUARDIOLA, Manuel; DÍEZ-PICAZO, Luis. La teoría de la publicidad registral y su evolución. Madrid: Real Academia de Jurisprudencia y Legislación, 1998. p. 181-182.

171 DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Derecho de Cosas y Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Sistema de Derecho Civil. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2004. v. III, p. 280.

172 CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 270-271.

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contratação subsequente é muito menos custosa e totalmente segura para os futuros adquirentes, pois tanto os direitos como seus titulares ficam perfeitamente identificados e definidos. Tudo isso se alcança, ademais, sem que exista nenhum risco para os titulares de direitos, sempre que a qualificação seja eficaz. (tradução nossa)173

São dois os dispositivos que a doutrina espanhola cita com mais frequência

como fundamentos do princípio da fé pública registral, quais sejam, os arts. 32 e 34

da Lei Hipotecária da Espanha. Impõe-se a transcrição de ambos, para melhor

compreensão do tema:

Artigo 32. Os títulos de domínio ou de outros direitos reais sobre bens imóveis que não estejam devidamente inscritos ou anotados no Registro de Imóveis não prejudicam terceiro. (tradução nossa)174

Artigo 34. O terceiro que de boa-fé adquira, a título oneroso, algum direito de pessoa que, no Registro, apareça com faculdades para transmiti-lo, será mantido na sua aquisição, uma vez que haja inscrito seu direito, ainda que posteriormente se anule ou resolva o do outorgante em virtude de causas que não constem do Registro. A boa-fé do terceiro se presume sempre, enquanto não se prove que conhecia a inexatidão do Registro. Os adquirentes a título gratuito não gozarão de maior proteção registral do que teria seu causante ou transferente. (tradução nossa)175

Na realidade, há intenso e antigo debate na doutrina espanhola se ambos os

artigos são expressão do princípio da fé pública registral – nesse caso, o art. 32

seria o aspecto negativo do princípio, ao passo que o art. 34, o aspecto positivo – ou

se, na realidade, o art. 32 seria o fundamento do princípio da inoponibilidade,

173 No original: “Las inscripciones registrales pueden así informar a los potenciales contratantes sobre

quien es el titular de cada derecho, su capacidad para disponer y las cargas que pesan sobre el inmueble, logrando así, idealmente, eliminar las asimetrías informativas de carácter jurídico. Como consecuencia, la contratación subsiguiente es mucho menos custosa y totalmente segura para los futuros adquirentes, pues tanto los derechos como sus titulares quedan perfectamente identificados y definidos. Todo ello se logra, además, sin que exista ningún riesgo para los titulares de derechos, siempre que la calificación sea eficaz”. (MÉNDEZ GONZÁLEZ, Fernando P. Registro de la propriedad y desarollo de los mercados de credito hipotecario. Revista de Direito Imobiliário, São Pauli, Revista dos Tribunais, ano 39, n. 81, p. 525-565, jul./dez. 2016. p. 538).

174 No original: “Artículo 32. Los títulos de dominio o de otros derechos reales sobre bienes inmuebles, que no estén debidamente inscritos o anotados en el Registro de la Propiedad, no perjudican a tercero”. (ESPANHA: Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria. Boletín Oficial del Estado, n. 58, de 27/02/1946).

175 No original: “Artículo 34. El tercero que de buena fe adquiera a título oneroso algún derecho de persona que en el Registro aparezca con facultades para transmitirlo, será mantenido en su adquisición, una vez que haya inscrito su derecho, aunque después se anule o resuelva el del otorgante por virtud de causas que no consten en el mismo Registro. La buena fe del tercero se presume siempre mientras no se pruebe que conocía la inexactitud del Registro. Los adquirentes a título gratuito no gozarán de más protección registral que la que tuviere su causante o transferente”. (ESPANHA: Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria. Boletín Oficial del Estado, n. 58, de 27/02/1946).

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enquanto o art. 34 seria a base sob a qual se sustenta a fé pública registral. Essa

discussão tem importante repercussão no Direito espanhol: a prevalecer a primeira

opinião, adota-se o critério monista de terceiro hipotecário (aquele que se beneficia

da proteção legal), de modo que o terceiro adquirente somente pode se beneficiar

da proteção do art. 32 se atender a todos os requisitos do art. 34; por outro lado, de

acordo com a tese dualista, que não vislumbra no art. 32 o princípio da fé pública

registral, mas apenas o da inoponibilidade, os terceiros a que se referem os

referidos dispositivos são diferentes, ou seja, sua proteção exige requisitos mais

simples no art. 32 e mais rigorosos no art. 34176.

Para fins deste trabalho, basta que essa divergência doutrinária seja

apontada, de forma simplista, até porque na Espanha essa discussão ganha

importância pelo fato de o sistema registral não ser, de regra, constitutivo177, ao

contrário do que ocorre no Brasil. Da mesma forma como, consoante se examinará

mais adiante, o ordenamento jurídico brasileiro traça distinções nítidas entre os

mencionados princípios, considerar-se-ão os referidos preceitos legais como

expressões de diferentes princípios, que se complementam: o art. 32, como

veiculador da inoponibilidade, existente até em sistemas que não adotam a fé

pública registral, como o francês; e o art. 34, como consagrador da fé pública

registral e estabelecedor dos requisitos de sua aplicabilidade naquele país.

O princípio da inoponibilidade significa simplesmente que o não registrado

não pode prejudicar o terceiro hipotecário (aquele que adquire a propriedade ou

direito real limitado), o que implica a existência de presunção de integridade e

completude do registro178. Segundo Jose Manuel Garcia Garcia, os fundamentos

desse princípio são o efeito da publicidade como elemento constitutivo da plena

176 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos

gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 256-258.

177 Nesse sentido, Jose Manuel Garcia Garcia sustenta que o princípio da inoponibilidade acaba reforçando os efeitos do modo, que, na Espanha, é a tradição. Em suas palavras: “en el artículo 32, la inscripción no suple la falta de título, sino que trata de reforzar los efectos del modo, en forma similar a la inscripción constitutiva, sólo que referida exclusivamente a las relaciones con terceros y no entre partes, donde impera exclusivamente la tradición”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 63).

178 Angel Cristóbal Montes, corretamente, acrescenta que, “embora o artigo 32 apenas fale somente de títulos de domínio e demais direitos reais, tais títulos não só não prejudicam a terceiro, mas tampouco os atos, direitos, impostos, encargos, limitações, restrições e ações e, em geral, tudo quanto sendo registrável não esteja registrado”. Trata-se de ideia consentânea com o princípio da concentração. (CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 272).

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eficácia do direito real (afinal, se o direito real sobre imóveis é absoluto, é preciso

haver um meio para que quaisquer pessoas possam conhecê-lo e respeitá-lo) e o

propósito legislativo de se lutar contra a clandestinidade imobiliária (se o registro não

é obrigatório, no sentido de sua não realização não acarretar a aplicação de

sanções, como multas, acaba que o princípio da inoponibilidade insta qualquer

adquirente de direito sobre imóvel a registrar seu título, sob pena de ser inoponível a

terceiros)179.

De forma complementar, o princípio da fé pública registral tem como principal

fundamento a confiança na aparência registral, sendo importante apontar que,

conquanto o art. 34 seja o principal em sua formatação no sistema registral

imobiliário espanhol, diversos outros dispositivos da Lei Hipotecária preveem

importantes repercussões desse princípio. Nesse sentido, exemplificativamente, o

art. 37 preceitua que, de regra, não cabem ações rescisórias, revocatórias ou

resolutórias em face de terceiros que hajam inscrito seus títulos, ao passo que o art.

40 é expresso no sentido de que a retificação de registro jamais prejudicará direitos

adquiridos por terceiros de boa-fé e a título oneroso, que hajam confiado no registro,

durante a vigência do assento que posteriormente se declare inexato180.

A simples leitura do art. 34 da Lei Hipotecária já permite perceber que, na

Espanha, a fé pública registral possui requisitos diversos dos analisados no sistema

registral alemão. Segue a análise desses requisitos, os quais são cumulativos para

que o adquirente de propriedade ou outro direito sobre imóvel possa ser considerado

terceiro hipotecário, isto é, terceiro beneficiário dos efeitos da fé pública registral181:

a) Existência de inexatidão registral. O princípio da fé pública registral tem

aplicabilidade justamente nas hipóteses em que haja vícios em inscrições anteriores

e que poderiam ameaçar o direito adquirido pelo terceiro hipotecário. Reitera-se que

tais vícios podem se encontrar tanto no título como nos próprios registros.

179 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In:

_____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 65-66. 180 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y

LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 882-883.

181 Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón adotam conceito bastante técnico para a expressão “terceiro hipotecário”, que nada mais é do que o adquirente que preenche todos os requisitos do art. 34, sendo, assim, amparado pela fé pública registral. É nesse sentido que se usa o termo neste trabalho, ressaltando-se que o adjetivo “hipotecário” tem origem histórica, isto é, decorre do fato de o Registro de Imóveis ter nascido como um registro de hipotecas. (DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Derecho de Cosas y Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Sistema de Derecho Civil. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2004. v. III, p. 280).

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Diversamente do que ocorre no sistema alemão, no espanhol não há abstração

entre os planos obrigacional e real, mas causalidade relativa, de forma que vícios

próprios do Direito das Obrigações dão causa a invalidades do título e,

consequentemente, também do respectivo registro. A fé pública registral, caso

aplicável, apenas tem o condão de impedir que eventual reconhecimento do vício de

título registrado anteriormente produza efeitos em relação ao terceiro hipotecário, o

que não impede que, na esfera obrigacional, sejam ressarcidos eventuais prejuízos.

Interessante notar que a Lei Hipotecária espanhola dedica o art. 39 apenas

para dizer o que considera tratar-se de inexatidão registral, que corresponde a

qualquer desacordo entre o registro e a realidade extrarregistral. Trata-se de

conceito bastante amplo, semelhante ao que se tem denominado de “vícios do

registro” neste trabalho.

b) Titularidade registral do disponente e ausência de causas que impeçam a

transmissão. Se existe um fólio para cada imóvel, o qual concentra todas as

informações a ele atinentes, é evidente que o direito adquirido pelo terceiro

hipotecário já deveria constar do fólio, com a extensão e as qualidades com as quais

foi transmitido, em registro vigente, no qual o ora disponente ostenta a qualidade de

adquirente, sob pena de não gozar da aparência de bom direito182. Essas

circunstâncias decorrem não somente do último registro vigente, mas da análise da

totalidade do fólio real, até porque alguma limitação ao direito do disponente pode

constar de inscrição anterior e igualmente vigente.

Com efeito, não goza de aparência de bom direito aquele cujas causas de

anulação ou resolução já constem do Registro, por exemplo, por meio de anotação

preventiva – inscrição semelhante ao assento de contradição do Direito alemão –,

que pode, por exemplo, dar a notícia do ajuizamento de ação real em face do

transmitente183 ou indicar a existência de título contraditório apresentado

182 Nesse sentido, Luis Díez-Picazo afirma que o terceiro deve “haber adquirido de un titular inscrito.

El fundamental de esta exigencia se encuentra en que solamente se puede o se debe proteger a quien ha confiado en las declaraciones registrales, en la presunción de exactitud del Registro y en la fuerza legitimadora de una inscripción previa de la que parece deducirse lícitamente que el que tiene un derecho inscrito a su favor puede disponer válidamente del mismo, cualquiera que sea la realidad jurídica, concordante o no con el Registro”. (DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 532).

183 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 225.

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anteriormente, cujo registro foi provisoriamente impedido até que se saneie vício

apontado pelo Oficial de Registro184.

Para que a fé pública registral produza seus efeitos, a doutrina185 exige que o

disponente já tenha promovido o registro de seu título aquisitivo no momento da

celebração da nova transação.

c) Onerosidade da aquisição. O art. 34 da Lei Hipotecária somente defere a

proteção oriunda da fé pública registral às aquisições que se dão por atos ou

negócios jurídicos onerosos, isto é, aqueles em que há “sacrifício patrimonial do

adquirente ou realização, por este, de uma atribuição correlativa ao transmitente”.

Mas note-se que, diversamente do sistema alemão, no espanhol não se exige

aquisição por negócio jurídico, podendo esta se dar, por exemplo, por meio de

arrematação em hasta pública186. Insta recordar que o Direito alemão outorga a

proteção da fé pública registral também às aquisições a título gratuito, o que não

ocorre na Espanha.

No caso de transmissões genuinamente gratuitas (tais como doação pura e

simples e sucessão hereditária legítima), referido dispositivo legal é claro no sentido

de que o adquirente não gozará “de maior proteção registral do que teria seu

causante ou transferente”. Assim, não se pode dizer que o adquirente a título

gratuito está totalmente desprotegido, mas somente que não se aplicam os efeitos

da fé pública registral a seu ato ou negócio de aquisição e respectivo registro.

Contudo, ele usufrui da mesma proteção que tinha seu transmitente, de forma que,

se a aquisição do direito por este tiver sido a título oneroso (e atendidos os demais

184 Nesse caso, há uma espécie de reserva de prioridade, em que se dá oportunidade ao primeiro

apresentante de título de aquisição de direito (ou outra espécie de título contraditório com o do segundo apresentante) a sanear os vícios apontados pelo registrador. (CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 284).

185 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 865-891. p. 889; DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 533; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 256.

186 DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 530-531.

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requisitos do art. 34), o novo adquirente estará protegido em relação às inscrições

anteriores àquela que teve seu transmitente como beneficiário.187.

Segundo Maria del Rosario Valpuesta Fernandez, a exigência do requisito ora

analisado deve-se à distinta valoração dos interesses em jogo nos casos de

aquisição onerosa e gratuita188. Realmente, é razoável que se dê maior proteção a

quem adquire um imóvel ou direito sobre imóvel mediante contraprestação – afinal, a

perda de seu direito acarretaria diminuição patrimonial – ao passo em que o

adquirente a título gratuito – que está tendo aumento patrimonial sem qualquer

sacrifício – não fica desprotegido, mas mantido com os mesmos meios de defesa de

que dispunha o transmitente.

d) Boa-fé do adquirente. Se o princípio da fé pública registral visa a proteger

quem adquire um imóvel ou direito sobre este em razão da confiança legitimamente

depositada no Registro, é consectário lógico que não merece essa proteção quem,

apesar do conteúdo do registro, conhecia realidade extrarregistral diversa, tendo,

assim, consciência da inexatidão registral.

Presume-se a boa-fé do adquirente, de forma que cabe ao interessado o ônus

de provar sua má-fé. A maior parte da doutrina e da jurisprudência espanholas

entende que basta ao adquirente atuar com a boa-fé psicológica, consistente no

mero desconhecimento do vício registral. Há, porém, opiniões mais isoladas, no

sentido de exigir que o adquirente atue diligentemente, de forma a certificar-se

previamente de que as situações registral e extrarregistral são coincidentes189.

Assim, para que se possa afirmar que um adquirente atuou com má-fé, é

necessário que ele haja tido “um conhecimento suficiente das causas de invalidade

187 Nesse sentido José Luis Lacruz Berdejo et al. asseveram que “No debe afirmarse de modo

absoluto que los adquirientes a título gratuito están excluidos de la protección registral, sino más bien que su protección no deriva de su propia inscripción, y sí de la de su causante: están protegidos igual que si no hubieran inscrito. Así, de una parte, deben sufrir las acciones que por otras personas se hubieran podido ejercitar contra su causante, y de otra podrán defenderse con éxito de las acciones que no hubieran podido ejercitarse contra él”. (LACRUZ BERDEJO, José Luis et al. Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Elementos de Derecho Civil. 2. ed. Madrid: Dykinson, 2003. v. III bis, p. 191).

188 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 890.

189 DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 528; SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 746-747; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 253-254.

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ou uma notícia perfeita da situação jurídica extra-tabular ou dos factos susceptíveis

de invalidar o título do transmitente”, não sendo suficiente o conhecimento de

indícios vagos que não o levem a ter convicção acerca do vício registral190.

Acrescenta-se que nem mesmo se requer que o terceiro hipotecário tenha

conhecimento do teor do registro, isto é, que consulte o fólio do imóvel antes de

adquiri-lo191.

Ademais, exige-se que o adquirente atue com ignorância do vício registral no

momento da celebração da transação, não sendo necessário que tal

desconhecimento perdure até o momento do registro. Considera-se que o

comportamento de o adquirente socorrer-se ao Registro após tomar ciência do vício

registral – pressupondo-se que o desconhecia no momento da celebração do

negócio – nada mais é do que uma “diligência na defesa do seu direito”192.

e) Inscrição do título do adquirente. É elementar que o sistema registral

imobiliário somente defere a proteção da fé pública registral a quem inscreve seu

título. Na realidade, a fé pública registral produz efeitos desde o momento em que o

adquirente prenota seu título (na Espanha fala-se em “assento de apresentação”),

que ainda será submetido à qualificação registral. Caso esta seja negativa, mas os

defeitos apontados pelo Oficial de Registro sejam sanáveis, o adquirente pode

continuar salvaguardado, desde que promova anotação preventiva193.

Realizada a inscrição, o adquirente torna-se um titular registral. Contudo, para

fins de fé pública registral, é chamado de “terceiro hipotecário”, pois esse princípio o

190 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 747. Nesse mesmo sentido, Antonio Pau Pedrón leciona que “Ese conocimiento de la realidad extrarregistral es lo que, en la teoría de la publicidad, se denomina mala fe. La mala fe, es, por supuesto, el simple conocimiento – sin ingrediente alguno de conducta, sin obligación alguna de diligencia –; pero es necesario algo más: ha de ser un conocimiento pleno, completo. Si el tercero conoce algunos datos – fragmentarios, indiciarios – de la realidad, discordantes con el silencio o la manifestación inexacta del Registro, no por eso ha de considerarse desvirtuada su buena fe”. (PAU PEDRÓN, Antonio. La publicidad registral. Madrid: Centro de Estudios Registrales, 2001. p. 343-344, grifos do autor).

191 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 254.

192 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 888-889.

193 DÍEZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 534.

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protege contra vícios dos atos registrais anteriores, em relação aos quais ele é

efetivamente um terceiro194.

f) Validade da aquisição do terceiro hipotecário. Exige-se que não haja vícios

no ato jurídico de aquisição inscrito, pois o registro não o convalida (art. 33 da Lei

Hipotecária), de forma que, sendo inválido, poderá ser questionado e cancelado.

Com efeito, o terceiro hipotecário é parte no título por meio do qual obteve a

propriedade ou outro direito sobre o imóvel.

Por vezes, a doutrina espanhola utiliza o termo “convalidação”, como se, com

a inscrição da aquisição, os atos anteriores, ainda que nulos ou anuláveis (o mesmo

se diga quanto aos vícios de inexistência e ineficácia), tornassem-se válidos, tendo a

nova inscrição eficácia saneadora195. Na realidade, esses vícios continuam a existir,

mas apenas não podem ser opostos ao terceiro hipotecário196. Tanto é assim que as

ações pessoais, não podendo ser exercidas em face do terceiro hipotecário,

continuam a sê-lo entre as partes dos negócios objeto de inscrições anteriores,

conforme expressa disposição legal (art. 37 da Lei Hipotecária)197.

Assim, preenchidos todos os requisitos acima expostos, o princípio da fé

pública registral produz o efeito de tornar a aquisição feita pelo terceiro hipotecário

“insusceptível de ser atacada por causas que não constem do próprio Registo”198. O

adquirente torna-se titular do direito, na exata medida que lhe atribui o registro,

ficando sua situação jurídica imune contra ações anulatórias ou declaratórias de

nulidade, revocatórias, de resolução e rescisão direcionadas contra atos registrais

anteriores ao seu. Essa situação pode até mesmo consolidar uma aquisição a non

194 Com efeito, Angel Cristóbal Montes afirma que o terceiro hipotecário “é, pois, o terceiro adquirente

frente a uma situação inscrita, o sucessor ou sucessor tabular a título especial, que está protegido contra as ações de nulidade ou resolução intentadas frente a seu causante ou transmitente”. (CRISTÓBAL MONTES, Angel. Direito Imobiliário Registral. Tradução de Francisco Tost. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. p. 275).

195 Nesse sentido, Jose Manuel Garcia Garcia aduz que “la inscripción no la puede convalidar de sus propios vicios o defectos, sino que sólo la convalida respecto a los vicios o defectos de las adquisiciones anteriores a la del tercero, impidiendo así que, por el efecto de arrastre de una nulidad del acto anterior, quede perjudicado el tercero que adquiere confiado en los asientos del Registro”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 257, grifos do autor).

196 KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 27.

197 DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Derecho de Cosas y Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Sistema de Derecho Civil. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2004. v. III, p. 282.

198 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 250.

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domino, a respeito da qual Maria del Rosario Valpuesta Fernandez tece relevantes

considerações, especialmente sobre a natureza derivada de tal aquisição e o

momento em que esta se considera consumada:

Reparando mais detidamente na aquisição a non domino, temos que dizer que constitui uma autêntica aquisição a favor do titular registral, de natureza derivada, que, embora tenha sua justificação na Lei, não pode desconhecer sua origem negocial, já que o negócio celebrado com o transmitente é que fixará a natureza e conteúdo do direito adquirido. Igualmente, a eficácia de tal aquisição está sujeita às vicissitudes do negócio causal. Por outro lado, o direito do verdadeiro titular se resolve a favor do terceiro hipotecário, com efeitos retroativos, desde que se produza a inscrição a favor deste último. (tradução nossa)199

No caso de o transmitente possuir o domínio do imóvel, mas ter suas

faculdades de disposição limitadas por razões que não constem do registro, nem

que decorram diretamente da lei (casos em que nem sequer seria necessária a

inscrição), o efeito da fé pública registral é o de tornar o terceiro hipotecário imune

às ações que pretendam invalidar ou tornar ineficaz o registro de sua aquisição.

Por se tratar de aquisição derivada, o direito do terceiro hipotecário é recebido

com a exata conformação indicada no título, estando limitado por quaisquer ônus

que constem do Registro.

Uma vez que o adquirente goze da proteção da fé pública registral, todos os

adquirentes posteriores também estarão amparados contra eventuais vícios

registrais dos atos inscritos anteriormente ao seu, ainda que sejam adquirentes a

título gratuito.

Mesmo nos casos em que o adquirente é considerado terceiro hipotecário,

com o atendimento de todos os requisitos da fé pública registral, esta não torna a

última inscrição imune de questionamentos. De fato, se o direito ainda não circulou,

não há por que tornar o registro inatacável, até porque, como se tem reiterado, a fé

pública registral visa a resguardar o tráfico jurídico, de modo que terceiros que

legitimamente confiam na aparência gerada pelo registro não possam ser

199 No original: “Reparando más detenidamente en la adquisición a non domino, hemos de decir que

constituye una autentica adquisición a favor del titular registral, de naturaleza derivativa, que, si bien tiene su justificación en la Ley, no puede desconocer su origen negocial, ya que será el negocio celebrado con el transmitente el que fije la naturaleza y contenido del derecho adquirido, igualmente, la eficacia de tal adquisición está sujeta a las vicisitudes del negocio del que trae causa. Por contra, el derecho del titular real se resuelve a favor del tercero hipotecario, con efectos retroactivos, desde que se produce la inscripción a favor de este último”. (VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 886-887).

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prejudicados, desde que o ato aquisitivo seja oneroso, o adquirente desconheça

eventual vício registral etc. Porém, esse raciocínio não se aplica às partes do último

negócio registrado, de forma que estas sempre poderão discutir os vícios do negócio

jurídico, respeitados os prazos prescricionais e decadenciais. Assim, no caso de o

direito ainda não ter circulado (ou se a aquisição posterior não estiver protegida pela

fé pública, por exemplo, por ter-se dado a título gratuito), eventual invalidação do

negócio terá como corolário o cancelamento do registro, retornando a titularidade do

direito ao anterior transmitente.

Ainda quando a fé pública registral produza normalmente seus efeitos, é

preciso ter em conta que seu alcance é estritamente jurídico, abrangendo apenas os

direitos em si, mas não dados de fato, tais como a conformação física do imóvel, os

dados de qualificação pessoal das partes, como estado civil, e sua capacidade.

Há exceções legais à fé pública registral, sendo as mais conhecidas aquelas

previstas no art. 37200. Este dispositivo, porém, nada mais faz do que prever

situações em que há desrespeito a algum requisito ou pressuposto para a aplicação

do referido princípio (por exemplo, situações em que a causa de rescisão ou

resolução já consta do registro ou de lei, ou, nos casos da fraude contra credores, se

a aquisição se dá a título gratuito ou em conluio entre transmitente e adquirente).

Ao menos parte relevante da doutrina e jurisprudência espanholas201 também

exclui da incidência da fé pública registral os denominados “direitos reais patentes”,

que seriam aqueles que, embora não inscritos, poderiam ser percebidos por meio de

200 Segue a redação da primeira parte do dispositivo legal: “Artículo 37. Las acciones rescisorias,

revocatorias y resolutorias no se darán contra tercero que haya inscrito los títulos de sus respectivos derechos conforme a lo prevenido en esta Ley. Se exceptúan de la regla contenida en el párrafo anterior: Primero. Las acciones rescisorias y resolutorias que deban su origen a causas que consten explícitamente en el Registro. Segundo. Las de revocación de donaciones, en el caso de no cumplir el donatario condiciones inscritas en el Registro. Tercero. Las de retracto legal, en los casos y términos que las leyes establecen. Cuarto. Las acciones rescisorias de enajenaciones hechas en fraude de acreedores, las cuales perjudicarán a tercero: a) Cuando hubiese adquirido por título gratuito. b) Cuando, habiendo adquirido por título oneroso hubiese sido cómplice en el fraude. El simple conocimiento de haberse aplazado el pago del precio no implicará, por sí solo, complicidad en el fraude. En ambos casos no perjudicará a tercero la acción rescisoria que no se hubiere entablado dentro del plazo de cuatro años, contados desde el día de la enajenación fraudulenta. En el caso de que la acción resolutoria, revocatoria o rescisoria no se pueda dirigir contra tercero, conforme a lo dispuesto en el párrafo primero de este artículo, se podrán ejercitar entre las partes las acciones personales que correspondan”. (ESPANHA: Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria. Boletín Oficial del Estado, n. 58, de 27/02/1946).

201 CHICO Y ORTIZ, José María et al. Estudios sobre Derecho Hipotecario. 4. ed. Madrid: Marcial Pons, 2000. t. I, p. 233-234; VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 884.

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sinais exteriores, tais como as servidões aparentes (por exemplo, de aqueduto). É

bastante questionável esse posicionamento, porquanto na sociedade de massas

muitos negócios são realizados sem que sequer o adquirente conheça o imóvel,

podendo até viver a milhares de quilômetros de sua localização. Se a fé pública

registral objetiva tutelar a segurança jurídica dinâmica, parece mais defensável

sustentar que, em certos casos, de fato, o adquirente pode ter efetivo conhecimento

da existência de um direito, tal como a referida servidão, pois ele conhece o imóvel,

o que precisa ser provado. Nessas situações, eventual alegação de ignorância do

direito pelo adquirente seria interpretada como conduta de má-fé, o que

efetivamente afastaria a aplicabilidade da fé pública registral.

Da mesma forma que no Direito alemão, também há no espanhol cargas

ocultas que, por decorrerem de lei, presumem-se de conhecimento geral, sendo

oponíveis a todos, de forma a restringir o alcance da fé pública registral. São

exemplos disso as servidões legais, direitos reais de aquisição preferencial e as

limitações de ordem urbanística202. Reafirma-se que essas cargas ocultas são

prejudiciais ao tráfico jurídico, sendo o ideal que se restrinjam ao mínimo possível.

A legislação espanhola ainda prevê algumas situações em que se

suspendem, por prazo determinado, os efeitos da fé pública registral e da

inoponibilidade. Exemplificativamente, há a hipótese do adquirente ou subadquirente

de herdeiro voluntário ou legatário – a lei se acautela quanto à possibilidade de o

herdeiro ou legatário ser meramente aparente, ou de surgir testamento mais recente,

de que não se tinha conhecimento, de forma que outorga preferência ao verdadeiro

sucessor, durante o prazo de dois anos após o falecimento do de cujus. Também

convém mencionar o caso do adquirente ou subadquirente de imóvel que há pouco

tempo tenha sido incorporado ao sistema registral, por meio do procedimento

denominado inmatriculación (arts. 205 a 207 da Lei Hipotecária) – situação em que

também se privilegia o verus dominus, que, durante o prazo de dois anos, pode

pleitear a restituição do bem203.

202 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y

LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 883.

203 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 885-886; JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 258-259.

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Distinta é a situação em que, por equívoco, um imóvel tenha dois fólios, cada

qual retratando situações jurídicas diversas e incompatíveis entre si. Nesse caso, no

âmbito estritamente registral, não se pode falar da prevalência de um fólio sobre o

outro, de forma que a fé pública registral não produz efeitos, por prazo

indeterminado, até que o problema seja resolvido, por meio de processo judicial que

envolva todos os interessados204.

É interessante notar o tratamento que o Direito espanhol dá à questão da

usucapião de bens imóveis, em que ressurge a possibilidade de conflito entre os

interesses do possuidor que preencha os requisitos legais (tempo e natureza da

posse, exigência ou não de boa-fé e justo título, a depender da espécie de

usucapião) e o adquirente que preencha os requisitos do art. 34 da Lei Hipotecária.

Luis Díez-Picazo e Antonio Gullón explicam bem essa questão:

Admitir em toda a sua extensão a usucapião significaria destruir a eficácia protetora da fé pública registral. Ocorreria que o terceiro que adquire confiando que o titular registral pode transmitir-lhe veria sua aquisição convertida em ineficaz pela existência de um adquirente por usucapião. Mas rechaçar totalmente a usucapião significa privar de proteção o possuidor que possuiu por prazo prolongado e que, sem dúvida, a merece. A questão se complica, ademais, se tem-se em conta que a inscrição não é constitutiva das aquisições por princípio geral. (tradução nossa)205

Como é natural, na usucapião tabular, por não haver nenhum tipo de conflito

entre a usucapião e a fé pública registral, a situação é bastante facilitada pela

legislação, sendo que o art. 35 da Lei Hipotecária equipara a inscrição viciada ao

justo título, com força de presunção absoluta206. Há, ainda, presunção relativa de ser

a posse pública, pacífica, ininterrupta e de boa-fé, durante toda a vigência da

inscrição, sendo ainda relevante acrescentar que, em qualquer caso, a simples

existência de inscrição ativa de domínio já induz presunção de posse (arts. 35 e 38

204 VALPUESTA FERNANDEZ, Maria del Rosario. Lección 38ª: Efectos de la inscripción. In: LOPEZ Y

LOPEZ, Angel M.; MONTÉS PENADÉS, Vicente L. (Coord.). Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994. p. 865-891. p. 886.

205 No original: “Admitir en toda su extensión la usucapión significaría destruir la eficacia protectora de la fe publica registral. Ocurriría que el tercero que adquiere confiado en que el titular registral puede transmitirle, vería su adquisición convertida en ineficaz por la existencia de un adquirente por usucapión. Pero rechazar totalmente la usucapión significa privar de protección al poseedor que ha poseído por un tiempo prolongado, quien sin duda la merece. La cuestión se complica, además, si se tiene en cuenta que la inscripción no es constitutiva de las adquisiciones por principio general”. (DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Derecho de Cosas y Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Sistema de Derecho Civil. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2004. v. III, p. 285).

206 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 544.

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da Lei Hipotecária). Facilita-se, assim, a usucapião ordinária do imóvel, que possui

prazo mais abreviado.

Mais complexa é a usucapião contratabular, que não sofre o mesmo nível de

cerceamento como no Direito alemão, pois, ao contrário deste, em que a inscrição é

de regra constitutiva, na Espanha a inscrição é, de regra, declaratória. Ainda assim,

a Lei Hipotecária (art. 36) estabelece limites, com base na equidade, de forma a, por

um lado, não deixar desguarnecido o tráfico jurídico e, por outro lado, não

desconsiderar a situação do possuidor que cumpre os requisitos da usucapião.

Assim, no conflito de interesses entre o terceiro hipotecário e o usucapiente

que já cumpriu todos os requisitos da usucapião ou que a consumará até o término

do ano seguinte à aquisição, de regra prevalece a posição do terceiro. Porém, em

duas situações a lei prioriza o usucapiente, cujo direito se sobrepõe ao do terceiro:

a) Se, antes de aperfeiçoar sua aquisição, o terceiro já conhecia a realidade

de ser o imóvel possuído por pessoa diversa do transmitente, ou tinha meios

racionais ou motivos suficientes para conhecê-la;

b) Se, no momento da aquisição, o terceiro não conhecia, nem tinha meios

para ter ciência sobre a posse exercida pelo usucapiente, mas, uma vez inscrito seu

título, consentiu, expressa ou tacitamente, com o prosseguimento da posse ad

usucapionem pelo prazo de um ano, contado a partir da aquisição. A Lei Hipotecária

(art. 36) pressupõe que, a partir da aquisição, o terceiro hipotecário conhece a

situação em que se encontra o imóvel207.

Essas duas hipóteses constituem exceções, de forma que a regra da

preferência ao direito do terceiro hipotecário se coaduna com a espécie de sistema

registral adotado na Espanha, isto é, de registro de direitos, em que se privilegia a

segurança do tráfico.

Tal como na Alemanha, a primazia da segurança jurídica dinâmica sobre a

estática decorre do princípio da tutela da aparência jurídica208, o qual deriva do

princípio da confiança – afinal, deve-se proteger o terceiro que, legitimamente, confia

na aparência gerada por um meio de publicidade oficial do Estado, que é o Registro

207 DÍEZ-PICAZO, Luis; GULLÓN, Antonio. Derecho de Cosas y Derecho Inmobiliario Registral. In:

_____. Sistema de Derecho Civil. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2004. v. III, p. 286. 208 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

54.

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Imobiliário209. Assim, Jose Manuel Garcia Garcia assevera que a “chave” do art. 34

da Lei Hipotecária:

[...] é a confiança do terceiro na legitimação dispositiva resultante do Registro, quer dizer, na aparência registral derivada do princípio da legitimação registral que produz o assento e que faz com que o legislador leve em consideração essa situação para chegar, inclusive, à proteção das aquisições imobiliárias a non domino. (grifos do autor, tradução nossa)210

Enfim, vistas as principais características dos dois mais importantes sistemas

registrais do Ocidente (Alemanha e França) – ao menos quando se toma em

consideração seu pioneirismo e sua influência sobre os sistemas dos demais países

–, bem como analisado o sistema registral espanhol – bastante didático para esta

investigação, pois demonstra que não há incompatibilidade entre um sistema

registral causal e a adoção do princípio da fé pública registral –, torna-se possível

entender o conceito desse princípio, seu alcance, as consequências ou não de sua

vigência em um sistema registral imobiliário, bem como as possibilidades de se

exigirem requisitos diversos para sua aplicabilidade.

Para a sequência deste trabalho, torna-se inevitável examinarem-se as

características gerais do sistema registral imobiliário brasileiro, bem como os

posicionamentos da doutrina e jurisprudência sobre a vigência do princípio da fé

pública registral no Brasil.

209 Nesse sentido, Mónica Jardim conclui que “A protecção, assim concedida ao terceiro, baseia-se

na criação de uma aparência positiva ou, mais rigorosamente, na verdade oficial sobre o direito do seu autor ou causante e decorre dos arts. 34, complementado pelos arts. 31, 37, 40, 76, 97, 173.2 etc. da lei hipotecária”. (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal espanhol e os efeitos substantivos gerados pelo registo – A perspectiva de uma portuguesa. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 36, n. 75, p. 221-274, jul./dez. 2013. p. 251-252).

210 No original: “la clave del artículo 34 LH es la confianza del tercero en la legitimación dispositiva resultante del Registro, es decir, en la apariencia registral derivada del principio de legitimación registral que produce el asiento y que hace que el legislador tome en consideración esta situación para llegar incluso a la protección de las adquisiciones inmobiliarias a non domino”. (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 230-231, grifos do autor).

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4 SISTEMA REGISTRAL IMOBILIÁRIO BRASILEIRO: EVOLUÇÃO HISTÓRICA,

CARACTERÍSTICAS E DESPROTEÇÃO DOS TERCEIROS ADQUIRENTES DE

BOA-FÉ

Neste capítulo propõe-se a análise das características gerais do sistema

registral imobiliário brasileiro, tendo-se como foco sempre a eficácia produzida pelo

registro. Nesse labor, é necessária uma digressão histórica, pois o sistema registral

é fruto de construção ao longo do tempo, podendo-se explicar algumas de suas

características atuais em suas raízes em um passado às vezes bastante distante.

Especificamente quanto ao aspecto da eficácia material do registro, se não há

dúvida de que o princípio da fé pública registral não vigorou em terras brasileiras nas

primeiras décadas de nosso sistema registral imobiliário, verificar-se-á que já houve

doutrina dominante no sentido de que o sistema registral imobiliário pátrio passou a

adotá-lo a partir do Código Civil de 1916. Apesar de esse entendimento ter sido

superado, é importante expor as opiniões dos autores da época, que foi o único

período em que esse assunto foi discutido seriamente no Brasil. Isso possibilitará,

mais adiante, que se proceda a uma análise crítica dos argumentos de ambos os

lados – favoráveis e contrários à fé pública registral.

Ver-se-á que, ao longo dessa evolução histórica, o sistema registral

imobiliário brasileiro foi, aos poucos, abandonando as características típicas do

modelo francês de registro de documentos e, ao mesmo tempo, incorporando

atributos próprios do modelo alemão. Se, inicialmente, a singeleza desse sistema de

fato tornava temerária a adoção da eficácia material do registro, as características

que se lhe foram sendo incorporadas o robusteceram a ponto de hoje não mais

haver por que se temer a possibilidade de um registro imobiliário acarretar

presunção iuris et de iure de veracidade e validade, em aquisições que atendam a

determinados requisitos (boa-fé, onerosidade etc.).

Para fins didáticos, este capítulo é dividido em períodos históricos: do

descobrimento a 1843, época em que não havia sistema de registro imobiliário no

Brasil; de 1843 a 1916, em que vigorou no país sistema registral muito próximo ao

modelo francês; de 1917 a 1975, quando foram incorporados princípios típicos do

sistema germânico, mas com a manutenção do sistema de fólio pessoal; de 1976 a

2015, com a vigência de sistema registral baseado no fólio real e a incorporação de

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outras inovações, que caracterizam o sistema registral imobiliário atual; e de 2015 à

atualidade, com a expressa adoção da fé pública registral.

4.1 Do descobrimento do Brasil a 1843: inexistência de qualquer espécie de

registro imobiliário

Com o descobrimento do Brasil, a Coroa Portuguesa adquiriu a propriedade

sobre todo o território compreendido pelas terras situadas dentro do limite estipulado

pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494, ou seja, até 100 léguas a oeste das Ilhas de

Cabo Verde. Em 1504, esse limite foi sensivelmente aumentado, passando a ser de

370 léguas, a partir da mesma referência, pela Bula Pro Bono Pacis, do Papa Júlio

II. Se tudo pertencia à Coroa, a ocupação do imenso território brasileiro é, na

verdade, uma história da passagem das terras do Poder Público para os

particulares.

Entre o descobrimento e a independência do Brasil, vigorou o regime de

sesmarias, mediante o qual, inicialmente, os capitães donatários e, na sequência, o

governo-geral e a Coroa portuguesa cediam a posse sobre glebas de terras a

particulares, tendo os sesmeiros obrigações a cumprir, como o cultivo e o

pagamento de foro, sob pena de comisso. Não havia, nesse período, a propriedade

sobre imóveis, ao menos conforme a compreensão atual das características desse

direito real211.

Entre a Independência e 1850, diante da ausência de qualquer legislação que

regulamentasse a aquisição das terras, houve ocupação do solo sem qualquer título,

isto é, pelo simples apossamento212. A Lei de Terras (Lei no 601/1850)213 e seu

regulamento, o Decreto no 1.318/1854214, legitimaram as posses até então

adquiridas, desde que cumpridas determinadas condições, separando-as do domínio

211 Nesse sentido, explica Marcelo Augusto Santana de Melo que “era em torno da posse que

giravam todas as relações econômicas, e a tradição ficta ocorria com a entrega formal do documento, muitas vezes uma escritura pública, ao adquirente, que por sua vez, demonstrava a aquisição do imóvel com gesto público de possuidor” (MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 100).

212 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 1.

213 BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1850.

214 BRASIL. Decreto no 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Manda executar a Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1854.

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público215; o grande objetivo dessa lei foi o de discriminar as terras públicas das

particulares. Trata-se de um marco importante, pois a partir dessa lei ficou proibida a

aquisição de terras públicas a outro título que não a venda. O referido regulamento

criou o “Registro do Vigário”, que nada mais era do que um cadastro das posses dos

particulares, com finalidade de arrecadação de tributos, feito perante o vigário de

cada freguesia do Império. As inscrições feitas nesse registro não declaravam ou

constituíam direito de propriedade, mas equivaliam a indícios de prova em ações

discriminatórias e para a comprovação do tempo de posse em ações de

usucapião216.

A propriedade privada sobre terras no Brasil advém diretamente das

ocupações decorrentes de sesmarias e posses, as quais foram legitimadas pela Lei

de Terras. A transmissão da propriedade não ocorria por efeito direto do contrato,

mas pela subsequente tradição, ou seja, adotava-se o sistema do título e modo, em

sua versão romana no período pós-clássico. A tradição não necessariamente era

real, pois se passou a admiti-la em função do constituto possessório, ou seja, por

meio de simples cláusula contratual, de modo que terceiros não tinham sequer a

visibilidade da posse para ter conhecimento da mutação júri-real217.

4.2 De 1843 a 1916: adoção do sistema francês

No século XIX, Lafayette Rodrigues Pereira alertava sobre a importância de a

propriedade ser dotada de meios publicitários eficientes, que garantissem uma de

suas qualidades essenciais, que é o absolutismo:

A deslocação do dominio de uma pessoa para outra carece de uma manifestação visível, de um signal exterior que ateste e afirme aquelle acto

215 De fato, a Lei de Terras definiu o que eram as terras devolutas (art. 3o), revalidou sesmarias e

outras concessões feitas anteriormente (art. 4o) e proibiu o apossamento de terras devolutas ou alheias, sob pena de prisão de dois a seis meses, multa, perda das benfeitorias e ressarcimento dos danos causados (art. 2o, caput).

216 Nesse sentido, em obra destinada à compilação de decisões da jurisprudência administrativa paulista, a ementa no 142 possui o seguinte teor: “O Registro Paroquial não constitui título de domínio. Serve, quando muito, como prova de posse imemorial. Não confere ius in re”. Essa ementa foi elaborada com base na Apelação Cível no 993-0, julgada em 11.05.1982 pelo Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, tendo como relator o Desembargador Affonso de André. (ORLANDI NETO, Narciso (Org.). Registro de Imóveis: dúvidas, decisões do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo (de março de 1981 a dezembro de 1982). São Paulo: Saraiva, 1984. p. 144).

217 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 3.

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diante da sociedade. Exige-o a natureza do dominio. Direito absoluto (erga omnes), o dominio obriga a todos, póde ser opposto a todos; importa, pois, que todos conheção as suas evoluções. Esta publicidade, ainda mais energicamente a reclama a segurança dos interesses ligados á propriedade; – é ella necessaria para prevenir as fraudes e a má fé de uns, protegida pela clandestinidade, pudera preparar em prejuizo da boa fé de outros.218

Porém, essa publicidade mais eficiente surgiu, inicialmente, apenas para as

hipotecas, por meio da Lei Orçamentária no 317/1843219, regulamentada pelo

Decreto no 482/1846220, que instituíram o Registro Geral de Hipotecas. De fato, em

meio a dispositivos propriamente ligados ao orçamento do Império, previu o art. 35

da mencionada lei que “Fica creado hum Registro geral de hypothecas, nos lugares

e pelo modo que o Governo estabelecer nos seus Regulamentos”. Dito registro

ganhou suas feições no referido decreto, que previu a criação, a cargo do tabelião

(art. 1o), de um desses serviços em cada comarca; estabeleceu o princípio da

territorialidade, isto é, deveria a hipoteca ser inscrita no Registro da correspondente

comarca (art. 2o), sendo tal registro constitutivo (art. 14) e abrangente das hipotecas

convencionais, gerais e especiais (art. 4o).

Francisco Bertino de Almeida Prado afirma que a Lei Orçamentária no

317/1843 instituiu o registro imobiliário no Brasil, mas por limitar-se apenas ao

registro de hipotecas, sem que ao menos houvesse prévia publicidade da aquisição

da propriedade do imóvel onerado, não teve ampla aplicação221. De fato, àquela

época urgia a criação de um amplo sistema de registro imobiliário no Brasil, o que se

concretizou com a entrada em vigor da Lei no 1.237/1864222 e de seu regulamento, o

Decreto no 3.453/1865223. Essa lei ficou conhecida como “Lei Nabuco”, por ter-se

originado de projeto elaborado pelo Conselheiro Nabuco de Araujo.

A novel legislação criou o Registro Geral, que compreendia tanto a

transcrição dos títulos de transmissão de imóveis e de instituição de ônus reais,

218 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. v. I. p.

117. 219 BRASIL. Lei nº 317, de 21 de outubro de 1843. Fixando a Despeza e orçando a Receita para os

exercicios de 1843-1844, e 1844-1845. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1843.

220 BRASIL. Decreto nº 482, de 14 de novembro de 1846. Estabelece o Regulamento para o Registro geral das hypothecas. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1846.

221 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatoria do Registo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943. p. 95.

222 BRASIL. Lei nº 1.237, de 24 de setembro de 1864. Reforma a Legislação Hypothecaria, e estabelece as bases das sociedades de credito real. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1865.

223 BRASIL. Decreto nº 3.453, de 26 de abril de 1865. Manda observar o Regulamento para execução da Lei nº 1237 de 24 de Setembro de 1854, que reformou a legislação hypothecaria. Coleção de Leis do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1865.

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como a inscrição de hipotecas (a lei de 1843 utilizava o termo “registro”, em vez de

“transcrição” e “inscrição”). Além dessa ampliação dos atos suscetíveis de registro, a

Lei Nabuco teve como uma de suas marcas a substituição da tradição, como modo

de transmissão da propriedade, pela transcrição do título em livro próprio. Apegado

ao direito anterior, Lafayette Rodrigues Pereira lecionava que a transcrição nada

mais era do que a “tradição solene” do imóvel transmitido e explicava que “Antes

pois de preenchida a formalidade da transcripção do título de transmissão, o dominio

sobre imóveis não passa do alienante para o adquirente”224. Essa mesma regra

também se aplicava aos demais direitos reais, cujos efeitos não se produziam em

relação a terceiros antes do registro. Em suma, a Lei no 1.237/1864 fez com que o

registro fosse constitutivo, adotando, assim, o princípio da inscrição, mantido até a

atualidade (exceto para aquisições decorrentes diretamente da lei, em que o registro

é declaratório)225.

Houve ampliação da publicidade registral das próprias hipotecas – que, na

realidade, eram o foco da nova lei –, uma vez que se passou a exigir a

especialização das hipotecas convencionais e legais, inclusive das judiciais. Uma

falha foi a dispensa de especialização das hipotecas sobre bens presentes e futuros

da mulher casada, dos menores e interditos, que eram consideradas gerais, sendo

até admitida sua inscrição, mas esta não era considerada constitutiva nessa

situação226.

224 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. v. I. p.

131. 225 Essa é, na realidade, a doutrina majoritária sobre o assunto, que gerou bastante polêmica até o

início do século XX. O efeito constitutivo da transcrição era defendido, por exemplo, por Lafayette Rodrigues Pereira (PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Cousas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. v. I. p. 135) e Clóvis Beviláqua (BEVILÁQUA, Clóvis. Posse, propriedade, direitos autoraes, direitos reaes de gozo sobre coisas alheias. In: _____. Direito das Coisas. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1956. v. 1. p. 123-124). Em sentido contrário, Francisco Bertino de Almeida Prado proclamava que, antes do Código Civil de 1916, a transmissão da propriedade se dava como efeito do contrato e da “tradição efetiva ou nominal”, sendo a transcrição necessária apenas para a “perfeição” dessa tradição perante terceiros (PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatoria do Registo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943. p. 98).

226 Com efeito, previa o caput do art. 9o da Lei nº 1.237/1864 que: “As hypothecas legaes especialisadas, assim como as convencionais, sómente valem contra terceiros deste a data da incripção. Todavia as hypothecas legaes não especialisadas das mulheres casadas, menores e interdictos serão inscriptas, posto que sem inscripção valhão contra terceiros”. Segundo Afranio de Carvalho, essa falha quanto às hipotecas gerais foi corrigida parcialmente pelo Decreto no 3.272/1885, que tornou obrigatório o registro dessas hipotecas, mas continuou a dispensar sua especialização. (CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 5).

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Além das referidas hipotecas em favor da mulher casada, menores e

interditos, a publicidade registral não alcançava duas espécies fundamentais de

títulos, que não eram objeto de registro: as transmissões causa mortis e os atos

judiciários, tais como arrematações em hasta pública e sentenças de usucapião.

Tratava-se de uma falha grave, mas que não retirava o brilho de a nova legislação

ter introduzido a possibilidade do registro da propriedade imóvel no Brasil.

Outra importante inovação, que consta do Decreto no 3.453/1865, é a

introdução do Livro de Protocolo227, designado expressamente como “a chave do

registro geral” (art. 25), servindo para o apontamento diário de todos os títulos

apresentados a registro. Determinava o art. 46 do Decreto que o “numero de ordem

do Protocollo é que determina a prioridade do titulo”. Em outras palavras, passou-se

a adotar, desde então, o princípio da prioridade.

Quanto à organização, acolheu-se o sistema do fólio pessoal, ou seja, os

registros eram efetuados na sequência dos diversos livros, sem que houvesse folhas

próprias para a concentração de todas as informações de cada imóvel em apartado.

Apesar da utilização da terminologia “transcrição”, não havia propriamente a cópia

do inteiro teor dos títulos ou a formação de livros pelo arquivamento de vias desses

títulos, sendo os respectivos registros feitos de acordo com os extratos

apresentados por quem requeria o registro. As transcrições e inscrições eram feitas

em diversos livros (por exemplo, o Livro 2 destinava-se à inscrição das hipotecas

especializadas; o 3, à inscrição das hipotecas gerais dos menores, interditos e

mulheres casadas; o 4, à transcrição das transmissões; o 5, à transcrição dos outros

ônus reais). Assim, informações sobre um mesmo imóvel podiam ficar dispersas em

vários livros. Para amenizar esse problema, já se previam os livros dos Indicadores

Real e Pessoal, ou seja, de índices organizados de acordo com os imóveis e os

nomes das pessoas.

A Lei Nabuco e seu decreto regulamentador foram expressamente revogados

pelos Decretos ns. 169-A228 e 370229, ambos de 1890. Esses decretos mantiveram

basicamente o mesmo sistema anterior, tendo como mais importante inovação a

227 Há referência a um Livro de Protocolo na legislação da década de 1840, mas não com a função

que lhe é atribuída pelo Decreto no 3.453/1865, que permanece vigente até a atualidade. 228 BRASIL. Decreto nº 169-A, de 19 de janeiro de 1890. Substitue as leis n. 1237 de 24 de setembro

de 1864 e n. 3272 de 5 de outubro de 1885. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1890. 229 BRASIL. Decreto nº 370, de 02 de maio de 1890. Manda observar o regulamento para execução

do decreto n. 169 A de 19 de janeiro de 1890, que substituiu as leis n. 1237 de 24 de setembro de 1864 e n. 3272 de 5 de outubro de 1885, e do decreto n. 165 A de 17 de janeiro de 1890, sobre operações de credito movel. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1890.

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obrigatoriedade de especialização de todas as hipotecas, de maneira que deixaram

de existir hipotecas gerais no Brasil.

Com relação à eficácia do registro de transmissão de propriedade, tanto a Lei

Nabuco como o Decreto no 169-A/1890, em dispositivos de mesma numeração (art.

8o, § 4o), eram cristalinos no sentido de que “A trancripção não induz a prova do

dominio que fica salvo a quem fôr”. Assim, não produzia o registro nenhuma das

presunções de exatidão (legitimação registral e fé pública registral), de forma que,

por exemplo, em ação reivindicatória era ônus do autor provar sua propriedade

sobre o imóvel230. Nesse sentido, conclui Leonardo Brandelli:

Eis a eficácia do registro imobiliário antes do advento do Código Civil de 1916, segundo a doutrina mais qualificada: a transcrição constituía o Direito real imobiliário, porém não garantia o direito inscrito para os terceiros adquirentes de boa-fé, pois, sendo “tradição solene”, não permitia que se transferisse mais direito do que se tinha (nemo dat quod non habet), nem que se purgassem os títulos dos vícios existentes, razão pela qual os vícios persistiam, ainda que em relação a terceiros adquirentes de boa-fé.231

Apesar de o Brasil, no período compreendido entre a Lei Nabuco e o ano de

1916, não ter adotado o consensualismo como forma de transmissão da

propriedade, mas o sistema do título e modo, sendo o registro constitutivo,

lembrando-se ser o princípio da inscrição típico do Direito alemão, nas demais

características o sistema registral brasileiro apresentava traços eminentemente

franceses. Com efeito, quanto à organização, utilizava-se o sistema do fólio pessoal

– até a nomenclatura de “transcrição” para os atos de registro de transmissão da

propriedade e de “inscrição” para os registros de hipoteca foi copiada dos franceses

–, ficando os diversos atos sobre o mesmo imóvel espalhados em vários registros e

livros. A exclusão do registro dos atos de transmissão causa mortis e atos judiciais

também era característica francesa, que acarretava a ausência da continuidade

entre os atos registrais. O princípio da legalidade, de origem germânica, ainda não

havia sido recepcionado no Brasil, o que explica a mais marcante particularidade

que os sistemas registrais francês e brasileiro compartilhavam: a falta de produção

230 Assim, cabia ao que alegava ser proprietário provar que adquiriu o imóvel, assim como que, no

momento de tal aquisição, o bem pertencia legitimamente ao transmitente. “E, como a legitimidade do dominio do alienante dependia da do seu antecessor, tinha de se levar a investigação a toda a serie das acquisições até se attingir o ponto definitivo em que se consumava o usocapião” (SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife: Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 19).

231 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 225.

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das presunções de exatidão do registro232, o que resultava em grave desproteção ao

tráfico jurídico.

Diversamente do sistema alemão, que adota a abstração entre os planos

obrigacional e real, a França e o Brasil sempre utilizaram um sistema causal, com a

diferença de que a primeira acolhe a causalidade absoluta – tendo-se em vista que o

contrato já produz, por si só, não só efeitos obrigacionais, mas também os reais –,

ao passo que o segundo adotou a causalidade relativa, já que os efeitos reais

sempre ficaram na dependência de um modo (tradição, antes da Lei Nabuco, e

registro, desde então), mas os vícios do plano obrigacional sempre puderam afetar o

plano real.

Por fim, não se pode deixar de mencionar que, em 1890, o Decreto no 451-

B233, regulamentado pelo Decreto no 955-A234, instituiu um regime registral

imobiliário especial no Brasil, qual seja, o do registro Torrens, a que já se referiu

anteriormente. Por fugir ao escopo deste trabalho – já que nesse regime não cabe

sequer cogitar em fé pública registral, na medida em que a simples publicidade

registral torna-se verdade jurídica e vincula não somente terceiros, mas também as

próprias partes –, não se entrará em maiores detalhes sobre esse regime, que

nunca foi adotado em larga escala no país.

232 Nesse sentido, Soriano Neto aduzia que a Lei 1.237/1864 afastou-se do Direito alemão, “para se

enfileirar no systema francês, no repellir o princípio da publicidade material, em qualquer de suas modalidades – o princípio da efficacia juridica formal [legitimação registral] ou o da fé pública” (SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 14). Igualmente, Leonardo Brandelli aduz que “No período jurídico que antecedeu o Código Civil de 1916, o sistema de publicidade imobiliária adotado no Brasil era o francês, segundo o qual se dava a conhecer a terceiros o conteúdo dos direitos reais imobiliários, porém não se garantia a segurança do tráfico mediante a proteção do terceiro adquirente de boa-fé” (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 215).

233 BRASIL. Decreto nº 451-B, de 31 de maio de 1890. Estabelece o registro e transmissão de immoveis pelo systema Torrens. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1890.

234 BRASIL. Decreto nº 955-A, de 5 de novembro de 1890. Promulga o regulamento para execução do decreto n. 451 B, de 31 de maio do corrente anno, que estabeleceu o registro e transmissão de immoveis pelo systema Torrens. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1890.

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4.3 De 1917 a 1975: aproximação do sistema germânico, mas com manutenção

do fólio pessoal

O autor do anteprojeto que resultou no Código Civil de 1916235, que entrou em

vigor em 1o de janeiro de 1917, confessadamente teve o propósito de adotar

parcialmente o sistema registral imobiliário alemão no Brasil. De fato, o próprio

doutrinador revela suas palavras, proferidas em reunião ocorrida na Comissão

especial da Câmara dos Deputados, em 2 de dezembro de 1901:

Tratando nós de organizar o Código Civil, era natural que nos preocupássemos com esse assunto [registro imobiliário e seus efeitos], e, então, supus eu que era ocasião própria, se não para introduzir, entre nós, porque parecia impossível, o sistema chamado germânico, em sua plenitude, porque êle depende da propriedade cadastrada, ao menos no que tem de essencial e aplicável, sem dependência de cadastro.236

De fato, o Código Civil de 1916 é um marco na evolução do sistema registral

imobiliário brasileiro. Mantêm-se conquistas anteriores, como os princípios da

inscrição (efeito constitutivo do registro, que continuou a ser chamado de

“transcrição” e “inscrição”) e da prioridade237, bem como da obrigatoriedade da

inscrição e especialização de todas as hipotecas, inclusive as legais, sob pena de

serem inoponíveis a terceiros. Deixaram de existir hipotecas gerais e ocultas238.

Porém, as modificações no vetusto sistema, de inspiração francesa, foram

efetivamente significativas com a introdução de normas típicas do sistema registral

alemão. O Código Civil, além de promover alterações no direito material, serviu de

base para que a legislação produzida nas décadas seguintes pudesse aperfeiçoar

muito mais o sistema, principalmente quanto às normas de direito formal.

235 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1o de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário

Oficial da União, Rio de Janeiro, 5 jan. 1916. 236 BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos reaes de garantia em geral, penhor, anticrese, hypoteca, registro de

imóveis. In: _____. Direito das Coisas. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1956. v. 2. p. 303-305.

237 Francisco José Rezende dos Santos corretamente distingue a prioridade exclusiva da gradual, explicando que, “Se os direitos são incompatíveis entre si, adversos, contrários, o título registrado em primeiro lugar determina a exclusão do posteriormente apresentado; se não são contraditórios ou reciprocamente excludentes, o título apresentado com primazia dá a consistência jurídica de preferência do direito, ao seu titular, sobre o apresentado posteriormente, conferindo a este último graduação inferior” (SANTOS, Francisco José Rezende dos. Princípio da prioridade. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 769-796. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 7). p. 773.

238 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 6.

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O antigo Registro Geral passou a ser chamado de Registro de Imóveis,

porquanto deste deveriam constar todas as alterações sobre a propriedade de

imóveis239. De fato, passou-se a prever o registro de todos os títulos de transmissão

da propriedade e de instituição ou transmissão de ônus reais sobre coisas alheias,

inclusive os que tivessem origem em atos judiciais e os decorrentes do Direito das

Sucessões. Se até então ainda havia discussões sobre o modo de transmissão da

propriedade, como já se referiu, o Código Civil estabeleceu com clareza que o

registro do título no Registro de Imóveis era a regra geral como modo de aquisição

da propriedade e da instituição ou transmissão de direitos reais sobre imóveis,

ressalvadas as situações em que a transmissão ocorre como efeito direto da lei, em

que o registro é meramente declaratório (usucapião, acessão, sucessão causa

mortis). De qualquer maneira, a falta de um registro, mesmo nestes casos, acarreta

a inoponibilidade do título a terceiros, afinal se passou a presumir pertencer o direito

a quem consta como seu titular no Registro de Imóveis. Adotaram-se, assim, os

princípios da inscrição240, da publicidade241 e da legitimação registral, que são

típicos do Direito alemão.

Desses princípios, a grande novidade foi a legitimação registral, mais

chamada pela doutrina brasileira de princípio da presunção ou força probante. Esse

princípio consta do art. 859 do Código Civil, que é complementado pelo artigo

seguinte. Pela importância central de tais dispositivos para este trabalho, impõe-se

sua transcrição:

Art. 859. Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu.

Art. 860. Se o teor do registro de imóveis não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar que se retifique. Parágrafo único. Enquanto se não transcrever o título de transmissão, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel, e responde pelos seus encargos.242

239 GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1922. v. I. p. 119. 240 Clóvis Beviláqua afirma que um dos “princípios cardeais do sistema de registro predial adotado

pelo Código” é o de que é o registro “que imprime o caráter de direito real à relação jurídica; antes dêle, as convenções criam, apenas, direitos pessoais, vínculos obrigacionais entre as partes contratantes” (BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado por Clóvis Beviláqua. Edição histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. v. 1. p. 1327).

241 BEVILÁQUA, Clóvis. Posse, propriedade, direitos autoraes, direitos reaes de gozo sobre coisas alheias. In: _____. Direito das Coisas. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1956. v. 1. p. 124.

242 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1o de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 5 jan. 1916.

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Assim, a partir do Código Civil de 1916, a prova da propriedade pôde ser feita

com a simples exibição da certidão do registro do título pelo qual o interessado a

adquiriu, tratando-se de presunção relativa de veracidade. O princípio da legitimação

registral assim conformado é o mesmo a que se fez referência nos capítulos

anteriores, seja como característica dos sistemas de registro de direitos em geral,

seja na forma como se apresenta na Alemanha e Espanha243. Narciso Orlandi Neto

afirma que esse princípio “parece pouco”, por produzir apenas presunção iuris

tantum, “mas no sistema anterior ao Código Civil a prova da propriedade exigia a

exibição de todos os títulos de transmissão da propriedade, pelo prazo do usucapião

extraordinário. E o ônus era de quem alegava o direito”244. Na realidade, a mudança

é de grande monta: desde então, apenas com a exibição da certidão de registro de

um direito, o titular passou a poder exercê-lo livremente e, em caso de

questionamentos a seu direito, houve a inversão do ônus da prova, isto é, passou a

caber ao interessado provar a inexistência, invalidade ou ineficácia do direito

registrado. Havendo êxito nessa prova, deveria o registro ser retificado, por meio de

averbação.

A legitimação registral é decorrência lógica da adoção do princípio da

legalidade, em toda sua amplitude, pelo Código Civil. Na realidade, os antigos

Decretos ns. 3.453/1865 (arts. 68 e 69) e 370/1890 (arts. 65 e 66) já previam que o

oficial poderia examinar a legalidade dos títulos, inclusive suscitando dúvida ao juízo

competente, se fosse o caso. Mas Francisco Bertino de Almeida Prado esclarece

que, à época da vigência de tais decretos, o âmbito de qualificação do oficial era

bem limitado, restrito aos aspectos extrínsecos do título. Foi somente com o Código

Civil de 1916 que o Oficial de Registro passou a exercer qualificação de forma e

fundo, o que, para o referido autor, abrangia “as seguintes cautelas: formalidade

243 Por tudo o que já se falou sobre a legitimação registral, soa natural a seguinte passagem: “O

objeto da presunção do art. 859 são relações de direito, não fatos. O que é presumido é o que, segundo o registo, se refere à existência ou inexistência de relações jurídicas de direito das coisas registáveis; não o que se ligue a algum fato. Tão-pouco se há de levar em conta qualquer interpretação do negócio jurídico registado, em vez dêle mesmo. Nem qualquer referência à capacidade das pessoas que nêle figuram” (grifos do autor). (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Direito das Coisas: propriedade, aquisição da propriedade imobiliária. Atual. por Luiz Edson Fachin. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012. (Coleção Tratado de Direito Privado: parte especial, 11). p. 345).

244 ORLANDI NETO, Narciso. Retificação no Registro de Imóveis. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 71.

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extrínseca do título, capacidade das partes, disponibilidade dos imóveis”245. Para

Lysippo Garcia, a diferença fundamental era a de que “Pelo direito anterior o official

examinava a legalidade do titulo, pelo Codigo examina a legalidade da inscripção”

(grifos do autor)246, ou seja, a legalidade de se proceder ao registro do título, o que,

de fato, é muito mais abrangente.

Após a entrada em vigor do Código Civil, surgiram sucessivas

regulamentações, que tratam principalmente de regras e princípios de direito formal.

O Direito Registral Imobiliário se aprimorou, com contribuições mantidas até a

atualidade.

O Decreto no 4.827/1924247 reorganizou os registros públicos no Brasil

(estabeleceu quais especialidades deveriam existir e suas respectivas

competências) e, quanto ao Registro de Imóveis, teve como grande novidade a

introdução da possibilidade de inscrição de penhoras, arrestos, sequestros e das

citações em ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis. Trata-se

de situações abrangidas pelos já referidos assento de contradição, do Direito

alemão, e anotação preventiva, do Direito espanhol. Melhor seria a adoção de uma

fórmula mais genérica, que admitisse outras situações em que a inscrição tem

função de prevenir terceiros de riscos que incidem sobre direitos registrados, mas já

houve aí algum progresso em relação ao direito anterior248.

Foi somente com o Decreto nº 18.542/1928 que se introduziu o princípio da

continuidade ou do trato sucessivo no Brasil249, a cujo conceito já se referiu, que tem

como corolário o princípio da disponibilidade, segundo o qual ninguém pode dispor

245 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo:

Saraiva, 1934. p. 263. 246 GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1922. v. I. p. 123. 247 BRASIL. Decreto nº 4.827, de 7 de fevereiro de 1924. Reorganiza os registros publicos instituidos

pelo Codigo Civil. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1924. 248 Francisco Bertino de Almeida Prado entendia que o Decreto nº 4.827/1924 ordenou a inscrição

dos títulos mencionados, “para a prova da má-fé nas alienações posteriores” (PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatoria do Registo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943. p. 88).

249 Prescreviam os arts. 206 e 234 do mencionado decreto: “Art. 206. Si o immovel não estiver lançado em nome do outorgante o official exigirá a transcripção do titulo anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.”; “Art. 234. Em qualquer caso não se poderá fazer transcripção ou inscripção sem prévio registro do titulo anterior. salvo se este não estivesse obrigado a registro, segundo o direito então vigente de modo a assegurar a continuidade do registro de cada predio, entendendo-se por disponibilidade a faculdade de registrar alienações ou onerações dependentes assim, da transcripção anterior.” (BRASIL. Decreto nº 18.542, de 24 de dezembro de 1928. Approva o regulamento para execução dos serviços concernentes nos registros publicos estabelecidos pelo Codigo Civil. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 31 dez. 1928.).

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de mais direito do que possui (por exemplo, não pode um condômino alienar fração

ideal superior à que possui). Com efeito, a importância dessa inovação pode ser

medida quando Marcelo Augusto Santana de Melo proclama que, apenas após o

referido Decreto:

[...] é que o sistema registrário brasileiro tornou-se realmente moderno e passou a controlar o tráfego imobiliário com a eficiência exigida [...] A regra do nemo plus iuris é da essência do Registro Imobiliário moderno, tida por alguns como princípio fundamental do Direito Civil (e registral). Imaginar um registro imobiliário que não controle a disponibilidade e a sequência subjetiva da propriedade imobiliária chega a ser uma afronta ao sistema imobiliário do ponto de vista funcional e, principalmente, da segurança jurídica.250

A continuidade implicou a obrigatoriedade de registro do título anterior, exceto

se este antecedesse 1917, quando se entendia não ser obrigatório o registro, na

medida em que foi somente o Código Civil de 1916 que passou a admitir o registro

de todos os títulos de transmissão da propriedade, inclusive os causa mortis e

decorrentes de atos judiciais. Ainda assim, o título anterior de registro não

obrigatório deveria ser exibido ao Oficial de Registro, pois a este não é dado

“presumir proprietário o que simplesmente se apresentar como tal”251.

Com efeito, Philadelpho Azevedo relata que, até a entrada em vigor do

Decreto no 18.542/1928, eram comuns fraudes cometidas em inventários, nos quais

os herdeiros incluíam entre os bens do de cujus imóveis que jamais tinham

pertencido a ele252. O magistrado era induzido a erro, afinal até então não se fazia o

controle da continuidade dos registros.

O Decreto no 18.542/1928 exigia, como requisito da transcrição, as indicações

da circunscrição administrativa ou judiciária onde se situava o imóvel, de sua

denominação, se rural, ou de rua e número, se urbano, bem como dos

“característicos e confrontações do immovel” (art. 237, itens 3o ao 5o). Idênticas

exigências fazia o Decreto no 4.857/1939253 (art. 247), que trouxe nova

regulamentação aos registros públicos. A utilização de expressão vaga, sem que se

250 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 111. 251 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Registo de Imóveis (inscrição, transcrição e cancelamento) e

registo da propriedade literária, científica e artística. In: _____. Tratado dos Registos Públicos. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. IV. p. 409.

252 AZEVEDO, Philadelpho. Registro de Imoveis: valor da transcrição. Rio de Janeiro: Jacintho Editora, 1942. p. 63.

253 BRASIL. Decreto nº 4.857, de 9 de novembro de 1939. Dispõe sobre a execução dos serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil. Coleção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 1939.

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definisse quais seriam os característicos mínimos necessários para a descrição dos

imóveis urbanos e rurais, fazia com que não houvesse uniformidade na forma de

descrição dos imóveis, com graves consequências para o controle da disponibilidade

dos direitos transmitidos perante os Oficiais de Registro254.

O referido Decreto no 4.857/1939 recebeu críticas quanto a seu

conservadorismo, não tendo trazido inovação mais importante do que a melhor

sistematização da terminologia dos registros, tendo reservado o termo transcrição

apenas para os atos de transmissão da propriedade (o Código Civil o utilizava

também para casos de instituição de direitos reais) e o termo inscrição para todos os

atos constitutivos de ônus reais255.

Foi nesse contexto da entrada em vigor do Código Civil de 1916 e de novas

regulamentações sobre o Registro de Imóveis que se travou o mais sério e

consistente debate que já houve no Brasil sobre a aplicabilidade ou não do princípio

da fé pública registral, também conhecido como eficácia material do registro.

Por tudo o que já se discorreu sobre as características do Registro de Imóveis

a partir do Código Civil de 1916, não há, nem havia na primeira metade do século

XX, dúvida de que se havia adotado no Brasil o princípio da legitimação registral,

também chamado de presunção ou força probante. Mas houve doutrinadores que

ousaram ir além para defender que a outra presunção de exatidão, típica dos

sistemas de registro de direitos, também fora acolhida: a fé pública registral. Eles

tiveram muito sucesso até a década de 1940, ocorrendo em seguida uma inversão

total, passando a tese contrária a ser amplamente dominante.

No centro de toda essa discussão doutrinária estavam comparações entre o

sistema registral brasileiro e o alemão, cuja complexidade pôde ser verificada

254 A esse respeito, era louvável a opinião de Miguel Maria de Serpa Lopes, para quem, “Pela

expressão – característicos e confrontações – compreende-se tudo quanto concerne às medições e confrontações do imóvel. [...] Duas situações podem surgir, no caso de característicos e confrontações: ou o título é impreciso, e nesse caso convém ser recusado, para que o titular do domínio melhor o componha pelos meios regulares, ou o título a transcrever contém característicos e confrontações em colisão com a transcrição anterior, hipótese em que se torna imprescindível, preliminarmente, a retificação da transcrição anterior, e a apuração da qual seja a verdadeiramente exata: se a enunciação da transcrição existente ou a do título” (SERPA LOPES, Miguel Maria de. Registo de Imóveis (inscrição, transcrição e cancelamento) e registo da propriedade literária, científica e artística. In: _____. Tratado dos Registos Públicos. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. IV. p. 429-430).

255 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 7-8.

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anteriormente, de forma que algumas interpretações equivocadas sobre seu

funcionamento acabaram interferindo na doutrina daquela época.

4.3.1 Tese da adoção do princípio da fé pública registral pelo Código Civil de

1916: dominante na doutrina até a década de 1940

A doutrina que defendeu a vigência da fé pública registral no Brasil teve como

precursor Lysippo Garcia256, que, assim como outros autores que adotaram a tese,

fundamentou sua opinião fortemente na adoção, no país, do sistema registral

imobiliário germânico, ainda que não em sua inteireza, mas naquilo que tem de

essencial – conforme afirmava o autor do anteprojeto do Código Civil de 1916 –, o

que incluiria a eficácia material do registro, que é um dos traços mais marcantes

desse sistema. Alegava-se que a suposta inviabilidade de se introduzir o cadastro no

Brasil teria sido o impedimento à total aceitação do sistema alemão.

Foi decisiva para a formação dessa corrente a afirmação de Clóvis Beviláqua

nesse sentido, à qual já se referiu257. Lysippo Garcia entendeu que o Código Civil

transformou o antigo Registro Geral em registro predial, no qual deveriam ser

registradas todas as alterações na propriedade imobiliária. Assim, o autor, arrolando

diversos dispositivos do Código Civil de 1916, afirmou que foram adotados os

princípios essenciais que caracterizam o sistema registral alemão: inscrição,

legalidade, especialidade, publicidade e fé pública registral (chamado de “força

probante relativa”258).

O agasalhamento desses princípios supriria a falta, entre nós, tanto do

cadastro como da organização do Registro pelo sistema do fólio real (ou o

acolhimento dos “livros fundiários”, como se costumava dizer na época) 259.

256 GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1922. v. I. 257 Assim, afirma Lysippo Garcia que foi o sentimento sobre a necessidade de se estabelecer um

sistema registral de que resultasse para a valorização da propriedade os elementos da prova, publicidade e legalidade, “compartilhado pelo autor do Projecto, que actuou no seu espirito, e o fez julgar propicia a occasião de introduzir entre nós o systema germanico, não na sua plenitude, porque não podiamos organisar os livros prediais a maneira prussiana, por falta de propriedade cadastrada, mas no que elle tivesse de essencial e applicavel sem dependencia do cadastro” (GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1922. v. I, p. 117-118).

258 A força probante absoluta seria equivalente ao efeito saneador do registro, de que não é dotado o sistema registral imobiliário alemão.

259 GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1922. v. I. p. 119-130.

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Francisco Bertino de Almeida Prado concordava com esses argumentos e

acrescentava que a falta de livros prediais – sistema que considerava mais eficiente,

mas não indispensável – seria atenuada pela adoção dos Indicadores Real e

Pessoal. A demonstração da desnecessidade do cadastro para se adotar a fé

pública registral era feita empiricamente, ao se apontarem países, como a Espanha,

que haviam instituído sistemas registrais dotados da fé pública registral, mas sem

que, à época, já tivessem organizado o cadastro260.

Philadelpho Azevedo, também obstinado defensor da fé pública registral,

aderiu às razões dos mencionados doutrinadores quanto aos pontos abordados261.

A maior fragilidade da defesa de ter o Código Civil de 1916 acolhido a fé

pública registral certamente estava na indicação do art. 859, normalmente

combinado com outro preceito legal, como fundamento legal do princípio. A questão

era que, tendo como subsídio o Direito alemão, o art. 859 correspondia ao § 891 do

BGB, que, como visto anteriormente, é previsão legal do princípio da legitimação

registral. O BGB prevê a fé pública registral no § 892, sem correspondência no

Código Civil de 1916.

Francisco Bertino de Almeida Prado reconhecia que o art. 859 do Código

Civil, isoladamente, não fundamentava a fé pública registral, mas a vislumbrava a

partir da combinação desse dispositivo com o art. 860 o mesmo Código. O primeiro

desses preceitos legais estabeleceria, a favor de terceiros de boa-fé, a presunção

relativa de propriedade em nome do titular, ao passo que o segundo conferiria “aos

proprietários o direito de reclamar a retificação do registro, caso este não exprima a

verdadeira situação jurídica”262, sendo que a estes últimos caberia, nesses casos,

promover as inscrições preventivas, até mesmo para que eventuais terceiros

adquirentes não pudessem alegar boa-fé, fundada na ignorância do vício registral.

Nesse sentido, o autor explicitava que, sendo a presunção do art. 859 iuris tantum,

260 O autor concluía que, “se não consagramos o sistema germanico em sua pureza, adotamos-lhe,

ao menos, o que tem de essencial e aplicavel sem dependencia da organização do cadastro, dando-lhe feição mais adequada ás condições do país, sem, todavia, prejudicar-lhe a segurança pela força probante fundada na fé publica do registo, reproduzindo-se, a respeito, as proprias palavras do eximio Clovis Bevilaqua” (PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatoria do Registo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943. p. 35-36, 108-109 e 120).

261 AZEVEDO, Philadelpho. Registro de Imoveis: valor da transcrição. Rio de Janeiro: Jacintho Editora, 1942. p. 25-29, 40-41, 71-72.

262 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo: Saraiva, 1934. p. 127.

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Poderá ser destruída por ação anulatoria, como quem diz que, até a propositura e a publicidade da ação, continua de pé o direito do proprietario inscrito; de modo que aquele que contratar com este, de boa-fé, ignorando os vicios do seu titulo, e baseado na inscrição do seu causam dans, com a única presunção que a lei lhe oferece e se considera verdadeira, não deve ser ele iludido na sua boa fé, pois ele, para as suas transações, se socorreu justamente dos elementos que a lei criou para a garantia do seu direito. Colhê-lo assim na sua boa fé seria grave injustiça, visto que a lei tambem arma de meios eficazes os legitimos titulares para a defesa do seu direito, que deve ser exercido a seu tempo. (grifo do autor)263

A combinação dos arts. 859 e 860 também foi adotada por Lysippo Garcia,

para quem o registro implicava presunção iuris tantum entre as partes do negócio,

mas iuris et de iure com relação a terceiros adquirentes de boa-fé e a título

oneroso264.

Por sua vez, Clóvis Beviláqua admitiu expressamente que o art. 859 teve

como fonte o § 891 do BGB, mas, ao mesmo tempo, afirmou que o § 892 do Código

Civil alemão não teria teor muito diverso. Com efeito, após transcrever a tradução

deste último preceito legal, o doutrinador afirma que se vê:

[...] dêsse dispositivo que o teor do registro pode ser contestado, e que deixa de ser exato, desde que o adquirente conhecia a inexatidão do registro. Assim também é entre nós; apenas o Código Civil não destacou o caso previsto pelo alemão por se achar êle incluído no de erro; se o teor do registro de imóveis não exprimir a verdade... (art. 860) (grifo do autor)265.

A ideia da prevalência da segurança jurídica do tráfico está subjacente a toda

a argumentação dos defensores da fé pública registral, que adotam discursos em

que protegem com afinco os terceiros adquirentes de boa-fé e a título oneroso266. De

fato, a boa-fé subjetiva do adquirente era bastante valorizada e considerada digna

de proteção, pois não haveria por que sacrificar seu direito em favor do verdadeiro

titular, tendo este se omitido em tomar as devidas providências para invalidar ato

registral viciado, pelo ajuizamento da ação competente e pela promoção da

263 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo:

Saraiva, 1934. p. 128. 264 GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco

Alves, 1922. v. I. p. 120-127. 265 BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos reaes de garantia em geral, penhor, anticrese, hypoteca, registro de

imóveis. In: _____. Direito das Coisas. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1956. v. 2. p. 312-313.

266 Assim, Lysippo Garcia demonstra que o legislador teria feito uma opção entre quais direitos deviam prevalecer: “Pelo principio acceito no Codigo, ficam expostos os contractantes, quem não tenha adquirido de proprietario inscripto, terceiros de má fé, ou que tenham adquirido a titulo gratuito; ficando a coberto os 3.os de bôa fé, que tenham contractado a titulo oneroso” (GARCIA, Lysippo. A transcripção. In: _____. O Registro de Immoveis. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1922. v. I. p. 121). Philadelpho Azevedo defendia a prevalência da fé pública registral, “em benefício da segurança das transações e do crédito” (AZEVEDO, Philadelpho. Registro de Imoveis: valor da transcrição. Rio de Janeiro: Jacintho Editora, 1942. p. 9).

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respectiva inscrição preventiva, que daria ampla publicidade à situação, com

presunção absoluta de conhecimento erga omnes. Terceiro que adquirisse um

imóvel mesmo tendo ciência de uma inscrição dessa espécie assumiria o risco e,

evidentemente, escaparia da proteção da fé pública registral. Assim, Francisco

Bertino de Almeida Prado sustentava que:

A inscrição é ato publico, de onde decorre o corolario de que todo interessado tem o direito de a consultar, não podendo, portanto, alegar a sua ignorância; mas, como o seu valor não é absoluto, resulta que só podem fiar-se, da validade da inscrição os que, confiantes na sua regularidade exterior, estejam de boa fé, isto é, ignorem-lhe os vicios extrinsecos. [...]

O principio da fé publica contém em si as suas limitações: não só não podem valer-se dele quem ilegalmente foi inscrito, como tambem aqueles que obraram de má fé; estes, de fato, não poderiam dizer terem-se fiado no que continham os livros fundiarios. Por razões de equidade, são equiparados aos adquirentes de má fé os que hajam a titulo gratuito, ainda que de boa fé.267

Em outra obra, o autor explica o que entende por razões de equidade que

equiparam o adquirente a título gratuito, ainda que de boa-fé, ao adquirente de má-

fé: deve-se preferir evitar seu lucro, em proveito de se reparar o prejuízo de outrem

(no caso, do verdadeiro proprietário)268. Trata-se de noção bem parecida com a já

explicitada anteriormente, quando se analisou o porquê de o ordenamento jurídico

espanhol não proteger o terceiro adquirente de boa-fé a título gratuito.

J. M. de Carvalho Santos, ainda que em época mais recente, aderiu a essa

fundamentação, tendo sido outro importante defensor do princípio da fé pública

registral no Brasil269.

De forma surpreendentemente moderna, Miguel Maria de Serpa Lopes ia

além de seus conterrâneos e justificava a fé pública registral não só na proteção ao

comércio jurídico e à boa-fé, mas também na aparência, a qual decorre de um

fundamento de fato, isto é, a publicidade registral. “Preside, nessa forma de

267 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo:

Saraiva, 1934. p. 225. 268 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatória do Registo. São Paulo: Freitas

Bastos, 1943, p. 106. 269 De fato, alegava o autor que, “Se a transcrição opera a publicidade e prova o direito real sôbre o

imóvel, em proveito de quem ela o declara, e se o prejudicado não reclama, em tempo oportuno, a anulação do registro, aquêle que, de boa-fé, funda o seu direito em transcrição ou inscrição, cujo teor se presume verdadeiro, deve nêle ser mantido” (CARVALHO SANTOS, João Manuel de. Direito das Coisas (Arts. 755-862). In: _____. Código Civil Brasileiro interpretado, principalmente do ponto de vista prático por J. M. de Carvalho Santos. 14. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1989. v. X).

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legitimação, a tutela da expectativa, a segurança do direito, que exige, não tanto a

prova da boa-fé do indivíduo, quanto a da possível crença da coletividade”270.

A defesa da fé pública registral envolveu ainda o recurso à analogia a

situações em que o Código Civil de 1916 protegia terceiros adquirentes de boa-fé,

sob a alegação de que essas hipóteses, em vez de consistirem em exceções legais,

acabariam formando um sistema de proteção aos terceiros de boa-fé.

Assim, foi bastante comum a analogia à situação do pagamento indevido de

imóvel, em que se previa a manutenção da alienação feita pelo credor, desde que

estivesse este de boa-fé e a transferência se desse a título oneroso. Nesse caso,

caberia a quem pagou indevidamente apenas direito ao ressarcimento pelo “preço

recebido”271.

De forma semelhante, previa-se a validade das alienações de bens

hereditários pelo herdeiro aparente, cabendo aos co-herdeiros prejudicados direito a

perdas e danos (mas não à reivindicação)272.

Já na situação de alienação em fraude contra credores, previa-se, com

relação a terceiros adquirentes, que a ação pauliana só poderia ser proposta contra

adquirentes de má-fé, preservando-se, assim, os que haviam obrado de boa-fé273.

Pode-se resumir o pensamento da aplicação analógica dessas e outras

situações à generalidade dos casos de aquisição por terceiro de boa-fé e a título

oneroso com o seguinte trecho da obra de Philadelpho de Azevedo:

Em verdade, os textos dos arts. 968, 1.600, 109, 121, 648 e 935 do Código Civil denunciam uma orientação geral, um verdadeiro sistema de resguardo à boa-fé, que bastaria para extrair do art. 859 uma consequência genérica,

270 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Registo de Imóveis (inscrição, transcrição e cancelamento) e

registo da propriedade literária, científica e artística. In: _____. Tratado dos Registos Públicos. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. IV. p. 83.

271 Com efeito, previa o art. 968 do Código Civil de 1916 (correspondente ao art. 879 do Código atual): “Art. 968. Se, aquele, que indevidamente recebeu um imóvel, o tiver alienado em boa fé, por título oneroso, responde somente pelo preço recebido; mas, se obrou de má fé, além do valor do imóvel, responde por perda e danos. Parágrafo único. Se o imóvel se alheou por título gratuito, ou se, alheando-se por título oneroso, obrou de má fé o terceiro adquirente, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação”.

272 Preceituava o art. 1.600 do Código Civil de 1916 que “São válidas as alienações de bens hereditários, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro excluído; mas aos co-herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito a demandar-lhe perdas e danos”. Esse dispositivo corresponde ao art. 1.817 do Código Civil de 2002, que passou a exigir a onerosidade das alienações e que estas sejam de boa-fé.

273 “Art. 109. A competente ação, nos casos dos arts. 106 e 107, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má fé”. Esse dispositivo corresponde ao art. 161 do Código Civil de 2002, que tem o mesmo teor.

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que, na Alemanha, não houve mister apurar, ante a adoção explícita de outras medidas.274

Aderiram a essa posição Francisco Bertino de Almeida Prado275 e Clóvis

Beviláqua276.

A vigência da fé pública registral no Brasil também foi defendida por

Sebastião de Souza, José Augusto Cesar, Paulo de Lacerda, Reinaldo Porchat e

Arnoldo Medeiros de Fonseca, conforme noticia Leonardo Brandelli277.

A jurisprudência, consoante relata Soriano Neto, ainda não havia se

posicionado claramente a favor de uma ou outra tese278. Mas todo esse cenário

seria alterado a partir da influência de obra de sua autoria, publicada em 1940.

4.3.2 Tese da não vigência do princípio da fé pública registral: dominante após

a intervenção de Soriano Neto

De fato, foi nesse ano de 1940 que o então professor da Faculdade de Direito

do Recife Soriano Neto publicou o livro Publicidade material do Registro Imobiliário

(efeitos da transcripção)279. Como se viu no item anterior, os argumentos dos

defensores da fé pública registral eram, em grande medida, baseados na

comparação do Direito brasileiro com o alemão, o que acabou sendo sua maior

vulnerabilidade, até porque, como já se pôde notar, tanto as normas de direito

material como as de direito formal, aplicáveis aos respectivos sistemas registrais

imobiliários, tinham agudas diferenças.

Provavelmente foi Soriano Neto quem melhor compreendeu o sistema

registral alemão entre os doutrinadores brasileiros da época, o que lhe possibilitou

274 AZEVEDO, Philadelpho. Registro de Imoveis: valor da transcrição. Rio de Janeiro: Jacintho

Editora, 1942. p. 18. 275 PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Transmissão da propriedade imovel. São Paulo:

Saraiva, 1934. p. 258; PRADO, Francisco Bertino de Almeida. Eficacia Probatória do Registo. São Paulo: Freitas Bastos, 1943. p. 43-45, 100-101, 109, 129-130.

276 O autor refere-se especificamente ao caso de pagamento indevido de imóvel, que afirma não ser diferente das demais hipóteses de aquisição de imóvel por terceiro (BEVILÁQUA, Clóvis. Direitos reaes de garantia em geral, penhor, anticrese, hypoteca, registro de imóveis. In: _____. Direito das Coisas. 4. ed. atual. Rio de Janeiro: Forense, 1956. v. 2. p. 313).

277 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 236-238.

278 O doutrinador relata que, “Apesar de já estar em vigor, ha 22 annos, o nosso codigo civil, ainda não se formou, definitivamente, nenhuma jurisprudencia sobre o problema do valor probante do registro immobiliario” (SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife: Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 51).

279 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife: Graf. d'A Tribuna, 1940.

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escrever uma obra consistente, em que refutava com maestria grande parte dos

argumentos dos defensores da fé pública registral. Talvez tenha sido esse o

principal motivo pelo qual esse seu livro teve força para mudar o entendimento

dominante da doutrina desde então, o que se refletiu também na jurisprudência.

Entendia o referido professor que era imperiosa a existência de lei expressa

para que vigorasse o princípio da fé pública registral. Daí sua insistência em afirmar

que não havia no Código Civil dispositivo correspondente ao § 892 do BGB. Para o

autor, a aparência deveria se basear apenas e tão-somente em dispositivo legal

expresso:

De feito, por isso mesmo que, sob o domínio do princípio da fé pública, se protege ao que confia no direito presumptivo ou apparente, a despeito de sua inexistencia – não pertence ao titular apparente o direito, que não existe, mas, simplesmente, se protege ao que confia, em virtude de sua bôa fé, posto que tal direito não exista –, é claro que esse dominio só se apresenta nos casos expressamente estabelecidos pela lei. (grifos do autor)280

Explicou Soriano Neto que, no Direito alemão, a fé pública registral não

decorria do § 891 do BGB (correspondente ao art. 859 do Código Civil), mas dos §§

892 e 893 desse mesmo Código, sem correspondência no Código brasileiro281.

Alegou que dos princípios essenciais do sistema registral imobiliário germânico, o

único que o brasileiro havia adotado era o da inscrição e, mesmo assim, sem uma

base sólida, na medida em que não tínhamos acolhido a organização do Registro

sob a forma do fólio real282.

O próprio Soriano Neto conduz sua argumentação como se apenas pudesse

o Brasil adotar um sistema registral importado por inteiro, sem as adaptações que

pretendeu fazer Clóvis Beviláqua. Com efeito, são suas palavras:

Para nós, o que há é o seguinte: o principio da fôlha [fólio real] distingue o direito immobiliario formal alemão do direito immobiliario formal francês, como o principio da fé publica distingue o direito immobiliario material alemão do direito immobiliario material francês.

O principio da folha está para o direito formal, como o principio da fé publica está para o direito material: principios pundamentaes, que caracterizam em

280 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 162. 281 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 125. 282 Dizia o autor que na Alemanha “o principio da inscripção, erigido sobre a base da folha do

immovel, assegura uma correlação perfeita, quasi mathematica, entre a situação juridica verdadeira e o registro fundiário” (SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife: Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 73-74).

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todo o seu conjunto, o systema immobiliario alemão e lhe emprestam feição typica e inconfundivel.283

Assim, era natural que Soriano Neto discordasse que o teor do art. 860 do

Código Civil de 1916 pudesse fundamentar a fé pública registral, combinado ou não

com o artigo imediatamente anterior. Para ele, a retificação prevista naquele

dispositivo poderia ser feita a qualquer momento, ainda que com sacrifício de

terceiros adquirentes de boa-fé284.

Atento ao embate entre segurança jurídica estática e dinâmica, Soriano Neto

argumentava que somente se poderia alcançar um equilíbrio onde se adotasse o

“regime fundiário” (fólio real, combinado com o cadastro), que seria o único que

preservaria, em grande medida, a correspondência entre o registro e a situação real

do imóvel. Sem este, a fé pública registral seria uma armadilha para o próprio

adquirente de boa-fé, que poderia se tornar vítima desse princípio a partir do

momento em que se tornasse o novo verdadeiro proprietário. Dessa forma, a fé

pública registral no Brasil nem sequer alcançaria o objetivo da obtenção da

segurança do tráfico285.

Soriano Neto também cuidou de refutar a aplicação analógica de dispositivos

do Código Civil de 1916, que, segundo os defensores da fé pública registral,

acabariam justificando-a, na medida em que formariam um sistema de proteção aos

terceiros adquirentes de boa-fé e a título oneroso. Com relação aos casos de

pagamento indevido e alienação por herdeiro aparente de imóvel a terceiro de boa-

fé, o professor pernambucano viu as previsões legais dos arts. 968 e 1.600 do

Código Civil como regras específicas desses institutos, que não poderiam ser

estendidas a outras situações286. No caso acima exposto sobre a alienação de

imóvel em fraude contra credores, Soriano recorreu à doutrina francesa da época,

que não reconhecia a boa-fé de terceiro, ainda que este desconhecesse o caráter

283 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 66. 284 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 201. 285 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 168-169. 286 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 186 e 199-200.

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fraudulento da alienação, e a aplicou, sem adaptações, ao Brasil – como se o

ordenamento jurídico francês fosse idêntico ao brasileiro287.

Conforme assevera Leonardo Brandelli, a tese se Soriano Neto ganhou

progressivamente mais adeptos após a década de 1940; inicialmente majoritária,

tornou-se praticamente unanimidade à época da sanção do Código Civil de 2002288.

Entre os últimos nomes de peso na doutrina a defenderem a vigência da fé pública

registral no Brasil estão Pontes de Miranda289 e Orlando Gomes.290

Defendiam a existência tão-somente da legitimação registral no Brasil, entre

outros, Afranio de Carvalho291, Narciso Orlandi Neto292, José Mário Junqueira de

Azevedo293, Valmir Pontes294, João Rabello de Aguiar Vallim295 e Clóvis do Couto e

Silva.296

Também como representantes dos doutrinadores que não reconheciam a fé

pública registral no Código Civil, Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva

justificam essa opção legislativa com base em alegação pitoresca, mas que

certamente correspondia à realidade da época:

287 SORIANO NETO. Publicidade material do registro imobiliário: effeitos da transcripção. Recife:

Graf. d'A Tribuna, 1940. p. 190-191. 288 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

243. 289 Pontes de Miranda adotava posição diferenciada, em que sustentava a vigência do princípio da fé

pública registral com base na característica da “fé pública que deriva do ofício de registo”, isto é, da autenticidade das informações prestadas pelo Oficial de Registro (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Direito das Coisas: propriedade, aquisição da propriedade imobiliária. Atual. por Luiz Edson Fachin. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. (Coleção Tratado de Direito Privado: parte especial, 11). p. 336-362).

290 O autor defendia que, de regra, sendo iuris tantum a presunção decorrente do registro, este poderia ser cancelado como efeito de ação de anulação ou declaração de nulidade julgada procedente, mas sustentava a possibilidade de “validação” do registro, com base na boa-fé do adquirente (GOMES, Orlando. Direitos Reais. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 147).

291 O autor elogia a não recepção da fé pública registral pelo Código Civil de 1916, pois a falta de cadastro e de livros fundiários tornaria temerária sua adoção naquele momento. Porém, após a Lei de Registros Públicos, que adotou o sistema do fólio real, conforme se analisará adiante, o autor passou a ver condições propícias ao acolhimento do princípio, o qual reputava “conveniente”. (CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 24-25 e 175).

292 ORLANDI NETO, Narciso. Retificação no Registro de Imóveis. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 71-72.

293 AZEVEDO, José Mário Junqueira de. Do Registro de Imóveis: de acordo com a nova Lei de Registros Públicos, Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, com as alterações da Lei no 6.216, de 30 de junho de 1975. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 32-34.

294 PONTES, Valmir. Registro de Imóveis: comentários aos arts. 167 a 288 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 187-188.

295 AGUIAR VALLIM, João Rabello. Direito Imobiliário brasileiro: doutrina e prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 45-46.

296 SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2011. [E-book].

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O Brasil adotou a presunção relativa da validade dos atos, isso em seu Código Civil, que data de 1916, e o fez muito bem, pela simples razão de que os então notários e registradores eram práticos, sem formação jurídica e prestavam-se mais a preencher formulários ou copiadores de fórmulas sacramentais e repetitivas. Poucos tinham conhecimento das conseqüências jurídicas do ato que praticavam. [...]

A solução para a reparação de equívocos estava na jurisdição, a cargo de juízes, com formação jurídica. Aí a razão da ação específica de anulação do negócio jurídico, com repercussão no registro imobiliário.297

A jurisprudência brasileira, da mesma forma que a doutrina, tornou-se

majoritariamente contrária ao princípio da fé pública registral para, afinal, rejeitá-lo

por unanimidade298.

O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão ainda na época de maior

efervescência das discussões sobre a vigência ou não da fé pública registral no

Brasil, na oportunidade do julgamento do Recurso Extraordinário no 10.182/DF,

ocorrido em 02.12.1947, que teve como relator o Ministro Hahnemann Guimarães. A

discussão não deixou de enfocar a comparação entre dispositivos do Código Civil e

do BGB, tendo sido proferida decisão por unanimidade de votos. Seguem a ementa

do acórdão, bem como a transcrição de um pequeno trecho do voto do relator:

EMENTA: A presunção estabelecida no art. 859 do Cod. Civ. tem eficácia meramente processual, e não considera absolutamente exato o conteúdo do registo de imóveis em favor de quem adquira direito real de bôa fé e a título oneroso.

Trecho do voto do relator: “Nada autoriza a admitir que, no citado art. 859, a presunção tenha outro fim além de conceder uma dispensa do onus da prova, ou de inverter êsse onus. Se a lei quisesse estabelecer uma praesumptio iuris et de iure, teria enunciado expressamente essa grave conseqüência, pela qual o registo de imóveis seria considerado absolutamente exato em favor de quem adquirisse direito real de boa fé e a título oneroso.299

No fim da década de 1970, o Supremo Tribunal Federal voltou a enfrentar o

assunto, dessa vez com maior profundidade e ampla análise de todo o histórico da

evolução do sistema registral brasileiro, das divergências doutrinárias sobre o tema

existentes até a década de 1940 e da comparação entre os sistemas registrais

297 Os próprios autores admitiam que não mais persistiam os citados argumentos, diante da exigência

de formação jurídica que passou a ser imposta aos notários e registradores (ERPEN, Décio Antônio; LAMANA PAIVA, João Pedro. A autonomia registral e o princípio da concentração. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Evolução histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 419-426. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 7). p. 422).

298 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 247.

299 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no 10.182/DF. Relator: Hahnemann Guimarães – Segunda Turma. Julgado em: 02.12.1947.

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brasileiro e alemão. Porém, não houve alteração de posicionamento no Recurso

Extraordinário no 85.223-9/MG, que teve como relator o Ministro Soares Muñoz,

julgado pela 1a Turma em 09.10.1979, conforme se verifica na seguinte ementa:

Registro de imóveis. Transcrição. No Brasil, ao contrário do sistema germânico, que assentou os princípios de presunção e fé pública no registro, o Código Civil não adotou simultaneamente esses dois postulados, mas apenas o primeiro deles, de sorte que a presunção pode ser destruída por prova contrária, que demonstre que a transcrição foi feita, “e.g.”, com base em “venda a non domino”. Recurso extraordinário conhecido pela letra “a” do permissivo constitucional e provido.300

4.3.3 O Decreto-Lei no 1.000/1969 e tentativa frustrada de introdução do

princípio da fé pública registral no Brasil

Até mesmo como registro histórico, convém citar que, visando a substituir o

Decreto no 4.857/1939, foi publicado o Decreto-Lei no 1.000/1969, que, apesar de

tratar de matéria de direito formal, trazia dispositivo que parecia introduzir o princípio

da fé pública registral, o qual segue transcrito:

Art. 217. Também o registro poderá ser retificado ou anulado pelas decisões contenciosas proferidas em ações, anulações de atos jurídicos ou que declararem sua nulidade de pleno direito sôbre fraude de credores, quer em ação direta, quer indiretamente, quando rejeitados embargos de terceiro senhor e possuidor, em execução ou em ação executiva, salvo os direitos adquiridos por estranhos, de boa fé e a título oneroso. (grifo nosso)301

Aparentemente, pretendia-se proteger os direitos de terceiros adquirentes de

boa-fé e a título oneroso, impedindo-se o cancelamento de registros anteriores que

lhes servissem de base. Diz-se “aparentemente” devido à péssima redação do

dispositivo, bastante criticada por Afranio de Carvalho302.

Na realidade, problemas de redação e concatenação de ideias eram comuns

no texto desse Decreto-Lei. Elvino Silva Filho entendeu que pretendia este introduzir

o sistema fundiário (do fólio real) no Brasil, mas nem isso ficava claro de seu teor.

Ainda havia a incongruência de uma suposta tentativa de inovação no sistema

300 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no 85.223-9/MG. Relator: Soares

Muñoz – Primeira Turma. Julgado em: 09.10.1979. 301 BRASIL. Decreto-Lei nº 1.000, de 21 de outubro de 1969. Dispõe sobre a execução dos serviços

concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo Código Civil e legislação posterior. Diário Oficial da União, Brasília, 21 out. 1969.

302 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 10.

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registral imobiliário aliada à cópia de grande parte do Decreto no 4.857/1939, cujas

regras eram inapropriadas ao sistema do fólio real303.

Diante de sua inexequibilidade, esse decreto-lei teve sua entrada em vigor

adiada por várias vezes, até ser revogado304. O sistema do fólio real viria a ser

realmente adotado por obra da Lei de Registros Públicos, publicada em 1973.

4.4 A Lei de Registros Públicos e a introdução do sistema do fólio real

Não há como se negar a temeridade que seria a adoção da fé pública registral

enquanto ainda vigia no Brasil a organização do Registro de Imóveis pelo sistema do

fólio pessoal. Atos relativos a um mesmo imóvel ficavam dispersos em vários livros,

o que dificultava sobremaneira a caracterização de sua situação jurídica completa,

ainda que houvesse a obrigação legal de remissões recíprocas entre esses atos, o

que acabava não tendo bom funcionamento. Ademais, a descrição precária dos

imóveis tornava difícil sua identificação, sendo que o mesmo imóvel poderia ter mais

de uma descrição nas sucessivas transcrições e inscrições. Essa situação tornava

impossível a existência de um bom índice de imóveis (Livro de Indicador Real),

sendo natural que o também o índice pelo nome das pessoas (Livro de Indicador

Pessoal) fosse falho, tanto pela forma de escrituração (livros encadernados, o que

impossibilitava sua organização em perfeita ordem alfabética), como pela natural

alteração das pessoas relacionadas ao mesmo imóvel. Nesse cenário caótico,

realmente parecia preferível dar-se prioridade à segurança jurídica estática em

detrimento da dinâmica.

A Lei nº 6.015/1973, conhecida como Lei de Registros Públicos, que entrou

em vigor em 1o de janeiro de 1976305, conquanto tenha introduzido modificações

mais relevantes na forma de escrituração dos atos, representou uma verdadeira

revolução no Registro Imobiliário brasileiro. Finalmente se adotou o sistema do fólio

real, com a introdução da matrícula única, individualizada e numerada para cada

303 SILVA FILHO, Elvino. Considerações em tôrno da nova Lei dos Registros Públicos. In: DIP,

Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Evolução histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 95-109. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 7). p. 101-102.

304 CARVALHO, Afranio de. Registro de Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei n. 6.015, de 1973, com as alterações da Lei n. 6.216, de 1975, Lei n. 8.009, de 1990, e Lei n. 8.935, de 18.11.1994. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 9.

305 BRASIL: Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 31 dez. 1973.

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imóvel306, acabando com a possibilidade de escrituração dispersa de atos registrais

sobre uma mesma unidade imobiliária. A matrícula é o fólio que passou a concentrar

todas as informações relevantes sobre o imóvel: sua descrição completa, a

indicação de seu registro anterior, a escrituração de todos os atos de registro (termo

que passou a englobar as antigas transcrições e inscrições) e averbação, que

representam todo o histórico do imóvel: todas as transmissões dominiais,

constituições e cancelamentos de ônus, alterações de descrição do imóvel e nos

dados de qualificação pessoal dos titulares de direito etc. Os antigos livros

encadernados puderam ser substituídos por fichas escrituradas mecanicamente.

Todos os princípios registrais que vieram sendo adotados ao longo da

evolução do Registro de Imóveis no Brasil, como os da legalidade e continuidade,

foram consolidados na nova lei, que expressamente previu requisitos mais rigorosos

de caracterização dos imóveis (princípio da especialidade objetiva) e de qualificação

das pessoas que intervêm nos atos registrais (princípio da especialidade subjetiva).

Apesar de a matrícula não ter representado a integração entre o registro e o

cadastro, sua feição cadastral não passou despercebida pela doutrina307.

Quanto à natureza jurídica, Afrânio de Carvalho atribui à matrícula caráter

dominial, vendo-a como a primeira inscrição relativa a um imóvel feita no novo

sistema registral. Lembra o autor que, na realidade, a aquisição da propriedade deu-

se ainda por uma transcrição, à qual a matrícula obrigatoriamente faz referência,

tendo havido uma mudança de forma a partir da nova lei. Mas a partir da abertura de

uma nova matrícula, esta é suficiente para provar toda a situação jurídica do imóvel

(proprietário atual, se há ou não ônus reais, gravames judiciais etc.)308.

306 Trata-se do princípio da unitariedade da matrícula. Consoante ressalva José Renato Nalini, de

regra a matrícula é descerrada no momento do primeiro ato de registro feito a partir da entrada em vigor da Lei de Registros Públicos, “mas nada obsta ao oficial a abri-la de ofício, utilizando-se, para tanto, dos dados existentes na serventia. A própria lei admite abertura se não existir espaço à margem do registro feito nos livros antigos [...] e também na oportunidade da unificação” (NALINI, José Renato. A matrícula e o cadastro no Registro Imobiliário. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Evolução histórica. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 769-796. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 7). p. 307.

307 Wilson de Souza Campos Batalha asseverou que “A matrícula [...], sem constituir propriamente um sistema de cadastro imobiliário, procura atingir, de maneira simples e objetiva, o desideratum de constituir uma história de cada imóvel, com as transformações, limitações e onerações por que passou. (BATALHA, Wilson de Campos. Comentários à Lei de Registros Públicos: Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Rio de Janeiro: Forense, 1973. v. 2. p. 928). No mesmo sentido, CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 16. ed. atual. até 30 de junho de 2005. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 502.

308 CARVALHO, Afrânio de. A matrícula no Registro de Imóveis. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 5, p. 31-42, jan./jun. 1980. p. 32-34. No mesmo sentido,

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A matrícula é aberta por ocasião do primeiro ato de registro a ser feito a partir

da entrada em vigor da Lei de Registros Públicos, no Serviço Registral Imobiliário do

local do imóvel (princípio da territorialidade), sendo que tal espécie de ato costuma

envolver direitos e ônus reais. Por sua vez, as averbações, comumente referentes a

modificações do imóvel ou da qualificação das pessoas, enquanto não aberta

matrícula para o imóvel, continuam podendo ser feitas à margem de transcrições ou

inscrições praticadas sob a égide da legislação anterior.

4.4.1 Concentração obrigatória ou não de todos os atos na matrícula

Como já se viu neste trabalho, é característica fundamental do sistema de

fólio real a concentração de todas as informações pertinentes ao imóvel em sua

matrícula. E também se analisou que os sistemas de registro de direito implicam

seja essa concentração obrigatória de tudo o que interessa sobre o imóvel, inclusive

sobre a existência de ações judiciais ou quaisquer outros gravames que possam vir

a afetar titulares de direitos, de forma que as transações relativas a imóveis possam

se realizar unicamente com base nas certidões das respectivas matrículas, sendo

desnecessário recorrer a informações extrarregistrais (certidões de distribuidores

judiciais, de tributos etc.). Essa é a base sólida que efetivamente permite a adoção

tranquila do princípio da fé pública registral, sem que este implique sacrifícios

desproporcionais à segurança jurídica dos direitos dos titulares que já têm seus

títulos registrados.

Essa parece ter sido a intenção da Lei de Registros Públicos, que

efetivamente previu um amplo elenco de atos suscetíveis de registro (com relação

aos quais vigora o princípio da taxatividade) e de averbação (rol numerus apertus),

que inclui, além de direitos e ônus reais, decorrentes de atos inter vivos e causa

mortis, por escritura pública ou instrumento particular (nos casos em que admitido),

atos judiciais (como penhoras, arrestos, sequestros, citações em ações reais e

pessoais reipersecutórias) e administrativos (como legitimação de posse, reserva

legal, alteração de nome de logradouro).

A Lei ainda prescreve expressamente que todos os atos de registro e

averbação nela arrolados são obrigatórios. Contudo, essa obrigatoriedade acabou

GANDOLFO, Maria Helena Leonel. Reflexões sobre a matrícula 17 anos depois. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 33, p. 105-145, jan./jun. 1994. p. 105-108.

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sendo interpretada muito mais no sentido de que, sendo o registro, de regra,

constitutivo, sua falta implica a não aquisição do direito, de modo que quem não o

promove não pode opor seu título a terceiros309. Ou seja, a obrigatoriedade seria

muito mais um ônus, para garantir a oponibilidade de um direito, do que

propriamente um dever de o titular manter atualizados os dados referentes a si

próprio, a seu imóvel e quaisquer outras circunstâncias que possam afetar seu

direito.

De fato, não previu a Lei de Registros Públicos qualquer tipo de sanção – tal

como a multa prescrita na legislação francesa – para o descumprimento da referida

obrigatoriedade310. Essa interpretação frouxa de importante princípio foi reforçada

com a entrada em vigor da Lei no 7.433/1985311, editada para regulamentar os

requisitos das escrituras públicas relativas a imóveis. Nessa lei previu-se como

requisito de tais escrituras a apresentação de “certidões de feitos ajuizados”, isto é,

de certidões emitidas por distribuidores judiciais312. A despeito da previsão legal de

obrigatoriedade de registro de citações em ações reais e pessoais reipersecutórias,

bem como de averbação “das decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por

objeto atos ou títulos registrados ou averbados” (art. 167, inciso II, 12, da Lei no

6.015/1973), a referida lei reconheceu oficialmente que a matrícula não concentra

todos os dados necessários para se ter ciência sobre a situação do imóvel.

Em outras palavras, a lei de 1985 significou a impossibilidade de se defender

a vigência do princípio da concentração, segundo o qual cabe ao titular de direito

promover todos os registros e averbações que digam respeito a seu imóvel, sob

309 Nesse sentido, Orlando Gomes aduz que “O princípio da obrigatoriedade significa que o registro

do título translativo é indispensável à aquisição da propriedade imobiliária inter vivos. A lei o condensa em termos claros, ao declarar que, enquanto se não transcrever o título de transmissão, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel, e responde pelos seus encargos” (GOMES, Orlando. Direitos Reais. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 145).

310 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 16. ed. atual. até 30 de junho de 2005. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 370.

311 BRASIL. Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985. Dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 19 dez. 1985.

312 Durante a vigência desse requisito (revogado apenas com a entrada em vigor da Lei nº 13.097/2015), houve duas interpretações sobre a obrigatoriedade ou não de o tabelião constar da escritura pública a apresentação das certidões de feitos ajuizados. O doutrinador mineiro Nicolau Balbino Filho, por exemplo, sustentava a obrigatoriedade, negando às partes o direito de dispensar a apresentação dessas certidões (BALBINO FILHO, Nicolau. Direito Imobiliário Registral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 217-218). Já Alyne Yummi Konno relata que, no Estado de São Paulo, por decisão do Corregedor Geral da Justiça exarada no Processo 1.415/86, era admitida a dispensa das certidões de feitos ajuizados, assumindo o adquirente do imóvel os riscos daí decorrentes (KONNO, Alyne Yumi. Registro de Imóveis: teoria e prática. 2. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Memória Jurídica, 2010. p. 92-93).

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pena de inoponibilidade a terceiros, cuja boa-fé a respeito de determinado fato (por

exemplo, sobre a existência de ação judicial de anulação de um registro) guia-se

unicamente pela circunstância de ele constar ou não da matrícula. Na realidade,

essa lógica foi invertida: o terceiro deveria obter as certidões de feitos ajuizados, sob

pena de se considerar que não foi diligente e, consequentemente, não se

reconhecer sua boa-fé. Um sistema registral imobiliário com essa característica

evidentemente não pode ser classificado como um verdadeiro sistema de registro de

direitos, afinal um efeito necessário deste é a fé pública registral, que tem como um

de seus requisitos a plena aceitação do princípio da concentração.

Em suma, uma lei específica sobre requisitos de escrituras públicas acabou

produzindo efeitos nefastos sobre o sistema registral imobiliário, praticamente

impedindo que se discutisse a aplicação da fé pública registral no Brasil – e

justamente em um momento em que a receptividade ao princípio poderia ser maior,

afinal a grande deficiência do sistema registral – sua escrituração precária – havia

sido superada com a adoção do fólio real.

4.4.2 Código Civil de 2002: tentativa deliberada de afastamento da fé pública

registral

O Código Civil de 2002, ao menos considerando-se suas regras – e não os

princípios que o informam –, praticamente manteve inalteradas as normas sobre

direito material relativas à aquisição da propriedade e outros direitos reais. Houve

apenas uma alteração relevante, pela qual se tentou expressamente afastar o

princípio da fé pública registral no Brasil. Trata-se do parágrafo único do art. 1.247, o

qual, pela relevância para este trabalho, reproduz-se a seguir:

Art. 1.247. Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o interessado reclamar que se retifique ou anule. Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.313 (grifo nosso)

Em uma interpretação literal, verifica-se que o caput contempla situação

genérica de retificação ou invalidação do registro – basta que esteja em

descompasso com a situação jurídica real –, ao passo que o parágrafo único estatui

313 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União,

11 jan. 2002.

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que ao verdadeiro proprietário – aparentemente beneficiado pela retificação ou

cancelamento de um registro – cabe o direito de reivindicar o imóvel de quem o

havia adquirido por registro mais recente, independentemente de considerações

sobre sua boa-fé ou de seu título (ou seja, tampouco importa que sua aquisição

tenha sido onerosa ou gratuita).

Conforme relata Leonardo Brandelli – remetendo a artigo escrito pelo próprio

autor dos dispositivos sobre Registro de Imóveis do anteprojeto do Código Civil,

Ebert Chamoun –, de fato houve a intenção deliberada de se afastar o princípio da fé

pública registral, com o acolhimento da tese de Soriano Neto e da jurisprudência

consolidada sobre o tema314.

Assunto que ficou por décadas afastado de sérias discussões acadêmicas

não progride, para no tempo. Aceitam-se as coisas como elas parecem ser. Assim, é

natural que a doutrina nacional posterior ao Código Civil de 2002 tenha mantido a

posição absolutamente contrária ao princípio da fé pública registral.

Nesse diapasão, Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald afirmam que

“Os vícios originários do título são insanáveis e transmitem-se junto à cadeia de

adquirentes”, sendo indiferente qualquer alegação de boa-fé315. Apesar de esposar o

mesmo entendimento, Flávio Tartuce é crítico ao art. 1.247 do Código Civil e

sustenta que “o comando deveria fazer concessões à boa-fé de terceiros e à teoria

da aparência, especialmente pelo fato de a atual codificação privada ter a eticidade

como um dos seus princípios”316. Fala-se em princípios, mas atém-se unicamente às

regras; sem dispositivo legal expresso que a estabeleça, não se recepciona a fé

pública registral.

Também adotam posicionamento contrário à fé pública registral, entre outros,

César Fiuza317, Francisco Eduardo Loureiro318, Álvaro Villaça Azevedo319, Sílvio de

314 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p.

253. 315 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Reais. 11. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo:

Atlas, 2015. (Curso de Direito Civil, 5). p. 308-309. 316 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Método, 2014. p.

953-954. 317 FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p.

989. 318 LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: PELUZO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado: doutrina

e jurisprudência: Lei 10.406, de 10.01.2002: contém o Código Civil de 1916. 5. ed. rev. e atual. Barueri, SP: Manole, 2011. p. 1.147-1.634. p. 1.256.

319 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito das Coisas. São Paulo: Atlas, 2014. (Coleção Direito Civil). p. 54.

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Salvo Venosa320, Maria Helena Diniz321, Marco Aurelio S. Viana322, Melhim Namem

Chalhub323, Marcelo Augusto Santana de Melo324, Eduardo Pacheco Ribeiro de

Souza325 e Eduardo Agostinho Arruda Augusto326.

A relatividade dos efeitos do registro, independentemente da boa-fé do

adquirente ou da onerosidade de seu negócio, é o entendimento que continuou

sendo aplicado pelos tribunais brasileiros. A título exemplificativo, transcreve-se a

seguir ementa exarada pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso

especial:

CIVIL E PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA. REIVINDICATÓRIA. PROCURAÇÃO FALSA. NULIDADE ABSOLUTA. VÍCIO QUE SE TRANSMITE AOS NEGÓCIOS SUCESSIVOS. ALEGAÇÃO DE BOA-FÉ. IMPOSSIBILIDADE. 1. É vedada a esta Corte apreciar violação a dispositivos constitucionais, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. 2. A falta de prequestionamento em relação aos arts. 5º, 47, 325, 467 e 475-N do CPC impede o conhecimento do recurso especial. Incidência da súmula 211/STJ. 3. Não há falar em ilegitimidade passiva para a causa, pois, conforme esclarecido pelo Tribunal de origem, os recorrentes são proprietários de parte remanescente do imóvel, e se obrigaram, em função das transferências sucessivas da área, a responder pela evicção em face dos adquirentes do terreno. 4. Tratando-se de uso de procuração falsa, de pessoa falecida, vício insanável que gera a nulidade absoluta do contrato de compra e venda firmado com o primeiro réu, as demais venda (sic) sucessivas também são nulas, pois o vício se transmite a todos os negócios subsequentes, independente da arguição de boa-fé dos terceiros. 5. Não houve violação ao art. 2º do CPC, pois o julgado recorrido não conferiu qualquer direito à viúva de Otaviano Malaquias da Silva, reconhecendo, apenas, que ela não participou do negócio nulo. 6. Recurso especial não conhecido.327 (grifo nosso)

Nessa esteira, o enunciado no 503, de autoria de Leonardo de Andrade

Mattietto, foi aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal,

320 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. (Coleção

Direito Civil, 5). p. 194-195. 321 DINIZ, Maria Helena. Sistemas de Registro de Imóveis. 5. ed. rev., aum. e atual. de acordo com

o novo Código Civil (Lei n. 10.406/02). São Paulo: Saraiva, 2004. p. 29. 322 VIANA, Marco Aurelio da Silva. Dos Direitos Reais: arts. 1.225 a 1.510. Rio de Janeiro: Forense,

2003. (Comentários ao Novo Código Civil, coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 16). p. 122-123. 323 CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2014. p. 101. 324 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função.

Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 115-117. 325 SOUZA, Eduardo Pacheco Ribeiro de. Noções fundamentais de Direito Registral e Notarial.

São Paulo: Saraiva, 2011. (Série Direito Registral e Notarial, coord. Sérgio Jacomino). p. 61-63. 326 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de Imóveis, retificação de registro e

georreferenciamento: fundamento e prática. São Paulo: Saraiva, 2013. (Série Direito Registral e Notarial). p. 242.

327 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 1.166.343/MS. Relator: Luis Felipe Salomão - Quarta Turma. Julgado em 13.04.2010.

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tendo o seguinte teor: “É relativa a presunção de propriedade decorrente do registro

imobiliário, ressalvado o sistema Torrens”. Em suas razões, o autor justifica-se

asseverando que:

O registro não é, no texto da lei, o único modo de aquisição da propriedade imobiliária. Basta pensar nas formas originárias, tais como a desapropriação e o usucapião, e mesmo em formas derivadas, como a sucessão, para constatar que a informação registrada não expressa verdade absoluta, devendo ceder diante da prova em contrário.328

Evidentemente, não se pode encerrar discussão tão profunda apenas com a

interpretação literal de um dispositivo do Código Civil, nem com a opinião externada

pelo autor da redação desse preceito legal, Ebert Chamoun. Carlos Maximiliano já

tecia importantes considerações sobre a reduzida importância da opinião de quem

elaborou uma lei a respeito de sua correta hermenêutica:

Houve exageros no apreço aos Trabalhos Preparatórios, a ponto de se lhes atribuir o valor de interpretação autêntica, o que era arrematado absurdo. Não parece defensável o equiparar a uma exegese oficial, compulsória, irretorquível, um processo espontâneo e menos eficiente e recomendável que o sistemático, o teleológico, o baseado na jurisprudência e o que se funda num elemento mais recente e muito seguro, o Direito Comparado.329

De fato, ver-se-á que a interpretação literal do mencionado dispositivo legal

não pode prosperar, ao menos na época presente, seja em razão de interpretação

sistemática, que leva em consideração princípios como os da tutela da aparência

jurídica e da eticidade, seja em razão de mais uma modificação de grande impacto,

no caso promovida pela Lei nº 13.097/2015330. O sistema registral brasileiro continua

sua lenta, mas consistente, marcha de evolução.

4.5 De 2015 à atualidade: a ainda não compreendida introdução do princípio da

fé pública registral pela Lei nº 13.097/2015

Conforme se analisará posteriormente, a Lei nº 13.097/2015 finalmente dotou

o sistema registral brasileiro do princípio da fé pública registral, embora o tenha feito

328 AGUIAR JR., Ruy Rosado de (Org.). V Jornada de Direito Civil. Brasília: CJF, 2012. p. 79, 256-

257. 329 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense,

2017. (Fora de Série). [E-book]. 330 BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para

o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores... Diário Oficial da União, 20 jan. 2015.

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com redação falha e com abundância de exceções. Representa indubitável evolução

do sistema registral, mas ainda merece reparos. Muito mais do que isso, tal lei

precisa ser conhecida e compreendida, pois os juristas, em sua grande maioria, têm-

na ignorado.

Antes de se estudar essa importante lei e seus efeitos, urge examinar os

fundamentos da fé pública registral, os quais já foram mencionados por diversas

vezes neste trabalho, mas sem maiores detalhes. Conhecendo-os, o intérprete fica

mais preparado para bem entender o sentido da lei e superar suas falhas, em

especial suas omissões.

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5 FÉ PÚBLICA REGISTRAL COMO DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DA TUTELA

DA APARÊNCIA

A esta altura, já foram expostas as principais características do sistema

registral imobiliário brasileiro e já se sabe que praticamente a unanimidade da

doutrina e jurisprudência do país rechaçam o princípio da fé pública registral.

Também se viu em que termos essa discussão foi travada: com base em dispositivo

legal que efetivamente preceitua que os registros produzem presunção relativa de

titularidade do direito, bem como em comparações com a legislação estrangeira,

especialmente da Alemanha, que realmente apontam no sentido da opinião

dominante.

No presente capítulo, procura-se evidenciar que, ao menos até a publicação

da tese de doutorado de Leonardo Brandelli331, nunca se havia atentado, no Brasil,

para as bases tecnicamente corretas em que a questão deve ser debatida. Busca-se

o óbvio: o fundamento do princípio da fé pública registral. A partir daí, investiga-se

se esse fundamento se encontra presente ou não no ordenamento jurídico brasileiro.

Tal fundamento, conforme se averiguará, nada mais é do que o princípio da

tutela da aparência jurídica, o qual precisa ser justificado. Verificar-se-á que tal

princípio é decorrência de uma cadeia de derivação principiológica, que parte do

Estado de Direito, passa pela segurança jurídica e pela proteção da confiança

legítima, até finalmente chegar à tutela da aparência jurídica.

Diante da referência a tantos princípios, é preciso fixar o referencial teórico

adotado para sua análise, que é a teoria desenvolvida por Robert Alexy. Considera-

se que sua concepção é bastante adequada para a solução racional dos conflitos

entre princípios que sempre se apresentam quando se trata da fé pública registral.

De fato, apenas se recorre a esse princípio em caso de conflito de interesses entre o

verdadeiro proprietário e o terceiro adquirente de boa-fé, os quais podem alegar

princípios diversos em defesa de suas posições jurídicas.

Antes disso, é preciso entender o que é a publicidade produzida pelo Registro

de Imóveis, principalmente porque é dela que decorre a aparência jurídica do bom

direito. Ressalte-se que em torno desse instituto se desencadearam discussões

equivocadas que redundaram na negação do princípio da fé pública registral; daí

que bem compreendê-lo é imperativo.

331 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

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Ao final, alcançar-se-á quase todo o arcabouço necessário para

racionalmente se concluir pela vigência do princípio da fé pública registral no Brasil.

O pouco que restar de objeções que se consideram relevantes será tema de análise

no derradeiro capítulo deste estudo.

5.1 Dos princípios jurídicos

É notório que diversas teorias já foram desenvolvidas pela doutrina sobre a

conceituação dos princípios jurídicos e seus efeitos. Para fins deste estudo, é

essencial que o critério adotado ofereça solução satisfatória para as situações de

colisão de princípios, tal como a que fatalmente ocorre entre a segurança jurídica

estática, que tutela o direito do verdadeiro dono do imóvel, e a segurança jurídica

dinâmica, que protege o terceiro de boa-fé que, em transação da qual aquele não

participou, adquire o mesmo bem a título oneroso. Por isso, na esteira de Leonardo

Brandelli332, adota-se o critério desenvolvido por Robert Alexy, que reúne os

princípios e as regras sob o gênero das normas333.

O doutrinador alemão ensina que as regras são normas que contêm

determinações cuja satisfação ou contrariedade é sempre integral, ou seja, ou se faz

por completo aquilo que é exigido e se cumpre a norma, ou se contraria a regra. O

juízo é de subsunção do fato à norma, não se admitindo seu respeito em maior ou

menor grau. Desse modo, diante de um conflito entre duas regras, há duas

possibilidades: ou uma regra expressamente prevê a aplicação excepcional de

outra, que prevalecerá no caso concreto (por exemplo, preceitos legais que trazem

cláusulas como “salvo disposição em sentido contrário”), ou uma das regras deverá

ser declarada inválida para a incidência da outra, o que pode ser feito por meio do

recurso a regras de hermenêutica, tais como as de que a regra posterior derroga a

anterior e a de que a norma especial derroga a geral334.

332 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

171-182. 333 Alexy explica que “Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve

ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos de dever-ser, ainda que de espécie muito diferente” (ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 87).

334 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 91-93.

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Já os princípios são mandamentos de otimização, isto é, são normas jurídicas

que determinam que algo deve ser atendido, na maior medida possível,

considerando-se as circunstâncias fáticas e jurídicas. Assim, os princípios podem

ser satisfeitos em graus diferentes, devendo-se tender sempre para a maior

satisfação possível da norma, o que vai depender de sua colisão com regras e

outros princípios335.

As colisões entre princípios não acarretam a invalidação de um deles, em

favor do outro. Muito pelo contrário, se dois princípios entram em colisão em

determinado caso concreto, isso significa que ambos são válidos. As características

da situação é que determinarão qual deles deverá ser aplicado em maior medida.

Nesse sentido, explica Alexy:

Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.336

Desse modo, sob certas condições, pertencentes ao mundo fático, o princípio

A tem precedência perante o princípio B. Sob outras condições, pode-se dar o

contrário: a prevalência do princípio B sobre o A. Quando se estabelece em que

condições um princípio se impõe perante outro, tais condições “constituem o suporte

fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem

precedência”. Essa é a chamada lei da colisão, a qual se constitui em uma das

bases da teoria de Alexy337.

A ideia de que na colisão entre dois princípios um deve ceder ao outro, mas

de maneira que ambos sejam aplicados na maior medida possível, é corroborada

por Karl Larenz. Para o autor, a medida da aplicação mais ou menos intensa de

335 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2015. p. 90. 336 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2015. p. 93-94. 337 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2015. p. 96-99.

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cada princípio “depende do escalão do bem jurídico em causa em cada caso e

requer, ademais, uma ponderação de bens”338.

A aplicação de um princípio ao caso concreto em detrimento de outro exige o

atendimento da máxima da proporcionalidade, que compreende três máximas

parciais: levando-se em conta as possibilidades fáticas, é preciso satisfazer as

máximas parciais da adequação e da necessidade (adoção do meio menos gravoso

para se solucionar o conflito); tendo-se em consideração as possibilidades jurídicas,

impõe-se a máxima da proporcionalidade em sentido estrito, que determina o

sopesamento dos bens jurídicos que se contrapõem no caso concreto, nos termos

da lei da colisão339.

Por fim, impõe-se apontar os passos que Alexy entende aplicáveis para a

apreciação da proporcionalidade em sentido estrito: a) comprova-se o “grau do não

cumprimento ou prejuízo de um princípio”; b) comprova-se a “importância do

cumprimento do princípio em sentido contrário”; c) comprova-se “se a importância do

cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não

cumprimento do outro”340.

Em suma, Robert Alexy estrutura sua teoria de forma a afastar discursos

ideológicos e abraçar a aplicação racional do Direito, a fim de que, sob as mesmas

condições e diante de um mesmo conflito de princípios, o raciocínio conduza sempre

à mesma conclusão.

5.2 Publicidade registral imobiliária

A posse, como exteriorização de uma situação fática, não deixa de ser um

meio de publicidade, considerado suficiente para a presunção relativa da

propriedade sobre bens móveis de pequeno valor. Porém, certamente não se pode

vislumbrar um tráfico jurídico intenso de imóveis e, até mesmo, de bens móveis de

maior valor, que se contente com tão frágil meio publicitário, que não permite se

saber se sobre o bem incidem ônus, se a posse é justa ou injusta, de boa ou má-fé,

entre outras circunstâncias. Com relação às transações envolvendo bens de maior

338 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa:

Calouste Gulbenkian, 1997. p. 676. 339 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.

São Paulo: Malheiros, 2015. p. 116-118. 340 ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. 4. ed. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 133.

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vulto, há de se ter certeza sobre a exata situação jurídica da coisa, o que se alcança,

com bastante sucesso, em sistemas de registros públicos bem estruturados.

Para a compreensão desse meio publicitário, mormente no que diz respeito a

imóveis, é necessário inicialmente estabelecer o que é a publicidade jurídica, seus

requisitos e efeitos. Avançando no estudo, tem-se que descobrir quais efeitos

decorrem da publicidade registral imobiliária, isto é, até que ponto esta confere

segurança jurídica a seus destinatários. Questão fulcral é verificar as relações entre

publicidade e o fenômeno da aparência jurídica, ou seja, se da publicidade decorre

uma aparência jurídica e as semelhanças e distinções entre esses dois institutos.

Com efeito, o exame da aparência jurídica é fundamental para os fins deste

trabalho, pois, como já se afirmou, é na tutela que o ordenamento jurídico confere a

esse instituto que se baseia o princípio da fé pública registral. Não há como assimilar

esse princípio sem um de seus alicerces: a publicidade do Registro de Imóveis.

5.2.1 Publicidade jurídica

Em sentido genérico, a publicidade é a atividade direcionada a tornar um fato

público, isto é, conhecido, notório. No Direito Privado, em algumas situações – como

é o caso da constituição de direitos reais sobre imóveis – é essencial que

determinados fatos jurídicos tornem-se pelo menos passíveis de serem conhecidos

por terceiros341, sob pena de não desencadearem a produção de efeitos jurídicos.

Assim, a publicidade jurídica implica acessibilidade da informação por quem tiver

algum interesse, não sendo exigível seu efetivo conhecimento. Com efeito, a simples

cognoscibilidade já impossibilita que terceiros aleguem ignorância342.

O objeto da publicidade registral são as situações jurídicas343, que

correspondem a:

341 DIÉZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In:

_____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III. p. 326. 342 Focado nas situações jurídicas reais e na publicidade decorrente do Registro Imobiliário, Jose

Manuel Garcia Garcia, ao tratar da cognoscibilidade, aduz que “No se puede alegar ignorancia, aunque el conocimiento no haya tenido lugar, ya que existe, en todo caso, la posibilidad de conocer el contenido del Registro. Esta cognoscibilidad o posibilidad de conocer se dirige fundamentalmente a terceros. Esto se explica porque las situaciones jurídicas objeto de publicidad son situaciones de transcendencia real, es decir, erga omnes, y si esto es así, ha de existir esa posibilidad de conocimiento por parte de todos aquellos a quienes puede afectar el derecho real” (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I. p. 44).

343 PAU PEDRÓN, Antonio. La publicidad registral. Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2001. p. 269-270.

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[...] conjuntos de direitos ou de deveres que se atribuem a determinados sujeitos, em virtude das circunstâncias em que eles se encontram ou das atividades que eles exercem. Surgem como efeitos de fatos ou atos jurídicos, e realizam-se como possibilidade de ser, pretender ou fazer algo, de maneira garantida, nos limites atributivos das regras de direito. (grifo do autor).344

Desse conceito, que demonstra a complexidade das situações jurídicas, bem

como sua origem (fatos jurídicos lato sensu), percebe-se que, na realidade, o objeto

imediato da publicidade é o fato jurídico (por exemplo, a compra e venda de imóvel),

do qual decorre, mediatamente, a situação jurídica (no caso, a propriedade

imobiliária do adquirente). O que realmente interessa aos terceiros é ter

conhecimento da situação jurídica345.

Não sem razão refere-se aqui aos terceiros, porquanto a publicidade jurídica

somente se justifica naquelas circunstâncias em que há potencialidade de

interferência na esfera jurídica de outras pessoas, determinadas ou determináveis,

que não participaram do ato a que se dá cognoscibilidade. Esse é o caso dos

direitos reais sobre imóveis, cuja característica da absolutividade implica o dever de

respeito por todos, o que, a seu turno, acarreta a necessidade de que terceiros

possam conhecer a situação jurídica dos imóveis. Não se pode respeitar direitos que

não se pode conhecer.

É nesse sentido que se diz que a publicidade atua no nível da eficácia, e não

nos planos da existência e da validade, ou seja, tal instituto jurídico é vocacionado a

acarretar a produção de efeitos. Seu efeito mínimo é o declarativo, isto é, o de

implicar a oponibilidade erga omnes da situação jurídica tornada pública346. De fato,

um direito real ou mesmo um direito obrigacional destinado a ser oponível contra

todos, quando não é objeto da publicidade adequada, tem eficácia apenas inter

partes, ficando na dependência dessa publicidade para atingir terceiros.

A oponibilidade possui como sujeito ativo quem promove a publicação e,

como sujeito passivo, qualquer terceiro (incluso o terceiro adquirente de boa-fé de

344 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 8. ed. rev., mod. e aum. Rio de Janeiro: Renovar,

2014. p. 236. 345 Nesse sentido, leciona José Alberto González que, “Rigorosamente, o que a terceiros interessa

conhecer é a situação jurídica (de certa pessoa ou de certo bem, grosso modo). Todavia, como tal situação tem normalmente um conteúdo muito complexo quase não se concebe a existência de meios potencialmente capazes de proporcionar um tão amplo conhecimento. Por isso, o que regularmente se dá a conhecer são os factos a partir dos quais se inferem certas situações” (GONZÁLEZ, José Alberto. Direitos Reais e Direito Registral Imobiliário. 4. ed. Lisboa: Quid Juris, 2009. p. 127, grifo do autor).

346 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 86.

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um imóvel que promove o registro de seu título, com relação a ato de registro

anterior, no qual ele não consta como uma das partes). O reverso da oponibilidade é

a invocabilidade, que nada mais é do que o efeito da publicidade consistente na

possibilidade de qualquer terceiro se utilizar de situação jurídica publicizada contra

as partes a esta relacionadas347.

Outros efeitos podem decorrer da publicidade jurídica, conforme o caso.

Assim, dependendo do ordenamento jurídico, o registro imobiliário pode ser

constitutivo348, como ocorre no Brasil, e até saneador de quaisquer vícios, como no

sistema do registro Torrens.

A publicidade jurídica é um ônus que se impõe àquele que deseja obter seus

efeitos, especialmente o da oponibilidade erga omnes. É verdade que, na prática,

terceiros de boa-fé podem vir a não ter conhecimento da situação jurídica

publicizada e sofrer prejuízos. Realmente, a publicidade produz presunção absoluta

de conhecimento, não admitindo prova em contrário. Nessa esteira, Carlos Ferreira

de Almeida, referindo-se ao registro imobiliário, aduz que:

[...] constituindo um pesado ónus para o titular da situação a registar, redundaria, ou poderia redundar, em grave injustiça, se, depois de cumprido esse ónus, o titular da situação não estivesse ainda protegido contra qualquer eventualidade e pudesse surgir alguém a pretender que o facto registado lhe fosse inoponível, por não ter tido ele um conhecimento real.349

Nesse contexto, vê-se que a cognoscibilidade gerada pela publicidade

desempenha relevante papel na efetivação do princípio da segurança jurídica,

atuando, no mínimo, em sua dimensão estática, mas podendo, de acordo com o

ordenamento jurídico, alcançar também seu aspecto dinâmico.

A busca por meios efetivos de publicidade levou à criação e proliferação dos

registros públicos por todo o mundo ao longo dos últimos séculos. Além de terem a

virtude de armazenar de forma organizada informações sobre as mais diversas

347 PAU PEDRÓN, Antonio. La publicidad registral. Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2001. p.

333-334. 348 Nos casos em que o registro é constitutivo, assevera Luis Diéz-Picazo que o registro é a causa,

ou, ao menos, a concausa do efeito júri-real (DIÉZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 495).

349 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Publicidade e teoria dos registos. Coimbra: Almedina, 1966. p. 254. No mesmo sentido, Gabriel de Reina Tartière afirma que advém da publicidade jurídica registral o que chama de princípio da cognoscibilidade legal, do qual decorre que “las consecuencias jurídicas derivadas de la publicidad se producen con independencia de que se dé o no ese conocimiento efectivo” (TARTIÈRE, Gabriel de Reina. Principios registrales: estudio del Derecho Registral Inmobiliario argentino. Buenos Aires: Heliasta, 2009. p. 49).

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situações jurídicas e de as conservar com segurança, esses órgãos têm a vantagem

de oferecer fácil acesso e consulta às publicações350.

Realmente, os registros públicos constituem o que há de mais avançado em

termos de meios de publicidade jurídica, tendo tais órgãos se modernizado,

acompanhando a tecnologia disponível. É assim que, atualmente, uma pessoa pode

acessar uma central eletrônica de Registro de Imóveis no Brasil351, a partir de

qualquer dispositivo com acesso à internet no mundo, e, por exemplo,

instantaneamente fazer buscas e visualizar matrículas de imóveis, solicitar certidões

e até prenotar títulos assinados digitalmente352.

5.2.2 Publicidade do Registro de Imóveis

Jose Manuel Garcia Garcia fornece um conceito tecnicamente perfeito sobre

publicidade registral imobiliária: “Publicidade registral é a exteriorização contínua e

organizada das situações jurídicas de transcendência real para produzir

cognoscibilidade geral erga omnes e com certos efeitos jurídicos substantivos sobre

a situação publicada” (tradução nossa)353.

Quando se remete à “exteriorização” das situações jurídicas, contrapõe-se a

publicidade à clandestinidade, isto é, à transmissão e constituição de direitos reais

sobre imóveis sem qualquer forma de se gerar cognoscibilidade354. A título de

exemplo, como visto anteriormente, foi somente a partir da Lei Nabuco que passou a

350 DIÉZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In:

_____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 328. 351 Um bom exemplo é a Central Eletrônica de Registro de Imóveis do Estado de Minas Gerais (CRI-

MG), mantida pelo Colégio Registral Imobiliário do Estado de Minas Gerais (CORI-MG). Existem mais bons exemplos nesse e em outros Estados da federação, inclusive em outras especialidades das Notas e Registros Públicos.

352 Assim, continua aplicável a lição de Carlos Ferreira de Almeida de que “Modernos são os registros públicos na sua forma actual, que podemos considerar como o modelo mais perfeito de publicidade, o único que permite alcançar os objectivos em vista da protecção de terceiros e segurança das relações jurídicas” (ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Publicidade e teoria dos registos. Coimbra: Almedina, 1966. p. 52).

353 No original: “Publicidad registral es la exteriorización de la voluntad continuada y organizada de situaciones jurídicas de transcendencia real para producir cognoscibilidad general ‘erga omnes’ y con ciertos efectos jurídicos sustantivos sobre la situación publicada” (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 41).

354 É importante não confundir publicidade com forma, ainda que esta implique algum modo de exteriorização da vontade das partes, por meio de instrumento particular ou público. A forma (por exemplo, a escritura pública) diz respeito às próprias partes do negócio, podendo ser até mesmo essencial para a validade deste. Contudo, a forma em nada se relaciona com a necessidade de se gerar cognoscibilidade geral de uma situação jurídica, o que é função da publicidade, que, ao alcançar tal intento, afeta a esfera jurídica de terceiros (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 41-42).

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haver algum tipo de publicidade registral imobiliária mais ampla no Brasil, ainda que

com muitos defeitos, como a impossibilidade de transcrição de títulos judiciais e de

transmissão causa mortis. Antes dessa lei, o modo de transmissão era a tradição, ou

seja, a publicidade existente era a possessória, absolutamente insuficiente para

gerar segurança jurídica.

A exteriorização decorrente da publicidade registral é contínua e organizada,

isto é, destina-se a recepcionar todas as alterações na situação jurídica do imóvel ao

longo do tempo, de forma ordenada, em livros destinados a esse fim específico.

Assim, uma matrícula de imóvel deve conter a descrição do imóvel, todas as

alterações em sua titularidade sistematizadas de acordo com o princípio da

continuidade, da mesma maneira como as constituições e cancelamentos de ônus

reais, averbações e cancelamentos de restrições judiciais, tais como penhoras e

indisponibilidades, atualizações da descrição do imóvel, entre outras. A cada

momento, deve haver uma correspondência entre a situação jurídica do imóvel e a

realidade fática.

Como qualquer publicidade jurídica, a alcançada pelo Registro de Imóveis

gera cognoscibilidade geral. Destinando-se esse órgão publicitário prioritariamente à

publicidade de direitos reais sobre imóveis, o registro de títulos em que direitos reais

são transmitidos ou constituídos é que lhes atribui transcendência real, isto é, até

então tais títulos produziam efeitos inter partes, passando, a partir de sua

publicidade, a produzir efeitos erga omnes. Com efeito, em um sistema de registro

constitutivo, como o brasileiro, é somente com o registro (lato sensu) que surge,

transmite-se ou mesmo se extingue o direito real (à exceção, evidentemente, dos

casos em que o registro é declaratório, como nos casos de sucessão causa mortis e

usucapião).

O Registro de Imóveis surgiu para atender às necessidades de segurança

jurídica em um mundo ávido por incrementar as transações com imóveis,

especialmente as de transferência e concessão de crédito com garantia real, tudo

isso em um contexto marcado pela crescente impessoalidade das relações jurídicas.

Trata-se, assim, de órgão propulsor do desenvolvimento econômico, que permitiu

até mesmo a criação de direitos opacos sobre imóveis, isto é, não dotados de

nenhuma outra forma de exteriorização, como é o caso da alienação fiduciária em

garantia, de incontestável importância para o incremento do crédito imobiliário no

Brasil. Nesse sentido, Luis Diéz-Picazo afirma que “Toda a evolução histórica da

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publicidade imobiliária é uma luta por alcançar a segurança do tráfico e por superar

o segredo ou o caráter privado dos atos e negócios relativos a bens imóveis, até

alcançar uma publicidade legitimadora ou constitutiva” (tradução nossa)355.

O Registro Imobiliário no Brasil produz o efeito básico acima referido, ou seja,

o declaratório (oponibilidade e invocabilidade), decorrente de presunção absoluta de

conhecimento erga omnes do conteúdo do registro, assim como o efeito constitutivo,

mas não o efeito saneador, existente apenas no regime do registro Torrens, de uso

absolutamente excepcional. Por necessidades de garantia de imparcialidade e de

redução de custos de transação, a publicidade imobiliária deve ser promovida no

Serviço Registral competente, isto é, a cuja circunscrição imobiliária pertença o

imóvel, sendo nulo ato porventura praticado por Oficial incompetente356.

O acesso às informações do Registro de Imóveis dá-se pela expedição de

certidões dos assentos registrais e de documentos arquivados, como instrumentos

particulares, que subsidiaram a lavratura de algum ato de registro ou averbação. Em

alguns países, como a Espanha, a obtenção da certidão é condicionada à

demonstração de legítimo interesse357, situação essa que não ocorre no Brasil, onde

qualquer pessoa pode ter acesso ao acervo registral, sendo defeso ao Oficial de

Registro questionar o porquê do interesse em determinada informação registral358.

355 No original: “Toda la evolución histórica de la publicidad inmobiliaria es una lucha por alcanzar la

seguridad del tráfico y por superar el secreto o el carácter privado de los actos o negocios relativos a bienes inmuebles hasta alcanzar una publicidad legitimadora o constitutiva” (DIÉZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 329).

356 Leonardo Brandelli explica que “Há necessidade de o registro imobiliário consistir em um monopólio territorial, para que possa cumprir seus intentos. Em primeiro lugar, e principalmente, o mister de qualificação registral, isto é, de análise jurídica dos títulos submetidos a registros, deve ser imparcial, ao mesmo tempo que afeta mesmo a pessoas que não participaram do ato. Isso porque a publicidade opera efeitos erga omnes, exigindo, tal qual na Magistratura, uma independência funcional que não é compatível com a concorrência mercadológica. [...] Saliente-se que, ademais, a publicidade somente consegue ser eficiente e barata quando há referido monopólio. Imagine-se alguém que pretenda adquirir certo imóvel e precise saber quem é o seu proprietário, bem como se há alguma hipoteca sobre ele. Caso houvesse livre escolha de registro, haveria necessidade de tirar uma certidão em cada registro imobiliário do território nacional, ao passo que, em havendo atribuição territorial específica, basta tirar uma certidão no registro correto, qual seja, o que tenha atribuição jurídica para registrar os atos referentes àquele imóvel objetivado” (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 107).

357 Prescreve o artigo 221 da Lei Hipotecária espanhola: “Los Registros serán públicos para quienes tengan interés conocido en averiguar el estado de los bienes inmuebles o derechos reales inscritos. El interés se presumirá en toda autoridad, empleado o funcionario público que actúe por razón de su oficio o cargo” (ESPANHA: Decreto de 8 de febrero de 1946 por el que se aprueba la nueva redacción oficial de la Ley Hipotecaria. Boletín Oficial del Estado, n. 58, de 27/02/1946.).

358 Com efeito, dispõe o caput do art. 17 da Lei de Registros Públicos que “Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido” (BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e

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5.2.3 Publicidade registral imobiliária e geração de aparência jurídica

Entre os efeitos gerais da publicidade registral imobiliária, não se arrola a

proteção do terceiro de boa-fé que, com base em informação constante de registro

viciado, realiza ato de aquisição de imóvel. Ressalva-se apenas a possibilidade –

sempre dependente de lei expressa – no sentido de se estabelecer presunção iuris

et de iure ao registro, como ocorre no sistema Torrens, em que o registro possui

efeito saneador e, efetivamente, uma vez publicizado, tem o condão de tutelar os

interesses de terceiros, estejam estes ou não de boa-fé. Isso ocorre porque nesse

sistema o registro, ainda que viciado, transforma-se em realidade jurídica, até

mesmo entre as partes de um negócio inscrito.

Como já se afirmou várias vezes neste estudo, em regra, a proteção do

terceiro adquirente de boa-fé, decorrente na fé pública registral, tem como

fundamento a tutela da aparência jurídica. Sem dúvida, essa aparência surge a partir

da publicidade dada ao registro por órgão oficial do Estado, após forte qualificação

registral empreendida por profissional do direito especializado. Porém, tecnicamente,

é completamente diferente dizer que o fundamento da fé pública registral seja a

publicidade ou a aparência.

5.2.3.1 Da aparência jurídica

A aparência jurídica caracteriza-se pela apreensão, por alguém, de uma

situação jurídica inexistente, a partir de fatos reais que se lhe apresentam de forma

objetiva. O que parece ser, juridicamente não é; o que não parece ser, juridicamente

é. Não se trata de simples engano cometido por uma pessoa, mas de uma situação

fática que realmente se apresente como real a terceiros em geral, embora não o

seja, sendo que a situação jurídica verdadeira permanece oculta359. A situação

dá outras providências. Diário Oficial da União, 31 dez. 1973.). Acrescenta-se que existe uma hipótese em que a publicidade registral também pode dar-se por acesso direto ao acervo do Serviço de Registro Imobiliário, qual seja, a de consulta aos documentos que ensejaram o registro de loteamento.

359 Nesse sentido, Luiz Fabiano Corrêa aduz que “O primeiro requisito para a atribuição de efeitos jurídicos à aparência de direito é existir um fato ou um conjunto de fatos que objetivamente faça parecer existente um direito subjetivo que na verdade não existe. Assim, alguém deve parecer que é titular de um direito ou que tem o poder de dispor sobre um direito (seu ou alheio), sem que isso deveras aconteça. Essa aparência, entretanto, deve ser o reflexo de fatos objetivos, externamente perceptíveis. Não pode ser pura imaginação ou subjetividade de quem a invoca para buscar a proteção da ordem jurídica (CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria

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aparente leva alguém, que nela confiou legitimamente, a estabelecer relação jurídica

com o falso titular ou o falso representante do titular de um direito subjetivo, gerando

conflito entre o que deve prevalecer: o direito de quem foi enganado ou o do

verdadeiro titular.

A aparência jurídica pode ser bem compreendida a partir da lição de

Leonardo Brandelli, que lista os requisitos básicos de sua caracterização:

Trata-se, a aparência jurídica, então, de uma situação que (1) se mostra, se evidencia, como (2) juridicamente hígida, como sendo existente, válida e eficaz, do ponto de vista jurídico, mas que em verdade (3) contém um vício de existência, validade ou eficácia, de tal modo que (4) ao terceiro parece legitimamente estar tratando com o titular de certa situação jurídica, quando em verdade não está, ou porque a situação jurídica não existe, ou é inválida ou ineficaz ou, ainda, porque aquele que aparenta ser o seu titular em verdade não o é.360

A grande consequência da aplicação da teoria da aparência jurídica é a de

que, sob determinadas condições, o ordenamento jurídico considera a situação

aparente como se fosse real361. Privilegia-se, assim, a posição do terceiro, em

detrimento do verdadeiro titular do direito subjetivo. Contudo, este não fica

totalmente prejudicado, na medida em que lhe cabe ajuizar ação de enriquecimento

sem causa em face do titular aparente, de forma que este lhe restitua o valor

auferido na transação com o terceiro de boa-fé362.

Convertendo-se a situação aparente em realidade jurídica, não se confunde o

instituto da aparência jurídica com a ficção, pois o fictício é incompatível com a

verdade. Também não se identifica com o erro, pois este é fenômeno subjetivo, que

alcança apenas quem nele incorre, ao passo que a aparência jurídica é objetiva, isto

é, a situação jurídica aparente é constatada como hígida por qualquer homem

médio.

patrimonial: esboço de uma teoria geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 286).

360 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 128.

361 KÜMPEL, Vitor Frederico. A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro: Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 2004. 391 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Direito Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 36.

362 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 263.

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5.2.3.2 Publicidade e aparência: semelhanças, diferenças e interconexão

Publicidade e aparência assemelham-se apenas em sua finalidade, que é a

de proteger terceiros que não participaram das situações jurídicas a que se referem

(a publicizada e a aparente, respectivamente). Contudo, na publicidade normalmente

há coincidência entre a situação jurídica publicizada e a real, ao passo que na

aparência a situação jurídica aparente não corresponde à realidade363.

A geração de situações de aparência jurídica pela publicidade é amplamente

aceita na doutrina. Vitor Frederico Kümpel afirma que a publicidade, além de

pressuposto, é “princípio informador de todas as situações protegidas pela teoria da

aparência, já que só através da publicidade é que se pode aferir boa-fé”364. Mauricio

Jorge Pereira da Mota ressalta a importância dos sistemas de publicidade dos atos

jurídicos e aduz que, “Quando a lei prescreve específicos meios de publicidade para

se fixar a existência e o conteúdo de uma situação jurídica, se está diante de uma

circunstância unívoca para a configuração da aparência de direito”365. Na doutrina

estrangeira, Luis Diéz-Picazo assevera que, em matéria de direitos reais, há uma

ligação muito estreita entre aparência e meios de publicidade, uma vez que “todo

meio de publicidade cria uma aparência”366, com o que concorda Marcelo Augusto

Santana de Melo367. Em idêntico sentido, Jose Manuel Garcia Garcia reforça o papel

da publicidade registral imobiliária, apontando que esse meio de publicidade não

gera “mera aparência”, mas representa, por força de lei, a própria “realidade

jurídica”368.

Nesse mesmo sentido, Luiz Fabiano Corrêa exemplifica situação de

aparência jurídica ocasionada por vício em assento de registro imobiliário:

Às vezes essa aparência decorre de uma investidura formal, correspondente à forma de publicidade de um direito, sem que exista

363 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

115-117. 364 KÜMPEL, Vitor Frederico. A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro: Lei 10.406, de

10 de janeiro de 2002. 2004. 391 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Direito Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004, p. 103.

365 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 235.

366 DIÉZ-PICAZO, Luis. Las relaciones jurídico-reales. El Registro de la Propiedad. La posesión. In: _____. Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial. 5. ed. Pamplona: Civitas, 2008. v. III, p. 336.

367 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 25.

368 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1988. t. I, p. 42.

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contudo esse mesmo direito, na sua realidade material. Pode suceder, por exemplo, que o registro imobiliário, de que resulta a presunção de titularidade do direito registrado (Código Civil, art. 859), não exprima a verdade, hipótese que a própria lei expressamente admite possa ocorrer (Código Civil, artigo 860; Lei dos Registros Públicos, artigo 212). Nesse caso é a manifestação externa do direito (Rechtserscheinung), destoante do seu real conteúdo, que produz a aparência do direito.369

O Registro de Imóveis, ao dar visibilidade a determinada situação jurídica,

acarreta, como efeito do instituto da publicidade, oponibilidade erga omnes,

produzindo presunção absoluta de conhecimento do registro. Contudo, não é a essa

presunção que se referia o art. 859 do Código Civil de 1916, ao dispor que se

presume pertencer o direito real à pessoa em cujo nome se acha inscrito (atuais art.

1.245, § 1o, do Código Civil de 2002 e art. 252 da Lei de Registros Públicos). A

segunda presunção também decorre da publicidade (o registro é a verdade oficial;

logo, uma vez publicado, presume-se verdadeiro), mas, como analisado

anteriormente, quando do exame do art. 859 do Código Civil de 1916, trata-se de

presunção iuris tantum.

Consoante Leonardo Brandelli, garantindo-se ao titular inscrito que ele não

poderá ser privado de seu direito sem sua participação, a presunção legal iuris

tantum que o protege e decorre diretamente da publicidade “está a serviço da

estática dos direitos subjetivos”. Diversamente, a proteção do terceiro adquirente a

non domino, que legitimamente confiou na aparência decorrente da publicidade

registral, não provém diretamente do instituto da publicidade (repita-se: ressalvada a

hipótese de publicidade com efeito saneador), mas da tutela da aparência jurídica,

instituto jurídico concebido para a tutela do tráfico (campo da dinâmica dos direitos

subjetivos). Nesse sentido, o autor esclarece:

Em que pese ser essa assertiva a geralmente propalada pela doutrina, em verdade não há, nesse aspecto dinâmico, uma atuação da publicidade, mas da aparência diante da publicidade, e nisso tem sido distorcida a discussão a respeito da aplicação da proteção do terceiro registral de boa-fé no Direito brasileiro. Eis a razão do entendimento, em nosso entender equivocado, que se tem tido a respeito do tema, tanto jurisprudencial quanto doutrinariamente.

O princípio registral da fé pública, isto é, a proteção ao terceiro adquirente de boa-fé, que confiou na informação publicizada no Registro Imobiliário, não decorre do instituto da publicidade naqueles sistemas jurídicos, como o brasileiro, nos quais a eficácia da publicidade seja juris tantum. Decorre,

369 CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria

geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989, p. 6-7.

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sim, da tutela da aparência jurídica. E não perceber essa diferença faz que fique desfocada a discussão da questão.370

De fato, como visto anteriormente, na única época em que se discutiu

seriamente a vigência ou não do princípio da fé pública registral no Brasil (décadas

de 1920 a 1940), os focos eram sempre os efeitos do referido art. 859 do Código

Civil de 1916 e a comparação das normas do Direito brasileiro com as do alemão.

Nesse contexto restrito, a conclusão a que se chegou estava correta: do art. 859

decorria apenas o princípio da legitimação registral (também chamado de princípio

da presunção ou força probante) e não havia no Código Civil de 1916 dispositivo

semelhante ao § 892 do BGB, que expressamente prevê a fé pública registral na

Alemanha. Toda a escassa discussão sobre o tema seguiu essa mesma trilha até o

início do século XXI.

De qualquer modo, o belo e acalorado debate travado naquela época por

doutrinadores de quilate, abundantemente citados no capítulo 4 deste estudo, como

Lysippo Garcia, Philadelpho Azevedo, Francisco Bertino de Almeida Prado e Soriano

Neto, ressoa até hoje, servindo de inspiração para novas discussões. Procura-se

aprender com equívocos dos mestres do passado e trazer o mesmo assunto à baila

sob novas bases. A ciência jurídica evoluiu bastante desde então e passou a

oferecer explicações tecnicamente mais precisas sobre o fundamento do princípio

da fé pública registral. É esse o ponto de partida para novos debates.

5.3 Proteção da aparência jurídica

Teorias formalistas do Direito identificam-no com o próprio texto legal, que

seria completo e apto a resolver todos os casos concretos. A atividade jurisdicional

reduz-se, assim, à mera aplicação silogista da lei à situação com que se depara, não

se dando margem a que o juiz exerça qualquer atividade criativa. É esse o Direito

típico do liberalismo moderno, que demonstrava excessiva preocupação com a

garantia dos direitos subjetivos e da autonomia privada do indivíduo. Nesse

contexto, evidentemente se dá muito mais importância à estática dos direitos, isto é,

ao interesse do legítimo titular de um direito, que não pode perdê-lo sem sua

intervenção, excetuadas expressas disposições legais em contrário – como são os

370 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

122-123.

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casos de alienação por herdeiro aparente e de pagamento indevido de imóvel, já

previstos no ordenamento jurídico brasileiro ao menos desde o Código Civil de

1916371.

Em resposta a esse tipo de pensamento, surgem doutrinas antiformalistas,

que negam a completude do direito positivado e atribuem ao intérprete uma função

criadora de direito, porquanto sua atuação exorbita a lógica formal e atinge o ponto

em que a resolução de conflitos exige também a tomada de decisões com base em

outros elementos, como o alcance de determinadas finalidades consideradas

relevantes. Passa-se a dar mais atenção aos interesses coletivos do que aos

individuais, sendo essa a conjuntura em que se reconhece a tutela da aparência

jurídica, a qual protege o tráfico jurídico, estando relacionada muito mais à dinâmica

dos direitos372.

Nesse mesmo sentido, Mauricio Jorge Pereira da Mota, a partir da

consideração de ser o Direito um “processo de interrogação das coisas”, afirma que

a aparência jurídica atende à necessidade de ordem social de, ao mesmo tempo,

conferir segurança às operações jurídicas e proteger os legítimos interesses de

quem procede corretamente373.

A tutela da aparência jurídica é uma necessidade relativamente recente,

porquanto deriva da massificação e consequente impessoalidade das relações

jurídicas, que têm se tornado cada vez mais complexas e aceleradas374. Essa

realidade faz com que situações de aparência de direito sejam cada vez mais

comuns, por mais eficientes que sejam os meios de publicidade.

Considerado o Registro Imobiliário como parâmetro, por mais diligente que

seja o Oficial de Registro na qualificação de forma e fundo do título, seu

conhecimento acerca da realidade baseia-se apenas nos documentos que lhe são

apresentados, podendo facilmente haver descompasso entre o registro e a realidade

371 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 95-96. 372 SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé.

Coimbra: Almedina, 2010. p. 95-96. 373 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São

Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 262. 374 Nesse sentido, após discorrer sobre as necessidades do crescente tráfico jurídico, Álvaro

Malheiros assevera que “A aparência do Direito viria, assim, inegavelmente corresponder a uma necessidade jurídico-econômico-social, e seria, na verdade, a expressão de um ideal de Justiça e a consagração de um princípio de eqüidade, consubstanciados na tentativa de conciliação dos ideais de segurança e de certeza no conflito de interesses que o Direito visa a ordenar” (MALHEIROS, Álvaro. Aparência de direito. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, p. 41-77, out./dez. 1978. p. 41-42, grifos do autor).

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jurídica (exemplo frequente é do registro de transmissão de frações ideais sobre

imóveis, que teoricamente consistem partes de um condomínio pro indiviso, quando,

na realidade, o que se transmite são áreas determinadas, perfeitamente delimitadas,

por vezes até com edificações). Deve ser considerada também a hipótese de

falibilidade na qualificação registral, decorrente das próprias limitações de qualquer

ser humano, que redundarão em publicidade de situação jurídica aparentemente

perfeita, mas que, na realidade, possui algum vício (por exemplo, o título é nulo e,

consequentemente, também o é o respectivo registro).

Na contemporaneidade, a recusa de proteção à aparência de direito

inviabilizaria o comércio jurídico na intensidade que a vida moderna exige, na

medida em que obrigaria os interessados a tomar cautelas de tal envergadura que

haveria grande aumento nos custos de transação, decorrente principalmente de

medidas necessárias para suprir as assimetrias informacionais. Esse é o caso da

pessoa que negocia a aquisição de determinado imóvel e, em busca de segurança,

vê-se obrigada a analisar todos os títulos da cadeia dominial, até o limite do prazo

da usucapião extraordinária, e a obter diversas informações que não constam do

registro, tais quais certidões de distribuidores judiciais e negativas de débitos

tributários. Esse exemplo é, na verdade, o arquétipo do tipo de situação jurídica que

se discute neste trabalho: a doutrina e a jurisprudência atuais, em quase

unanimidade, negam a proteção à aparência de direito, pois não admitem que, em

determinadas condições, possa aplicar-se o princípio da fé pública registral. Sempre

se protege o verdadeiro titular do direito, em posição que representa um resquício

injustificável de apego às superadas teorias formalistas do Direito375.

5.3.1 Fundamentos da tutela da aparência jurídica

Naturalmente, existem as mais diversas teses que buscam fundamentar a

proteção da aparência jurídica. Dito de maneira propositadamente simplória –

porquanto o aprofundamento no tema foge ao escopo deste estudo –, podem-se

apontar, de acordo com Leonardo Brandelli, como principais escolas explicativas a

francesa, que se baseia no conceito de erro comum; a alemã, que relaciona a

aparência a um princípio geral da publicidade; e a italiana, que reconhece a tutela da

375 Faz-se essa afirmação, no presente, apesar de já estar em vigor a Lei nº 13.097/2015, porque,

como se noticia neste estudo, essa lei, que previu expressamente a fé pública registral no Brasil, ainda não é de conhecimento geral e, muito menos, tem sido bem compreendida.

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aparência diante de qualquer situação fática que, objetivamente, seria capaz de

induzir em erro o homem médio376. Referindo-se a outras correntes doutrinárias,

Mauricio Jorge Pereira da Mota peremptoriamente afasta a aplicabilidade de teorias

que se baseiam na culpa, na boa-fé subjetiva (isoladamente), na simulação ou no

risco, admitindo como correta a fundamentação na confiança377.

Apenas se observa, pela recorrência em que são apontados como

fundamentos da tutela da aparência jurídica, que esta não se justifica com base na

culpa de quem cria a aparência ou exclusivamente na boa-fé subjetiva. No primeiro

caso, nem sempre a aparência é criada por ação ou omissão culposa do verdadeiro

titular do direito. É possível, por exemplo, que este tenha diligentemente

providenciado o registro de seu título de aquisição de imóvel, mas que o Oficial de

Registro tenha cometido algum equívoco na prática do ato registral, tornando-o

viciado. Da publicidade desse registro, como exposto, decorre uma aparência de

direito378. No segundo caso, rechaça-se a boa-fé subjetiva como argumento único,

pois inexiste ontologicamente por que se valorizar mais a boa-fé do adquirente, que

confiou na aparência do direito, do que a boa-fé do legítimo titular do direito, pois,

como se acaba de analisar, nem sempre haverá culpa do verdadeiro titular379.

Estando a tutela da aparência diretamente relacionada ao resguardo do

tráfico jurídico, ou seja, a interesses coletivos, que se sobrepõem a interesses

individuais, seu fundamento somente pode ser de ordem pública. Com efeito, as

376 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

161-165. 377 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São

Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 273. 378 Mesmo Luiz Fabiano Corrêa, que adota a imputabilidade (culpa do verdadeiro titular) como

requisito geral para a caracterização da tutela da aparência do direito, esse pressuposto é afastado nos casos em que há “necessidade de preservar a confiabilidade das instituições jurídicas, por meio das quais se processa a circulação de determinados bens”, como é o caso do Registro de Imóveis (CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 303-305).

379 Esse foi outro equívoco de argumentação cometido por vários defensores da vigência da fé pública registral no Brasil, como Philadelpho Azevedo, Francisco Bertino de Almeida Prado e Clóvis Beviláqua. Como se viu no item 3.1.1, vários deles lançavam mão da analogia com situações como as de alienação de imóvel por herdeiro aparente e de transmissão por quem recebeu imóvel em pagamento indevido, em ambos os casos tendo como adquirente terceiro adquirente de boa-fé, nas quais a lei expressamente determinava a manutenção da aquisição. A partir da utilização desse recurso, afirmavam que o Código Civil de 1916 teria instituído um sistema geral de proteção a terceiros, com fundamento no princípio da boa-fé subjetiva. Contudo, esses casos com os quais se buscou fazer analogia são todos de tutela da aparência, apenas com a peculiaridade de estarem previstos em lei. Logo, o fundamento dessas situações é a tutela da aparência jurídica, e não o princípio da boa-fé, isoladamente.

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diversas conexões já mencionadas entre a proteção da aparência jurídica e a

confiança legítima depositada pelo terceiro de boa-fé na situação aparente,

decorrente da valorização da segurança jurídica dinâmica, já são indícios de dois

importantes princípios que suportam a tutela da aparência do direito: o da tutela da

confiança e o da segurança jurídica, sendo esta, indubitavelmente, decorrência

direta do princípio do Estado de Direito.

Acata-se, assim, a lição de Leonardo Brandelli, que, alicerçado em rica

doutrina, destacadamente de Sylvia Calmes, explica a tutela da aparência a partir de

uma cadeia principiológica de fundamentação: parte-se do princípio do Estado de

Direito, que tem como subprincípio a segurança jurídica, a qual tem como

subprincípio a tutela da confiança, que consiste no fundamento direto da tutela da

aparência jurídica380. Cada uma dessas derivações principiológicas será esclarecida

nos próximos itens.

5.3.1.1 Cadeia principiológica que fundamenta a tutela da aparência jurídica

O caput do art. 1o da Constituição Federal de 1988 define o Brasil como um

Estado Democrático de Direito, isto é, consagra o princípio do Estado Democrático

de Direito como preceito fundamental, a orientar todo o ordenamento jurídico do

país. Trata-se, porém, de conceito de difícil definição a priori, consoante confirma a

doutrina estrangeira e nacional.

Com efeito, Konrad Hesse aduz que o Tribunal Constitucional Federal da

Alemanha renunciou a formular uma definição global do princípio do Estado de

Direito, limitando-se a defini-lo como “decisão fundamental”, ou “princípio dirigente”,

e a estabelecer um conteúdo mínimo: os “mandamentos da previsibilidade, da

certeza jurídica e da exatidão material ou justiça”. Veja-se que nos dois primeiros

elementos desse conteúdo já se encontram caracterizadas as linhas básicas do

princípio da segurança jurídica, que efetivamente nada mais é do que decorrência

do princípio do Estado de Direito. No mais, relata Hesse que o referido Tribunal

entende que esse princípio deve ser concretizado de acordo com a realidade de

cada situação381.

380 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

141-161. 381 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.

Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 158.

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Prossegue o autor no sentido de que decorrem do conteúdo essencial do

princípio do Estado de Direito “o mandamento da proteção da confiança, o princípio

da proporcionalidade e o direito a um procedimento honesto” 382. A confiança, como

já se disse, é fundamento direto da tutela da aparência jurídica, ao passo que a

proporcionalidade já foi mencionada neste trabalho como elemento da maior

importância para o exercício da ponderação, em caso de conflito entre princípios

jurídicos.

Além disso, o autor alemão assevera que o Estado de Direito é aquele que,

por meio da lei, cria e garante a “ordem total jurídica”, que permite a convivência na

coletividade. Apesar disso, Hesse pondera que o primado do direito:

[...] não significa distância da realidade ou imobilidade. Porque a vinculação ao direito torna-se real primeiro na atualização e concretização de suas normas; essas não se deixam desatar das condições de vida, de sua peculiaridade material e de sua transformação. A elasticidade e capacidade de transformação, com isso dada, termina certamente lá onde estão os limites da interpretação.383

Aplicando-se essa lição a este estudo, pode-se dizer que o excessivo apego

ao formalismo jurídico tem impedido a evolução do Direito brasileiro quanto ao

entendimento sobre o princípio da fé pública registral. Interpretam-se dispositivos

legais sobre presunção de titularidade de direitos reais sobre imóveis restritiva e

isoladamente, sem qualquer espécie de consideração à realidade contemporânea,

enfim, sem se procurar interpretar esses mesmos dispositivos legais em conjunto

com outros mandamentos do ordenamento jurídico, à luz de princípios

constitucionais do quilate do princípio do Estado de Direito.

Luís Afonso Heck corrobora a posição de Hesse, afirmando que o princípio do

Estado de Direito carece de concretização, o que se dá diante de dados objetivos.

Também o autor brasileiro consegue identificar um conteúdo mínimo desse princípio,

do qual se destacam os preceitos de certeza jurídica e de proteção à confiança. O

autor faz interessante relação entre eles:

A certeza jurídica significa para o cidadão, em primeiro lugar, proteção à confiança, que ele pode dispensar ao direito devidamente estatuído e que lhe possibilita planejar e calcular a longo prazo, ou seja, construir sobre a estabilidade e a calculabilidade do direito. O cidadão deve poder prever as possíveis intervenções estatais a ele opostas e, em conformidade com isso,

382 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.

Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 158-159. 383 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.

Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 162-163.

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poder preparar-se; ele deve poder confiar em que a sua atuação, conforme com o direito vigente, fique reconhecida, pela ordem jurídica, com todas as consequências jurídicas iniciais vinculadas a isso.384

Parece claro, assim, que do princípio do Estado de Direito decorre o princípio

da segurança jurídica385, do qual, por sua vez, deriva o princípio da proteção da

confiança. Essa é a cadeia principiológica na qual se fundamenta a tutela do

princípio da aparência jurídica386.

Por fim, quando se fala em “primado do direito” como decorrência do princípio

do Estado de Direito, não se trata de qualquer direito, mas daquele estruturado

conforme as regras de funcionamento da democracia. Realmente, como se afirmou,

a Constituição Federal brasileira de 1988 remete ao Estado Democrático de Direito,

no sentido de haver respeito às regras do jogo democrático, com eleições livres,

periódicas e diretas, devendo os mandatários eleitos submeter-se aos direitos e

garantias fundamentais387.

5.3.1.2 Compatibilização da segurança jurídica estática com a dinâmica

Entre as diversas acepções da segurança jurídica, certamente a que interessa

a este estudo é a que expressa o sentido da certeza do Direito, isto é, a “Situação de

cognoscibilidade, estabilidade e previsibilidade do direito, de modo a que cada um

saiba a que pode ater-se na ordem jurídica”388. Recorre-se, ainda, à noção de

segurança jurídica setorial, ou seja, aquela especificamente aplicável ao Registro de

Imóveis. Isso não significa que se trata de uma segurança jurídica puramente

privada, mas, muito pelo contrário, que possui índole eminentemente pública,

porquanto os Serviços de Registro Imobiliário prestam serviços públicos de relevante

interesse para o Estado e toda a sociedade389. Acrescenta-se que a segurança

384 HECK, Luís Afonso. O Tribunal Constitucional Federal e o desenvolvimento dos princípios

constitucionais: contributo para uma compreensão da jurisdição constitucional federal alemã. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995. p. 175, 186-187.

385 Nesse sentido, Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco afirmam que “a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria ideia de justiça material” (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 381).

386 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 156.

387 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16. ed. atual. até a EC nº 44/04. São Paulo: Atlas, 2004. p. 53.

388 MENDES, Isabel Pereira. Estudos sobre Direito Predial. Coimbra: Almedina, 1999. p. 45. 389 MENDES, Isabel Pereira. Estudos sobre Direito Predial. Coimbra: Almedina, 1999. p. 45-46.

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jurídica registral possui função mormente preventiva, uma vez que a atuação do

Oficial de Registro no sentido de impedir a inscrição de títulos inexistentes, inválidos

e ineficazes visa a evitar a proliferação de demandas envolvendo a propriedade

imobiliária e direitos relacionados a esta390.

Propõe-se, neste momento, a aprofundar as noções de segurança jurídica

estática e dinâmica e, especialmente, a verificar qual a melhor forma de

compatibilizar ambas as formas de segurança jurídica em um sistema registral, de

maneira a não expor a riscos excessivos nem verdadeiro titular de direito, nem o

adquirente de boa-fé. De fato, é preciso fundamentar o motivo de a segurança

jurídica dinâmica também merecer ser prestigiada, até porque é nesse aspecto do

princípio da segurança jurídica em que mediatamente se fundamenta a tutela da

aparência jurídica.

A preocupação básica de qualquer sistema registral imobiliário é a de garantir

o direito subjetivo do titular inscrito. O problema surge quando direito decorrente de

registro eivado de vícios é adquirido por terceiro de boa-fé, que confiou na

publicidade estatal e igualmente promove o registro de seu título. O ordenamento

jurídico deve estabelecer qual direito deve prevalecer: o do verdadeiro titular391 ou o

do terceiro adquirente de boa-fé.

Sistemas registrais que dão preferência ao direito do verdadeiro titular

privilegiam a segurança jurídica estática ou segurança jurídica do direito subjetivo, a

qual, como visto, decorre diretamente do instituto da publicidade. Na clássica

definição de Victor Ehrenberg, a segurança jurídica estática “consiste em que não se

pode levar a cabo uma modificação desfavorável da situação anterior das relações

patrimoniais de uma pessoa sem o seu consentimento” (grifo do autor, tradução

nossa)392. Reclama-se que “a existência e o conteúdo dos direitos subjetivos sejam

certos, impassíveis de ataques”393.

390 MELO, Marcelo Augusto Santana de. O Registro de Imóveis e o princípio da fé-pública registral.

Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 30, n. 63, p. 53-81, jul./dez. 2007. p. 79-80.

391 A expressão verdadeiro titular tem sido usada neste trabalho sempre a designar a pessoa que perdeu seu direito subjetivo sem ter participado do ato de transmissão. Pode ser o adquirente do direito conforme o antepenúltimo registro da cadeia dominial, que o perdeu em virtude do registro imediatamente seguinte, em que foi representado por procurador falso, já tendo havido transmissão subsequente a terceiro de boa-fé; esse quadro não se altera se, após o registro viciado, já tiver havido vários outros atos de transmissão, até se chegar ao atual proprietário tabular.

392 No original: “La seguridad jurídica (en el sentido estricto de la expresión) consiste en que no puede llevarse a cabo una modificación desfavorable de la situación anterior de las relaciones patrimoniales de una persona sin el consentimiento de ésta” (EHRENBERG, Victor. Seguridad

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De outro lado, há sistemas registrais que conferem proteção ao direito do

terceiro adquirente de boa-fé394, privilegiando-se a segurança jurídica dinâmica ou

segurança jurídica do tráfico, na qual se fundamenta mediatamente a tutela da

aparência jurídica395. Conforme a lição de Victor Ehrenberg, a “segurança do tráfico

consiste em que a previsivelmente modificação favorável nas relações patrimoniais

de uma pessoa não pode frustrar-se por circunstâncias que lhe sejam

desconhecidas” (grifos do autor, tradução nossa)396.

Atualmente, existe uma tendência fortíssima, no Ocidente, de que os sistemas

registrais imobiliários favoreçam a segurança jurídica dinâmica, com a adoção de

sistemas de registro de direitos e, consequentemente, do princípio da fé pública

registral. Parte-se do pressuposto de que sistemas registrais robustos, aparelhados

para impedir ao máximo o ingresso de títulos com vícios, já garantem

suficientemente o direito do verdadeiro titular, de forma que terceiros adquirentes

que atendam a determinados requisitos (como boa-fé e onerosidade da aquisição)

devem ter seu direito protegido. Esse seria um sistema mais adaptado à realidade

econômica da contemporaneidade, pois a proteção prioritária ao adquirente se

coaduna com a incrível intensidade do tráfico jurídico, no qual levam vantagem

países que oferecem maiores garantias a quem pretenda realizar negócios.

Nesse sentido, Alipio Silveira remete à obra de Roscoe Pound, de 1942, em

que este já reconhecia estar a questão da segurança jurídica dinâmica em evidência

em todo o mundo, havendo progressiva adesão das legislações da época a modelos

de registro imobiliário que privilegiavam a proteção de terceiros adquirentes de boa-

fé, em detrimento da segurança jurídica estática397. Por sua vez, Nicolás Nogueroles

jurídica y seguridad del tráfico. Tradução de Antonio Pau. Madrid: Fundacion Beneficentia et Peritia Iuris, 2003. p. 36, grifos do autor).

393 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 6.

394 A referência ao terceiro adquirente deve ser entendida sempre como alguém que já registrou seu título, ou seja, trata-se de titular registral de um direito, mas que, com relação ao registro anterior questionado, é efetivamente um terceiro, pois não foi parte na relação jurídica nele refletida.

395 Isabel Pereira Mendes corrobora esse entendimento, afirmando que “A segurança jurídica dinâmica está ligada à protecção da aparência jurídica que, em matéria de direitos reais, sempre se realizou através da publicidade” (MENDES, Isabel Pereira. Estudos sobre Direito Predial. Coimbra: Almedina, 1999. p. 63).

396 No original: “La seguridad del tráfico consiste en que la previsiblemente favorable modificación de las relaciones patrimoniales de una persona no puede frustrarse por circunstancias que le sean desconocidas a esa persona” (EHRENBERG, Victor. Seguridad jurídica y seguridad del tráfico. Tradução de Antonio Pau. Madrid: Fundacion Beneficentia et Peritia Iuris, 2003. p. 36, grifos do autor).

397 SILVEIRA, Alipio. A boa-fé no Código Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1972. v. 1, p. 87.

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Peiró afirma que, na Europa, não somente não houve retrocessos nesse sentido nos

países de influência germânica, como todas as reformas que ocorreram em outros

países, desde a francesa de 1955, reforçaram, “com maior ou menor intensidade, o

papel do registro e a proteção de terceiros”, citando, como exemplos, Holanda,

Grécia, Irlanda, Escócia, Inglaterra, Suécia e Finlândia398. Igualmente, a portuguesa

Isabel Pereira Mendes constata que o sistema registral imobiliário da maioria dos

países:

[...] tem por objectivo a protecção da aparência jurídica, ou seja, uma segurança dinâmica que radica e se apoia na segurança estática, e consiste em que o subadquirente que, de boa-fé, adquira um direito inscrito no registo, e que por sua vez o inscreva a seu favor, deve ficar imunizado contra qualquer forma de impugnação do registo anterior a favor do transmitente. (grifo da autora).399

Porém, isso não significa que as seguranças jurídicas estática e dinâmica

sejam incompatíveis. Muito pelo contrário, ambas se complementam. De fato, Victor

Ehrenberg já constatava que a contradição entre ambas é apenas aparente,

porquanto ao titular de direito também interessa a segurança do tráfico, pois esta lhe

permite negociar seu direito com muito mais facilidade400. De fato, “a segurança do

tráfico aumenta o valor dos direitos subjetivos, transformando-os em ativos

econômicos, na medida em que lhes confere certeza e liquidez”401. Comentando a

lição de Ehrenberg, Mónica Jardim corrobora suas ideias:

De facto, Ehrenberg, apesar de afirmar que a segurança jurídica e a segurança do tráfico ‘se repelem mutuamente’, na sua obra também convida o leitor a contemplar a segurança jurídica e a segurança do tráfico como peças distintas de um mesmo mecanismo; como o verso e o reverso de um mesmo fenómeno, que não é outro senão aquele que facilita ao titular do direito – e não ao terceiro adquirente – o aproveitamento do valor económico do seu direito. Como resulta do exposto, nesta segunda perspectiva, o interesse do terceiro adquirente desaparece de cena; a segurança jurídica e a segurança do tráfico, dois vassalos distintos, servem agora a um mesmo senhor: o titular do direito. Deixa de haver contraposição ou conflito: a segurança do tráfico é uma modalidade de actuação da segurança juridica e, por conseguinte, uma modalidade de protecção do direito, uma vez que uma das formas de proteger o titular é valorizando e, assim, facilitando a transmissão do seu direito, e isso precisamente – facilitar a transmissão dando garantias ao adquirente – é a função da

398 NOGUEROLES PEIRÓ, Nicolás. La evolución de los sistemas registrales en Europa. In: DIP,

Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 511-544. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 542.

399 MENDES, Isabel Pereira. Estudos sobre Direito Predial. Coimbra: Almedina, 1999. p. 48. 400 EHRENBERG, Victor. Seguridad jurídica y seguridad del tráfico. Tradução de Antonio Pau.

Madrid: Fundacion Beneficentia et Peritia Iuris, 2003. p. 36. 401 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

13.

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segurança do tráfico. Portanto, só no momento de tensão no qual uma das partes vê o perigo de perder contra a sua vontade um direito ou de o ver comprimido e a outra parte percebe, por sua vez, o perigo de não poder adquirir um direito, só nesse instante é que entram em conflito a segurança do direito e a segurança do tráfico.402

Diversos outros autores403 endossam essa posição, da qual se conclui que,

muito mais do que proteger a segurança dinâmica, a fé pública registral, fundada na

tutela da aparência jurídica, resguarda com muito maior eficiência os interesses do

verdadeiro titular do direito. Observa-se, enfim, com muito mais vigor, o princípio da

segurança jurídica – sem adjetivações –, como decorrência direta do Estado de

Direito. Negar esse fato corresponde a ignorar todo o desenvolvimento do Direito

Registral Imobiliário dos países mais civilizados desde os primórdios do século XX.

5.3.1.3 Princípio da confiança como fundamento imediato da tutela da aparência

jurídica

A tutela da confiança ganhou evidência a partir do momento em que as

relações jurídicas foram progressivamente deixando de ser entabuladas entre

pessoas que se conheciam, passando a se estabelecer predominantemente entre

desconhecidos, ou seja, entre indivíduos que não tinham referências um do outro,

incrementando-se, assim, os riscos das transações. De fato, essa impessoalidade é

característica de tempos relativamente recentes, de massificação das relações

jurídicas, em que houve uma transição da confiança naturalmente existente entre

conhecidos para a necessidade de o ordenamento jurídico proteger a confiança nas

instituições. É somente dessa forma que se alcança a segurança do tráfico,

imperativo decorrente do princípio do Estado de Direito404, mantendo-se a

estabilidade das relações sociais405.

402 JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. Registo imobiliário constitutivo ou registo imobiliário

declarativo/consolidativo? Qual deles oferece maior segurança aos terceiros? Uma falsa questão! In: AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo (Coord.). Direito Notarial e Registral: homenagem às Varas de Registros Públicos da comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016. p. 871-890. p. 884.

403 AMORÓS GUARDIOLA, Manuel; DIÉZ-PICAZO, Luis. La teoría de la publicidad registral y su evolución. Madrid: Real Academia de Jurisprudencia y Legislación, 1998. p. 180; BOLÁS ALFONSO, Juan. La documentación publica como factor de certeza y protección de los derechos subjetivos en el tráfico mercantil. In: BOLÁS ALFONSO, Juan et al. La seguridad jurídica y el tráfico mercantil. Madrid: Civitas, 1993, p. 41-69. p. 45-48.

404 Ressalta-se que autores como Larenz e Hesse afirmam que a proteção da confiança deriva diretamente do princípio do Estado de Direito (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997. p. 603; HESSE, Konrad.

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Com efeito, não cabe a tutela da confiança baseada em fatores meramente

subjetivos, devendo estar a situação jurídica objetivamente justificada406. Ademais,

verifica-se a tendência de se reconhecer que situações às quais o próprio Estado

conferiu verossimilhança sejam dignas de maior proteção, tais como aquelas objeto

de inscrição no Registro Imobiliário407.

A tutela da confiança, na medida em que beneficia a segurança jurídica do

tráfico, acaba por favorecer terceiros que confiam legitimamente em alguma situação

jurídica que se lhes apresenta genuína, em detrimento de direitos dos verdadeiros

titulares. A proteção aos interesses de terceiros dá-se pelo instituto da aparência

jurídica, ou seja, pressupõe-se a exteriorização de uma situação jurídica, real ou

fictícia, na qual se deposita confiança legítima408.

A tutela da aparência jurídica, com fundamento imediato no princípio da

proteção da confiança, não poderia deixar de ser aplicável ao Registro de Imóveis.

Trata-se de instituição organizada pelo Estado, cujos registros geram legítima

expectativa de correção em qualquer pessoa, na medida em que são estes lavrados

apenas após rígida qualificação de forma e fundo do título, empreendida por agente

público.

De fato, é o próprio ordenamento jurídico que induz as pessoas a confiar nas

instituições do Estado e, quando o faz, elas não podem ter suas expectativas

frustradas. A tutela de quem confiou legitimamente no registro imobiliário acarreta a

segurança do tráfico, pois impede que quem adquiriu de boa-fé um direito com base

nas informações publicizadas venha a perdê-lo em função de informações às quais

não teve acesso. Tudo o que possa ser relevante à realização de uma transação

Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris: 1998. p. 158-159).

405 Nesse sentido, aduz Mauricio Jorge Pereira da Mota que, “numa época marcada pela pressão no sentido do incremento da relação humana, e pela tendência da impessoalidade, correlato da urgência de uma maior e enérgica autonomia dos sujeitos, a proteção da confiança diminui os riscos da ação ligada à progressiva interdependência dos sujeitos (MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 274).

406 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 29.

407 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no Direito Civil: dissertação de doutoramento em ciencias jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra: Almedina, 1997. p. 1247.

408 De fato, afirma Marcelo Augusto Santana de Melo que “a confiança pressupõe a aparência, na medida em que é preciso que ela seja depositada, ou seja, confiada em alguma coisa [...] subentende-se, assim, a existência em uma base real ou fictícia para se completar, mesmo porque não se confia no nada ou em ninguém” (MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 28).

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envolvendo direitos sobre imóvel deve estar concentrado na respectiva matrícula,

sob pena de se trair a legítima confiança de terceiros em instituição do Estado.

Nesse sentido, José Enrique Bustos Pueche explica que não se podem negar os

efeitos esperados de conduta de pessoa que, confiando na coerência dos

comportamentos e, especialmente, na coerência do Estado, age estritamente de

acordo com a lei409. Assim, não pode o mesmo Estado que, por meio de agente

delegado, realizou um registro imobiliário – cuja aparência de bom direito fez com

que terceiro viesse a adquirir o direito publicizado, também registrando seu título –

posteriormente vir a invalidar o registro, como consequência do reconhecimento de

vício em inscrição anterior, a respeito do qual não havia nenhuma advertência na

matrícula. Se o terceiro cumpriu todas as normas que se lhe impõem para obter seu

registro, não age com coerência o Estado ao lhe subtrair seu direito e,

consequentemente, trair sua confiança.

Em suma, a tutela da confiança decorre do aspecto dinâmico do princípio da

segurança jurídica e se revela nas situações de aparência de direito410.

5.3.2 Reconhecimento da tutela da aparência como princípio jurídico

Como se sabe, o Código Civil de 1916 já previa diversas situações em que,

casuisticamente, protegia-se o terceiro que confiava na aparência do bom direito. Os

exemplos mais citados neste trabalho são os de pagamento indevido de imóvel e de

alienação por herdeiro aparente, mas havia diversos outros dispositivos que

regulavam situações semelhantes. O mesmo tratamento legal foi adotado pelo

Código Civil de 2002.

Evidentemente, essas situações previstas em lei não esgotam os casos de

aparência jurídica merecedores de proteção. Diante disso, Alipio Silveira narra que,

em um primeiro momento, a jurisprudência passou a aplicar os preceitos legais do

Código Civil de 1916, por analogia, a casos semelhantes. Contudo, o mesmo autor

409 BUSTOS PUECHE, José Enrique. La doctrina de la apariencia jurídica: una explicación unitaria

de los artículos 34 de la L.H. y 464 del C.c., y otros supuestos de apariencia. Madrid: Dykinson, 1999. p. 126-127.

410 Nesse sentido, Vitor Frederico Kümpel afirma que “A teoria da aparência está toda ela aparelhada na proteção do terceiro, pois é a confiança legítima do terceiro que agiu de boa-fé, objetiva e subjetiva, isto é, boa-fé padronizada e boa-fé psicológica que fazem produzir conseqüências jurídicas, muitas vezes em situações inexistentes ou inválidas, mas que têm que produzir efeitos jurídicos válidos” (KÜMPEL, Vitor Frederico. A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro: Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 2004. 391 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Direito Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 49).

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constatou que, em uma segunda fase, a doutrina e a jurisprudência reconheceram a

existência do “princípio da aparência jurídica”, que passou a se aplicar em casos de

omissão da lei411.

Além de Alipio Silveira412 – que se fundamenta em riquíssima doutrina

nacional e estrangeira –, reconhecem a tutela da aparência com status de princípio

jurídico autores como Vitor Frederico Kümpel413, Álvaro Malheiros414, Mauricio Jorge

Pereira da Mota415 e Leonardo Brandelli, que acrescenta os nomes de Orlando

Gomes, Rodolfo Sacco, Mariano D’Amelio, Jacques Ghestin, Gilles Goubeaux e

Ludwig Enneccerus416.

Caracterizada como princípio jurídico e considerando-se a concepção de

princípios adotada neste estudo, reconhece-se a tutela da aparência como

mandamento de otimização. Assim, trata-se de norma jurídica – logo, situada no

plano do dever-ser –, não dotada do caráter de absolutividade, mas que deve ser

411 SILVEIRA, Alipio. A boa-fé no Código Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora

Universitária de Direito, 1972. v. 1, p. 84. 412 SILVEIRA, Alipio. A boa-fé no Código Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora

Universitária de Direito, 1972. v. 1, p. 88-91. 413 O autor assim define o que denomina de princípio geral da aparência: “é aquele que resguarda em

todo o sistema jurídico, garantindo existência, validade e eficácia a determinadas relações jurídicas, toda vez que houver uma exteriorização (publicidade) divorciada da realidade, mas que faz crer a todos que há lisura, seriedade no negócio jurídico, incidindo a boa-fé objetiva, culminando efetividade junto ao terceiro de boa-fé legitimado, fazendo com que o negócio resulte efeitos jurídicos e econômicos regulares, muito embora a situação protegida esteja estribada em uma situação insubsistente em si mesma” (KÜMPEL, Vitor Frederico. A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro: Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 2004. 391 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Direito Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 367-368).

414 O doutrinador conclui que “o Direito moderno recebeu – e o aceita com força cada vez maior – o princípio da aparência de direito como um autêntico princípio geral de direito e, como tal, expressão do direito natural, nascido das necessidades sociais, formulado pelo direito científico, como instrumento do arbítrio humano” (MALHEIROS, Álvaro. Aparência de direito. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, p. 41-77, out./dez. 1978. p. 74).

415 Segundo o autor, “a aparência jurídica aplica-se à generalidade das situações jurídicas comutativas de confiança que não sejam regidas por dispositivos próprios, tendo, desta maneira, a abrangência principiológica requerida por um sistema de direito, desde que consideremos que o âmbito de sua aplicação se restringe àquele em que estejam presentes os pressupostos da confiança. Existentes estes, a aparência tutela todas as situações de direito (MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 270).

416 Leonardo Brandelli reconhece que o princípio da tutela da aparência jurídica é “derivado de outros, mais amplos, em uma derivação lógico-jurídica, decorrente diretamente do conteúdo de seu antecessor, que é mais amplo”. Essa cadeia se inicia no princípio do Estado de Direito, “passa pelos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, até chegar à tutela da aparência” (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 170-171).

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aplicada aos casos concretos na maior medida possível, desde que respeitados

seus pressupostos, analisados adiante417.

Desse modo, sempre que houver conflito entre o princípio da tutela da

aparência e outro princípio, há de se proceder à ponderação, de acordo com a lei de

colisão, levando-se em conta as três máximas da proporcionalidade (adequação,

necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). A interpretação é, assim, um

procedimento racional, em que, diante de determinadas condições, esse princípio

será aplicável, mas poderá ser afastado perante outras condições, em que a

ponderação indique ser necessário privilegiar o princípio colidente418.

Alipio Silveira já tinha clara essa noção e afirmava que o princípio da tutela da

aparência não poderia ser aplicado a todo e qualquer caso, de modo a manter a

eficácia de atos inexistentes ou inválidos, sob pena de se gerar generalizada

insegurança jurídica419.

Fatores econômicos são decisivos nas ponderações entre a prevalência do

direito do verdadeiro titular e o do terceiro adquirente de boa-fé a título oneroso.

Como se viu anteriormente, mormente na comparação entre sistemas de registro de

títulos (que favorecem a segurança jurídica estática) e de registro de direitos (que

privilegiam a segurança jurídica dinâmica), essa segunda espécie de sistema é

dotada de maior eficiência econômica. Uma das explicações para isso é justamente

a adoção do princípio da fé pública registral, cujo fundamento é o princípio da tutela

da aparência jurídica.

417 Nesse sentido, alerta Leonardo Brandelli que, em nível abstrato, o princípio da tutela da aparência

possui o mesmo peso do princípio pelo qual ninguém pode transmitir direito que não possui (nemo dat quod non habet). O mesmo raciocínio se aplica com relação a outros princípios que possam colidir com o da tutela da aparência jurídica (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 174).

418 Até mesmo um autor que não admite a existência do princípio da tutela da aparência jurídica, como Henrique Ferraz de Mello, aceita a possibilidade de haver o que denomina de convalidação social da realidade “diante do direito, [que] pode e deve constituir um obstáculo impeditivo de uma ação de cancelamento de registro, calcada na dogmática do art. 214 da Lei 6.015/1973, toda vez em que o prejuízo decorrente (do cancelamento/alteração do mundo fenomênico), seja irremediavelmente irreparável, bem maior do que o prejuízo existente (na conservação da situação jurídica consolidada)” (MELLO, Henrique Ferraz de. O princípio da convalescença registral e a boa-fé. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 665-693. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 7). p. 691.

419 SILVEIRA, Alipio. A boa-fé no Código Civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1972. v. 1, p. 91.

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5.3.2.1 Requisitos gerais do princípio da tutela da aparência

Dada a cadeia de derivação principiológica de que resulta o princípio da tutela

da aparência jurídica, pode-se dizer que esse princípio está presente, tácita ou

expressamente, no ordenamento jurídico de qualquer país que adote o princípio do

Estado de Direito. Apesar de não ser possível expor todo o conteúdo da tutela da

aparência jurídica – dada sua natureza principiológica –, é viável, com base em farta

doutrina, explicitar seus requisitos essenciais, aplicáveis na generalidade dos casos,

especialmente quando não houver regra específica para a situação que se pretenda

examinar420. Assim, segue a análise do que se entende como requisitos gerais

desse princípio:

a) Existência de situação de fato externa, de que decorra a aparência de

direito. Exige-se a externalização objetiva de fatos – ou seja, não decorrentes de

mera imaginação de alguém –, que façam parecer existente um direito subjetivo que,

na realidade, não existe, ou que determinada pessoa é titular de um direito ou tem

poderes para deste dispor, sem que isso na verdade ocorra421.

Apesar de os conceitos de aparência e presunção não se confundirem,

explica Luiz Fabiano Corrêa que as presunções legais costumam gerar aparência

jurídica. Apesar de não o explicitar, evidentemente o autor se refere às presunções

iuris tantum, afinal não há por que se cogitar de aparência jurídica decorrente de

presunção iuris et de iure, pois esta acaba por substituir a realidade. Ainda que as

presunções relativas tenham eficácia eminentemente processual, referido autor

explica que presunção e aparência “baseiam-se em substratos da experiência

comum retirados do que ordinariamente acontece”422.

De forma semelhante, Leonardo Brandelli define a presunção relativa gerada

pelo registro como o “germe da confiança legítima gerada no terceiro”, na medida

em que, ao mesmo tempo, presume-se que o direito registrado existe, é válido e

eficaz nos termos em que publicizado (presunção de exatidão do registro), bem

420 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

182. 421 CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria

geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 286.

422 CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 291.

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como que o não registrado inexiste (presunção de completude do registro). Assim,

conclui o doutrinador que, havendo essas presunções:

[...] o terceiro que nelas confia restará protegido se elas não se mostrarem verdadeiras, porque a sua confiança será legítima diante da atuação da instituição registral, [...] de modo que incidirá a tutela da aparência. Sem essa proteção, o valor da informação publicizada seria praticamente inútil.423

Evidentemente, não basta a existência de uma situação de fato objetivamente

perceptível, apta a gerar aparência jurídica. Exige-se que a conduta do terceiro seja

pautada por sua confiança nessa aparência, ou seja, deve haver nexo de

causalidade entre a situação de fato externa e o comportamento do terceiro424.

b) Conduta de boa-fé do terceiro, cujo erro em relação à situação jurídica real

deve ser escusável. Ainda que haja uma situação fática que induza a grande maioria

das pessoas a erro, se determinada pessoa conhece a realidade, deve agir de

acordo com esta. Assim, não negociará com procurador que, apesar de parecer

verdadeiro aos olhos do homem médio, ela saiba não o ser. Porém, se o faz mesmo

conhecendo a verdade, não merece proteção, pois agiu de má-fé425.

Refere-se aqui à boa-fé subjetiva, erigida por Vitor Frederico Kümpel como

um “motivo justificante” da proteção deferida ao terceiro426. Basta a simples

ignorância sobre a situação oculta, ou seja, exige-se apenas a boa-fé psicológica, no

momento da aquisição da coisa ou do direito, não se requerendo do terceiro que

proceda a diligências outras que aquelas ordinariamente exigidas pelo ordenamento

jurídico427.

423 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

203-204. 424 CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria

geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 321.

425 Nesse sentido, no ámbito do Direito Registral Imobiliário, e lembrando-se de que a aparência deriva da publicidade (lato sensu), Antonio Pau Pedrón esclarece que o “conocimiento de la realidad extrarregistral es lo que, en teoría de la publicidad, se denomina mala fe”. Complementa o autor somente haver má-fé se o conhecimento for completo, não bastando ao terceiro saber de meros indícios sobre a realidade, dissonantes do que consta do Registro (PAU PEDRÓN, Antonio. La publicidad registral. Madrid: Beneficentia et Peritia Iuris, 2001. p. 343-344).

426 KÜMPEL, Vitor Frederico. A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro: Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 2004. 391 f. Tese (Doutorado) – Departamento de Direito Civil, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 120. Maria Clara Sottomayor pronuncia-se de maneira semelhante, asseverando que “faz parte da própria finalidade da tutela da aparência, a boa fé do terceiro que dela beneficia [...] A boa fé é o fundamento ontológico da tutela da aparência” (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 668).

427 Assim, afirma Luiz Fabiano Corrêa que “elemento indispensável à produção dos efeitos da aparência de direito não é a boa-fé nessa concepção ética e sim a boa-fé vista na concepção

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Desse modo, basta que o terceiro incorra em erro escusável acerca da

realidade dos fatos. Aduz Mauricio Jorge Pereira Mota que “O erro capaz de fazer

incidir a tutela da aparência é também aquele erro objetivo, erro (sic) que incidiria

qualquer pessoa prudente nas mesmas condições”428. Todavia, se em determinada

situação o ordenamento jurídico exige que o terceiro adote determinadas diligências

e este não as cumpre, ainda que sem a intenção de prejudicar ninguém, seu erro

não mais será considerado escusável – afinal, com tais medidas, ele poderia ter

conhecido a realidade e, assim, ter evitado sua conduta –, de forma que ele não

merecerá ser protegido pelo princípio da tutela da aparência.

Ressalta-se não ser requisito geral da proteção da aparência jurídica a culpa

do verdadeiro titular, ou seja, é desimportante o fato de ele ter contribuído ou não

para a geração da aparência de bom direito que levou alguém a, de boa-fé, nesta

confiar e com ela agir de acordo. Como visto, no registro imobiliário o vício pode

decorrer, por exemplo, de descuido do Oficial de Registro, sem que para este tenha

concorrido o verdadeiro titular do direito.

c) Onerosidade da aquisição do direito subjetivo. A proteção do terceiro

adquirente de boa-fé que confia na aparência sempre implica prejuízo ao verdadeiro

titular, pois este perde seu direito sem sua anuência. Assim, por questão de

equidade e justiça comutativa, somente se admite que haja tal prejuízo se o terceiro

tiver participado de ato oneroso, ou seja, com dispêndio patrimonial. Com efeito, “no

conflito entre o interesse de quem persegue vantagem e do de quem quer safar-se

de uma perda, tem prelação o interesse desse último”429.

Contudo, em duas situações é possível proteger os interesses do terceiro

adquirente a título gratuito, quais sejam: haver dispositivo legal expresso que o

beneficie e se ele tiver efetuado gastos relevantes em razão do negócio a título

psicológica, que se associa ao erro. Em tal concepção, consiste a boa-fé em uma opinião errônea, decorrente da ignorância de determinado fato” (CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 313 e 318).

428 MOTA, Mauricio Jorge Pereira da. A teoria da aparência jurídica. Revista de Direito Privado, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, p. 218-279, out./dez. 2007. p. 237. No mesmo sentido, vide MALHEIROS, Álvaro. Aparência de direito. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, p. 41-77, out./dez. 1978. p. 71.

429 CORRÊA, Luiz Fabiano. Aparência de direito em matéria patrimonial: esboço de uma teoria geral da proteção dispensada pelo direito privado brasileiro à confiança na aparência de direito, em matéria patrimonial. 1989. 343 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989. p. 322.

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gratuito (por exemplo, se tiver gastado suas economias na reforma da casa que

recebeu por doação do titular aparente)430.

d) Higidez do ato de aquisição. Exige-se que a aquisição se consubstancie

em ato jurídico existente, válido e eficaz, na medida em que a tutela da aparência

jurídica mantém a eficácia da aquisição do direito subjetivo pelo titular aparente

(esta, sim, viciada) perante o terceiro adquirente de boa-fé, mas não saneia a

aquisição deste431. Realmente, de nada adiantaria proteger-se o terceiro adquirente

de boa-fé pela tutela da aparência se seu próprio ato de aquisição ficasse exposto a

questionamentos, em razão de vícios que lhe são intrínsecos. Nessa situação, em

atendimento à estabilidade das relações jurídicas, é preferível manter-se o direito do

verdadeiro titular, cujo ato aquisitivo é existente, válido e eficaz.

Em suma, esses são os requisitos gerais de aplicabilidade do princípio da

aparência jurídica e, nessa qualidade, podem ser alterados por regra expressa em

sentido diverso, caso existente. Ademais, em se tratando de princípio jurídico,

sempre haverá a possibilidade de colisão com outro princípio e, sob determinadas

condições, a tutela da aparência poderá ser afastada, ainda que presentes todos os

requisitos acima expostos.

5.3.2.2 Efeitos do princípio da tutela da aparência jurídica

Como já se disse anteriormente, a consequência mais evidente da aplicação

do princípio da tutela da aparência é o ordenamento jurídico considerar como real a

situação aparente, de modo que esta produzirá seus efeitos ordinários perante o

terceiro adquirente de boa-fé. Trata-se de uma atuação no plano da eficácia dos

atos jurídicos, pois o ato subjacente, viciado, é considerado hígido frente ao terceiro,

que adquirirá o direito subjetivo, em detrimento do legítimo titular, que o perderá.

Mas tal princípio não saneia o ato jurídico subjacente, que continua eivado de seu

vício original, em qualquer dos planos (existência, validade ou eficácia).

430 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

189. 431 Nesse sentido, Leonardo Brandelli explica que “O próprio ato de aquisição do direito aparente,

entabulado pelo terceiro adquirente de boa-fé, porém, deverá ser existente, válido e eficaz; caso contrário, estando o seu próprio ato viciado, não haveria falar em tutela da aparência, pois tratar-se-ia não apenas de resolver algum vício pretérito que permanecesse oculto, mas sim de um vício do próprio negócio realizado pelo terceiro de boa-fé” (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 190).

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Acrescenta Leonardo Brandelli que a tutela da aparência não desvirtua o

sistema jurídico brasileiro, que é causal, de forma que não se considera abstrata a

aquisição aparente. Assim, explica o autor que:

Em rigor, o ato aparente carece de causa, porquanto a sua causa jurídica – o ato subjacente viciado – é viciada, porém, a tutela da aparência tem por condão fazer que em relação ao adquirente de boa-fé do direito aparente tudo se passe como se o ato causal fosse hígido, de modo que a causa, somente para esse fim, é, por assim dizer, recomposta.432

Como se protege a aquisição do terceiro adquirente de boa-fé, naturalmente

ficam resguardadas também as transmissões posteriores. Assim, suponha-se que A

é o verdadeiro titular de um direito, mas, em razão de coação, transmite-o a B, que

registra o documento de aquisição em Serviço de Registro de Títulos e Documentos.

B apresenta-se como legítimo titular do direito a C, desconhecedor do vício oculto da

transmissão anterior, a quem B o transmite por ato oneroso. A legítima confiança

depositada por C na situação exteriorizada, geradora de aparência digna de

proteção pelo ordenamento jurídico, impede que A tenha êxito em recuperar o

direito, pois o vício da transmissão de A para B não pode ser oposto a C e a todos

os adquirentes subsequentes – no caso destes, ainda que não reúnam os requisitos

da tutela da aparência, pois a aquisição por C, resguardada pelo princípio da tutela

da aparência, impõe uma barreira a qualquer discussão tendente a desfazer

transmissões ulteriores com fundamento no vício da transmissão de A para B.

Somente não incidiria a tutela da aparência antes da transmissão do direito para C,

ou seja, enquanto não circulasse o direito, quando teria êxito A em desfazer a

alienação a B. Não houvesse a tutela da aparência da aquisição feita por C, em

razão da causalidade que caracteriza o sistema jurídico brasileiro, a qualquer

momento não somente a transmissão de A para B poderia ser anulada por

autoridade judicial, como também as posteriores seriam declaradas insubsistentes,

retornando o direito subjetivo a seu verdadeiro titular (A). Assim, fica evidente a

contribuição da tutela da aparência para a manutenção da estabilidade das relações

jurídicas e da paz social.

Também como já se afirmou, o verdadeiro titular, prejudicado em razão da

prioridade dada à segurança dinâmica, não fica desguarnecido. Surge para ele o

direito de ser ressarcido por seus prejuízos, com fundamento na vedação ao

432 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

192.

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enriquecimento sem causa. No exemplo acima, A poderia ajuizar ação indenizatória

em face de B.

Por fim, assinala-se que a aquisição do terceiro de boa-fé é considerada

derivada, afinal decorre de negócio jurídico que, pela incidência do princípio ora

analisado, considera-se existente, válido e produz todos os seus efeitos, nos termos

de suas próprias disposições433.

5.3.3 Do princípio da tutela da aparência como fundamento do princípio da fé

pública registral

No Direito Registral Imobiliário a proteção do terceiro adquirente de boa-fé

pelo princípio da tutela da aparência denomina-se princípio da fé pública registral434,

que, como adrede analisado, consiste em uma das presunções de exatidão

decorrentes dos atos de inscrição realizados em sistemas de registro de direitos. A

própria doutrina estrangeira explica esse efeito material do registro a partir da tutela

da aparência, como ocorre na Alemanha e na Espanha.

Com efeito, tratando especificamente do sistema registral imobiliário alemão,

Maria Clara Sottomayor afirma que a doutrina “costuma referir-se à protecção do

terceiro adquirente de boa fé como uma questão de tutela da aparência”435, ao

passo que Mónica Jardim fundamenta a possibilidade de terceiros de boa-fé

adquirirem imóvel a non domino a partir da aparência decorrente da publicidade do

433 Nesse sentido, referindo à aquisição de imóveis na Espanha, José Enrique Bustos Pueche afirma

que o terceiro adquirente de boa-fé “obtiene los efectos típicos del negocio jurídico regular. Adquirirá, pues, la titularidad del derecho real objeto de la transmisión, y la adquirirá tan pronto concurran los dos requisitos del título y el modo o traditio de la cosa” (p. 138). Complementa que, em seu juízo, “no hay duda de que estamos ante una adquisición derivativa” (p. 144) (BUSTOS PUECHE, José Enrique. La doctrina de la apariencia jurídica: una explicación unitaria de los artículos 34 de la L.H. y 464 del C.c., y otros supuestos de apariencia. Madrid: Dykinson, 1999).

434 Como leciona Leonardo Brandelli, “No Direito registral imobiliário, a tutela da aparência jurídica traveste-se na proteção do terceiro registral adquirente de boa-fé, que confiou na informação publicizada; traveste-se, portanto, no chamado princípio registral da fé pública (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 196).

435 Acrescenta a autora que “A doutrina alemã liga a protecção da boa fé a uma aparência jurídica (Rechtsschein), que assenta num acto de autoridade do Estado, como o instituto do registo, na posse, em determinados documentos com base nos quais a lei reconhece uma aparência e na regulamentação legal da representação. A garantia de correcção, que é fornecida ao registo, pelo facto de ser organizado pelo Estado, fundamenta a protecção do terceiro adquirente de boa fé, independentemente de o verdadeiro titular do direito ter ou não contribuído para criar a situação de aparência, que pode não lhe ser imputável” (SOTTOMAYOR, Maria Clara. Invalidade e registo: a proteção do terceiro adquirente de boa-fé. Coimbra: Almedina, 2010. p. 666-667).

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Registro de Imóveis436. Na prática, estão as autoras portuguesas a afirmar que o

fundamento do princípio da fé pública registral é a tutela da aparência, na medida

em que esse é o mecanismo de que dispõe o sistema registral alemão para a

proteção de aquisições imobiliárias por terceiros de boa-fé. De fato, como já

analisado, trata-se de sistema em que a abstração entre os planos obrigacional e

real não impede que vícios no acordo real repercutam no registro, de forma que este

não possui efeito saneador.

Nesse mesmo diapasão, Jose Manuel Garcia Garcia não poderia ser mais

claro ao explicar o fundamento do art. 34 da Lei Hipotecária espanhola, que, como

estudado, institui o princípio da fé pública registral nesse país. Convém transcrever

seu ensinamento:

A primeira das ideias-força do princípio da fé pública registral do artigo 34 da LH, como seu próprio nome indica, é a confiança na aparência registral, o que significa que o terceiro se apoia na base que oferece o Registro de Propriedade ao publicar a legitimação dispositiva do transmitente.

Quando falamos da confiança ou fé na aparência registral, referimo-nos à confiança objetiva que proporciona o Registro de Propriedade aos que adquirem tomando como base seus pronunciamentos, porque é a instituição pública oficial criada pelo Estado com o fim de publicar as faculdades dispositivas dos titulares. (grifos do autor, tradução nossa)437

O autor ainda confirma a ideia de que a presunção relativa de titularidade do

direito, decorrente da legitimação registral, consiste na origem da aparência jurídica

gerada pelo registro e que, evidentemente, é tutelada pelo princípio da fé pública

registral438.

436 De fato, logo após mencionar os dispositivos do BGB em que se encontram regulados os efeitos

materiais do registro (entre os quais o § 892, específico da fé pública registral), Mónica Jardim leciona que “concebe-se a publicidade registal como veículo de manifestação da propriedade e dos demais direitos reais imobiliários e, ainda, como aparência da existência de tais direitos em face de terceiros de boa fé, ao ponto de tornar possível, a favor destes, a aquisição a non domino” (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 425).

437 No original: “La primera de las ideas-fuerza del principio de fe pública registral del artículo 34 LH, como su propio nombre indica, es la confianza en la apariencia registral, lo que significa que el tercero se apoya en la base que ofrece el Registro de la Propiedad al publicar la legitimación dispositiva del transmitente. Cuando hablamos de la confianza o fe en la apariencia registral nos referimos a la confianza objetiva que proporciona el Registro de la Propiedad a los que adquieren tomando como base sus pronunciamientos, porque es la institución pública oficial creada por el Estado con el fin de publicar las facultades dispositivas de los titulares” (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 230, grifos do autor).

438 Nesse sentido, afirma o autor que “la clave del articulo 34 LH es la confianza del tercero en la legitimación dispositiva resultante del Registro, es decir, en la apariencia registral derivada del principio de legitimación registral que produce el asiento y que hace que el legislador tome en

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Em suma, mesmo em países onde se acolhe o princípio da fé pública registral

em dispositivos legais expressos, reconhece-se que seu fundamento é o princípio da

tutela da aparência jurídica. Confirma-se que a fé pública registral nada mais é do

que este último princípio, porém, em sua aplicação específica no âmbito dos efeitos

materiais do registro imobiliário. Havendo dispositivos legais expressos

regulamentando o princípio, é evidente que os requisitos de sua aplicação podem

não coincidir com aqueles gerais, arrolados no item 5.3.2.1 supra, o que

efetivamente ocorre na Alemanha e na Espanha, conforme analisado neste estudo.

Contudo, o mais importante é perceber que, havendo a possibilidade da

existência de princípios jurídicos tácitos, e sendo o da tutela da aparência jurídica

albergado por determinado ordenamento jurídico, nada impede sua aplicação ao

respectivo sistema registral imobiliário. Diante da inexistência de lei expressa que

preveja o princípio da fé pública registral, este se aplica, em regra, desde que

presentes na situação concreta os requisitos gerais do princípio da tutela da

aparência jurídica.

Naturalmente, diante de colisão com algum outro princípio jurídico acolhido no

sistema, parte-se para a ponderação, conforme já analisado. Esse mesmo raciocínio

se aplicaria mesmo diante da existência de regra que expressamente previsse o

princípio da fé pública registral, pois tendo este fundamento na tutela da aparência, o

conflito seria o mesmo, isto é, do outro princípio com o da tutela da aparência

jurídica.

5.4 Obstáculos à aceitação da fé pública registral no Brasil antes da Lei nº

13.097/2015

A aparência jurídica é considerada digna de proteção no Brasil há muito

tempo. Como se viu na análise do desenvolvimento da doutrina a esse respeito, no

início identificaram-se dispositivos na lei que, em determinadas situações, protegiam

o terceiro adquirente de boa-fé de direito subjetivo, tais como os casos de alienação

de imóvel por herdeiro aparente e por pagamento indevido. Houve tentativa de

aplicação analógica dessas situações a outras, não previstas em lei. Posteriormente,

consideración esta situación para llegar incluso a la protección de las adquisiciones inmobiliarias a non domino” (GARCIA GARCIA, Jose Manuel. El concepto de tercero. Inoponibilidad. Fe pública. Prioridad. In: _____. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas, 1993. t. II, p. 231, grifos do autor).

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muitos autores passaram a aceitar a tutela da aparência enquanto princípio jurídico

– posição a que se filia este trabalho.

Ora, se o princípio da fé pública registral nada mais é do que o princípio da

tutela da aparência no âmbito do Direito Registral Imobiliário, desde que não haja

nenhuma norma que vede expressamente sua aplicação, não há por que negar esse

efeito material do registro imobiliário no ordenamento jurídico brasileiro. Por ora,

toma-se a liberdade de ignorar o teor do parágrafo único do art. 1.247 do Código

Civil, bem como a Lei nº 13.097/2015, cujos dispositivos referentes à fé pública

registral merecem tratamento pormenorizado.

Em momento algum se sustenta que o registro produz presunção iuris et de

iure de titularidade de direito real. Muito pelo contrário, viu-se que a presunção

relativa – expressamente prevista em lei (art. 1.245, § 1o, do Código Civil e art. 252

da Lei de Registros Públicos) nada mais é do que um efeito natural da publicidade

registral. Também se percebeu que o máximo que se pode dizer com segurança é

que essa presunção cria uma aparência jurídica de que quem consta no registro

como titular de um direito realmente o é, mas isso de forma alguma acarreta dizer

que a presunção é absoluta. Sendo iuris tantum, também não produz efeito

saneador que, como se examinou no capítulo 3, não é produzido nem mesmo pelos

sistemas registrais alemão e espanhol, em que a fé pública registral está

consagrada em lei.

A aparência de bom direito é reforçada pelas características do sistema

registral imobiliário brasileiro, que, como se viu, foi aos poucos incorporando as

características dos sistemas de registro de direitos. Com efeito, dá-se publicidade

direta aos fatos jurídicos (e, de forma mediata, às situações jurídicas), não se

tratando o Registro de Imóveis de mero repositório de documentos. Os títulos são

analisados por agentes do Estado, que são os Oficiais de Registro de Imóveis,

profissionais do Direito altamente especializados, que promovem qualificação de

forma e fundo com rigor, impedindo, ao máximo, o acesso ao Registro de títulos

viciados. O exame dos títulos dá-se de modo imparcial e à luz dos mais importantes

princípios registrais, como os da continuidade, especialidade (objetiva, subjetiva e do

direito), prioridade e disponibilidade. Todos os atos de transmissão e oneração da

propriedade são obrigatoriamente registrados, não somente para que possam ser

oponíveis a terceiros, mas, de regra, para a própria constituição do direito, o que é

uma segurança a mais (princípios da obrigatoriedade e da inscrição). Desde 1976,

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com a Lei de Registros Públicos, adotou-se o sistema do fólio real, por meio do qual

todas as informações sobre o imóvel concentram-se na respectiva matrícula, de

maneira que a certidão do registro é suficiente para que terceiros saibam de toda a

situação jurídica do imóvel.

Até mesmo o vetusto argumento de que não se adotou a fé pública registral

no Brasil por faltar o cadastro dos imóveis foi superado. Isso ocorreu não porque

esse cadastro foi plenamente instituído e integrado com o Registro de Imóveis, mas

pelas características da própria matrícula, na qual o imóvel deve ser perfeitamente

identificado. As antigas e precárias descrições de imóveis deram lugar a

caracterizações precisas e que só têm avançado, acompanhando a evolução

tecnológica das modernas técnicas de agrimensura. Se o argumento da falta de

cadastro já não era muito técnico – afinal, a fé pública registral atinge apenas o

direito, e não os fatos, como as características físicas do imóvel –, tornou-se

absolutamente ultrapassado com o rigor com que se passou a entender o princípio

da especialidade objetiva. Nesse sentido, convém transcrever trecho da lição de

Leonardo Brandelli:

Embora não haja no Direito brasileiro, em regra, um cadastro perfeito, que defina com absoluta precisão o imóvel sobre o qual recaem os direitos, vinculado ao registro, que por sua vez definiria os direitos, o próprio registro vem convertendo-se em um, por assim dizer, quase cadastro, pois os requisitos de especialidade têm se tornado cada vez mais complexos, em busca de uma descrição cada vez mais precisa do imóvel, chegando-se até mesmo a exigir coordenadas georreferenciadas em determinados casos. Parece haver mesmo uma tendência de que o Registro Imobiliário venha a englobar o cadastro, que passaria a ser desnecessário, por consistir em um bis in idem.439

Apesar de todas essas características do sistema registral brasileiro, das duas

presunções de exatidão tipicamente produzidas pelos sistemas de registro, como

dito, apenas uma delas era expressamente adotada pela lei (princípio da

legitimidade registral). Enfim, das características básicas dos registros de direitos, o

grande questionamento no Brasil era justamente sobre a existência ou não do efeito

da fé pública registral (a segunda presunção de exatidão).

Viu-se que a doutrina e jurisprudência atuais são praticamente unânimes em

afirmar a inexistência do princípio da fé pública registral no Brasil, o que se revela

um contrassenso. O motivo dessa conclusão é o âmbito em que sempre se travou a

439 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

295.

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discussão sobre o assunto no Brasil. Buscava-se na legislação brasileira um

dispositivo semelhante ao § 892 do BGB, mas o máximo que se oferecia era o art.

859 do Código Civil de 1916, que estabelecia a presunção relativa de titularidade do

direito registrado. Como resume Leonardo Brandelli, travou-se um debate

desfocado, em que se buscava a fé pública registral como efeito da publicidade, o

que efetivamente não corresponde à realidade440.

Com efeito, é absolutamente contraditório que um Registro de Imóveis que

possua todas as características de um sistema de registro de direitos não possa

produzir seu principal efeito, que é justamente a fé pública registral. Tais sistemas

registrais são extremamente rigorosos justamente porque visam a equalizar as

seguranças jurídicas estática e dinâmica. Se é verdade que são voltados para a

tutela do tráfico jurídico, isto é, privilegiam o interesse da coletividade em detrimento

de interesses particulares nas situações em que efetivamente existe o conflito entre

o verdadeiro titular e o terceiro adquirente de boa-fé, também é verídico que tais

situações são extremamente raras. Busca-se a redução dos custos de transação,

por meio de drástica redução das assimetrias informacionais e de fixação de custos

módicos para a obtenção da certidão do registro, de modo a impulsionar os negócios

envolvendo imóveis, especialmente para que estes sirvam de garantia na concessão

de crédito. Para se exercer a nobre missão de propulsor do desenvolvimento

econômico, esse tipo de sistema é de manutenção mais custosa – afinal, seria muito

mais barato simplesmente arquivar os títulos. Se fosse para não haver fé pública

registral, seria mais racional adotar modelo mais rudimentar de registro imobiliário.

Nesse sentido, já se mencionou lição de Mónica Jardim, no sentido de que

normalmente existe uma relação direta entre a intensidade da qualificação registral e

a tutela conferida a terceiros. Igualmente, ao discorrer sobre os tímidos efeitos no

registro no sistema francês, Jose Manuel Garcia Garcia relaciona essa circunstância

diretamente à limitada qualificação exercida pelo Oficial de Registro nesse país441.

Em suma, não se pode privar o sistema registral imobiliário de seu mais

importante efeito. Na Espanha, José Luis Lacruz Berdejo assevera que o princípio

440 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p.

259-262. 441 GARCIA GARCIA, Jose Manuel. Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario. Madrid: Civitas,

1988. t. I, p. 353-354.

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da fé pública registral “constitui a chave de toda a abordagem registral”442, enquanto

Luis Alberto Aliaga Huaripata relata constar da exposição de motivos do Código Civil

peruano que esse princípio é considerado, no respectivo sistema registral, “a medula

central de sua estrutura e a expressão mais clara do escopo da proteção que o

registro brinda ao tráfego patrimonial”443.

Acredita-se que os argumentos acima articulados, já explorados em detalhes

ao longo deste trabalho, aliados ao reconhecimento de que o princípio da fé pública

registral corresponde à tutela da aparência jurídica no âmbito do Direito Registral

Imobiliário, seriam praticamente suficientes para se concluir pela vigência desse

princípio no Brasil, basicamente com a exigência dos requisitos gerais do princípio

da tutela da aparência jurídica.

Contudo, restaria ainda analisar dois óbices, também mencionados neste

estudo: o disposto no parágrafo único do art. 1.247 do Código Civil – que, segundo

seu idealizador, efetivamente visou a afastar a fé pública registral –, bem como a

discussão sobre a real existência de obrigatoriedade de concentração de todas as

informações relevantes sobre o imóvel na matrícula.

Essas duas questões, anteriormente de alta indagação, acabaram sendo

resolvidas com a entrada em vigor da Lei nº 13.097/2015444, que, conforme se

analisará no próximo capítulo, finalmente introduziu expressamente o princípio da fé

pública registral no ordenamento jurídico brasileiro.

442 LACRUZ BERDEJO, José Luis et al. Derecho Inmobiliario Registral. In: _____. Elementos de

Derecho Civil. 2. ed. Madrid: Dykinson, 2003. v. III bis, p. 44. 443 ALIAGA HUARIPATA, Luis Alberto. Os efeitos substantivos da inscrição e o papel do registro na

proteção do tráfego jurídico imobiliário. Tradução de Francisco Tost. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 26, n. 54, p. 84-98, jan./jun. 2003, p. 93.

444 BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores... Diário Oficial da União, 20 jan. 2015.

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6 ADOÇÃO DA FÉ PÚBLICA REGISTRAL NO BRASIL – LEI Nº 13.097/2015

Ao final do capítulo anterior, demonstrou-se que tanto a vigência do princípio

da tutela da aparência jurídica como as características do sistema registral

imobiliário brasileiro conduziam à conclusão, à primeira vista, de ser o registro

dotado de presunção de exatidão máxima, ou seja, tanto da legitimação registral (já

consagrada em lei desde o Código Civil de 1916), como da fé pública registral. Não

havendo lei expressa que estabelecesse esta, para sua aplicação seriam exigidos,

em regra, os requisitos gerais do princípio da tutela da aparência jurídica, sempre

com a ressalva de que, não sendo os princípios absolutos, havendo colisão entre

eles, dever-se-ia recorrer à ponderação nos casos concretos, de forma que nem

sempre prevaleceria a fé pública registral.

Contudo, do que já havia sido exposto até então, restavam dois obstáculos a

serem superados. O primeiro era a fragilidade do princípio da obrigatoriedade de

que todas as informações relativas ao imóvel constassem da respectiva matrícula,

na medida em que, apesar de tal norma ter previsão legal (art. 169, caput, da Lei de

Registros Públicos), sempre foi considerada pela doutrina como ônus, e não dever,

do interessado, porquanto não havia sanção para seu descumprimento445. Tal

obrigatoriedade não vinha sendo observada, e não havia meios de impor que o

fosse, de maneira que era de difícil defesa a posição de que se adotava o princípio

da concentração, ou seja, aquele que determina que todas as circunstâncias

relevantes sobre um imóvel deviam constar da matrícula, em especial aquelas cujo

objetivo é o de informar terceiros sobre restrições de quaisquer espécies sobre os

direitos, ainda que potenciais, de modo que interessados em sua aquisição não

tivessem que recorrer a informações extrarregistrais. Nessa esteira, a Lei nº

7.433/1985 expressamente exigia, como requisito para a lavratura de escrituras

públicas relativas a imóveis, apresentação de certidões de feitos ajuizados, o que

fortalecia ainda mais a percepção de que não era obrigatório o registro de citação

em ações reais e pessoais reipersecutórias (e outros atos semelhantes) na matrícula

do imóvel. Repita-se que nem sequer se pode cogitar da vigência do princípio da fé

445 Nesse sentido, vide CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 16. ed. atual.

até 30 de junho de 2005. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 370; CLÁPIS, Alexandre Laizo. Comentários ao art. 169 da Lei. In: ALVIM NETO, José Manuel de Arruda; CLÁPIS, Alexandre Laizo; CAMBLER, Everaldo Augusto (Coord.). Lei de Registros Públicos comentada: (Lei 6.015/1973) .Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 922-926.

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pública registral se não houver referida concentração, ainda que em todos os

sistemas registrais que adotam referido princípio haja exceções legais, como visto

nos casos alemão e espanhol.

O segundo obstáculo era o parágrafo único do art. 1.247 do Código Civil, cuja

interpretação literal conduzia ao entendimento de que o legislador expressamente

quis afastar o princípio da fé pública registral do ordenamento jurídico brasileiro.

Também se verificou que, de fato, foi essa a intenção do responsável pela redação

desse dispositivo, o jurista Ebert Chamoun. Esse óbice parecia ser de menor

importância, pois com a conclusão de que a fé pública registral nada mais é do que

o princípio da tutela da aparência aplicado à eficácia material do registro imobiliário,

bastaria interpretar-se sistemática e teleologicamente o dispositivo legal, de forma a

lhe dar sentido mais compatível com o Direito446.

Contudo, essas duas discussões ficaram ultrapassadas após a entrada em

vigor da Lei nº 13.097/2015, que efetivamente introduziu o princípio da fé pública

registral no Brasil. A redação dos dispositivos referentes a essa matéria não é a

mais adequada, o que torna árdua a tarefa do intérprete em compreender quais são

os requisitos para que terceiro adquirente goze dessa proteção no Brasil.

6.1 Da necessidade de concentração de todas as informações relevantes sobre

o imóvel na sua matrícula

De todas as características fundamentais de um verdadeiro sistema de

registro de direitos, viu-se, por toda a evolução pela qual passou o sistema

brasileiro, que faltava a este apenas a fé pública registral. Por sua vez, também já se

sabe que o mais sério fundamento para seu não acolhimento era a carência da

concentração de todas as informações relevantes sobre o imóvel em sua matrícula –

muito embora as discussões doutrinárias não focassem nessa questão, mas, sim,

nos efeitos da publicidade registral.

446 Assim, em sua obra, oriunda de tese de doutorado, redigida antes da edição da Lei nº

13.097/2015, Leonardo Brandelli sustentava: “Diz o artigo 1.247, parágrafo único, do Código Civil, que uma vez corrigido o registro que contenha erro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel de quem o tiver, independentemente da eventual boa-fé ou do título do terceiro adquirente. Todavia, há que se entender aqui que o terceiro adquirente a que se refere o artigo é o terceiro extrarregistral – isto é, aquele que não levou seu título a registro, e que, assim, não merece a proteção do princípio da tutela da aparência. Nesse caso, sendo a publicidade registral equivocada, poderá ser retificada, porque em matéria registral ainda se está na relação direta, embora possa ter havido ‘aquisição’ na esfera obrigacional” (BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 303).

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A carência de efeito da fé pública registral sempre resultou em grande

prejuízo à segurança do tráfico jurídico. Essa situação era bem descrita por Narciso

Orlandi Neto (apesar de o autor confundir fé pública com efeito saneador):

Sem fé pública, nosso registro não tem efeito saneador, convalidante. Eventuais nulidades e anulabilidades permanecem na corrente filiatória dos imóveis, a desafiar futuros adquirentes. Mesmo de boa fé, o adquirente pode vir a ter seu registro cancelado em conseqüência do reconhecimento judicial de uma fraude contra credores, viciando uma transmissão ocorrida alguns anos antes de sua aquisição. Uma aquisição a non domino num dos elos da corrente também é suficiente para determinar o cancelamento, na via judicial, de todos os registros posteriores.447

De fato, pela sistemática anterior à Lei nº 13.097/2015, a própria

consideração de ser um terceiro adquirente de boa-fé exigia que este adotasse

certas diligências, em especial a providência das certidões de feitos ajuizados, sob

pena de se considerar que nem mesmo existia boa-fé. Na prática, emitiam-se

certidões nos distribuidores das Justiças Estadual e Federal (Comum e do Trabalho)

dos locais de domicílio do transmitente e do imóvel, pois são esses os foros mais

comumente competentes para as ações cujo resultado pode acarretar a perda do

imóvel ou de um direito sobre este. Contudo, é notório que, pelas regras processuais

de competência, nem sempre as ações são obrigatoriamente ajuizadas nesses

foros, o que, por si só, demonstra o estado de insegurança jurídica que sempre

imperou448. Ademais, uma ação questionando a existência de vício em registro

anterior poderia ainda não ter sido ajuizada no momento de confecção do

instrumento aquisitivo, mas isso não impedia que, em sendo procedente, tal ação

atingisse adquirente de boa-fé que registrasse seu título.

Provavelmente, quem há mais tempo defende a adoção da concentração no

Brasil são Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva, que, em art.

originalmente publicado em 2000, já sustentavam que a matrícula deveria ser

completa a ponto de dispensar quaisquer outras diligências. Desse modo,

447 ORLANDI NETO, Narciso. Retificação no Registro de Imóveis. 2. ed. São Paulo: Juarez de

Oliveira, 1999. p. 71-72. 448 Assim, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald lecionam que, “se pende processo contra

o alienante em outro local (dentre os 5.570 municípios brasileiros) ou, se houver alterado o domicílio, infelizmente as certidões obtidas serão frágeis, incapazes de prevenir adequadamente o adquirente quanto aos riscos da evicção, a não ser que esse dedique seu tempo e energia à insana peregrinação em todos os locais em que o alienante esteve ou negociou, na busca por certidões negativas” (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Reais. 11. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015. (Curso de Direito Civil, 5). p. 310).

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sustentavam que na matricula deveriam constar não somente atos de transmissão

do domínio e de instituição de direitos reais, mas também:

[...] os atos judiciais, os atos que restringem a propriedade, os atos constritivos (penhoras, arrestos, seqüestros, embargos), mesmo de caráter acautelatório, as declarações de indisponibilidade, as ações pessoais reipersecutórias e as reais, os decretos de utilidade pública, as imissões nas expropriações, os decretos de quebra, os tombamentos, comodatos, as servidões administrativas, os protestos contra alienação de bem, os arrendamentos, as parcerias, enfim, todos os atos e fatos que possam implicar a alteração jurídica da coisa, mesmo em caráter secundário, mas que possa ser oponível (sic), sem a necessidade de buscar alhures informações outras, o que conspiraria contra a dinâmica da vida.449

Referidos autores retratam no Brasil os influxos de uma tendência mundial450.

De fato, a concentração de todas as informações relevantes sobre o imóvel em sua

matrícula, além de representar desburocratização para a realização de transações

imobiliárias, permite que agentes econômicos obtenham com facilidade e celeridade

todos os dados necessários para a tomada de decisões contratuais. Reduzem-se os

custos de transação, decorrentes principalmente de assimetrias informacionais,

aumenta-se a segurança jurídica e, com isso, estimulam-se negócios envolvendo

imóveis, obtendo-se maior crescimento econômico451.

O legislador esteve consciente acerca dessa situação, a qual foi bem descrita

na exposição de motivos da Medida Provisória no 656, de 7 de outubro de 2014452,

cuja aprovação resultou na Lei nº 13.097/2015, da qual se reproduzem alguns

trechos:

58. O Projeto de Medida Provisória visa também (sic) adotar o princípio da concentração de dados nas matrículas dos imóveis, mantidas nos Serviços de Registro de Imóveis.

59. Atualmente, a operação de compra e venda de um imóvel é cercada de assimetria de informação. De um lado, o vendedor tem informações mais precisas sobre sua própria situação jurídica e financeira e sobre a situação física e jurídica do imóvel. Do outro lado, o comprador e o financiador não

449 ERPEN, Décio Antônio; LAMANA PAIVA, João Pedro. A autonomia registral e o princípio da

concentração. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Evolução histórica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 419-426. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 7). p. 423.

450 Segundo Leonardo Brandelli, “Inegável a tendência civilista e registral mundial de se levar ao registro imobiliário todas as situações jurídicas imobiliárias, reais e pessoais, que tenham o condão de atingir terceiros” (BRANDELLI, Leonardo. Publicidade registral imobiliária: uma breve análise da eficácia dos direitos reais e obrigacionais. In: BRANDELLI, Leonardo (Coord.). Direito Civil e Registro de Imóveis. São Paulo: Método, 2007. p. 239-244, p. 243).

451 MÉNDEZ GONZÁLEZ, Fernando P. A função econômica da publicidade registral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 26, n. 55, p. 133-159, jul./dez. 2003. p. 155.

452 BRASIL. Medida Provisória nº 656, de 7 de outubro de 2014. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS… Diário Oficial da União, Brasília, 8 out. 2014.

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possuem, de pronto, essas informações, devendo buscá-las em fontes fidedignas.

60. Os registros cartorários constituem-se em uma das mais importantes fontes de informação sobre a condição jurídica do imóvel, do vendedor e do comprador. Lamentavelmente, no Brasil, essa informação está dispersa em diversos tipos de cartórios e por toda a extensão do País. [...]

65. Trata-se de procedimento [o acolhimento da concentração] que contribuirá decisivamente para aumento da segurança jurídica dos negócios, assim como para desburocratização dos procedimentos dos negócios imobiliários, em geral, e da concessão de crédito, em particular, além de redução de custos e celeridade dos negócios, pois, num único instrumento (matrícula), o interessado terá acesso a todas as informações que possam atingir o imóvel, circunstância que dispensaria a busca e o exame de um sem número de certidões e, principalmente, afastaria o potencial risco de atos de constrição oriundos de ações que tramitem em comarcas distintas da situação do imóvel e do domicílio das partes.453

Mais do que tratar da concentração, a Lei nº 13.097/2015 versa, no que

interessa a este estudo, sobre a fé pública registral. É de se lamentar que tema de

tamanha importância tenha sido tratado em meio a diversos outros, com os quais

não guarda nenhuma proximidade, tais como desoneração de partes utilizadas em

aerogeradores e operações de crédito com desconto em folha de pagamento. A fé

pública registral consiste em efeito material do registro imobiliário, de modo que

seria mais adequado ter-se promovido alteração no Código Civil, com inserção dos

novos preceitos legais em dispositivos próximos aos que definem o efeito

constitutivo do registro e a adoção da legitimação registral (essa foi a sistemática

usada pelo BGB). No mínimo, dever-se-ia ter promovido alteração na Lei de

Registros Públicos, apesar de ser esta mais apropriada para regras de direito formal,

mas certamente assim a importante inovação legislativa chegaria ao efetivo

conhecimento dos juristas que lidam com o Direito Imobiliário. Como afirma Ivan

Jacopetti do Lago, “O fato de essa matéria ter sido abordada em uma ‘lei menor’

poderá, infelizmente, contribuir para sua inefetividade, em prejuízo da segurança

jurídica e da economia do país”454.

Essa circunstância lastimável torna ainda mais importante que estudos como

este sejam levados à discussão na Academia, de maneira a divulgar para a

453 BRASIL. Ministério da Fazenda, Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho, Ministério da

Indústria, Comércio Exterior e BACEN. EMI nº 00144/2014 MF MJ MTE MDIC BACEN. Brasília, 12 de setembro de 2014.

454 LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 37.

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comunidade jurídica em geral que, finalmente, o Brasil passou a ser dotado de um

verdadeiro sistema de registro de direitos.

6.2 Das modalidades de proteção a terceiros instituídas pela Lei no 13.097/2015

A proteção do terceiro que confia na aparência do bom direito gerada pela

publicidade registral foi regulamentada, em seu cerne, pelos arts. 54 e 55 da Lei nº

13.097/2015, sendo que o primeiro se destina a uma tutela da generalidade das

situações jurídicas, ao passo que o segundo, a salvaguardar com mais intensidade

terceiros adquirentes de unidades autônomas e lotes, nos casos em que a transação

se dê diretamente com o empreendedor.

A má técnica legislativa empregada no art. 54 faz com que haja dois

entendimentos sobre sua abrangência: a primeira, no sentido de que todo ele se

refere à regra geral da fé pública registral; a segunda, sustentando que seu caput e

respectivos incisos expressam reforço ao princípio da inoponibilidade, ao passo de

que a regra geral da fé pública registral encontra-se em seu parágrafo único. Como

se verá adiante, ao longo do tratamento da matéria, reputa-se a segunda opinião

como tecnicamente mais correta. Quanto ao art. 55, não parece haver

questionamento sobre seu objeto, que é a fé pública registral, em emprego

específico às situações acima mencionadas.

É de se ressaltar que a doutrina nacional é bastante incipiente e escassa

sobre o assunto, motivo pelo qual sobreleva a importância de se recorrer aos

ensinamentos sobre os sistemas registrais alemão e espanhol, que há muito tempo

consagraram o princípio da fé pública, às normas gerais do princípio da tutela da

aparência jurídica, fundamento direto da fé pública registral, bem como aos

princípios que mediatamente sustentam a tutela da aparência (Estado de Direito,

segurança jurídica e tutela da confiança).

6.2.1 Reforço ao princípio da inoponibilidade

O princípio da inoponibilidade vigora até mesmo nos sistemas de registro de

documentos, em que adquire o sentido de que somente o inscrito pode ser oponível

a terceiros e, consequentemente, considera-se como se não existisse o não inscrito

(logo, títulos não inscritos são inoponíveis a terceiros). Nesses sistemas, referido

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princípio consiste em importante forma de controle da prioridade: se, por acaso, o

proprietário transmite a totalidade de um imóvel a duas pessoas, prevalecerá o

direito decorrente do título que for inscrito com anterioridade, independentemente de

ter sido ou não o primeiro a ser lavrado. Registrado o título que primeiro ingressou

no Registro Imobiliário, o outro será inoponível ao adquirente inscrito. É nessa

acepção que o sistema francês recepciona o princípio da inoponibilidade.

Nos sistemas de registro de direitos, a inoponibilidade engloba esse mesmo

sentido produzido nos sistemas de registro de documentos, mas possui abrangência

muito maior. Com efeito, como já se havia explicitado no item 2.2.5, nesses sistemas

existe a compreensão de que o registro deve refletir, em sua totalidade, a realidade

jurídica do imóvel e de tudo o que possa ser relevante a terceiros (mirror principle).

Assim, a inoponibilidade acarreta muito mais do que forma de controle de prioridade

de títulos, assumindo a perspectiva de que a falta de inscrição de qualquer situação

jurídica que deva produzir efeitos erga omnes acarreta sua inoponibilidade a

terceiros. Ou seja, a publicidade registral imobiliária é insubstituível: ainda que, por

exemplo, seja público processo em que o atual proprietário de um imóvel seja réu

em ação reivindicatória, esta somente poderia ser oponível a terceiro que viesse a

adquirir direito sobre o imóvel (por exemplo, por sua compra e registro do respectivo

título) se tivesse havido prévia inscrição acerca da sua existência na matrícula do

imóvel.

Exemplo de sistema registral que adota o princípio da inoponibilidade em toda

sua abrangência é o espanhol. Como visto, o art. 32 da Lei Hipotecária desse país

expressa um sentido mais restrito da inoponibilidade, dispondo que títulos de

domínio e de outros direitos reais sobre imóveis que não estejam registrados não

podem prejudicar terceiro. Contudo sua amplitude se revela no art. 34, como um

elemento da fé pública registral, quando preceitua que o terceiro hipotecário não

perderá seu direito em virtude de causas que não constassem do registro. Por

conseguinte, qualquer circunstância que pudesse limitar o direito do transmitente,

ainda que apenas em potencial, já deveria ter sido inscrita, de modo que o

adquirente dela pudesse ter conhecimento e, dessa forma, fosse por ela atingido.

No Brasil, até a entrada em vigor da Lei nº 13.097/2015, o que havia de mais

próximo a esses dispositivos da Lei Hipotecária espanhola eram o art. 169 da Lei de

Registros Públicos, segundo o qual os atos de registro e averbação arrolados no art.

167 dessa mesma lei são obrigatórios – o que, repita-se, sempre foi entendido como

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ônus, e não como dever –, assim como o efeito constitutivo do registro, que

praticamente substitui o citado art. 32, na medida em que, como regra, a sanção

para a falta de registro de títulos de transmissão, constituição e modificação de

direitos reais é a de que tais títulos não adquirem transcendência real, restringindo-

se a produzir direitos obrigacionais, ou seja, efeitos inter partes. Reitere-se que esse

entendimento sobre a tímida amplitude do princípio da inoponibilidade era

confirmado pela Lei nº 7.433/1985, que, ao exigir a apresentação ao tabelião de

certidões de feitos ajuizados para a lavratura de escrituras públicas relativas a

imóveis, implicava que mesmo as ações judiciais não publicizadas na matrícula do

imóvel produziam efeitos em relação a terceiros.

Para permitir a análise da inovação legislativa, reproduzem-se o caput e

respectivos incisos do art. 54 da Lei nº 13.097/2015:

Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.455

A contrario sensu, o dispositivo legal preceitua que as circunstâncias

arroladas em seus incisos serão ineficazes, se previamente não constarem da

matrícula, perante negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou

modificar direitos reais sobre imóveis. Esse raciocínio mantém sua pertinência

mesmo quanto a negócios celebrados com terceiros de má-fé, cujos direitos

prevalecerão, a despeito das referidas circunstâncias – não previamente registradas

ou averbadas –, desde que os títulos que os veiculem sejam registrados.

Nesse sentido, Ivan Jacopetti do Lago explica que a proteção ao terceiro

conferida pelo caput do art. 54 e respectivos incisos consiste em mera

455 BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para

o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores... Diário Oficial da União, 20 jan. 2015.

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inoponibilidade, e não propriamente fé pública registral456, pois seu objetivo “é

assegurar a eficácia de negócio que constitua, modifique ou transfira direitos sobre o

imóvel (alienações, constituições de direitos reais limitados etc.), recebendo a

proteção aquele que deles se beneficie”. Acrescenta o autor um detalhe da maior

importância: tal tutela refere-se unicamente a “atos precedentes, sejam eles relativos

ao alienante, diretamente; ou a anteriores titulares do bem”457.

Fica patente, assim, a limitação dos efeitos do dispositivo legal: apenas e tão

somente com relação ao registro de títulos que veiculem “negócios jurídicos que

tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis”, são

inoponíveis as circunstâncias arroladas nos incs. I a IV do art. 54, caput, se não

tiverem sido objeto de prévio registro ou averbação. Entretanto o preceito legal em

nada afeta ações que sejam ajuizadas posteriormente ao registro de seu título, como

na situação em que antigo proprietário de imóvel, posteriormente ao último registro,

venha a alegar a nulidade do título cujo registro acarretou sua transferência a

terceiro, já tendo havido diversos registros posteriores de alienação até se chegar ao

do atual proprietário tabular. Se o registro antigo for declarado nulo por juiz, todos os

subsequentes também serão cancelados, inclusive o do último adquirente, a não ser

que este receba a proteção da fé pública registral, analisada adiante.

Realmente, o trecho do art. 54 ora analisado não trata da fé pública registral,

pois o alcance desta é muito mais extenso. Na realidade, a fé pública registral já

acarretaria a inoponibilidade a que se refere o caput do art. 54 (embora com o

condicionante da boa-fé do terceiro adquirente). De qualquer maneira, o dispositivo

legal acima transcrito deve ser saudado, por seu efeito didático, pois institui

claramente a efetiva obrigatoriedade de registro ou averbação de todas as

informações a que se referem os seus incisos.

Principalmente com relação às ações e outras constrições judiciais, inverte-se

a lógica que imperava no Brasil. Até a entrada em vigor da Lei nº 13.097/2015, era

permitida a inscrição dessas circunstâncias judiciais, mas tal prática nunca foi

corriqueira, pois, por força da Lei nº 7.433/1985, entendia-se que cabia ao

456 Cumpre mencionar posição contrária de Marinho Dembinski Kern, para quem o caput do art. 54

expressa a conotação positiva da fé pública registral, ao passo que seu parágrafo único revela conotação negativa (KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 30-33).

457 LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 40.

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adquirente do direito tomar as diligências necessárias para obter as “certidões de

feitos ajuizados”. Se não o fizesse – o que se admitia em vários Estados do Brasil,

como já relatado –, assumia ele todo o risco da transação458.

Com a nova lei, houve uma importante mudança: o interessado em ter seu

direito eventual protegido, caso seja vencedor em demanda judicial (por exemplo, o

autor de ação real, pessoal reipersecutória ou de qualquer outra ação que possa

levar o proprietário de imóvel à insolvência, ou o que promove execução judicial em

face de titular de direito inscrito), se quiser garantir o efetivo proveito do resultado de

seu processo, deverá providenciar os registros ou averbações que publicizem sua

existência em matrículas de imóveis do réu. Do contrário, não poderá opor decisão

que lhe seja favorável a terceiro adquirente de direito real por negócio jurídico, ainda

que este saiba da existência da ação – afinal, o dispositivo legal nem sequer exige

boa-fé, o que não é contraditório com o sistema, porquanto se trata de mera

inoponibilidade.

Desse modo, o disposto no art. 54, caput, é incompatível com a antiga

exigência da apresentação de certidões de feitos ajuizados ao tabelião, para a

lavratura de escritura pública relativa a imóvel. Não foi por outro motivo que a Lei nº

13.097/2015, em seu art. 59, deu nova redação ao § 2o do art. 1o da Lei nº

7.433/1985, suprimindo a exigência de certidões de feitos ajuizados para a lavratura

de escrituras públicas relativas a imóveis.

Ressalta-se que a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil459 em

nada alterou o teor dos incs. II e IV do art. 54 da Lei nº 13.097/2015, uma vez que os

dispositivos a que se referem, do Código de Processo Civil de 1973460, têm preceitos

legais correspondentes na nova codificação, com pequenas alterações de redação

que não acarretaram modificações substanciais de conteúdo461.

458 Melhim Namem Chalhub realça que, como inoponibilidade e oponibilidade são o verso e o reverso

da mesma moeda, fica evidente que, como efeito da publicidade registral, os registros e averbações promovidos nos termos do caput do art. 54 gozarão de natural presunção absoluta de conhecimento por terceiros, desde o momento da prenotação do título que, qualificado positivamente, redundou na prática do ato registral. (CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 4. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Forense, 2017. p. 298).

459 BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015.

460 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 jan. 1973.

461 Assim, o antigo art. 615-A corresponde ao art. 828 do novo Código de Processo Civil, ao passo que o anterior art. 593, inc. II, corresponde ao atual art. 792, inc. IV.

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6.2.2 Regra geral da fé pública registral: proteção ao terceiro adquirente de

boa-fé

Conforme se aduziu anteriormente, por falha de técnica legislativa, no mesmo

dispositivo em que se expandiu o princípio da inoponibilidade a situações elencadas

em rol numerus clausus, previu-se também o princípio da fé pública registral, que,

como não poderia deixar de ser, não sofre esse tipo de restrição – de regra,

quaisquer informações relativas ao direito inscrito que não constem da matrícula são

ineficazes com relação ao terceiro adquirente –, ao mesmo tempo que naturalmente

a lei impôs alguns requisitos para que tal princípio produza efeitos. Cumpre, assim,

reproduzir o teor do parágrafo único do art. 54 da Lei nº 13.097/2015:

Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei no 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.462

Na realidade, não chega a haver incompatibilidade entre o parágrafo único e o

caput do dispositivo legal, mas simplesmente o conteúdo do parágrafo único engloba

o do caput (afinal, as circunstâncias de inoponibilidade a que se refere o caput

também se aplicam à fé pública registral) e vai bastante além, ao mesmo tempo que

adiciona requisito de aplicabilidade, que é a boa-fé do adquirente, e cria exceções

ao princípio. Assim, não há propriamente uma interpretação isolada do parágrafo

único em relação ao caput, apenas a manutenção da regra de hermenêutica

segundo a qual ambos devem ser examinados em harmonia.

6.2.2.1 Do efetivo acolhimento do princípio da fé pública registral

Verifica-se que o parágrafo único do art. 54 efetivamente instituiu a eficácia

material do registro imobiliário, porquanto tornou regra, no Direito brasileiro, que o

terceiro adquirente de boa-fé não pode ser prejudicado por circunstância da qual não

teve conhecimento prévio a partir da publicidade registral de seu título (ressalvadas

exceções legais). De forma análoga ao terceiro hipotecário do Direito Espanhol –

462 BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para

o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores... Diário Oficial da União, Brasília, 20 jan. 2015.

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nome que se dá ao adquirente protegido pela fé pública registral –, pode-se falar no

Brasil de um terceiro registral.

Vê-se que o parágrafo único expande sobremaneira a proteção ao terceiro

que adquire ou recebe em garantia direitos reais sobre imóvel, protegendo-o, como

regra, de quaisquer situações jurídicas não constantes da matrícula. Assim, tendo o

verdadeiro proprietário perdido seu imóvel em razão de registro viciado subsequente

ao seu, não terá êxito na demanda de reconhecimento do vício e consequente

cancelamento desse ato registral, caso o terceiro registral não tenha tido acesso à

informação sobre esse vício, seja diretamente pela certidão da matrícula (na

verdade, o que importa é haver ou não a informação no momento em que o título do

terceiro é apresentado a registro463), seja por outros meios (pois se exige conduta de

boa-fé). Assim, nada impede que, nesse tipo de situação, haja aquisições a non

domino, que, atendidos os requisitos legais, deverão ser mantidas464.

Remete-se aqui à mesma ideia existente em outros ordenamentos jurídicos,

como o alemão e o espanhol: uma vez praticado o registro, este produz presunção

relativa de validade – princípio da legitimação registral, acolhido no Brasil desde o

Código Civil de 1916. Nada impede que, na relação direta entre as partes que

celebraram o último negócio jurídico registrado, haja questionamentos sobre sua

existência, validade ou eficácia e, havendo o reconhecimento judicial do vício, ocorra

o cancelamento do ato registral. Por exemplo, pode-se reconhecer que o título

463 Trata-se de decorrência do princípio da prioridade: prevalece o direito daquele que primeiro

acedeu ao Registro. Assim, sempre haverá um pequeno intervalo, entre a instrumentalização do título e a sua apresentação a registro, em que o adquirente de um título corre o risco de que ingressem títulos que veiculem direitos contraditórios ao seu ou determinações judiciais que tornem o imóvel indisponível, os quais podem ou não impedir o registro, dependendo de seu conteúdo (por exemplo, a averbação que dá publicidade à existência de execução em face do transmitente faz com que haja a possibilidade de se reconhecer que a aquisição deu-se em fraude à execução, mas não impede o seu registro). Daí a importância de se proceder rapidamente ao registro imobiliário. Diante da falta do instituto da reserva de prioridade no Brasil, que permite ao adquirente ou credor proteger-se da prenotação de títulos contraditórios com seus interesses no ínterim entre a expedição da certidão da matrícula e a apresentação do título a registro, a melhor solução existente é a prenotação imediata do título, por meio das Centrais Eletrônicas de Registro de Imóveis, já existentes em diversos Estados do Brasil. Sobre a reserva de prioridade, vide LAMANA PAIVA, João Pedro. A reserva de prioridade e o Registro de Imóveis. Boletim Eletrônico do IRIB, nº 3.190, de 09/11/2007.

464 Nesse sentido, Ivan Jacopetti do Lago conclui que se “limita a possibilidade de reivindicação do bem, por um lado, bem como da sua evicção, por outro” (LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 40).

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registrado era inválido, de maneira que o respectivo registro não pode subsistir.

Enquanto o direito não circula, a fé pública registral não gera nenhum efeito465.

De fato, a fé pública registral atende principalmente à segurança do tráfico,

tendo como principal objetivo proteger terceiros contra riscos de que não tinham

conhecimento, ao mesmo tempo que se limitam as informações a que qualquer

interessado em adquirir um imóvel ou aceitar imóvel em garantia precisa ter acesso.

Procura-se dinamizar o mercado e propulsionar a geração de riquezas. Assim, a fé

pública registral somente atua quando surge a figura do terceiro, definido como

“alguém que não adquiriu o bem ou o direito diretamente daquele que teve sua

situação jurídica violada”466.

Assim, se A vende um imóvel a B, tendo o vendedor sido coagido pelo

comprador, enquanto B não o transferir a outrem, está-se no âmbito de uma relação

direta. Nada impede, assim, que A ajuíze ação de anulação do contrato de compra e

venda, a fim de cancelar o respectivo registro. Vê-se, portanto, a importância de A

providenciar o registro da citação de B o mais rápido possível, pois, se não o fizer,

eventual adquirente desse mesmo imóvel estará protegido pela mera inoponibilidade

(art. 54, caput), esteja ou não de boa-fé. Esse efeito, todavia, só protege o

adquirente com relação a fatos anteriores ao registro de sua aquisição.

Suponha-se, porém, que o terceiro de boa-fé C venha a adquirir o imóvel de B

e que A ajuíze a ação anulatória apenas após C já ter registrado sua compra e

venda. Aqui já não se está mais no âmbito da relação direta de A e B. Contudo,

nada impede que A proponha essa ação. Entretanto, ainda que seja julgada

procedente, seu resultado não será oponível a C, que não tinha conhecimento sobre

o vício no contrato entre A e B467. Assim, em razão da eficácia material do registro, C

não poderá ser prejudicado, mantendo-se íntegro o registro do contrato viciado468.

465 Recorda-se que, embora sendo o sistema jurídico alemão abstrato, existe causalidade entre o

acordo real e o registro, de modo que vícios naquele afetam este, enquanto o direito não circula. Já na Espanha e no Brasil, a causalidade relativa entre os planos obrigacional e real permite que a análise seja mais ampla, de forma que vícios obrigacionais podem ter reflexos no plano real, atingindo o registro.

466 LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 41.

467 Reitera-se que o princípio da fé pública registral atua no plano da eficácia do ato jurídico. Nada impede o reconhecimento de inexistência ou invalidade desse ato, que produzirá seus efeitos normais, exceto com relação àquele terceiro, com relação ao qual não terá eficácia.

468 A manutenção de registro viciado não é novidade na legislação brasileira. Com efeito, o art. 214 da Lei de Registros Públicos, com redação dada pela Lei 10.931/2004, prevê, como regra geral, em seu caput, que “As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no,

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Não tendo o verdadeiro proprietário A como retomar o imóvel, surge em seu favor

direito obrigacional contra B, de ser indenizado pelos prejuízos sofridos469.

Ressalta-se que, nessa situação, uma vez estando C protegido pela fé pública

registral e não havendo mais como se cancelar o registro da venda de A para B,

todos os posteriores subadquirentes também estarão salvaguardados quanto ao

vício na relação entre A e B, ainda que estejam cientes quanto à sua existência. É

nesse sentido que se diz que a fé pública registral, uma vez incidindo sobre

determinada inscrição, cria uma barreira que impede o cancelamento de vícios que

venham a ser reconhecidos em atos anteriores da cadeia dominial, os quais serão

inoponíveis inclusive aos subadquirentes. Em outras palavras, com relação ao

terceiro registral e aos subadquirentes, o registro viciado deixa de produzir apenas

presunção iuris tantum de veracidade e validade, decorrente da legitimação registral,

passando a haver, em seu lugar, presunção iuris et de iure.

Apesar disso, se a fé pública apenas faz com que vícios em atos anteriores

ao do terceiro adquirente de boa-fé lhe sejam inoponíveis, não é adequado afirmar

que se instituiu o efeito saneador do registro. De fato, o registro viciado permanece

eivado de vícios, tanto que o prejudicado possui o direito de ser ressarcido pelos

prejuízos sofridos. Em juízo, reconhecer-se-á a inexistência ou invalidade do registro

(normalmente, como decorrência de tais vícios atingirem o título), mas apenas

estará o juiz impedido de determinar o cancelamento desse registro, porquanto a

decisão judicial não é oponível àquele terceiro.

Dessa forma, a fé pública registral substitui a regra de propriedade para a

solução desse tipo de conflito pela regra de responsabilidade. Não se pune o

terceiro adquirente de boa-fé por fato de que não podia ter conhecimento, de modo

que se mantém seu direito real, ao mesmo tempo que se protege o prejudicado,

conferindo-lhe o direito pessoal de ser ressarcido por seus danos.

O fundamento da fé pública registral consagrada no dispositivo legal ora

analisado não poderia ser outro: tutela-se a aparência de bom direito decorrente da

independentemente de ação direta”. Porém, se o registro inválido for de título pelo qual terceiro de boa-fé adquiriu o imóvel, já tendo ele preenchido os requisitos da usucapião, determina o parágrafo 5º que a “nulidade não será decretada”.

469 Nesse sentido, Marcelo Terra, que concordava com as opiniões favoráveis à fé pública registral de juristas como Lysippo Garcia, Clóvis Beviláqua e Serpa Lopes, asseverava que “Entre os contratantes o registro vale até prova em contrário, mantendo toda sua eficácia a regra Nemo plus jus ad alium transfere potest quam ipse habet. Para terceiros de boa-fé, do registro deriva fé pública” (TERRA, Marcelo. A fé pública registral. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 26, p. 36-56, jul./dez. 1990. p. 44).

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publicidade registral, tendo-se em vista tratar-se de publicidade levada a cabo por

agente público, após rigorosa qualificação de forma e fundo dos títulos que lhe são

apresentados. Ou seja, essa aparência digna de proteção decorre da natural

confiança legitimamente depositada por terceiros na instituição do Registro

Imobiliário, a qual não pode ser desconsiderada, sob pena de se violarem os

princípios constitucionais da segurança jurídica e do Estado de Direito.

6.2.2.2 Requisitos da fé pública registral segundo a regra de aplicação geral

O parágrafo único do art. 54 da Lei nº 13.097/2015, em sua estrita literalidade,

não parece suficiente para que se estabeleçam os requisitos da fé pública registral,

tal como concebida pelo legislador brasileiro. Há requisitos óbvios – ínsitos ao

próprio conceito desse princípio – que não se encontram expressos. Isso,

evidentemente, não acarreta sua desnecessidade. Ademais, por ora, praticamente

inexiste doutrina e jurisprudência sobre o assunto. Nesse contexto, o que se afigura

mais técnico é recorrer não somente ao texto do dispositivo legal, mas também aos

requisitos gerais do princípio da tutela da aparência, bem como às consolidadas

regulamentações da fé pública registral na Alemanha e Espanha, no que for

aplicável.

Assim, procura-se arrolar a seguir os requisitos que se reputam

indispensáveis para a incidência do princípio da fé pública registral, em sua

conformação genérica:

a) Existência de inexatidão registral. Viu-se que é requisito geral de aplicação

do princípio da tutela da aparência a ocorrência de externalização objetiva de fatos

de que derive uma das seguintes situações: a percepção de ser existente um direito

subjetivo que, na verdade, não existe; ou de ser determinada pessoa titular de um

direito, ou de ter poderes para deste dispor, sem que isso corresponda à realidade.

Todas essas situações podem ocorrer a partir da publicidade imobiliária, de que

decorre aparência de direito digna de confiança legítima. Tais ocorrências

correspondem ao que se chamou de “inexatidão registral”, cuja caracterização é

imprescindível para a incidência da fé pública registral nos sistemas alemão e

espanhol.

A inexatidão registral é definida, pela Lei Hipotecária espanhola, como

qualquer desconformidade entre o registro e a realidade extrarregistral. Trata-se de

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conceito correto, pois corresponde à configuração de vício registral em sentido

amplo, isto é, que pode se manifestar no título ou no próprio registro. Abrange,

assim, as três modalidades de vícios, isto é, nulidades exclusivamente formais,

mistas ou do título causal, segundo classificação de Serpa Lopes (vide item 3.1.2

supra). Em função da adoção da causalidade relativa pelo sistema jurídico brasileiro,

não somente as disposições de caráter real do título podem afetar o registro, mas

também as obrigacionais.

Em suma, a inexatidão registral é requisito geral da fé pública registral em

qualquer ordenamento jurídico que a recepcione, de maneira que deve haver algum

vício em ato registral anterior que potencialmente possa atingir o direito do terceiro

adquirente, prejudicando-o.

b) Registro do título pelo terceiro adquirente. É irrefutável que somente

interessam ao sistema registral imobiliário os títulos já registrados, aos quais se

confere proteção, equivalendo os demais, não apresentados a registro ou que o

tiveram indeferido, a títulos inexistentes (na realidade, são inoponíveis, pois se

presume a completude e exatidão do sistema registral470).

Na verdade, todo título apresentado ao Registro de Imóveis é objeto de

prenotação, que corresponde a seu lançamento no Livro de Protocolo. Em seguida,

o Oficial de Registro ou preposto autorizado realiza a qualificação de forma e fundo

do título, verificando igualmente sua relação com os registros já efetuados na

matrícula (ou seja, se há respeito a relevantes princípios registrais, como os da

continuidade e da disponibilidade). Sendo a qualificação positiva, no prazo máximo

de 30 dias é praticado o registro, cuja eficácia retroage à data da prenotação. Do

contrário, o Oficial expede nota de devolução, em que formula exigências para que o

título seja registrado. O interessado pode cumpri-las ou, se delas discordar ou não

as puder cumprir, pode solicitar ao Oficial que suscite dúvida ao juízo competente.

Nessa situação, prorroga-se a validade da prenotação e, se o juiz vier a julgar a

dúvida improcedente (ou seja, se der razão ao interessado), o registro deverá ser

praticado, produzindo efeitos desde a data da prenotação.

Feito o registro, o adquirente torna-se um titular registral. De qualquer modo,

para fins de aplicação do princípio da fé pública registral, é relevante reiterar que,

470 As presunções de completude e exatidão do registro decorrem da legitimação registral, e não da

fé pública registral, motivo pelo qual são sempre iuris tantum. De fato, se a partir de um registro presume-se, ainda que relativamente, que o titular nele inscrito é o titular do direito, pressupõe-se não só que a matrícula é completa, mas também que seus assentos são exatos.

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com relação a atos de registro anteriores, ele sempre é considerado um terceiro,

pois não foi parte nos títulos que deram origem àqueles atos. Daí se falar em

terceiro registral.

c) Aquisição por negócio jurídico oneroso que vise a constituir, transferir ou

modificar direitos reais sobre imóveis. Como se afirmou anteriormente, é preciso

interpretar o parágrafo único de forma harmônica com o caput do art. 54 da Lei no

13.097/2015. Assim, o terceiro de boa-fé que adquire ou recebe em garantia direitos

reais sobre o imóvel – a que se refere o parágrafo único – deve fazê-lo por meio de

negócio jurídico, nos termos do caput. Por conseguinte, ficam excluídas da proteção

da fé pública registral as aquisições de direitos reais que se dão por atos judiciais,

administrativos e por força de lei, como a sucessão causa mortis e a usucapião, de

forma semelhante ao que ocorre no Direito alemão. Outrossim, por expressa

disposição legal, restringindo-se a eficácia material do registro a direitos reais,

direitos obrigacionais que possam ser objeto de registro, embora tenham eficácia

real, não são acobertados pela fé pública registral.

Pontes de Miranda, que defendia a vigência da fé pública registral ainda à

época em que vigorava o Código Civil de 1916, já sustentava ser o princípio

aplicável apenas aos negócios jurídicos inter vivos, porquanto sua finalidade era a

de proteger a segurança do tráfico471.

Leonardo Brandelli, ao discorrer sobre o que entendia serem os requisitos

prima facie de aplicação da fé pública registral, explicava satisfatoriamente o porquê

de não se tutelarem, por esse meio, os atos de aquisição que se dessem por meios

judiciais:

Da mesma forma, uma arrematação em execução judicial não será tutelada, por não se tratar de negócio jurídico de transmissão, na medida em que não há um entrelaçamento de vontades com o intuito de transmitir a propriedade de certa coisa, mas sim um ato estatal de transmissão forçada. Poderá, nessa hipótese, haver a proteção do adquirente de boa-fé por algum outro instituto jurídico como o da coisa julgada, por exemplo, mas não como decorrência da publicidade registral.472

471 Realmente, ensinava o autor que a “aquisição em virtude da transcrição com fé pública (arts. 530,

I, e 531) funda-se em que a segurança do tráfico exige que se dê ao registo, em certos casos, tal fé. Por isso, são os negócios jurídicos entre vivos tratados especialmente, limitando-se a êles tal eficácia da fé pública” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Direito das Coisas: propriedade, aquisição da propriedade imobiliária. Atual. por Luiz Edson Fachin. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. (Coleção Tratado de Direito Privado: parte especial, 11). p. 361-362).

472 BRANDELLI, Leonardo. Registro de Imóveis: eficácia material. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 206.

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De qualquer modo, conforme se examinará adiante, a Lei nº 13.097/2015

erige à categoria de exceções à fé pública registral os atos de aquisição que

decorram diretamente de lei, como a usucapião e a aquisição por sucessão

hereditária. Ou seja, tais situações recebem proteção ainda maior do que as

abrangidas pelo princípio, afinal este nem sequer as afeta. Também não geram

preocupações a terceiros os atos de aquisição judicial, pois, como indica Leonardo

Brandelli no trecho de sua obra acima transcrito, são eles protegidos pela coisa

julgada, princípio fundamental garantido pelo art. 5o, inc. XXXVI, da Constituição

Federal.

A fé pública registral não alcança os fatos, tais como elementos da descrição

do imóvel (por exemplo, se há ou não construção edificada, área, medidas

perimetrais) e dados de qualificação das partes, mas apenas direitos. Não poderia

ser diferente, uma vez que a realidade fática necessariamente se impõe: se o imóvel

descrito em matrícula possui conformação física diversa da que nela consta ou se o

proprietário teve seu estado civil incorretamente indicado, não há como se sustentar

a inoponibilidade dessas circunstâncias a um terceiro adquirente de boa-fé. No

limite, se ele vier a sofrer prejuízos por falhas de descrição do imóvel, em que

confiou para a celebração de negócio jurídico, tendo sido estas determinantes para a

fixação de seu valor (imaginou ter o imóvel área bem maior do que a real, em

compra e venda ad mensuram, por exemplo), poderá pleitear indenização por

perdas e danos, desde que preenchidos os requisitos legais da responsabilidade

civil.

A Lei nº 13.097/2015 não exigiu expressamente a onerosidade do negócio

jurídico como requisito da fé pública registral. Trata-se de omissão censurável, pois,

como já se comentou, tal princípio implica necessariamente o sacrifício do direito do

verdadeiro proprietário, para que prevaleça o do terceiro adquirente, em prol da

segurança do tráfico. Na disputa entre os direitos de quem pretende obter um ganho,

sem qualquer sacrifício patrimonial em contrapartida, e o de quem pode sofrer

prejuízo, deve prevalecer o segundo. Assim, por questão de equidade, verificou-se

que, como regra, somente se defere a tutela da aparência jurídica em casos de

aquisições onerosas de direito subjetivo.

Essa foi a norma expressamente acolhida pela Lei Hipotecária espanhola,

cujo art. 34 foi bastante feliz ao prever contundentemente que os adquirentes a título

gratuito não podem gozar de maior proteção da que seria deferida a seu

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transmitente. Em outras palavras, se a fé pública registral produzisse efeitos com

relação ao transmitente – porque o vício encontrava-se em registro anterior àquele

em que este adquiriu seu direito e supondo-se que o transmitente atingiria todos os

requisitos exigidos para a tutela da fé pública registral –, também o adquirente a

título gratuito seria beneficiado; do contrário, esse adquirente não gozaria do escudo

da fé pública registral.

Não se pode recorrer à falta do requisito da onerosidade do sistema alemão

para justificar a omissão da lei brasileira. Com efeito, essa peculiaridade decorre do

fato de o sistema registral alemão ser abstrato, não tendo o negócio jurídico

obrigacional a potencialidade de atingir o registro, diversamente do que ocorre no

Brasil, onde se adota a causalidade relativa.

A omissão da lei quanto à necessidade de se tratar ou não de negócio jurídico

oneroso significa, para Marinho Dembinski Kern, que não se pode fazer

diferenciação entre negócios onerosos e gratuitos, pois “se a Lei não fez distinção,

não cabe a intérprete fazê-la”473.

Discorda-se dessa interpretação, pois a omissão do legislador quanto à

abrangência ou não dos negócios jurídicos gratuitos parece caracterizar não uma

intenção de alcance de todos os negócios jurídicos, mas mera falha de redação da

lei. A Medida Provisória de que resultou a Lei nº 13.097/2015 tratou de múltiplos

assuntos, o que certamente prejudica seu tratamento mais técnico. O próprio art. 54,

como já se viu, trata de um princípio no caput e de outro no parágrafo único, o que

corrobora o argumento de que houve deslize na redação do parágrafo ao não se

pronunciar sobre a exigência ou não de onerosidade do negócio.

Convém lembrar que a fé pública registral nada mais é do que o princípio da

tutela da aparência aplicado à situação específica de aquisição de direito subjetivo

por terceiro com base na publicidade do Registro de Imóveis. Assim, a omissão da

regra específica pode ser resolvida pelo recurso aos requisitos gerais da tutela da

aparência jurídica, entre os quais se encontra a onerosidade da aquisição, conforme

analisado no item 4.3.2.1.

A exigência da onerosidade do negócio jurídico, além de atender aos ditames

da equidade, também se coaduna com a tradição jurídica brasileira. Assim é que os

473 KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista

de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 41.

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arts. 879 e 1817 do Código Civil condicionam a manutenção da alienação feita,

respectivamente, por quem recebeu o imóvel por pagamento indevido e por herdeiro

aparente, à onerosidade da transmissão ao terceiro de boa-fé.

No entanto, urge ressaltar que, da mesma forma como ressalvado

anteriormente, igualmente por razões de equidade, entende-se que merece a

proteção da fé pública registral o adquirente a título gratuito que, confiando na

higidez do registro, sentiu-se à vontade para efetuar gastos relevantes no imóvel.

Realmente, nessa situação não mais se pode dizer que o cancelamento de seu

registro simplesmente impediria que ele obtivesse um aumento patrimonial, que lhe

fora concedido graciosamente. Essa consequência jurídica também lhe traria danos,

pois recursos próprios haviam sido investidos no imóvel.

d) Boa-fé subjetiva do adquirente. Verificou-se que a tutela da aparência

jurídica possui, como um de seus requisitos, a conduta de boa-fé do terceiro, cujo

erro em relação à situação jurídica real deve ser escusável (item 5.3.2.1 supra).

Esse requisito é confirmado nos ordenamentos jurídicos alemão e espanhol,

em que se exige que o adquirente atue com boa-fé subjetiva psicológica. Isto é,

defere-se a proteção da fé pública registral àquele que de fato desconhecia a

inexatidão registral, desde que não tenha havido nenhum tipo de inscrição que

alertasse terceiros sobre algum risco incidente sobre o direito (assento de

contradição, no Direito alemão, e anotação preventiva, no espanhol).

Não há por que dar-se tratamento diverso à boa-fé exigida do terceiro registral

pelo art. 54, parágrafo único, da Lei no 13.097/2015. Considera-se escusável

qualquer vício de cuja potencialidade não se alerte na matrícula (por registro de

citação em ação judicial, averbação de indisponibilidade, registro de penhora, entre

outras circunstâncias), considerada em sua totalidade. Nesses casos, a publicidade

registral acarreta presunção absoluta de conhecimento, o que ilide qualquer

possibilidade de alegação de boa-fé474.

Acresce-se que, diversamente do que ocorria anteriormente, sob a vigência

da Lei no 7.433/1985, em sua redação original, que exigia a providência de certidões

de feitos ajuizados, inverteu-se a lógica de que cabia ao adquirente procurar saber,

474 Remetendo-se à lição de Roca Sastre, Marinho Dembinski Kern corrobora esse entendimento,

afirmando que, “se as situações não estão inscritas no Registro de Imóveis, a boa-fé do terceiro será presumida, cabendo ao que alega má-fé prova-la”. Acrescenta que “A má-fé será resultante do conhecimento pleno e suficiente da inexatidão registral” (KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 39).

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junto a distribuidores judiciais, acerca da eventual existência de ações judiciais que

pudessem afetar o direito objeto da transação. Atualmente, incumbe ao verdadeiro

proprietário promover os atos de registro ou averbação quanto ao ajuizamento de

ações ou deferimento de medidas judiciais que visem a proteger seu direito, a fim de

que terceiros possam tomar conhecimento sobre sua existência, sob pena de não

terem tais atos judiciais nenhuma eficácia em relação ao terceiro registral.

Ainda considerando as informações que constam da matrícula do imóvel e

cujo conhecimento se presume de forma absoluta por todos, é natural exigir-se que

o direito seja adquirido de quem consta como seu titular na matrícula. Mas não é

suficiente que a pessoa conste na matrícula na qualidade de atual titular do direito,

sendo “necessário que ela seja, segundo o encadeamento lógico dos assentos, o

atual titular”475. Assim, se no último registro consta que C é o proprietário do imóvel,

de nada adiantará D adquirir de C se, em registro anterior, C tiver adquirido o imóvel

de B, que, por sua vez, não o adquiriu do proprietário imediatamente anterior A, mas

de Z (ou seja, não houve um encadeamento lógico na sequência dos registros, de

forma que o verdadeiro proprietário continua sendo A; não se pode presumir exata

uma matrícula com equívoco tão grave e aferível ictu oculi). Evidentemente, D

poderá ser protegido por outra norma, como o disposto no art. 214 da Lei de

Registros Públicos, que impede o cancelamento do registro, apesar de eivado de

nulidade de pleno direito, desde que atingidos os requisitos da usucapião. Mas,

nesse caso, não se tratará de tutela do adquirente em razão da fé pública registral.

Da mesma forma como expressa o art. 34 da Lei Hipotecária espanhola, no

Brasil, em regra, também se presume a boa-fé. Assim, não havendo situação

jurídica registrada na matrícula alertando para alguma espécie de risco, presume-se

a boa-fé do terceiro, cujo conhecimento real e pleno da inexatidão registral deverá

ser provado por quem tiver interesse em afastar a aplicação da fé pública

registral476.

Viu-se que, como requisito geral de aplicabilidade do princípio da tutela da

aparência jurídica, exige-se a caracterização da boa-fé “no momento da aquisição

475 KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista

de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 43.

476 José de Mello Junqueira, analisando o art. 54 da Lei no 13.097/2015, conclui que, “Pelo texto e termos incisivos do parágrafo único, ‘não poderão ser opostas’, afasta-se qualquer discussão sobre a boa-fé do adquirente, presumindo-se existente. Essa é a principal consequência das medidas adotadas pela Lei 13.097/15” (JUNQUEIRA, José de Mello. Segurança jurídica do registro – concentração matricial. Arispjus, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 61-67, set./dez. 2016. p. 67).

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da coisa ou do direito” (item 5.3.2.1). Essa regra foi seguida pelo Direito espanhol,

em que basta ao terceiro hipotecário atuar com ignorância do vício registral no

momento em que celebra o negócio, sendo despiciendo que tal desconhecimento se

prolongue até o momento do registro. Com efeito, sendo o registro, em regra,

declaratório no ordenamento jurídico espanhol, é natural que seja suficiente a

caracterização da boa-fé no momento da celebração da transação.

Já em sistemas nos quais o registro é, de regra, constitutivo, a aquisição do

direito ou coisa dá-se com sua prática. Assim, tratando do sistema registral alemão,

Mónica Jardim relata que o BGB determina a apreciação da boa-fé no momento “em

que se completa a aquisição do direito”, isto é, o do registro477. Essa é a lógica a ser

seguida no Direito brasileiro: sendo o registro constitutivo, avalia-se se o terceiro

registral atuou ou não de boa-fé no momento em que apresenta o título para

prenotação no Serviço de Registro de Imóveis competente, não se lhe aplicando a

proteção da fé pública registral se, entre a celebração do negócio jurídico e a

prenotação do título, ele tiver tomado conhecimento cabal sobre a situação de

inexatidão registral478.

As situações em que o registro é declaratório acabam não tendo importância

para essa análise, porquanto são arroladas como exceções ao princípio da fé

pública registral, as quais serão examinadas adiante.

e) Higidez do ato de aquisição. Como se verificou, a fé pública registral faz

com que sejam inoponíveis ao terceiro registral vícios de registros anteriores ao seu,

mas eventuais vícios de existência, validade ou eficácia no título que gerou seu

próprio registro, ou no procedimento registral que nele resultou, podem implicar seu

cancelamento. Com efeito, a fé pública registral não saneia a aquisição do direito

pelo terceiro registral, porque enquanto não há nova circulação e atendimento a

todos os requisitos desse princípio, seu registro permanece exposto a

questionamentos – está-se ainda no âmbito da relação direta entre transmitente e

477 Dadas as peculiaridades do sistema registral alemão, a autora detalha que a aquisição do direito

dá-se com a inscrição, “quando esta é posterior ao acordo real”; ou com o acordo real, “quando a inscrição o precede” (JARDIM, Mónica Vanderleia Alves Sousa. O sistema registal germânico. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Registros Públicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 423-451. (Doutrinas essenciais: Direito Registral, 1). p. 445).

478 Marinho Dembinski Kern esclarece que, no Direito brasileiro, ”diferentemente do que ocorre no direito espanhol em que o registro terá caráter declarativo, essa boa-fé será aferida no momento do registro do título aquisitivo, pois é com a inscrição que nasce o direito real” (KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 40, grifo no original).

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adquirente, com atuação apenas de uma das presunções de exatidão, ou seja, da

legitimação registral, que é iuris tantum.

É nesse contexto que a aplicação da fé pública registral exige a higidez do ato

de aquisição, que deve ser existente, válido e eficaz, pois seria inútil proteger-se o

terceiro registral pela tutela da aparência jurídica estando sua própria aquisição

viciada. Como se afirmou ao se tratar desse mesmo requisito como pressuposto do

princípio da tutela da aparência jurídica, a existência de vício na aquisição do

terceiro registral faz com que seja preferível privilegiar o direito do verdadeiro

proprietário, cujo registro não se encontra eivado de vícios. Não haveria por que

sacrificar o direito deste em benefício de um direito viciado, porquanto isso em nada

contribuiria para a estabilidade das relações jurídicas.

Reitera-se que o requisito ora em análise também se encontra presente nos

sistemas registrais alemão e espanhol.

6.2.2.3 Exceções à regra geral da fé pública registral

Deve-se entender por exceções à fé pública registral, em sua regra geral,

aquelas situações em que, mesmo preenchidos os requisitos expostos no item

6.2.2.2, não se protege o terceiro registral em virtude da incidência de norma que

afasta referido princípio479. Essa norma de exceção pode ser, na esteira da

conceituação de princípio jurídico analisada anteriormente, outro princípio, que, em

colisão com a fé pública registral, pode vir a prevalecer no caso concreto, de acordo

com a aplicação do critério da ponderação. Todavia, esse tipo de situação tende a

ser absolutamente raro, pois a Lei nº 13.097/2005 já previu abundantes exceções à

fé pública registral, em sua conformação dada pelo parágrafo único do art. 54, as

quais são analisadas na sequência:

479 De fato, aduz Marinho Dembinski Kern: “Não se confunda exceção, em que a consequência

jurídica da fé pública registral (presunção protetiva) é afastada, mesmo concretizados os pressupostos de sua existência, com a mera não incidência do princípio a um determinado caso, por não ter se concretizado o suporte fático da norma relativa à fé pública registral”. Assim, por exemplo, sendo as áreas de preservação permanente e a reserva legal limitações ao direito de propriedade de quaisquer imóveis rurais, por decorrência de lei, a ausência de remissão a elas na matrícula de determinado imóvel não significa que o seu adquirente não esteja obrigado a respeitá-las. Da mesma forma, o adquirente de imóvel sob regime de condomínio edilício deve observar as limitações ao uso de sua propriedade dispostas na convenção de condomínio. (KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015, p. 46, grifos no original).

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a) Situações em que a aquisição ou extinção da propriedade independam de

registro. Trata-se de hipóteses em que se considera ineficaz o registro do terceiro

registral de boa-fé, na medida em que outra pessoa já havia adquirido o imóvel em

momento anterior a seu registro, em conformidade com algum preceito legal

específico. São casos em que o registro é meramente declaratório, como a

usucapião, em que a aquisição de propriedade dá-se com o implemento de todos os

requisitos legais, e a herança, em que a aquisição ocorre no exato instante do

falecimento do de cujus, até então proprietário do imóvel.

Nesse sentido, Ivan Jacopetti do Lago assevera que, “se alguém adquire

imóvel do titular tabular e registra a transmissão, ainda assim o perderá em favor de

outra pessoa que já o tenha adquirido por meio de usucapião, ainda que a ação não

constasse da matrícula, ou mesmo que não houvesse sido ainda ajuizada. O mesmo

ocorrerá se adquirir o bem de herdeiro aparente, e o verdadeiro titular vier a

reivindicá-lo”480. Discorda-se do autor quanto à última situação, pois, por sua

especialidade, continua aplicável o disposto no caput do art. 1.817 do Código Civil,

que mantém a validade das alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de

boa-fé feitas por herdeiros aparentes. Assim, este preceito legal seria uma exceção

à exceção de que a fé pública registral, em sua regra geral, não abrange as

situações em que a aquisição ou extinção da propriedade independam de registro.

Repare-se que o referido dispositivo do Código Civil exige a onerosidade como

requisito de aplicabilidade, da mesma forma como se sustenta, neste trabalho, que a

onerosidade da aquisição é um dos pressupostos da fé pública registral, consoante

a regra geral.

Essas observações não impedem o droit de saisine de afastar, em algumas

situações, a aplicação da fé pública registral, desde que não se esteja lidando com

um herdeiro aparente481. Assim, alguém que adquira um imóvel, de boa-fé, por

negócio oneroso e venha a registrar seu título não gozará da tutela da fé pública

registral se, na realidade, alguém tiver-se passado como o titular registral – já

falecido à época da celebração do negócio –, utilizando-se, por exemplo, de

procuração falsa. Nesse caso, não há de se falar em herdeiro aparente.

480 LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro

de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 41.

481 Supondo-se, sempre, o preenchimento de todos os requisitos da fé pública registral, afinal se está tratando de exceções a esse princípio.

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Com relação à usucapião contratabular, o legislador efetivamente outorgou

proteção irrestrita, em detrimento do princípio da fé pública registral. Diversamente,

viu-se que no sistema alemão a regra é sua impossibilidade, o que resulta em

fortíssima e salutar proteção ao tráfico jurídico. Por sua vez, o sistema espanhol

busca um equilíbrio: de regra, também o direito do terceiro hipotecário prevalece

sobre o do usucapiente, mas, em situações expressamente previstas em lei,

protege-se este. O mais importante é ressaltar que, mesmo no Direito espanhol, as

exceções não atingem aquele que não conhecia a realidade (o fato de alguém ter

implementado os requisitos da usucapião), de modo que terceiros podem negociar

com segurança a aquisição de imóveis cuja situação fática não conhecem,

ressalvada, evidentemente, a possibilidade de haver anotação preventiva de ação

de usucapião no fólio do imóvel.

No Brasil, infelizmente as exceções ora analisadas acabam por exigir do

terceiro interessado na aquisição do imóvel que tome as diligências de verificar se,

porventura, não ocorreu fato jurídico que seja o suporte fático de norma que implique

a transferência da propriedade do imóvel a pessoa estranha ao registro. Aqueles

que não adotam essa cautela acabam por assumir o risco de perder o imóvel por

motivo não publicizado em assento registral.

Contudo, não parece adequado dar-se interpretação literal à exceção ora

estudada. Devem ser levados em consideração outros princípios, como os da

concentração e inoponibilidade, previstos na própria Lei nº 13.097/2015, e o da boa-

fé objetiva. Com efeito, quanto à usucapião, parece adequado aplicar-se a exceção

do parágrafo único do art. 54 à situação em que terceiro já satisfez todos os

requisitos da usucapião, mas ainda não propôs ação ou iniciou procedimento

extrajudicial adequados a seu reconhecimento. Entretanto, se um terceiro já ajuizou

a ação de usucapião ou deu início ao procedimento extrajudicial apto a seu

reconhecimento, é sua obrigação dar publicidade ao evento na matrícula do imóvel,

justamente para que terceiros de boa-fé não possam ser prejudicados. Tal obrigação

decorre dos referidos princípios482, sendo aplicável também em outros casos, como

482 Nesse sentido, aduz Marcelo Augusto Santana de Melo que “é preciso analisar a exceção criada

face a outros princípios, principalmente a boa-fé objetiva. Torna-se necessário distinguir as possibilidades. Uma situação é a de alguém que possui posse qualificada, ou seja, aquela apta a gerar a aquisição da propriedade pela usucapião e não propôs ação judicial declaratória; outra é a daquele possuidor que ajuizou a respectiva ação visando à declaração da prescrição aquisitiva e, mesmo assim, deixa de dar publicidade na matrícula do imóvel. Existindo o ajuizamento de uma ação de usucapião, a mesma deve receber publicidade no Registro de Imóveis, porque é dever de

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o do suposto herdeiro que ajuíza ação de petição de herança, cujo pleiteado direito

não deve prevalecer perante o terceiro adquirente que preenche os requisitos da fé

pública registral, se o primeiro não tiver dado publicidade à existência da referida

ação na matrícula do imóvel483.

Com essa interpretação sistemática das normas, ao menos se tem garantia

de que ações ou procedimentos extrajudiciais já em curso e que possam afetar a

titularidade sobre imóvel não prejudiquem terceiros de boa-fé que venham a adquiri-

lo, por negócio jurídico oneroso e registrado. Ameniza-se – em última análise, com

base em critério de razoabilidade – o que se considera uma falha da Lei nº

13.097/2015, favorecendo-se a segurança jurídica dinâmica.

b) Ineficácia de determinados negócios praticados pelo falido relativamente à

massa falida. O parágrafo único do art. 54 da Lei nº 13.097/2015 também traz como

exceção à fé pública registral o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº

11.101/2009484. Devido à sua relevância para este trabalho, convém transcrever os

mencionados dispositivos:

Art. 129. São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: I – o pagamento de dívidas não vencidas realizado pelo devedor dentro do termo legal, por qualquer meio extintivo do direito de crédito, ainda que pelo desconto do próprio título; II – o pagamento de dívidas vencidas e exigíveis realizado dentro do termo legal, por qualquer forma que não seja a prevista pelo contrato; III – a constituição de direito real de garantia, inclusive a retenção, dentro do termo legal, tratando-se de dívida contraída anteriormente; se os bens dados em hipoteca forem objeto de outras posteriores, a massa falida receberá a parte que devia caber ao credor da hipoteca revogada; IV – a prática de atos a título gratuito, desde 2 (dois) anos antes da decretação da falência; V – a renúncia à herança ou a legado, até 2 (dois) anos antes da decretação da falência; VI – a venda ou transferência de estabelecimento feita sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes para solver o seu passivo, salvo se, no prazo de 30 (trinta) dias, não houver oposição dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial do registro de títulos e documentos; VII – os registros de direitos reais e de transferência de propriedade entre vivos, por título oneroso ou gratuito, ou a averbação relativa a imóveis

diligência do proponente, já que o registro é obrigatório (art. 169 da LRP), face ao princípio da inoponibilidade e boa-fé objetiva” (MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 136).

483 Evidentemente, se já fosse possível ao suposto herdeiro ter conhecimento sobre os imóveis que eram de propriedade de seu pretenso genitor.

484 BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, 9 jan. 2005.

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realizados após a decretação da falência, salvo se tiver havido prenotação anterior. Parágrafo único. A ineficácia poderá ser declarada de ofício pelo juiz, alegada em defesa ou pleiteada mediante ação própria ou incidentalmente no curso do processo. Art. 130. São revogáveis os atos praticados com a intenção de prejudicar credores, provando-se o conluio fraudulento entre o devedor e o terceiro que com ele contratar e o efetivo prejuízo sofrido pela massa falida.485

O art. 129 é bastante claro no sentido de que todas as situações nele

arroladas são inoponíveis à massa falida, independentemente de o adquirente ter ou

não conhecimento da situação de crise econômico-financeira do transmitente, de

haver ou não intenção do devedor de agir em fraude contra credores, ou de estar ou

não o adquirente de boa-fé486.

Por sua vez, o art. 130 não pode ser considerado uma exceção ao princípio

da fé pública registral, na medida em que tal dispositivo legal exige “conluio” entre

transmitente (o falido) e adquirente – logo, má-fé –, com vistas a prejudicar a massa

falida. De fato, a boa-fé subjetiva do adquirente é um dos requisitos da fé pública

registral.

Marinho Dembinski Kern explica que o art. 130 da Lei nº 11.101/2005

somente poderia ser considerado exceção à fé pública registral caso o vício da

primeira aquisição repercutisse nas transmissões subsequentes, ainda que os

subadquirentes preenchessem todos os requisitos do referido princípio487. Não

parece ser o caso de se adotar essa interpretação, por ser extensiva de uma

exceção. Com efeito, a hermenêutica jurídica exige que regras exceptivas sejam

interpretadas restritivamente, de forma que subadquirentes que, na situação

exposta, atendessem aos requisitos da fé pública registral, mereceriam a tutela

ordinária deste princípio jurídico.

485 BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e

a falência do empresário e da sociedade empresária. Diário Oficial da União, Brasília, 9 jan. 2005. 486 Ivan Jacopetti do Lago exemplifica: “ainda que não haja na matrícula qualquer notícia da falência,

o credor beneficiado pela garantia real não poderá opô-la contra os credores da massa, se o negócio foi realizado dentro do termo legal da falência. Também serão ineficazes, em relação à massa falida, as aquisições gratuitas desde dois anos antes da decretação da falência, bem como as aquisições ou constituições de direitos reais, a título gratuito ou oneroso, registradas após a decretação, salvo prenotação anterior” (LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 41).

487 KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 47.

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Outrossim, também as exceções do art. 129 da mencionada lei devem

receber a mesma interpretação: transmissões posteriores à feita pelo devedor falido

não serão atingidas, caso preenchidos os requisitos da fé pública registral.

c) Aquisição ou oneração de imóveis públicos. Uma terceira exceção à fé

pública registral encontra-se prevista no art. 58 da Lei nº 13.097/2015, segundo o

qual o disposto nesta não se a aplica a imóveis que pertençam ao patrimônio da

União, Estados, Municípios, Distrito Federal e respectivas autarquias e fundações.

Assim, caso equivocadamente conste um particular como proprietário de imóvel que,

na realidade, pertence a um desses entes, não importam as circunstâncias em que

se deu a aquisição, deve prevalecer o domínio público apurado por meio de

instrumento próprio.

É notório que, em todo o Brasil, muitas áreas urbanas desenvolveram-se

sobre terras públicas, tendo havido até mesmo a abertura de matrículas para

imóveis nessa situação, com registro em nome de particulares. Em teoria, todos os

atos jurídicos praticados por particulares são nulos e devem ser cancelados; até

mesmo a população residente nesses locais poderia ser obrigada a abandoná-los.

Contudo, muitas vezes se trata de situações consolidadas, que, na prática, são de

difícil desfazimento. Por isso, tem-se desenvolvido no país uma robusta legislação

de regularização fundiária urbana, que prevê instrumentos urbanísticos adequados

para o saneamento desse tipo de situação, a exemplo da legitimação fundiária,

prevista na Lei nº 13.465/2017488. Atende-se, assim, à função socioeconômica da

propriedade.

6.2.2.3.1 Créditos tributários inscritos em dívida ativa

A escassa doutrina nacional489 sobre a fé pública registral tem apontado os

créditos tributários como exceções ao princípio da fé pública registral, em virtude do

488 BRASIL. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e

urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal... Diário Oficial da União, Brasília, 8 jul. 2017.

489 LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 41-42; CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 4. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Forense, 2017. p. 299; MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 134.

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disposto no art. 185 do Código Tributário Nacional490. Este dispositivo legal

estabelece presunção absoluta de serem fraudulentas alienações ou onerações de

bens por sujeito passivo de obrigação tributária com débito tributário regularmente

inscrito na dívida ativa, desde que o devedor não tenha reservado bens ou renda

suficientes para seu adimplemento491. Assim, a presunção não é automática,

porquanto exige a comprovação da insuficiente reserva de bens ou renda para o

pagamento da dívida.

Na lógica anterior à consagração da fé pública registral, não haveria dúvida

de que qualquer alienação ou oneração de imóvel por sujeito passivo insolvente

acarretaria a nulidade da transação e, por conseguinte, o cancelamento de seu

registro imobiliário e de eventuais registros subsequentes, como os de transmissões

posteriores. A razão disso estaria na supremacia do interesse público sobre o

particular, bem como na especialidade do art. 185 do Código Tributário Nacional,

relativamente às regras ordinárias de processo civil. Nesse sentido, traz-se à

colação trechos das ementas de recentes acórdãos do Superior Tribunal de

Justiça492:

II - A caracterização da má-fé do terceiro adquirente ou mesmo a prova do conluio não é necessária para caracterização da fraude à execução. A natureza jurídica do crédito tributário conduz a que a simples alienação de bens pelo sujeito passivo por quantia inscrita em dívida ativa, sem a reserva

490 “Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo,

por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita.” (BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966.)

491 Luciano Amaro afirma que a doutrina, em geral, reconhece o caráter absoluto da presunção, mas ressalva que, em muitas situações, far-se-á necessária dilação probatória para a comprovação de que não havia bens ou renda suficientes para o pagamento do débito tributário. No mesmo sentido, aduz Ricardo Alexandre que “O único argumento cabível para que não se configure a presunção é o constante do parágrafo único do art. 185, qual seja o de que foram ‘reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita’” (AMARO, Luciano. Direito Tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 502; ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário esquematizado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 502).

492 Embora os acórdãos citados sejam de 2017, não levaram em consideração os preceitos legais dos arts. 54 e 55 da Lei nº 13.097/2015, seja por se referirem a fatos jurídicos mais antigos, seja porque esses dispositivos se submetem ao comando de seu art. 61, segundo o qual “Os registros e averbações relativos a atos jurídicos anteriores a esta Lei, devem ser ajustados aos seus termos em até 2 (dois) anos, contados do início de sua vigência”.

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de meios para quitação do débito, gera presunção absoluta de fraude à execução, mesmo no caso da existência de sucessivas alienações.493

2. Assentou-se ainda que a lei especial, o Código Tributário Nacional, se sobrepõe ao regime do direito processual civil, não se adotando nas execuções fiscais o tratamento dispensado à fraude civil, diante da supremacia do interesse público, já que o recolhimento dos tributos serve à satisfação das necessidades coletivas. 3. Registre-se, por oportuno, que se consolidou que não se aplica à execução fiscal a Súmula 375/STJ: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente".494

Porém, há de se considerar que a presunção absoluta de fraude (logo, de má-

fé) atinge o devedor, que, no caso de transação imobiliária, será o transmitente ou

onerante do imóvel. Não existe presunção, nem mesmo relativa, de má-fé do

adquirente desse bem ou do credor que o aceita em garantia.

Ainda mais relevante é ter-se em conta que, da mesma forma como o art. 185

do Código Tributário Nacional, o princípio da fé pública registral atende a

relevantíssimo interesse público, consistente na criação de condições jurídicas aptas

a garantir a segurança do tráfico imobiliário, de modo a estimular as transações e

fomentar o crédito, o que gera desenvolvimento econômico e social. De fato, Flávia

Santinoni Vera explica como a garantia do direito de propriedade gera um

movimento capaz de trazer o desenvolvimento socioeconômico sustentável:

[...] Ter o direito de propriedade sobre um bem permite que a sua circulação na sociedade, desde a aquisição, uso e transferência (como na alienação), gere uma alocação de recursos mais eficiente seguida de um valor adicionado. Por consequência, a garantia de propriedade alavanca a geração de emprego e riqueza de uma nação. Além do incentivo criado aos cidadãos para produzir, eles também farão o melhor uso do bem, transferindo-o, quando interessante, para uma pessoa que dará a ele um valor (e uso) maior. Uma alocação mais eficiente dos recursos permite que todos enriqueçam. Por sua vez, o crescimento econômico decorrente é pré-requisito essencial para qualquer ímpeto do Estado de buscar justiça distributiva e bem-estar social. Sociedades que garantem mais direito de propriedade privada e que permitem um uso amplo desse direito são empiricamente mais suscetíveis ao crescimento e desenvolvimento social e econômico.495

493 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 1.667.757/SP. Relator: Herman

Benjamin – Segunda Turma. Julgado em: 15.08.2017. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 13 set. 2017.

494 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 1.666.827/PR. Relator: Herman Benjamin – Segunda Turma. Julgado em: 13.06.2017. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 30 jun. 2017.

495 VERA, Flávia Santinoni. A análise econômica da propriedade. In: TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito e Economia no Brasil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 201-224. p. 202.

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Dessa forma, sendo o princípio da fé pública registral a chave da garantia do

direito da propriedade e de outros direitos reais sobre imóveis, o interesse público

em sua preservação é evidente, assim como também é de indiscutível relevância o

interesse da Administração Pública de assegurar o recebimento dos créditos

tributários inscritos em dívida ativa.

Ocorre que não é necessário desconsiderar a fé pública registral, na hipótese

descrita no art. 185 do Código Tributário Nacional, para que o Fisco tenha como

impedir que sujeitos passivos de obrigações tributárias desfaçam-se de seu

patrimônio imobiliário e, consequentemente, possam vir a tornar-se insolventes.

Realmente, como já se demonstrou exaustivamente, não se cogita desse princípio

se já houver na matrícula registro ou averbação de qualquer circunstância que alerte

terceiros sobre os riscos potenciais que pode envolver a aquisição do imóvel ou de

direito real sobre este. E as Fazendas Públicas dispõem de diversos recursos para

invocar a prática de atos nas matrículas de imóveis de sujeitos passivos, de modo a

publicizar riscos e restrições sobre tais bens. Por exemplo, têm o privilégio de

constituir, sem necessidade de qualquer espécie de intervenção do contribuinte ou

de órgão judicial, um título executivo extrajudicial: a certidão de dívida ativa. Assim o

fazendo, podem ajuizar ação executiva, cuja existência pode ser noticiada por meio

de averbação em matrículas de imóveis do devedor (é a chamada averbação

premonitória). Outras medidas judiciais podem ser deferidas ao Fisco, tais como

indisponibilidades, penhora, arresto e sequestro. Chegou-se ao ponto em que a

Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional pode até mesmo determinar a averbação

de indisponibilidades, sem necessidade de ordem judicial496. Ademais, se o

496 Art. 25 da Lei nº 13.606/2018, que introduziu o art. 20-B na Lei nº 10.522/2002, cuja redação é a

seguinte: ““Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados. § 1o A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição. § 2o Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública. § 3o Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá: I - comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e II - averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis” (BRASIL Lei nº 13.606, de 9 de janeiro de 2018. Institui o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR) na Secretaria da Receita Federal do Brasil e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional... Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2018). Ressalta-se que esse dispositivo legal é objeto da ação direta de inconstitucionalidade nº 5.881, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que o autor (Partido Socialista Brasileiro) aponta diversos vícios formais e materiais, alegando, inclusive, que tal preceito, por tratar de crédito tributário, deveria ter sido objeto

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mencionado art. 185 prevalecesse sobre a fé pública registral, nem sequer haveria

necessidade de a legislação possibilitar ao Fisco a adoção de medidas judiciais e

administrativas, como as exemplificadas.

Acrescenta-se que, em Direito Constitucional, tem prevalecido na doutrina497

a orientação de que não existe hierarquia entre lei complementar e ordinária,

conquanto o quórum exigido para aprovação da primeira seja superior ao da

segunda, já tendo o Supremo Tribunal Federal se posicionado nesse sentido498.

Dessa forma, o fato de o Código Tributário Nacional ter sido recepcionado pela

Constituição Federal com status de lei complementar não significa, por si só, que,

por esse motivo, deve se superpor a leis ordinárias, como é o caso da Lei nº

13.097/2015. Sendo esta, nos arts. 54 e 55, específica sobre a fé pública registral e

posterior à última redação do art. 185 do referido Código, deve prevalecer nesse

assunto, sendo as exceções na primeira estipuladas interpretadas restritivamente.

Em suma, não há motivo que justifique considerar os créditos tributários

inscritos em dívida ativa como exceção à fé pública registral, aplicando-se-lhes a

regra geral do art. 54 da Lei nº 13.097/2015: a não ser que haja ato de registro ou

averbação que alerte terceiros quanto ao risco envolvido na aquisição de direito

sobre o imóvel, prevalece o direito do terceiro registral que atenda aos requisitos

previstos nessa lei, que é especial nesse tema.

Por fim, aponta-se apenas uma exceção a essa regra: a redação atual do art.

1º, § 2º, da Lei nº 7.433/1985, com redação dada pela Lei nº 13.097/2015, manteve,

como requisito da lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis, a exigência de

apresentação de “certidões fiscais”. O Decreto nº 93.240/1986499, que regulamenta a

referida lei, esclarece que tais “certidões fiscais” são, com relação aos imóveis

urbanos, “as certidões referentes aos tributos que incidam sobre o imóvel” (art. 1º,

caput, III, a) e, com relação aos imóveis rurais, o Certificado de Cadastro de Imóvel

Rural, expedido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),

de lei complementar e que acarreta violação dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Aguarda-se o deslinde dessa ação.

497 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 16. ed. atual. até a EC nº 44/04. São Paulo: Atlas, 2004. p. 570-571; MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 533-534.

498 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário no 419.629/DF. Relator: Sepúlveda Pertence – Primeira Turma. Julgado em: 23.05.2006. Diário da Justiça, Brasília, 30 jun. 2006.

499 BRASIL. Decreto nº 93.240, de 9 de setembro de 1986. Regulamenta a Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985, que ‘’dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas, e dá outras providências”. Diário Oficial da União, Brasília, 10 set. 1986.

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e a prova de quitação do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) (art. 1º,

caput, III, b). Essas certidões fiscais são requisitos essenciais da lavratura de

escrituras públicas, não podendo sua apresentação ser dispensada. Assim,

especificamente com relação a esses tributos, que são relativos diretamente ao

imóvel, de forma que se constituem em verdadeiras obrigações propter rem, não

vigora a fé pública registral, pois não há de se falar em tutela da aparência jurídica

se o terceiro registral vier a adquirir imóvel sem tomar diligências impostas em lei;

caso haja dívidas dessas espécies, caber-lhe-á arcar com seu pagamento.

6.2.2.3.2 Duplicidade de matrículas

Em caso de duplicidade matricial, ou seja, se houver duas matrículas distintas

para o mesmo imóvel que revelem situações jurídicas incompatíveis entre si – por

exemplo, proprietários diversos em cada uma delas –, não se pode falar em

incidência da fé pública registral, nem mesmo da legitimação registral. Com efeito,

essa situação implica violação do princípio da unitariedade da matrícula, consistente

no mandamento de que todo imóvel deve ter uma única matrícula e de que toda

matrícula deve corresponder a um único imóvel. Em tese, ambas as matrículas

gozariam de idêntica tutela legal. Assim, se, por equívoco, descerraram-se duas

matrículas para um mesmo imóvel, o sistema registral não apresenta solução ao

problema, que deverá ser encaminhado à via judicial para verificação de qual

matrícula deve prevalecer, cancelando-se a outra. Essa é a mesma solução que,

como se viu, oferece o Direito espanhol para o problema, o qual não representa

exceção ao princípio da fé pública registral, mas simplesmente escapa a seu

alcance.

6.2.3 Regra especial da fé pública registral: proteção a adquirentes de lotes e

unidades autônomas condominiais

A Lei nº 13.097/2015 previu, em seu art. 55, uma regra específica, destinada

a conferir proteção mais forte a quem adquire imóveis diretamente de

empreendedores. Insta transcrever referido dispositivo legal:

Art. 55. A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio edilício, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação

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de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação das disposições constantes da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990.500

Realmente, vê-se que a regra somente se aplica a três circunstâncias de

aquisição de imóvel, ou seja, nos casos de incorporação imobiliária, em que há

alienação de unidades autônomas de condomínio edilício cujas obras não foram

concluídas; parcelamento do solo, em ambas as modalidades previstas pela Lei nº

6.766/1979501, ou seja, loteamento e desmembramento; e condomínio edilício, em

que se transmitem unidades autônomas prontas, já tendo sido sua construção

devidamente averbada na matrícula do terreno onde erigido o empreendimento. Em

todos os casos, exige-se que o empreendimento esteja em situação regular, ou seja,

aprovado pelas autoridades competentes e devidamente registrado no Serviço de

Registro de Imóveis competente.

Ainda da simples leitura do preceito legal, em comparação com o artigo

imediatamente anterior (regra geral), percebe-se que também se trata de fé pública

registral, pois o adquirente de um imóvel não poderá perdê-lo por força de decisão

judicial ou decisão administrativa – afinal está a salvo do risco da evicção –, nem lhe

pode ser oposto qualquer vício que contamine registro anterior ao seu. Em outras

palavras, em eventual conflito entre o verdadeiro proprietário e o terceiro registral, a

lei optou por preservar o direito deste. O direito de quaisquer prejudicados resolve-

se por uma regra de responsabilidade, ou seja, o verdadeiro proprietário e eventuais

credores do empreendedor têm apenas direito obrigacional de serem por este

ressarcidos, em caso de sofrerem prejuízos.

Com relação aos requisitos de incidência dessa proteção especial, observa-se

que o art. 55 não exige boa-fé do adquirente, ou seja, essa circunstância é

indiferente. Contudo, os outros requisitos da regra geral são obrigatórios. Ademais,

não se arrolam exceções à regra especial, que, dessa forma, prevalece mesmo

diante das situações previstas nos arts. 129 e 130 da Lei de Recuperação de

Empresas e Falência e de anterior aquisição do terreno do empreendimento por

500 BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para

o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores... Diário Oficial da União, Brasília, 20 jan. 2015.

501 BRASIL. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 dez. 1979.

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terceiro, naqueles casos que independem de registro. A única exceção aplicável é a

do art. 58, referente a imóveis públicos e que, conforme a própria redação desse

dispositivo, alcança todas as situações previstas na Lei nº 13.097/2015.

Em suma, tendo a proteção da fé pública registral nos casos previstos no art.

55 requisitos mais brandos e menos exceções, justifica-se chamá-la de “regra

especial”, expressão que reflete seus efeitos mais intensos502. O que permite a

produção desses efeitos certamente é a complexidade da qualificação registral

realizada sobre a documentação dos referidos empreendimentos, em especial

parcelamentos do solo e incorporação imobiliária, em que o registro somente é feito

após análise de “aspectos administrativos, urbanísticos, ambientais e econômicos”,

havendo “levantamento exaustivo de ações movidas face ao proprietário ou

empreendedor”503.

A razão de a lei ter criado proteção tão forte é a de estimular o

desenvolvimento econômico, por meio do incremento de parcelamentos do solo,

incorporações imobiliárias e condomínios edilícios, proporcionando significativo

aumento da segurança jurídica de adquirentes e agentes financiadores de suas

transações imobiliárias. Atende-se também a importantes fins sociais, em especial o

de garantir acesso à moradia, uma vez que os adquirentes não mais ficam sujeitos à

perda de seus direitos em razão de dívidas contraídas pelos empreendedores. No

caso de aquisições financiadas, a maior segurança tende a refletir-se em menores

taxas de juros.

É inegável que, referindo-se a lei a determinadas formas de empreendimentos

imobiliários e tendo-se em vista suas finalidades, a proteção especial do art. 55

somente se aplica no caso da aquisição feita diretamente do empreendedor504. Nas

transmissões e onerações posteriores incide a regra geral da fé pública registral.

502 Nesse sentido, Marinho Dembinski Kern assevera que, “desde que presente a relação jurídica

especial tutelada pelo art. 55, o terceiro gozará de proteção quase absoluta, porque não será atingido por ineficácia ou revogação falimentar, fraude à execução, aquisições de direito independentemente do registro, ações e execuções e vícios jurídicos do direito do alienante” (KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun. 2015. p. 54).

503 MELO, Marcelo Augusto Santana de. Teoria geral do Registro de Imóveis: estrutura e função. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2016. p. 137.

504 No mesmo sentido, vide LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 42; KERN, Marinho Dembinski. A Lei 13.097/2015 adotou o princípio da fé pública registral? Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 38, n. 78, p. 15-58, jan./jun.

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6.3 Caracterização do sistema registral imobiliário brasileiro após a entrada em

vigor da Lei nº 13.097/2015

Por mais que se sustente a vigência do princípio da tutela da aparência

jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, e que esse é o fundamento da fé pública

registral, havia duas questões que se reputam mal resolvidas, no panorama anterior

à entrada em vigor da Lei nº 13.097/2015, e que inviabilizavam tal princípio: a

existência de dispositivo legal claramente destinado a afastar a fé pública registral,

bem como a falta de consistência nos argumentos que pregavam a obrigatoriedade

de inscrição de todos os atos relevantes ao imóvel em sua matrícula, que

concentraria, assim, todas as informações necessárias a garantir a segurança à

aquisição do imóvel ou direito sobre este por terceiro.

O cenário modificou-se bastante com a entrada em vigor da referida lei, o que

se deu, na realidade, no final de fevereiro de 2017505. A partir desse momento, por

total incompatibilidade, foi revogado o parágrafo único do art. 1.247 do Código Civil.

A obrigatoriedade das inscrições na matrícula do imóvel passou a ser assegurada

não somente em razão do efeito normalmente constitutivo dos registros de direitos

reais, mas, principalmente, porque passou a haver previsão legal expressa de que

atos jurídicos não inscritos são inoponíveis a terceiros adquirentes, nas condições

estabelecidas nos arts. 54 e 55 da Lei nº 13.097/2015. Existe, assim, efetiva sanção

– aqui entendida como prejuízo potencial – a quem não atua com diligência e se

omite na inscrição de fatos jurídicos relevantes, tais quais registro de citação em

ações reais e pessoais reipersecutórias, averbação de existência de execução

judicial promovida face ao proprietário, entre outros.

Como se asseverou anteriormente, inverteu-se a tradicional lógica de que

cabe ao adquirente de um imóvel diligenciar se tais fatos jurídicos existem,

recorrendo-se a informações extrarregistrais. Em princípio, todas as informações

necessárias à realização de um negócio constam da matrícula e o que nesta não for

2015. p. 52; CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 4. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Forense, 2017. p. 301.

505 Isso ocorreu porque, nos termos do art. 168, inc. II, da Lei nº 13.097, os artigos 54 a 62 só entraram em vigor 30 dias após a sua publicação, ocorrida em 20 de janeiro de 2015. Todavia, prudentemente a lei previu um prazo de dois anos para que os interessados providenciassem as inscrições relativas a atos jurídicos anteriores a ela, os quais, ainda que não registrados ou averbados, continuaram oponíveis a terceiros durante esse prazo. Assim, somente a partir do momento em que ultrapassados ambos os prazos, que se somavam, é que efetivamente se pôde dizer que a fé pública registral, em suas regras geral (art. 54, parágrafo único) e especial (art. 55) passou a viger no Brasil, com toda sua amplitude.

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informado não pode prejudicar o adquirente que registra seu título e atende aos

requisitos dos arts. 54 e 55.

Afirma-se que, “em princípio”, o terceiro adquirente não pode ser prejudicado

por causa das abundantes exceções à fé pública registral, previstas no parágrafo

único do art. 54 e no art. 58. Com relação a este último dispositivo, considera-se que

se trata de exceção inevitável no Brasil, pois a Constituição Federal expressamente

veda a usucapião de bens públicos, o que inclui a tabular. Quanto aos demais,

específicos da regra geral, são flagrantemente incompatíveis com o fundamento do

princípio – a tutela da aparência jurídica – e com sua finalidade, que é a segurança

do tráfico. Por isso, é preciso interpretá-las com parcimônia, e não em sua

literalidade, de forma a, na maior medida possível, impedir que inviabilizem o próprio

princípio da fé pública registral no Brasil. Mesmo assim, tais exceções exigem do

terceiro diligências, no sentido de se assegurar, por exemplo, que não existem

ações de decretação de falência ou usucapião em curso506. De lege ferenda,

defende-se a supressão das exceções do art. 54.

Quanto às situações previstas no art. 55 – incorporação imobiliária,

parcelamento do solo e condomínio edilício –, nos casos em que a relação jurídica

dá-se entre o empreendedor e o primeiro adquirente, chegou-se próximo à proteção

máxima (ressalvam-se apenas as hipóteses de bem público e de limitações à

propriedade decorrentes de lei).

De qualquer modo, não há como negar a evolução representada pelos

dispositivos da Lei nº 13.097/2015, que retratou a consolidação dos princípios

registrais da obrigatoriedade e concentração, bem como a efetiva introdução da fé

pública registral no ordenamento jurídico brasileiro. Completam-se, assim, os

requisitos necessários para que o sistema registral do país seja considerado um

verdadeiro sistema de direitos.

No contexto de uma sociedade cada vez mais complexa, em que as relações

jurídicas tornam-se cada vez mais impessoais e desconhecem fronteiras, inclusive

506 Ivan Jacopetti do Lago também tece críticas às exceções legais ao princípio da fé pública registral:

“a existência de exceções importantes à regra de reforço de eficácia do registro mantém, no sistema, situações de insegurança que tornam ainda necessária a pesquisa em distribuidores judiciais, não sendo suficiente a análise da matrícula do imóvel. E, no tocante aos bens pertencentes ao poder público, a insegurança é ainda maior, já que a prévia inexistência de ação judicial que diga respeito à sua discriminação também não serve como garantia ao adquirente (LAGO, Ivan Jacopetti do. A Lei nº 13.097/2015, a concentração e o reforço de eficácia do Registro de Imóveis brasileiro: algumas reflexões iniciais. Boletim do IRIB em Revista, São Paulo, Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, edição 355, p. 34-43, ago. 2016. p. 43).

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as nacionais, a consequência natural da Lei nº 13.097/2015 – desde que suas

inovações sejam conhecidas e efetivamente aplicadas – será o incremento das

transações imobiliárias, que certamente contribuirão para o desenvolvimento do

Brasil.

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7 CONCLUSÃO

Ao longo de todo este estudo, procurou-se demonstrar a evolução do sistema

registral imobiliário brasileiro, desde seus primórdios, quando a Lei nº 1.237/1864

adotou o modelo francês de registro de documentos, caracterizado notadamente por

se tratar mais de um repositório de títulos, os quais eram objeto de transcrições e

inscrições dispersas em livros diversos, que não produziam nenhuma presunção

legal de veracidade e validade. Naquela fase, a organização se dava pela

sistemática do fólio pessoal.

Desde o início, demonstrou-se a superioridade do sistema de registro de

direitos, que se filia à tradição alemã, tendo como principais características a

publicização da própria situação jurídica decorrente do título, e não exatamente

deste; a concentração de todas as informações relevantes sobre o imóvel em seu

fólio e a produção de duas presunções de exatidão, consistentes na legitimação

registral e na fé pública registral.

O ordenamento jurídico brasileiro abandonou o sistema francês com o Código

Civil de 1916, que procurou dotar o Registro Imobiliário de algumas características

germânicas. As modificações mais importantes desse momento foram a

possibilidade de registro de títulos judiciais e de transmissão causa mortis, a

consolidação do efeito constitutivo da inscrição, bem como a introdução do princípio

da legalidade e da legitimação registral, isto é, a presunção iuris tantum de validade

e veracidade do conteúdo do registro, o qual, dessa forma, passou a valer como

prova da propriedade e da titularidade de outros direitos inscritos. Trata-se de efeito

direto da publicidade registral.

Na realidade, as tímidas, mas frequentes, alterações legislativas ocorridas

nas décadas seguintes foram paulatinamente dotando o sistema registral imobiliário

de características imprescindíveis dos sistemas de registro de direitos, sendo dignos

de nota o acolhimento do princípio da continuidade, pelo Decreto nº 18.542/1928, e

a introdução da matrícula, pela Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), que

acarretou o acolhimento do sistema do fólio real, em substituição à organização pelo

fólio pessoal.

A força de um sistema registral pode ser medida pela intensidade da

qualificação dos títulos apresentados a registro; quanto maior, mais logra impedir

falhas. O exame mais ou menos vigoroso dos títulos está diretamente relacionado à

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proteção conferida a terceiros, diante da inevitável ocorrência de vícios registrais,

isto é, de máculas no título ou no próprio procedimento de elaboração do registro,

que o atingem em sua existência, validade ou eficácia.

Somente um verdadeiro sistema de registro de direitos, alicerçado em

rigorosa qualificação registral, de forma e fundo, empreendida por agente público, é

capaz de produzir a chamada eficácia material do registro, ou fé pública registral.

Trata-se da inoponibilidade de fatos jurídicos não constantes do fólio ao terceiro

adquirente que atende a determinados requisitos legais, sendo bastante comuns os

de exigência de boa-fé subjetiva e onerosidade do ato, a exemplo do que ocorre na

Espanha. Esse princípio acarreta a necessidade de concentração de todas as

informações relevantes sobre o imóvel em seu fólio, inclusive notícias sobre

eventuais vícios em registros já praticados, de modo a acautelar terceiros. Assim, o

fólio transforma-se na única fonte de informações sobre o imóvel, tornando

desnecessário o recurso a fontes extrarregistrais, como distribuidores judiciais e o

Fisco, para entabularem-se negócios jurídicos seguros envolvendo imóveis.

Já à época subsequente à entrada em vigor da Lei de Registros Públicos, o

Brasil era dotado de sistema registral com praticamente todas as características

fundamentais dos sistemas de registro de direitos. Contudo, a quase unanimidade

da doutrina e jurisprudência negava a vigência do princípio da fé pública registral.

As doutrinas alemã e espanhola já explicavam a fé pública registral com base

na aparência de bom direito decorrente do registro, até mesmo por se tratar de

assento decorrente de publicidade oficial. Na segunda metade do século XX,

passou-se a admitir no Brasil a vigência do princípio da tutela da aparência jurídica,

o qual deriva de uma cadeia principiológica que se inicia no princípio do Estado de

Direito. Deste decorre a segurança jurídica, da qual se extrai o princípio da tutela da

confiança, fundamento imediato da fé pública registral. Nesse contexto, poder-se-ia

cogitar que o registro no Brasil já seria dotado de eficácia material.

Apesar da correção desse raciocínio, ainda havia sérios obstáculos à

aceitação da fé pública registral: a fragilidade da obrigatoriedade de concentração de

todas as informações sobre o imóvel na matrícula – reforçada pela exigência legal

de apresentação de certidões de feitos ajuizados ao tabelião, para a lavratura de

escrituras públicas relativas a imóveis – e o dispositivo legal editado com o fim

específico de inviabilizá-la (parágrafo único do art. 1.247 do Código Civil de 2002).

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Foi somente com a entrada em vigor da Lei nº 13.097/2015, que dispõe sobre

uma multiplicidade de temas não relacionados entre si, que finalmente a fé pública

registral ingressou no ordenamento jurídico brasileiro. É criticável que tão importante

inovação tenha sido introduzida em dispositivos legais quase que escondidos, pois

constitui tema da maior relevância, considerando que, por tratar de efeitos materiais

do registro imobiliário, por coerência, deveria ter sido objeto de alterações no Código

Civil. Esse fator certamente tem contribuído para que o assunto ainda seja

praticamente desconhecido no meio jurídico.

Referida lei regulamentou a fé pública registral em dois principais dispositivos,

sendo o primeiro (parágrafo único do art. 54) correspondente à regra geral de

aplicabilidade do princípio, e o segundo (art. 55), à regra especial. Em razão da

redação atécnica, especialmente daquele preceito legal, recorreu-se ao estudo do

princípio da tutela da aparência jurídica, bem como à já amadurecida doutrina

espanhola, como auxílio na compreensão da nova lei.

Assim, concluiu-se que, consoante a regra geral, são inoponíveis as situações

jurídicas não constantes da matrícula do imóvel ao terceiro adquirente, desde que

ele esteja de boa-fé, o título veicule negócio jurídico oneroso que vise a constituir,

transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, já tendo sido registrado, e seu ato

de aquisição seja hígido. A Lei nº 13.097/2015 prevê como exceções a essa regra

geral as situações em que a aquisição ou extinção da propriedade independam de

registro, como usucapião e direito à herança, diversos casos de negócios praticados

pelo falido relativamente à massa falida e a aquisição de bens públicos.

Já a regra especial, aplicável somente à aquisição ou oneração de lotes ou

unidades autônomas decorrentes de parcelamentos do solo, incorporações

imobiliárias e condomínios edilícios, em operações feitas diretamente entre o

empreendedor e o adquirente do direito, é bem mais forte que a regra especial. Com

efeito, dispensa-se o requisito da boa-fé do adquirente, sendo a única exceção

aplicável a da aquisição de bens públicos.

Atendidos os requisitos dessas regras, os registros anteriores ao do terceiro

registral passam a produzir presunção iuris et de iure de veracidade e validade, não

podendo mais ser cancelados. De fato, vícios eventualmente existentes em registros

anteriores da cadeia dominial não lhe são oponíveis, o que garante seu direito. Isso

não significa que o registro tenha efeito saneador, pois vícios em atos anteriores

continuam existindo. A diferença é que, diversamente do que ocorria anteriormente,

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tais vícios não têm mais o condão de acarretar o cancelamento de registro anterior,

que teria como consequência a produção de um “efeito dominó”, com o

cancelamento também de todos os registros posteriores, de modo a se preservar o

direito do “verdadeiro proprietário”. Em vez disso, essa figura deixa de ter direito a

reaver o imóvel ou outro direito real, resolvendo-se seu prejuízo em perdas e danos,

a serem pagos por quem os causou.

As abundantes exceções previstas, notadamente quanto à regra geral, fazem

com que haja uma mitigação do princípio da fé pública registral, o que não é bem-

vindo. É verdade que todos os sistemas registrais que adotam o modelo do registro

de direitos possuem exceções, mas a lei brasileira foi além do razoável. Quanto

menos exceções existirem, mais segurança haverá para as transações jurídicas,

com drástica redução nos custos de transação, decorrente da diminuição da

assimetria informacional. Esses são fatores decisivos para a tomada de decisões de

investimentos em sociedades cada vez mais complexas e caracterizadas pela

impessoalidade nas relações jurídicas.

Essas exceções demonstram que o sistema registral brasileiro ainda precisa

evoluir. Entretanto, seria injusto não reconhecer os méritos da Lei nº 13.097/2015,

que efetivamente consolidou no Brasil um sistema de registro de direitos forte, tão

necessário ao crescimento sustentável do país.

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