Resumo dimas floriani

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RESUMO Natureza e sociedade: passagem para uma nova ciência Existe uma grande dificuldade em tratar as concepções sobre ambos os sistemas (natural e social), já que anteriormente as concepções sobre ambos são separadas. As interações entre os indivíduos produzem a sociedade, que não existe sem eles. A sociedade produz indivíduos que produzem linguagem, conceitos, educação e segurança. Não se pode considerar o conhecimento como um objeto igual aos demais, já que serve para conhecer outros objetos ou a si mesmo. O fato é que quando se fala de ciência, fala-se a partir de uma perspectiva identificadora de um campo simbólico, cujos mecanismos são constitutivos de uma cultura científica moderna e tecnológica, com um ethos científico- corporativo já constituído. Desde que descubram novas possibilidades para pensar outras possibilidades de pensar, os aparelhos lógico-metodológicos dos sistemas científicos se tornam frágeis ao incorporar reflexivamente um alto grau de incerteza. A ciência normal pode, assim, transitar para outras epistemes e novidades lógico-conceituais. O que era certeza para os saberes organizados se torna incerteza organizada. Mesmo as ciências mais consagradas, como a Física, se abrem para outras ciências e internalizam o risco da dúvida metódica. Na ciência, bem como em outras esferas da história social, a verdade é humana; e, portanto, é uma invenção humana; ao pretender ser permanente, porém ao colocar-se além ou acima da transitoriedade das coisas, tornou-se religiosa e de difícil contestação. No âmbito do meio ambiente, essa contradição se exterioriza pela apropriação técnica da natureza (enquanto matéria socializada pelo modelo de produção capitalista) e pelo risco crescente para os seres humanos e para a vida no planeta, decorrente do modelo de desenvolvimento dominante e de seus impactos sobre os estilos de vida (consumo) e da consequente degradação socioambiental. É muito difícil determinar com exatidão o que faz mudar as bases epistemológicas do saber científico (causas puramente materiais ou formais): ou a incorporação/rejeição que é feita da ciência pela sociedade ou as mudanças nas lógicas discursivas e metodológicas dos sistemas de ciência ou, ainda, a combinação de ambos os fatores, ao convergirem e divergirem ao longo da história do conhecimento. Idênticos questionamentos podem ser feitos a respeito das influências da tecnologia sobre a sociedade e vice versa, bem como da sociedade sobre a natureza e desta sobre aquela. A famosa crise de paradigmas já se tornou moda de forma quase inevitável; referir-se a ela é uma questão

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RESUMO

Natureza e sociedade: passagem para uma nova ciência

Existe uma grande dificuldade em tratar as concepções sobre ambos os sistemas (natural e social), já que anteriormente as concepções sobre ambos são separadas. As interações entre os indivíduos produzem a sociedade, que não existe sem eles. A sociedade produz indivíduos que produzem linguagem, conceitos, educação e segurança. Não se pode considerar o conhecimento como um objeto igual aos demais, já que serve para conhecer outros objetos ou a si mesmo. O fato é que quando se fala de ciência, fala-se a partir de uma perspectiva identificadora de um campo simbólico, cujos mecanismos são constitutivos de uma cultura científica moderna e tecnológica, com um ethos científico-corporativo já constituído. Desde que descubram novas possibilidades para pensar outras possibilidades de pensar, os aparelhos lógico-metodológicos dos sistemas científicos se tornam frágeis ao incorporar reflexivamente um alto grau de incerteza. A ciência normal pode, assim, transitar para outras epistemes e novidades lógico-conceituais. O que era certeza para os saberes organizados se torna incerteza organizada. Mesmo as ciências mais consagradas, como a Física, se abrem para outras ciências e internalizam o risco da dúvida metódica. Na ciência, bem como em outras esferas da história social, a verdade é humana; e, portanto, é uma invenção humana; ao pretender ser permanente, porém ao colocar-se além ou acima da transitoriedade das coisas, tornou-se religiosa e de difícil contestação. No âmbito do meio ambiente, essa contradição se exterioriza pela apropriação técnica da natureza (enquanto matéria socializada pelo modelo de produção capitalista) e pelo risco crescente para os seres humanos e para a vida no planeta, decorrente do modelo de desenvolvimento dominante e de seus impactos sobre os estilos de vida (consumo) e da consequente degradação socioambiental. É muito difícil determinar com exatidão o que faz mudar as bases epistemológicas do saber científico (causas puramente materiais ou formais): ou a incorporação/rejeição que é feita da ciência pela sociedade ou as mudanças nas lógicas discursivas e metodológicas dos sistemas de ciência ou, ainda, a combinação de ambos os fatores, ao convergirem e divergirem ao longo da história do conhecimento. Idênticos questionamentos podem ser feitos a respeito das influências da tecnologia sobre a sociedade e vice versa, bem como da sociedade sobre a natureza e desta sobre aquela. A famosa crise de paradigmas já se tornou moda de forma quase inevitável; referir-se a ela é uma questão quase que por obrigação de ofício, sem tirar necessariamente todas as conseqüências de seu significado. A característica da moda é tornar dominante um gosto. Não seria diferente a moda acadêmica, cuja escolha temática de pesquisa pode ser considerada objetiva, apenas pelo fato de corresponder a interesses dos pesquisadores e de sua comunidade. Este fato, porém, não desmerece o contexto sociocultural no qual ocorrem tais preferências e escolhas.

Pré-condições para uma ciência da complexidade (natureza-sociedade)

O atual desafio do cientista é ousar transpor a repetição, alterando os procedimentos convencionais na (re) produção do conhecimento, buscando a fonte de sua imaginação em diversos referenciais cognitivos; não apenas naqueles de sua disciplina científica, mas também nos de natureza estética (artes, literatura, música), na ética, nos conhecimentos espontâneos, especialmente naqueles profundamente arraigados na cultura dos povos (do presente e do passado), recriando e restabelecendo o que foi esquecido ou obscurecido pelos procedimentos da racionalidade instrumental da modernidade. A revalorização dos saberes cultural é uma forma interessante de recuperar a memória das sociedades humanas, sem fazer

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concessão à nostalgia do elo perdido ou a um retorno impossível. Ao restituir às culturas o reconhecimento de sua sabedoria, está-se fazendo autocrítica dos erros cometidos, restabelecendo a assimilação de práticas sadias no domínio do meio ambiente e da saúde das pessoas (como, por exemplo, a utilização de alimentos e medicamentos naturais), além do reconhecimento do direito à diferença. A modernidade deverá saber combinar a razão com a emoção, a razão do direito universal, para todos, com a liberdade de ser de cada um e de cada cultura diferente. A ciência moderna não pode, pois, deixar de fazer um balanço dos seus próprios fundamentos e dos seus resultados, à luz de juízos éticos: para que e para quem serve a ciência? Que resultados visam e quais os resultados alcançados? Disso decorrem três questões: 1) as especificidades do processo cognitivo (o que constitui a ciência); 2) a função social da ciência (para que e para quem?); 3) o papel tradicional ou inovador do cientista (repetir ou criar em novas bases o conhecimento). Para MORIN e KERN8 (1995), a abstração e a contextualização são dois mecanismos básicos do conhecimento atual sobre o mundo; ter acesso às informações é próprio do direito cidadão que, além disso, tem que saber articulá-las e organizá-las. Porém, para conhecer e reconhecer os problemas do mundo é necessário uma reforma do pensamento; essa reforma precisa do desenvolvimento da contextualização do conhecimento. A relação do homem com a natureza não pode ser nem simples nem fragmentada. O ser humano é, ao mesmo tempo, natural e sobrenatural: pensamento, consciência e cultura se diferenciam e se confundem ao mesmo tempo, com a natureza viva e física. Para MORIN e KERN (1995) ainda, a construção do pensamento complexo depende de algumas pré-condições, tais como: 1- o vínculo entre relações da parte com o todo, que restabeleça o que está compartimentado; 2- um pensamento radical, que vá à raiz dos problemas e um pensamento multidimensional capaz de levar em conta a multiplicidade do real; 3- um pensamento organizador e sistêmico (todo-parte-todo), a exemplo das ciências ecológicas e da Terra; 4- um pensamento “ecologizado”, que coloque o objeto no interior de, pela sua relação auto-eco-organizadora com seu ambiente – cultural, social, econômico, político, natural; 5- um pensamento que leve em conta a ecologia da ação e a dialética da ação, capazes de modificar ou suprimir a ação empreendida; 6- um pensamento que seja inconcluso e que negocie com a incerteza na ação, porque é próprio da ação operar com o incerto. Deve-se, portanto, envolver ao mesmo tempo o observador e o sujeito ao olhar – ação para – o real. Na esfera social, o observador é, ao mesmo tempo, perturbado e perturbador. O observador da sociedade é alguém investido de um desejo de olhar e de uma censura de olhar; é um elemento da realidade, compreendido nela, cujo ato de conhecimento perturba e modifica o fenômeno observado. Por essa razão, nas Ciências Sociais, o observador/conceptor é um sujeito entre sujeitos. Ao excluir o sujeito da observação/concepção, constrói-se uma história sem sujeitos (MORIN, 1994).

Interdisciplinaridade e pesquisa na relação sociedade-natureza

No âmbito da problemática ambiental, os fundamentos teóricos sobre uma nova forma de produção do conhecimento não podem ser dissociados da prática interdisciplinar, entendida como a articulação de diversas disciplinas para melhor compreender e gerir situações de acomodação, tensão ou conflito explícito entre as necessidades, as práticas humanas e as dinâmicas naturais.Tal estratégia epistemológica deve buscar combater os efeitos ideológicos do reducionismo ecologista e do funcionalismo sistêmico que pensam o homem e as formações sociais como populações biológicas inseridas no processo evolutivo dos ecossistemas e acreditam ser a ecologia a disciplina mais importante das inter-

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relações homem-natureza, elegendo-a a ciência das ciências e a verdadeira teoria geral dos sistemas. A necessária colaboração entre as disciplinas só terá sentido com a prática social e a consequente intervenção no real. As temáticas do meio ambiente e do desenvolvimento têm uma dimensão social que transcendem a ciência e as atividades acadêmicas. O campo interdisciplinar em meio ambiente e desenvolvimento pertence à construção do conhecimento sistematizado que se remete à história dos conhecimentos disciplinares e a suas práticas metodológicas. Não basta juntar várias disciplinas para o exercício da interdisciplinaridade; assim como um sujeito solitário, mesmo um super-sintetizador de diversos conhecimentos, carece de condições para realizar uma pesquisa interdisciplinar, da mesma maneira o simples encontro entre diferentes saberes disciplinares não constitui uma pesquisa interdisciplinar. Pode-se definir, genericamente, a experiência interdisciplinar como o confronto de diversos saberes organizados ou disciplinares que, no âmbito do meio ambiente e do desenvolvimento, desenham estratégias de pesquisa, diferentemente do que faria cada disciplina, por seu lado, fora dessa interação. A prática da pesquisa interdisciplinar coloca duas questões fundamentais: 1- Como articular a participação de pesquisadores de diferentes disciplinas, no interior de uma prática de pesquisa interdisciplinar? 2- Como articular esses diferentes saberes disciplinares em uma ação negociada e coordenada, garantindo o espaço de contribuição para cada um deles? Trata-se, portanto, de uma obra coletiva de conhecimento e de esforços pessoais e institucionais. Tensões de diferentes níveis se apresentam nesse contexto interdisciplinar: a) pessoais: próprias às idiossincrasias individuais, seus interesses e capacidades, estratégias de poder (liderança), consciência do trabalho interdisciplinar, espírito democrático e de cooperação, etc.; b) institucionais: 1) nível macro: resistências/facilidades de incorporar novas práticas acadêmicas, atitudes e mentalidades de grupos e corporações, novas interações, sistema de financiamento e legislação em relação à estrutura administrativa da instituição (departamentos, setores), distribuição do orçamento para a pesquisa, etc.; 2) nivel micro (da unidade interdisciplinar): número de disciplinas reunidas na experiência interdisciplinar, equilíbrio ou não entre ciências da vida, da natureza e da sociedade, estratégias de condução (coordenação) da pesquisa (consciência da direção do processo e legitimação da direção), sistema individualizado ou repartição de responsabilidades, liderança carismática ou de competência reconhecida, se a experiência combina formação acadêmica com pesquisa (pós-graduação). Em uma construção disciplinar sobre a questão socioambiental, são limitadas as possibilidades de novas percepções, em geral circunscritas aos limites de sua própria construção. Por sua vez, a prática interdisciplinar, no âmbito do meio ambiente e do desenvolvimento, transcorre no espaço das interações das dinâmicas do sistema-sociedade e do sistema-natureza. Não se trata apenas de um espaço empírico, que aparece, mas de um espaço intelectualmente construído. Para finalizar, pode-se dizer que a interdisciplinaridade, no âmbito do meio ambiente e do desenvolvimento, é uma ação do conhecimento que consiste em confrontar saberes, cuja finalidade é alcançar outro saber, mais complexo e integral, diferente daquele que seria efetuada, caso não exista o encontro entre diferentes disciplinas. Quer dizer, necessita-se de um novo saber, pois os existentes são limitados e fragmentados, incapazes de traduzir a complexidade das interações entre sociedades humanas e o meio natural.