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RONALDO DE SOUZA WOITECHEN O DE MORTIBUS PERSECUTORUM E A IMAGEM DE DIOCLECIANO ENQUANTO PERSEGUIDOR Monografia de conclusão de curso apresentada À disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica do Curso de História do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Renan Frighetto CURITIBA 2006

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RONALDO DE SOUZA WOITECHEN

O DE MORTIBUS PERSECUTORUM E A IMAGEM DE DIOCLECIANO ENQUANTO PERSEGUIDOR

Monografia de conclusão de curso apresentada À disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica do Curso de História do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Renan Frighetto

CURITIBA 2006

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................................1 2 DA CRISE DO SÉCULO III AO FORTALECIMENTO DO ESTADO BAIXO-IMPERIAL............................................................................................................................2

2.1 Os Antecedentes do Regime Baixo-Imperial: as transformações no modelo do Principado de Augusto (séculos I e II)...............................................................2

2.2 O Regime Militarizado de Severo e a Crise do Século III..............................6

2.3 As Primeiras Tentativas de recuperação: a monarquia solar de Aureliano.9

2.4 As Reformas de Diocleciano e o Período da Tetrarquia...............................10

2.5 Constantino e a Nova Base Ideológica do Estado Imperial..........................14

3 LACTÂNCIO: VIDA E OBRA......................................................................................16

3.1 Esboço Biográfico.............................................................................................16

3.2 A Obra...............................................................................................................18

3.2.1 A apologia cristã..................................................................................18

3.2.2 A historiografia latina..........................................................................20

3.2.3 O De mortibus persecutorum...............................................................23 4 AS REPRESENTAÇÕES DE DIOCLECIANO NO DE MORTIBUS PERSECUTORUM............................................................................................................26

4.1 As Relações Entre Cristianismo e Império: da Perseguição de 303 ao Cristianismo de Estado de Constantino...............................................................26

4.2 O Cerimonial de Corte Baixo-Imperial..........................................................30

4.2.1 O culto imperial e a religiosidade de Estado.......................................31 4.2.2 O ritual de proskynesis e o cerimonial Baixo-imperial........................34

4.3 A Representação de Constantino Enquanto Ideal de Governante..............36

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................39 REFERÊNCIAS.................................................................................................................41

1 INTRODUÇÃO

O período da chamada tetrarquia em que quatro elementos compartiam o poder

imperial é um momento chave para se compreender os desenvolvimentos posteriores, é um

momento de transição, em que o Império Romano vai se tornando cristão e estabelece as

bases para épocas posteriores. É um momento de síntese entre elementos distintos, o

cristianismo antes perseguido passa a integrar um dos elementos constitutivos do Estado

imperial.

Além disso, o Estado imperial assume um teor distinto, após um longo período de

lentas transformações, que terá seus avanços e recuos, mas que conduzirá a um Estado de

cunho centralizador amparado por uma ideologia monoteísta. Pois o elemento senatorial

que compunha o Estado republicano e que representava a legitimidade (a legalidade) acaba

perdendo espaço, sendo gradativamente afastado. Segue-se um período de instabilidade e

problemas nos mais variados âmbitos, conhecido como crise do século III, do qual surge

um Estado fortalecido e centralizado cujo desenvolvimento acaba sendo incitado como

espécie de reação à crise. Nesse sentido, Diocleciano assume papel preponderante nesse

processo de transformações.

Esta pesquisa tem por objetivo definir os caracteres que constituem a imagem do

imperador Diocleciano segundo Lactâncio, a partir da qual é possível definir um conceito

de perseguição/perseguidor, na visão de Lactâncio. A hipótese que permeará a investigação

é a de que a imagem de Diocleciano enquanto perseguidor assume uma conotação política,

em contraposição ao ideal da política constantiniana na visão de Lactâncio.

A bibliografia utilizada vai desde as diversas Histórias de Roma que forneceram o

respaldo do contexto histórico, até trabalhos específicos sobre a fonte utilizada, como é o

caso do estudo de Ramón Teja1. A fonte, De mortibus persecutorum escrita no século IV,

pelo professor de retórica Lactâncio, reflete uma imagem do período da tetrarquia da

perspectiva de um cristão, e por essa razão é plena de elementos variados, que compõem a

sua dupla formação pagã e cristã.

Nesse sentido, assumem grande importância as convicções políticas do autor,

fundamentadas em sua formação retórica, apegado aos valores tradicionais romanos,

relativos à elite senatorial. A partir desse ponto de vista é que Lactâncio verá os

imperadores que compõem a tetrarquia, segundo o qual se entende o “tirano” como

1 TEJA, R. Introducción. In: LACTANCIO. Sobre la muerte de los perseguidores. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 7-61.

sinônimo do imperador anti-senatorial, como o estabelece Lactâncio2. Formado dentro das

duas tradições, Lactâncio terá como duplo pré-requisito para a formação do seu modelo de

governante, o seguinte: ser pró-senatorial e ser pró-cristão.

Além disso, a nova religiosidade imperial adquire um papel central no novo regime

Baixo-imperial, visto que é a ideologia de cunho monoteísta o que dá consistência ao poder

centralizado.

Deste modo, a obra de Lactâncio é também um testemunho desse novo teor do

poder imperial e Diocleciano é uma das figuras centrais nesse processo, assim como o é

Constantino, embora de uma outra maneira. Assim, iniciar-se-á fazendo um panorama do

contexto, tentando compreender as modificações do regime imperial, a partir do modelo do

Principado de Augusto, passando pela crise do século III, para chegar ao período de

reformas, e finalmente a tetrarquia e o governo unitário de Constantino. Em seguida,

analisar-se-á os elementos que constituem a vida e a obra de Lactâncio, sua participação

nas esferas de poder da época, as sedes imperiais de Nicomédia e Tréveris, bem como os

aspectos constantes em sua obra, constituída na confluência entre a tradição clássica e a

nascente fé cristã. Por fim, examinar-se-á a imagem de Diocleciano, feita por Lactâncio,

tendo por base três pontos principais: as relações entre cristianismo e Império (e a questão

da perseguição), o cerimonial de corte Baixo-imperial e o ideal de governante representado

pela figura de Constantino.

2 DA CRISE DO SÉCULO III AO FORTALECIMENTO DO ESTADO BAIXO-

IMPERIAL

2.1 Os Antecedentes do Regime Baixo-Imperial: as Transformações no Modelo do

Principado de Augusto (séculos I e II)

Antes de se tentar avaliar a dimensão política da obra de Diocleciano e seus

desdobramentos, o chamado regime Baixo-Imperial, seria conveniente introduzir

brevemente o fenômeno do Estado Imperial tal qual concebido pelo seu fundador passando

brevemente pela dinastia dos Severos, que introduz elementos importantes para se

compreender os desenvolvimentos ulteriores e pela crise do século III. O que se quer notar

é que o fenômeno do fortalecimento estatal ocorrido nos séculos III e IV, tem suas raízes

2 LACTANCIO. op. cit., p. 69.

em épocas mais recuadas. E se pretende compreender esse fenômeno como o

desenvolvimento de um processo de longa duração, e não como resultante imediata dos

sucessos do conturbado período de anarquia militar.

A República enquanto sistema de governo se adequava muito bem às dimensões

limitadas de uma cidade, mas jamais a tão vastos territórios adquiridos ao longo do seu

desenvolvimento.3 Então, como uma espécie de conseqüência natural desse processo de

expansão tem-se o advento do Império (inicialmente sob a forma do Principado), que na

prática significava a concentração dos poderes, antes reunidos no tradicional conselho

republicano, nas mãos de uma única personalidade. Ele reunia em si o comando

(imperium) de todas as tropas e era considerado como o primeiro (princeps) entre os

cidadãos. Desse modo, o Império se constitui já desde o princípio como um regime de

cunho militar, visto que a figura do imperator já tinha um lugar assegurado nos quadros do

regime republicano em casos específicos. O que Augusto, e em certa medida César, teve o

mérito de fazer foi tornar permanente esse cargo.

Contudo, advertido pelo exemplo de seu predecessor, Augusto tenta conciliar o

novo regime pessoal com as instituições republicanas, em decorrência dos preconceitos

romanos avessos a tudo quanto contrariasse o seu ideal de “liberdade”, sendo, pois,

impossível realizar um transplante puro e simples do modelo de monarquia oriental-

helenística. Mesmo no século IV, como será visto mais à frente, a despeito de o processo

de centralização do poder já estar em estágio avançado, essa cultura estará arraigada nos

elementos ligados a essa tradição senatorial como é o caso de Lactâncio, entre outros, a

quem a adoção de um modelo oriental causa extrema repugnância por não estar de acordo

com essa dignidade romana.

Augusto, inaugura assim o modelo do Principado, que acaba por se constituir como

apenas mais uma etapa no desenvolvimento de um processo que conduzirá a uma forma de

governo em que a centralização e a burocratização assumem um caráter acentuado. Ele se

mantém, pois, fiel a esses elementos republicanos e elabora um sistema capaz de assegurar

o regime pessoal e sua continuidade, ao mesmo tempo em que preserva as antigas

instituições, embora desprovidas de suas tradicionais atribuições para manter uma fachada

republicana num regime em que o poder se concentra cada vez mais em uma única pessoa.

Ele realiza uma espécie de síntese, bastante hábil e sutil, visto que não seria possível

3 AYMARD, A. & AUBOYER, J. História Geral das Civilizações (II, 2). Roma e seu Império. São Paulo: Difel, 1956, p.11.

instituir um regime à moda oriental, dada a resistência dos elementos da aristocracia

senatorial, que não deixou de se manifestar hostilmente ao longo do período.

Aos poucos, ao longo desse vasto período, o regime vai se livrando da roupagem

republicana e se tornando abertamente centralizado, sendo às vezes de modo mais

exacerbado (como com Domiciano e Adriano), e outras de modo mais relaxado, dando a

impressão de ocorrem rupturas, mas isso significa apenas que seu desenvolvimento não

segue uma linha contínua.

Pode-se dizer que já com Augusto, mas principalmente após as conquistas de

Trajano o Império assume uma postura oposta à que vinha sendo adotada passando de

ofensiva a defensiva. Já Augusto institui toda uma estrutura de cunho defensivo, quase

fixando de modo definitivo as fronteiras do Império (que vez por outra avançavam ou

recuavam, mas que se fixam em torno de determinadas marcas). Essa atitude defensiva se

reflete no que ficou conhecido como pax romana ou pax augusta, um período marcado por

poucas movimentações ofensivas, a tal ponto de Tácito afirmar que seus Anais4 se

configuravam como algo monótono diante dos feitos passados já que o modelo de história

antiga estava pautado basicamente no eixo da política e da guerra. O que não quer dizer

que não houvesse conflitos e guerras, mas apenas que a atitude seguida assume um teor

diferenciado com relação ao período anterior.

Como um regime de cunho militar, não é de se estranhar que o elemento do

exército assuma uma nova dimensão a partir desse período. Na prática, tornar o poder

imperial permanente significava manter um exército permanente assegurando a defesa das

fronteiras e a estabilidade interna impedindo o surgimento de novas guerras civis. Com a

cessação ou diminuição considerável das conquistas reduz-se significativamente o botim

de que dependia em boa parte o pagamento das tropas, sendo assim necessário regularizar

o soldo. Daí que o exército sofra algumas modificações e assuma um papel diferente (com

relação ao governo civil da República em que a defesa era provida por um exército de

soldados-cidadãos, o que ao mesmo tempo tinha conseqüências graves na economia)

gradativamente ao longo do período em decorrência da natureza militar do regime. Assim,

o governo deverá prover um rendimento e recompensas regulares para os soldados,

sustentáculo do poder imperial.

Augusto ainda intenta equilibrar o elemento militar favorecendo em alguns aspectos

o elemento civil representado pelo Senado, mas na prática este tem a maior parte das suas

4 TÁCITO. Anales. Madrid: Editorial Gredos, 2002, p.291.

atribuições retiradas restando-lhe muito pouco a fazer. Quando da morte de Calígula o

Senado, que se dizia pretender retomar as rédeas do Estado se vê acuado ante a escolha do

exército e é obrigado a aceitar sua escolha por Cláudio e pela continuidade do regime.5 O

processo era irreversível e já estava em estágio avançado, pois justamente Cláudio dará

importantes passos para a consolidação do regime imperial pelo estabelecimento de um

funcionalismo ainda que não-oficial, na figura de seus libertos, mas abrindo um precedente

imitado por seus sucessores. Mas somente no século II é que será regularizado por

Adriano, que faz amplos avanços nessa direção, atribuindo-as a pessoal especializado e de

condição social mais elevada (da ordem eqüestre), marcando uma etapa importante do

processo de burocratização estatal, que ao mesmo tempo significa o afastamento dos

membros do Senado da administração imperial direta. A cada passo, pois, como uma

conseqüência necessária do novo regime o Senado se vê destituído de suas antigas

atribuições, não sem realizar protestos, conseguindo vez por outra recuperar um pouco do

seu antigo poder para tornar a perdê-lo logo em seguida.

Enquanto o imperator, como comandante supremo dos exércitos, consegue articular

os diversos elementos de que depende seu poder e controlar o poderio dos soldados,

através de um sistema sucessional estável como foi o dos Antoninos, essa força que

sustenta o regime é contida em seus limites, mas a partir do momento em que essa

estabilidade é quebrada, por fatores que estão além da simples interrupção dessa

continuidade (visto que por trás dessa aparente estabilidade, já começam a se delinear os

sintomas de um grave desequilíbrio) e Estado é vítima de suas próprias contradições. Pois

que avivados os particularismos regionais, e diminuídas consideravelmente as

prerrogativas da aristocracia senatorial o exército queda como a única força, até pela

natureza militar do regime, que passa a impor a sua vontade, a um Estado que já não está

podendo arcar com esse ônus.

O reaparecimento das movimentações nas fronteiras, já com Marco Aurélio, revela

uma nova situação, pois o governo se mostra incapaz de atuar em várias frentes e suprir as

pesadas despesas. E a ausência de uma economia organizada intencionalmente (que se

baseava na agricultura, pois segundo a concepção antiga a riqueza deriva da terra), torna

difícil manter a estabilidade.

O assassinato de Cômodo, em 292, por elementos ligados à linha senatorial, prova

que o Senado, embora tivesse sido consideravelmente diminuído o seu poder ainda

5 SUETONIO. Vidas dos Doce Césares (v. II). Madrid: Editorial Gredos, 1992, p.83-4.

mantinha certa importância na estabilidade do regime (pois representava o elemento

legalista), visto que suscitou a sua oposição um regime de teor marcadamente concentrador

(‘tirânico’). Sem o controle de uma figura central, e na impossibilidade de o Senado

retomar a direção do Estado o exército dá mostras de sua força e resolve (a exemplo do que

tinha feito na situação relativa à aclamação de Cláudio) dispor do poder a seu talante.

Pertinax é aclamado, e depois assassinado, depois a dignidade imperial é posta à venda

pelos pretorianos, em seguida se instaura uma situação de guerra civil, após o que Severo

(analogamente ao que aconteceu no que diz respeito à sucessão de Nero) sai vitorioso e

impõe a sua posição.

2.2 O Regime Militarizado de Severo e a Crise do Século III

Com Severo, o Império, já por natureza militar, acaba assumindo um caráter militar

cada vez mais acentuado, em contraste com o período de maior florescimento do poder

civil favorecido pelo poder imperial que foi o período dos Antoninos (embora se tenha de

fazer uma concessão, visto que com Adriano o processo de concentração e burocratização

assume dimensões importantes, razão pela qual nessa tradição literária pró-senatorial esse

imperador geralmente não é retratado com os caracteres mais positivos6). Geralmente

Severo é tido como o iniciador desse processo de militarização do poder imperial7, mas

esse processo já vinha sendo levado a cabo no período precedente, basta lembrar a situação

relativa à crise de 68-69, que evidencia esse caráter instável do regime.

Contudo, as reformas de Severo são significativas para a consecução desse

processo, ele afasta cada vez mais o elemento senatorial da participação efetiva no governo

imperial, fundamentando seu poder no exército. Assim, desprovido de um contrapeso civil,

o exército acabaria por se sobrepor.

Para tentar assegurar seu poder em bases mais sólidas Severo e Caracala resolvem

sacrificar o bem estar comum em prol dos soldados que era onde residia o seu poder, e

assim inauguram uma nova orientação política, logrando certa estabilidade (relativa afinal

o próprio Caracala acabou sendo assassinado pelos soldados, visto que as condições

econômicas e sociais não permitiam a manutenção dessa situação instável por muito mais

tempo) mas abrindo um precedente perigoso que traria conseqüências funestas para o

6 cf. EUTROPIO. Breviario; AURELIO VICTOR. Libro de los Césares. Madrid: Editorial Gredos, 1999. 7 cf. HOMO, L. Nueva Historia de Roma. Barcelona: Editorial Iberia, 1949, p.343 e ROSTOVTZEFF, M. Historia de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1961, p.252

regime imperial. Pois, por conta do aumento dos efetivos e da remuneração militar aliada

às dificuldades econômicas seria cada vez mais difícil arranjar os recursos para satisfazer

os soldados (como dizia a máxima atribuída a Severo), além disso, a inflação que se

desenvolveu nesse período acabou por criar uma defasagem gerando a necessidade

crescente de se obter cada vez mais recursos com um aumento na carga tributária que se

tornara demasiado pesada para os contribuintes. E a não satisfação devida de suas

necessidades acaba por gerar uma maior instabilidade. Nesse sentido, é que acaba por

figurar o edito de Caracala em 212, estendendo a cidadania romana a todos os habitantes

do Império, justamente no intuito de obter maiores recursos para satisfazer as crescentes

demandas.

Outro elemento importante desse período dos Severos é a crescente intrusão de

influências de origem oriental. O próprio Severo demonstrava um certo desapego às

tradições romanas, não só pela origem provincial de Severo (e de sua esposa síria), como

pela sua política de franco afastamento do elemento aristocrático romano, razão pela qual o

seu governo acaba tendo seu eixo modificado, se configurando o governo dos Severos

como o predomínio do elemento provincial. Desse modo acaba favorecendo a penetração

de elementos alheios a essa tradição romana, abrindo um período de influência estrangeira

em que os elementos provinciais começam a encontrar um espaço cada vez maior. O

próprio edito de Caracala pode ser visto também como resultado dessa tendência,

culminação de uma série de transformações já iniciadas por seu pai. Isso é significativo,

pois o Estado romano, a partir de então parece se abrir para as influências orientais, o que

favorece a própria inclusão do cristianismo. Assim, se dá uma mudança de orientação

ideológica, que já vem se processando desde algum tempo, constituindo uma modificação

do paganismo clássico.

Por essas e outras os valores tradicionais romanos se encontram meio relegados na

época, vez por outra ainda surgirá uma tentativa de resgatá-los (a exemplo de Décio em

249-51, louvado pelas fontes pagãs como um dos últimos patriotas romanos - o

‘restaurador dos cultos’8) como o fez o próprio Augusto numa época em que a presença

oriental já se fazia sentir. Um processo de lenta transformação cultural, que não se dá de

modo linear e homogêneo, conduz a uma síntese dessas diversas tendências. Assim quando

Diocleciano, realiza novamente uma tentativa de restaurar essa tradição ele já o fará num

teor diferente, visto que as tendências alheias já haviam se imiscuído nela e um bom

8 GRANT, M. História de Roma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.327.

exemplo disso é a síntese do neoplatonismo. Com essa intrusão de elementos orientais o

cristianismo acaba sendo indiretamente favorecido. E nesse ponto faz-se notar a devoção

sincrética do último representante da dinastia dos Severos, Alexandre Severo em cujo altar,

diz-se, congregava-se as figuras de Orfeu, Apolônio de Tiana, Abraão e Jesus Cristo.9

Severo ainda logra dar certa estabilidade a seu regime, fundamentando seu poder no

exército, através do qual foi alçado à dignidade imperial, mas através de seu exemplo e

suas reformas abre um precedente perigoso, conseqüência do próprio caráter do regime e

das dificuldades cada vez mais agravantes de satisfazer as crescentes demandas das tropas,

em número aumentado por Severo. Essa sua política de favorecimento do poder militar

seria uma necessidade para sua sobrevivência no poder. Mas isso não poderia ser levado a

cabo por muito tempo, e Alexandre Severo, último representante de sua dinastia, já não

tem como sustentar as elevadas despesas, sendo assassinado pelos soldados. A partir daí a

prática se difunde e durante quase todo o século III, imperadores serão feitos e desfeitos

pelas tropas, às vezes simultaneamente em várias localidades, muitas vezes governando em

âmbito regional como foi o caso de Póstumo, nas Gálias.

Com o fim da dinastia dos Severos (235) geralmente se assinala o início do período

de anarquia militar, inaugurado pelo governo do “semi-bárbaro” Maximino (235-238),

trácio de nascimento e de ascendência germânica, retratado como uma figura sobre-

humana. Mas o mais significativo é o que as fontes dizem a seu respeito, a exemplo de

Eutrópio, na sua característica concisão: “de procedencia militar, fue el primero que llegó

al poder sólo por voluntad de los soldados, sin que hubiera mediado la autoridad del

senado y sin que él mismo fuese senador”10. Portanto, nesse momento o Senado passa a ser

relegado mais ainda e o Império, que perdendo o seu elemento de legitimidade, que era ao

mesmo tempo o que lhe dava estabilidade. Maximino ascende e se mantém no poder

exclusivamente pela força das armas, sem a necessidade do reconhecimento do Senado.

Este era necessário para dar a base legal do poder e constituir o contrapeso civil (como

representante da aristocracia) do poder militar imperial. Embora o Senado eventualmente

volte ter sua opinião considerada, mas por pouco tempo, como no caso da sucessão de

Aureliano11.

É dispensável se deter na rápida sucessão de imperadores aclamados e derrubados

pelas tropas, o importante é compreender o principio geral que rege a dinâmica do período,

9 KOVALIOV, S. I. Historia de Roma (t. III). Buenos Aires: Editorial Futuro, 1959, p.195. 10 EUTROPIO. op. cit., p.123. 11 AURELIO VICTOR. op. cit., p.233.

resultante da progressiva perda do poder por parte da aristocracia senatorial, que vai

conduzir a longo prazo a um Estado fortemente centralizado e burocratizado. A crise do

século III acelerou o processo de concentração do poder, pois diante da ameaça estrangeira

e de usurpações e da instabilidade econômica, era necessária uma força que unificasse

todos os esforços e fosse capaz de superar a crise.12

2.3 As Primeiras Tentativas de Recuperação: a monarquia solar de Aureliano

Aureliano é uma figura interessante em vários aspectos, não apenas por prefigurar

as reformas de Diocleciano, como por instituir o culto solar como ideologia monoteísta que

dava sustentação ao seu poder de cunho centralizador. Também de origem humilde como

praticamente todos os imperadores ilíricos, de simples soldado passa a imperador, numa

ascensão gradual a serviço do Império e que deve muito às reformas de Severo. Aureliano

inicia uma série de medidas que vão auxiliar a recuperação do Império, consegue

restabelecer a sua unidade, assegurando as defesas e derrotando os diversos impérios

regionais que surgiram durante o relativamente longo governo de Galieno, embora se

beneficie das reformas militares deste. Inicia ainda uma tentativa de recuperação monetária

e de controle da inflação.

Igualmente colocado no De mortibus persecutorum como um dos perseguidores, e

destacado na historiografia por suas tendências cruéis e ‘tirânicas’13. O que importa é que

ele inicia uma nova orientação, a partir desse momento já se tenta restaurar a unidade

imperial não mais em nome da religião tradicional romana, o eixo agora muda para uma

nova ideologia calcada em preceitos transcendentais, que passa a ser adotada pelos

imperadores para fundamentar o poder. Aureliano se utiliza de uma nova ideologia

monoteísta e sincrética que não deixa de ser significativa se se interpreta o monoteísmo

como simbolizando essa unidade em torno do poder imperial, e essa tendência sincrética

como o esforço de unir toda essa diversidade numa unidade sob a direção do Império

Romano. Assim sendo, essa tentativa de Aureliano, embora fracassada (mas apenas em

parte, pois se abre o precedente a Constantino que inicialmente estava inclinado ao

sincretismo solar, mas que percebe o potencial unificador do cristianismo) é extremamente

significativa para se ter uma noção da mudança que está se processando. Em especial se se

12 AYMARD, A. & AUBOYER, J. op. cit., p.284. 13 Segundo Eutrópio: “cruel y sanguinario y un emperador más necesario en algunos aspectos que amable. Fue feroz en todo momento (...), pero la mayor parte de las veces veló por la disciplina militar y corrigió las costumbres disolutas” (Breviario, IX, p.128).

tem em conta que após esse período anárquico o Império se reestrutura e consegue

prolongar sua sobrevivência.

Da mesma forma Aureliano é o primeiro a adotar símbolos externos como a

diadema, as roupas adornadas de pedras, embora as fontes baixo-imperiais tendam a

atribuir a primazia a Diocleciano, como será visto mais à frente, com exceção do Epitome

de Caesaribus.14

Aureliano não apenas adianta alguns aspectos da política de Diocleciano, como da

não menos controvertida figura de Constantino, tanto pelo seu apego à divindade solar

como sua elevação enquanto representante da divindade na terra e se Constantino troca

depois a divindade solar pelo Deus cristão isso não vem alterar a estrutura anteriormente

estabelecida para essa nova ideologia.

Após a morte de Aureliano as coisas parecem retornar ao estado inicial de

deterioração, contudo o primeiro passo já estava dado na direção de uma nova orientação.

E após breve reação senatorial, Probo retoma e avança a obra de Aureliano, mas é apenas

com Diocleciano que ela se completa e ganha uma dimensão definitiva.

2.4 As Reformas de Diocleciano e o Período da Tetrarquia

No ano de 284, um personagem de origem obscura (“hombre de oscurísimo origen”

segundo Eutropio15), um soldado, nascido na Dalmácia, e destinado a eternizar seu nome,

como um dos mais habilidosos políticos da Antigüidade, assume a direção do Império,

aparentemente sem muita diferença com relação aos seus antecessores, aclamado pelo

exército pelas suas qualidades militares. Contudo, diferentemente dos outros não apenas

logrou ampla longevidade na direção do governo, como marcou um feito inédito até então

com a sua abdicação em 305. Além disso, suas reformas iniciaram a recuperação do

Império abatido, garantindo sua sobrevivência que estava então ameaçada.

Assim como Aureliano o havia logrado fazer mesmo que por um curto intervalo,

coube a Diocleciano restabelecer a unidade do Império, organizando a defesa das fronteiras

e reprimindo as diversas usurpações que pululavam por toda a parte. Ele percebe que não

poderia fazer isso sozinho e que, portanto, precisaria contar com o auxílio de gente

capacitada para essa árdua tarefa e que fosse de confiança. Assim, em 285, ele associa ao

14 BRAVO. G. El ritual de “proskynesis” y su significado político y religioso en la Roma imperial (Con especial referencia a la Tetrarquía). Gerión. Madrid, nº 17, 1997, p.180. 15 EUTROPIO. op. cit., p.130.

poder a seu companheiro de armas Maximiano, a quem a historiografia costuma atribuir

características bem menos favoráveis que a Diocleciano, como sua ferocidade e

crueldade16. Alguns argumentam que também a escolha por Maximiano fora outra prova

da sagacidade de Diocleciano, pois que aquele, a despeito da sua exaltação lhe seria

submisso, e um instrumento necessário nos momentos em que se necessitasse de medidas

mais enérgicas sem que a responsabilidade direta lhe coubesse nesse caso, desviando de si

os possíveis descontentamentos17. Já Valeriano havia realizado uma divisão semelhante

para facilitar a defesa do vasto Império, deixando seu filho Galieno a cargo do ocidente

enquanto ele em pessoa se encarregava do oriente. Contudo, Diocleciano vai além e

constitui um mecanismo intencionalmente direcionado para controlar institucionalmente a

divisão para que não aconteça de surgirem Impérios regionais como no século III. E, em

293, ocorre a subdivisão do império entre mais dois correligionários, denominados

“Césares”, em oposição aos “Augustos”, seus maiores: Constâncio Cloro (pai de

Constantino), a quem coube, junto com Maximiano, os territórios ocidentais, e Galério,

que juntamente com Diocleciano, se encarrega dos territórios orientais.

Embora dividido o Império sob Diocleciano ainda é uma unidade (aliás fortalecida

mais do que nunca até então), sendo sua divisão meramente administrativa, para facilitar a

defesa das fronteiras e administração das regiões mais distantes, tornando assim o

imperador presente nas diversas partes do império, através de seus colaboradores e pela

multiplicação dos funcionários imperiais. A estrutura tetrárquica também tinha a intenção

de tornar o poder limitado a um espaço e um tempo determinados. E por trás dessa nova

estrutura havia um Estado cada vez mais fortalecido e centralizado. O Estado sob

Diocleciano acaba não apenas restabelecendo a unidade do Império como instituindo uma

nova orientação política (referida como regime de dominatus)18, em que as antigas formas

republicanas são deixadas de lado e o poder reside na pessoa do imperador e na burocracia

estatal, não mais na velha aristocracia.

E assim fundado na fidelidade pessoal, nos laços matrimoniais e numa certa

autoridade moral do mais velho, ele pretendia garantir um sistema duradouro de sucessão,

mas que teve êxito apenas enquanto ele esteve presente. Após a sua abdicação esse

mecanismo criado por ele começa a ruir. Em 306, após a morte de Constâncio Cloro, seu

filho, Constantino, fundado em uma espécie de direito hereditário e, principalmente (a

16 ibid., p.134. 17 GIBBON, E. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo: Cia das Letras/ Círculo do Livro, 1989, p.154. 18 HOMO, L. op. cit., p.373.

ponto de se tornar uma ameaça à estabilidade do Império, caso Galério, o Augusto mais

velho não o aceitasse), no apoio das tropas é aclamado imperador, dando o primeiro golpe

no sistema. A partir daí abre-se um precedente perigoso e a exemplo de Constantino,

Maxêncio, filho de Maximiano, é proclamado imperador pelas tropas na Itália, por conta

da perda dos privilégios de Itália pela política tetrárquica. Era o início da desestruturação,

que culmina com o governo exclusivo de Constantino. Em vista dessa experiência alguns

autores19 argumentam que um dos elementos do insucesso do sistema tetrárquico estava em

não considerar a sucessão em base hereditária, pois, Constantino e Maxêncio, filhos de

dois imperadores da tetrarquia foram preteridos em prol de outros dois desconhecidos.

Embora seu sistema para garantir a estabilidade da sucessão não tenha se sustentado

sem a sua presença, ele é responsável por concretizar todo um processo de mudanças,

algumas delas intensificadas e continuadas por Constantino. Entre suas medidas se

destacam: a reorganização do exército para poder garantir as fronteiras; reforma na

administração imperial, subdividindo o império em diversas províncias, agrupadas em

dioceses (constituindo uma ampliada hierarquia, restando apenas ao imperador o poder

supremo), o que facilitava a sua administração e diminuía o risco de usurpações; uma

reforma fiscal, tentando redistribuir os impostos de maneira mais justa, pois do modo como

estava, visto que a base da economia era agrária, recaía sobre o setor produtivo

estrangulando a produção necessária para o abastecimento. Também tentou controlar os

preços e revalorizar a moeda que em decorrência da inflação já não tinha mais o mesmo

poder de compra, embora nesse âmbito não tenha sido muito bem sucedido.

No que diz respeito à religião, Diocleciano, como Décio, resolve incentivar a

religião tradicional, contudo, oferece um incremento ao velho culto imperial estabelecido

por Augusto, introduzindo todo um cerimonial de corte que fazia lembrar muito as

monarquias orientais, pelo que acabou sendo tão mal visto, também pelos pagãos. Pois

desde Augusto, a manutenção de algumas estruturas republicanas e a atitude “humilde” do

príncipe, contribuíam para minorar o aspecto de um poder de fato monárquico. Segundo

Eutrópio, Diocleciano foi “el primero que introdujo en el Imperio Romano una práctica

más propia de la realeza que de la libertad romana, pues ordenó que debían postrarse ante

él todos cuando o saludasen. Vistió ropas y calzados adornados con piedras preciosas,

cuando antes la insignia del imperador era sólo la clámide de púrpura mientras que en el

resto no había atributos especiales”20.

19 ibid., p.366. 20 EUTROPIO. op. cit., p.134.

Apesar de Aurélio Victor o acusar de vaidade e soberba21, isso na verdade se trata

de um cálculo político, pois essa nova mística imperial faz parte do processo de

fortalecimento do poder, e foi um dos elementos mais importantes para garantir a

estabilidade. Pois justamente por isso ele tenha se preservado a salvo e prolongado a sua

obra política, marcando a diferença entre ele e Aureliano, administrador não menos

habilidoso e ousado, mas que não foi capaz de triunfar sobre as vicissitudes de sua época,

perecendo numa traição, como a maioria dos imperadores do século III.

Pois no momento em que Diocleciano pretendendo restringir o acesso a sua pessoa,

através de toda a pompa cujo propósito era impressionar a população e criar toda uma aura

mística em torno do poder imperial (que acabou por se tornar um lugar comum entre os

monarcas cristãos), ele deixa de estar suscetível às agressões dos soldados e ambiciosos.

Portanto, todo o aparato cerimonial introduzido por Diocleciano, embora repulsivo aos

olhos de seus contemporâneos (aristocratas), nada mais era do que uma estratégia

necessária ante as circunstâncias de seu tempo.

Nesse sentido, também o sistema tetrárquico servia a esse intuito pois que se um

fosse alvo de um atentado ainda haveria três outros para restabelecerem a ordem, as

reformas administrativas, e nos comandos militares, a dissociação entre autoridade civil e

militar, tudo isso contribui para garantir um caráter sólido à sua obra. por esse motivo, se

percebe a singularidade da obra de Diocleciano. Mas à diferença de Constantino, ele não

percebeu o potencial do cristianismo enquanto elemento corroborador desse sistema, e ao

contrário viu nele um empecilho no desenvolvimento de sua obra.

Portanto, o reavivamento do culto tradicional mais do que uma retomada da velha

religião, acaba assumindo um importante papel no reforço do poder imperial. Em especial

no contexto das sociedades antigas, se faz notar a relação necessária entre o sagrado e

poder22, sem o que este não se sustenta. Com relação a isso, faz-se necessário referir, até

por ser o núcleo central a partir do qual Lactâncio desenvolve sua obra, a situação relativa

à que ficou conhecida como “grande perseguição” que tem início em 303.

O cristianismo como não admitia os deuses pagãos, embora em diversos momentos

tenha reiterado a submissão ao poder imperial, pode ter sido visto como um empecilho

nesse processo de centralização (embora isso seja algo relativo). O fato é que a partir de

303, após quase vinte anos de governo de Diocleciano, o governo imperial muda de atitude

para com o cristianismo, que até então gozava de certa tolerância. Ficou conhecida como a

21 AURELIO VICTOR. op. cit., p.236. 22 ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.18.

“grande perseguição”, por ter sido a mais rigorosa e sangrenta, embora tenha variado de

região para região.

Antes mesmo do primeiro edito a perseguição se manifesta pela expulsão dos

cristãos do exército da parte de Galério e também Diocleciano, pois nessa época a

profissão de soldado já não era tida como tão incompatível com a religião cristã e havia um

número razoável de cristãos no exército. Depois, fez-se publicar quatro editos no intervalo

de um pouco mais de um ano, em 303, o primeiro edito, alguns meses depois os outros dois

e, no ano seguinte, o último. O primeiro ordenava a destruição dos templos cristãos e a

queima dos seus livros sagrados, e também a proibição de se reunirem; o segundo era

dirigido, como no caso de Valeriano, às lideranças cristãs, tentando desestruturar sua

organização, obrigando os sacerdotes a apostatar; o terceiro trazia a obrigação de estes

realizarem sacrifícios, os que o fizessem seriam libertos, e os que se negassem seriam

condenados à morte; e o último, estendia estas últimas determinações a todos os cristãos.

Houve muitos apóstatas e também inúmeros mártires.

A extensão dessa perseguição acaba variando de acordo com a região. Pois, nos

territórios ocidentais ela acaba sendo mais restrita, em especial nos de Constâncio Cloro,

pela sua tendência tolerante e conciliatória (tendendo a uma religiosidade sincrética) e

também por nessas regiões o cristianismo não ter se difundido tanto como no oriente, que

acaba se estendendo para todo o ocidente quando em 305, com a abdicação, ele se torna o

Augusto de todo o ocidente. Já no oriente, região de maior concentração de cristãos, a

perseguição foi mais intensa e segue até 311, quando Galério, à beira da morte, publica seu

edito de tolerância. Mas em 313, quando Maximino Daia, que a despeito do edito de

Galério continuava a perseguição em seus territórios, é derrotado e morre, é que se tem por

oficialmente encerrada a perseguição, com o acordo dos dois imperadores Licínio e

Constantino, conhecido como edito de Milão, que confirma e amplia as determinações do

edito de Galério. Apesar disso, Licínio ainda retomará as hostilidades contra os cristãos

posteriormente, até 324, quando é derrotado por Constantino que passa a governar sozinho,

até sua morte em 337.

2.5 Constantino e a Nova Base Ideológica do Estado Imperial

Constantino se constitui ao mesmo tempo como o princípio detonador da política

tetrárquica de Diocleciano, pois se infiltra nele de fora e reunifica o Império em torno de si,

mas também como seu herdeiro e continuador. Desde sua ascensão em 306, na Britannia,

até a sua morte em 337 são mais de trinta anos, sendo somente superado por Augusto, e a

analogia com o fundador não deixa de ser significativa pois Constantino se coloca também

de certa forma como um novo fundador. Ele solidifica os alicerces do Estado renovado por

Diocleciano, fundamentando em bases ideológicas mais firmes. Constantino,

evidentemente se beneficia da obra de Diocleciano, contudo com ele a unidade imperial

passa a ser encarnada novamente na figura de um único soberano. Ele logra, assim, um

governo mais duradouro que o do próprio Diocleciano, todavia, não o conseguiria se não

fosse a obra realizada por este e seus sucessores. Em vários aspectos, portanto, Constantino

perfaz a obra de Diocleciano, é o seu necessário complemento.

Ao infiltrar-se no sistema tetrárquico, ele acaba por contestar as bases sobre que

estava fundamentado o sistema, visto que não respeitou a ordem e hierarquia interna,

chamando para si o apoio das tropas, e reclamando como que um direito de sucessão

hereditário. Mais tarde, tenta tornar a sua situação mais próxima aos princípios

tetrárquicos, no intuito de tentar se colocar como o seu verdadeiro herdeiro, dando assim

uma maior legitimidade à sua ascensão e ao seu regime. Ele o faz através de uma ligação

com um dos principais membros da tetrarquia, o antigo imperador Maximiano, e o

casamento com sua filha Fausta, já que sua filiação a Constâncio Cloro, era tida por

ilegítima por alguns elementos23, talvez por essa razão é que algum tempo depois de ter

realizado a damnatio memoriae de Maximiano, em decorrência da sua tentativa de

usurpação, é que reabilite a memória do velho imperador.

Além disso, o que se sobressai com relação a Constantino é a sua política pró-cristã,

mas não desprovida de sutilezas e astúcias. Como dito acima, embora em muitos aspectos

tenha sido um continuador da política de Diocleciano, ele é responsável por introduzir

algumas novidades com relação ao plano traçado por seu predecessor. No que diz respeito

às reformas, no âmbito militar, organizou a defesa das fronteiras, separando o exército em

duas categorias (e separando seus comandos), exército de fronteira e exército interior em

decorrência de no século III ter ocorrido muitas vezes de os bárbaros, rompendo a

resistência fronteiriça encontrarem caminho aberto para suas incursões. Separou

definitivamente os poderes civis dos comandos militares, segmentando por sua vez este em

comandos de infantaria e cavalaria no intuito de incrementar esse processo de

burocratização, tornando a administração cada vez mais segmentada, evitando assim o

perigo do acúmulo de poder em uma única pessoa, que não ele próprio, diminuindo o risco

23 cf. ZÓSIMO. Nueva Historia. Madrid: Editorial Gredos, 1992, p.187.

de usurpações. Dissolveu definitivamente as tropas pretorianas substituindo-as por uma

guarda pessoal, e a figura do prefeito do pretório assume função exclusivamente civil

(como já de certa forma acontecia na época de Diocleciano, em que o prefeito do pretório

acaba se constituindo como um dos funcionários mais importantes nessa hierarquia). Além

disso, realiza medidas que vão favorecer francamente os cristãos, como: estende os

privilégios que gozavam os colégios religiosos à Igreja; reconhece prerrogativas à

hierarquia eclesiástica que ultrapassam o aspecto religioso, como o exercício do judiciário.

Interfere mesmo em questões de doutrina (como é o caso do concílio de Nicéia em 325)

com o intuito de estabelecer uma unidade (necessária para a devida eficácia da unidade

imperial), excluindo as opiniões divergentes e estabelecendo uma ortodoxia..

Muito se tem conjecturado sobre a adoção do cristianismo por Constantino, mas

independentemente de suas convicções pessoais o importante é que o cristianismo passa a

assumir uma função no Estado imperial e que as relações entre essas duas instituições se

modificam fundamentalmente, pois não só o governo passa a favorecê-lo como se

beneficia de seu apoio ideológico. Sua doutrina monoteísta acaba por fornecer ao Império

uma ideologia unificadora mais eficaz que o paganismo tradicional, o qual já vinha sendo

abandonado em prol de crenças estrangeiras, e ao mesmo tempo tinha algumas vantagens

sobre o culto solar e outros. Constantino, portanto, percebe esse potencial do cristianismo,

e é a partir dele que o cristianismo assume um papel importante como ideologia

unificadora e que dá fundamento ao poder imperial centralizado. Com Constantino ocorre

verdadeira simbiose entre cristianismo e Imperador Romano.

3 LACTÂNCIO: VIDA E OBRA

3.1 Esboço Biográfico

Sobre sua vida pouco se sabe, as únicas fontes para se determinar algo a respeito de

sua trajetória são: umas poucas referências em sua própria obra ou algumas informações

numa inscrição em Cirta e no De Viris Ilustribus de São Jerônimo24. Seu nome completo

era Lucius Caecilius Firmianus Lactantius, era africano de Numídia, e foi discípulo do

retórico Arnóbio, de que quem aprendeu o ofício de retórico, mas que não exerceu

dedicando-se apenas ao ensino de retórica para sobreviver. No que talvez tenha sido bem

24 TEJA, R. In: LACTANCIO. op. cit., p.7.

sucedido, gozando talvez de algum prestígio em sua atividade, já que Diocleciano o chama

até a nova capital, Nicomédia, para ensinar retórica. Lá parece que passa por dificuldades

financeiras (segundo São Jerônimo), talvez em decorrência da abdicação de Diocleciano,

tendo a partir de então se dedicado a escrever. Quanto à data de sua conversão, também é

imprecisa, mas o que parece é que já havia se convertido em 303 quando ocorre a

perseguição, mas não se sabe se se convertera em África ou somente depois de chegar a

Nicomédia. Apesar disso, parece não ter sofrido nenhuma conseqüência da perseguição, ao

menos até a abdicação de Diocleciano em 305 (fato que é utilizado por alguns como prova

para afirmar que sua conversão é posterior25). Depois disso apenas se sabe que já em idade

bastante avançada, é chamado por Constantino a Tréveris para que se encarregasse da

instrução de seu filho mais velho Crispo. A partir de então, perde-se o seu rastro, mas

como já estava em idade avançada supõe-se que não tenha morrido muito depois. A última

data que se pode precisar é a dos últimos acontecimentos descritos em sua obra De

mortibus persecutorum, ou seja 314 ou 315.26 Dentre suas obras mais importantes que

chegaram até nossa época destacam-se, na ordem cronológica: De opificio Dei, Diuinae

institutiones, De ira Dei e Epitome. A Instituições Divinas é considerada a sua obra mais

importante, composta provavelmente entre 305 e 313, é mais propriamente uma apologia

(embora não exatamente), bastante interessante no que diz respeito à fusão de conteúdos de

origem pagã e cristã.

Ramón Teja estabelece uma conexão entre estas e as outras obras de Lactâncio que

constituiriam para ele uma unidade.27 Pode-se perceber um espírito de conciliação entre

filosofia pagã e doutrina cristã nas Instituições Divinas e entre Igreja e Estado, política e

religião no De mortibus persecutorum, diferente dos cristãos anteriores, mais

intransigentes. Essa conciliação reflete as novas circunstâncias políticas, em que ocorre

uma mudança nas relações entre cristianismo e poder imperial com Constantino. Lactâncio

é um entusiasta da grandeza de Roma, é ao mesmo tempo um defensor da religião cristã

ante os pagãos e da ‘romanidade’ frente aos ‘bárbaros’, daí sua implicância com os

imperadores que não demonstravam um verdadeiro apego às tradições romanas.

Mesmo com o pouco que se sabe de sua vida é possível notar um dado importante,

que é a presença de Lactâncio próximo ou na corte de dois das mais importantes

personalidades do período, Diocleciano e Constantino, indicando que fora testemunha

25 SÁNCHES SALOR, E. In: LACTANCIO. Instituciones Divinas. Madrid: Editorial Gredos, 1990, p.11. 26 TEJA, R. In: LACTANCIO. Sobre..., p.8-9. 27 ibid., p.13.

direta ao menos de alguns acontecimentos da época. Isso é interessante também no que diz

respeito às diretrizes que pautaram as relações entre cristianismo e Império, pois que se é

certo que Lactâncio já havia se convertido quando ocorre a grande perseguição (e mesmo o

fato de ser um cristão trabalhando normalmente ao lado de pagãos e por iniciativa do

próprio imperador) e não foi molestado é preciso rever o significado dessa perseguição. O

que se pode inferir é que os cristãos parecem ter tido participação ativa na vida política e

social desse período independentemente dessa perseguição (que pode ter sido apenas uma

interrupção momentânea nas relações cotidianas pacíficas entre cristãos e pagãos).

Além disso, o que se sabe é que Lactâncio não se viu constrangido a deixar

Nicomédia senão após 305 28, ano da abdicação de Diocleciano, talvez mais por esse fato

do que pela perseguição, até porque não é possível deixar de notar a imagem extremamente

negativa que representa de Galério, sucessor imediato de Diocleciano, e que parece não ter

tido as mesmas sutilezas de seu antecessor.

Tal como se percebe em sua obra Lactâncio é adepto das concepções políticas pró-

senatoriais bastante desenvolvidas em sua província de origem, a África, em especial pela

sua formação retórica, mais diretamente ligada à tradição romana. E por isso é que se pode

perceber tal qual em Tácito um certo ressentimento pelo abandono dos valores romanos

pelos imperadores por ele criticados.

3.2 A Obra

3.2.1 A apologia cristã

Em decorrência dessa sua dupla formação, pagã e cristã, pode-se compreender a

obra de Lactâncio como a confluência de tendências literárias de origens tanto cristãs

quanto pagãs. No que diz respeito à tradição literária cristã pode-se destacar a apologia.

Esta surge como uma forma de expressão caracteristicamente cristã e que tinha por

finalidade preservar o cristianismo dos ataques, fossem eles físicos ou intelectuais, vindos

da parte dos pagãos. Isso na prática podia significar a sua sobrevivência enquanto grupo

social distinto e minoritário. E como não podia deixar de ser esses contatos produzem

trocas, que se traduzem nas tentativas de síntese, verdadeiro esforço de conciliação entre

28 ibid., p.22.

pontos divergentes que constitui a própria apologia enquanto gênero totalmente novo e

cristão.

Embora tenha havido conflitos a iniciativa de conciliação grassou de ambos os

lados, e da parte dos cristãos havia uma intenção de integração na sociedade, mas

preservando as suas particularidades. Assim a apologia constituía um instrumento

importante para a defesa de uma posição dentro dessa sociedade, utilizando-se para tal dos

próprios recursos dos pagãos, em especial da filosofia e sobretudo a corrente neoplatônica.

Tinha por finalidade demonstrar que o cristianismo não era incompatível com a sociedade

greco-romana e com o regime político imperial.29 Nesse sentido, o exemplo mais

significativo é o de Orígenes (e depois dele Agostinho de Hipona), que realiza uma

ambiciosa e fundamental síntese entre cristianismo e platonismo que está na base dos

desenvolvimentos posteriores.

Não que o De mortibus se constitua como uma apologia propriamente, no sentido

em que foi definido, visto que foi escrito num período em que o cristianismo passa a ser

favorecido, mas sim que a apologia cristã acaba se transformando num modelo literário de

que a produção literária de Lactâncio pode ser considerada um exemplo, pois traz em si

alguns de seus elementos mais característicos. Mas com relação a Lactâncio a obra que

mais se enquadraria nesse modelo de apologia seria a Instituições Divinas, embora esta se

proponha a ser uma institutio, ou seja, a definição dos elementos básicos de uma

doutrina30. Mas, no fim das contas, o seu teor é o de uma defesa da doutrina cristã diante

dos pagãos. Nas Instituições, Lactâncio tenta conciliar a religião cristã (vista por muitos

pagãos e acusada pelo filósofo Celso de ser uma religião de pobres e ignorantes 31) com

uma cultura elevada, estabelecendo uma separação entre os sábios e os ignorantes (uma

espécie de separação em caracteres distintos do cristianismo de acordo com a camada

social a que se dirige, demonstrando a amplitude da fé cristã que serve tanto aos mais

simples como aos ilustrados)32, para estes a simples fé bastaria, mas para aqueles era

necessário recorrer à filosofia, mas para ambos se chegaria ao mesmo fim. Não que se

rompa com a idéia da importância da fé (que continua sendo um elemento fundamental e

nesse sentido como aponta Dodds acaba ocorrendo uma espécie de permuta pois enquanto

o cristianismo recorre à razão, a filosofia da época cada vez mais recorre à fé, e acaba por

29 TEJA. Ramón. El Cristianismo Primitivo em la Sociedade Romana. Madrid: Ediciones Istmo, 1990, p.33. 30 SÁNCHES SALOR, E. In: LACTANCIO. Instituciones..., p.14. 31 GIGON, O. La Cultura Antigua y el Cristianismo. Madrid: Editorial Gredos, 1970, p.155. 32 LACTANCIO. Instituciones..., p.66.

se tornar em religião33), mas que a razão fundamenta e confirma a fé, que religião e saber

se complementam e não se contrapõem.34

Lactâncio utiliza-se ainda em sua obra dos baluartes da própria cultura clássica,

como os filósofos e poetas (ele tem uma grande admiração por Virgílio) embora às vezes

de modo tendencioso, para confirmar a verdade da doutrina cristã. Afinal de contas ele

também se vê como partícipe dessa cultura ancestral e a adoção dos mestres do

pensamento pagão acaba se dando também de uma forma natural. Ele tenta encontrar no

próprio paganismo (como no caso das sibilas35) indícios de uma idéia monoteísta, que

viesse a confirmar a verdade da doutrina que defende.

3.2.2 A historiografia latina

Embora não se pretenda ser uma obra de história do período36, não há como deixar

de notar a presença de elementos característicos da vertente historiográfica latina. Faz-se,

portanto, conveniente ter-se em conta alguns elementos presentes na historiografia latina e

clássica em geral e que se pode perceber em Lactâncio, lembrando que este teve uma

formação primordialmente clássica, somente depois vindo a adicionar o elemento cristão.

Até mesmo as suas convicções políticas e a perspectiva adotada no que diz respeito aos

acontecimentos, acabam por aproximá-lo desses historiadores romanos. Essa literatura pró-

senatorial constituía como que a continuadora da damnatio memoriae dos maus

imperadores, realizada tradicionalmente pelo Senado, mas quando este não estava em

condições de fazê-lo, reservava-se ao protesto por escrito os ressentimentos dessa camada

da sociedade romana. Da mesma forma, Lactâncio acabará por se utilizar desse

“pelourinho literário”37, embora com um caráter distinto, para execrar a memória desses

imperadores, que se contrapunham à sua perspectiva política.

A história enquanto modelo literário é um gênero bastante amplo, que segundo

Emma Falque, se constituiria, na verdade, como um conjunto de gêneros literários e não

um único38. Mas cujas bases podem ser buscadas na própria tradição historiográfica grega

Como Heródoto o coloca no início de suas Histórias39, sua intenção era a de realizar uma

33 DODDS, E. R. Paganos y Cristianos en una Época de Angustia. Madrid, 1975, p.159-161. 34 LACTANCIO. Instituciones..., p.70. 35 ibid., p.84. 36 TEJA, R. In: LACTANCIO. Sobre..., p.37. 37 AYMARD & AUBOYER. op. cit., p.54. 38 FALQUE, E. In: EUTROPIO. op. cit., p.17. 39 HERÓDOTO. Historia (libros I-II). Madrid: Editorial Gredos, 1999, p.85.

investigação40 empírica acerca dos fatos humanos, numa espécie de oposição ao intento

dos poetas e filósofos, pelo qual é considerado o pai da história até mesmo num sentido

próximo ao moderno. Com relação à historiografia imperial romana a figura que mais se

destaca é a do grande historiador Tácito, cuja influência foi das mais ampliadas. E como

dito acima, suas convicções políticas não destoavam muito das de Lactâncio, assim como

ambos tiveram uma formação retórica. Além disso, em Tácito prevalece uma visão

bastante pessimista da história, como a que se sobressai na visão sobre os perseguidores de

Lactâncio. Além dele, outro cuja obra também deixou profundas influências no fazer

historiográfico posterior, não apenas por ter servido de fonte, como também de modelo

para as caracterizações dos imperadores, foi Suetônio e sua Vida dos Doze Césares41.

A história na concepção clássica também era uma forma de expressão literária, não

sendo vista como algo distinto dos outros gêneros literários, é claro que ela não exclui toda

uma investigação (como foi dito e que é a própria etimologia da palavra), e apelo à

veracidade, mas também inclui alguns rasgos literários e algumas liberdades, que

pareceriam estranhas na concepção moderna, acabam sendo tomadas. Até certo ponto, era

comum a utilização de recursos retóricos na composição das histórias (como no caso da

invenção de discursos mesmo quando se possui os documentos originais em mãos), visto

que a história enquanto gênero literário da antiguidade tem suas origens na própria tradição

oratória, pela qual se aproxima da apologia cristã, ao menos em sua intenção. Essa ligação

entre a história e a oratória se manifesta também na trajetória dos autores, como Tácito (e

Lactancio depois) que se dedicam inicialmente à retórica passando depois à história

(também nesse sentido que essas obras se constituem como uma defesa no sentido clássico

de uma causa a favor da qual tentam argumentar).

Além da oratória, outros elementos que estariam na gênese da história seriam: o

drama, talvez em seu sentido mais literal, relativo a uma seqüência, uma sucessão de ações,

como o faz crer o radical grego δραµ-/δροµ- 42, mas também no sentido da tragicidade dos

acontecimentos históricos, pois a história se constitui como o palco de uma luta entre as

forças cósmicas e a liberdade humana, e esse aspecto fica especialmente evidenciado em

Tácito (até pela sua visão essencialmente negativa) e mesmo em Lactâncio. E na épica, ou

seja, a exaltação dos feitos dos heróis, daí talvez essa função mnemônica da história, de

fazer com que os grandes feitos não acabem sendo esquecidos. E por último, assume certa 40 Significado original/etimológico do termo grego ἱστορία (ou em sua forma dialetal jônica, na qual escreve Heródoto: ἱστορίη) que deu origem ao termo história. 41 SUETONIO. op. cit.. 42 Presente em hipódromo, autódromo etc. Do verbo grego τρέχω, ἔδραμον, que significa ‘correr’.

importância a tradição romana de registro dos fatos documentalmente e a manutenção de

arquivos oficiais, para guardar a memória dos fatos públicos43.

Em Tácito, além da função de preservar uma memória, de cristalizar uma tradição,

para que esta não seja vítima do esquecimento, como o coloca Heródoto, ou o próprio

Tácito (“persuadido de que o principal dever da História é impedir o esquecimento das

virtudes e inspirar o temor da posteridade e da infâmia para com as palavras e ações más” 44), percebe-se uma preocupação em tornar a história um fato moral, tal como a concepção

ciceroniana de história como mestra da vida. Em Tácito, pois, a história deve mostrar um

conteúdo moral, também é um pouco isso o que subjaz a obra de Lactâncio, só que nesse

caso a moral adotada é uma moral cristã. Essa história de caráter exemplar é também

conseqüência da concepção clássica de tempo diferente da concepção até certo ponto

teleológica (ou reversiva) judaico-cristã, pois se a história está sujeita a retornos então a

sua escrita pode servir de alerta. A noção de um tempo cíclico foi expressa de modo

bastante afortunado por Aurélio Victor: “Este hecho nos ha demostrado especialmente que

todo vuelve al punto de partida como en un círculo y que nada sucede que no pueda la

fuerza de la naturaleza repetir en el trascurso del tiempo; además que las situaciones,

incluso las desesperadas, son fácilmente remontadas por las virtudes de los emperadores y

las más estables son arruinadas por sus vicios”45. Nesse sentido, se justifica essa intenção

de servir de exemplo, pois que os fatos se repetem, além disso, dá-se grande importância

para a atuação da virtude que poderia triunfar diante das vicissitudes, por isso esse

destaque tanto às virtudes quanto aos vícios dos personagens. E como assinala Moralejo,

Tácito está no meio do caminho entre uma concepção determinista e a não-determinista,

não se posicionando por nenhuma das duas, mas apenas referindo ambas46.

Quanto a Suetônio, outro autor de grande importância e que cultiva um gênero

diferente de história (para alguns um gênero literário distinto47), biográfica, sua influência

também se fez sentir na produção historiográfica posterior, em especial no que diz respeito

aos seus retratos negativos de alguns imperadores do século I. Ele está talvez na base de

caracterizações posteriores, tais como as de Eutrópio, Aurélio Victor ou Lactâncio, não

apenas para os imperadores de quem ele escreve a biografia (sua obra é evidentemente uma

das fontes senão a principal para as caracterizações que estes autores tardios fazem dos

43 MORALEJO, J. In: TÁCITO. op. cit., p.22-3. 44 TÁCITO. Apud: AYMARD & AUBOYER. op.cit., p.202. 45 AURELIO VICTOR. op. cit., p.233. 46 MORALEJO, J. L. In: TÁCITO. op. cit., p.16-7. 47 VERGER, A. R. In: SUETONIO. op. cit., p.24.

imperadores do século I, como é o caso do próprio Lactâncio, embora este una as tradições

historiográfica latinas com a cristã, inserindo na questão referente à perseguição de Nero,

por exemplo, as figuras dos apóstolos Pedro e Paulo48), como também no que diz respeito a

um modelo de retratos e composição das biografias. Suetônio constitui como que um

roteiro, que com algumas variações e de modo bem mais reduzido pode-se encontrar em

Eutrópio e Aurélio Victor por exemplo. Ele estabelece como que a forma pela qual se

amoldarão novos conteúdos, embora no caso de Lactâncio sua convicção cristã o faça

inserir elementos alheios à tradição historiográfica.

Embora classificado no gênero literário da biografia, não está alheio à história

propriamente, visto que trata de personagens históricas importantes, a não ser pelo seu

gosto pelo anedótico, pelos detalhes. Suetônio em suas Vidas define uma ordem, um

protótipo pelo qual se guia a narrativa que não segue uma ordem necessariamente

cronológica, a despeito de que no caso de Lactâncio, à exceção de alguns equívocos, o que

prevalece é a ordem cronológica. Ele define padrões a partir dos quais se desenvolverá, em

muitos aspectos, a escrita histórica. Além do mais as suas personagens acabaram por

adquirir um caráter transcendente, sua caracterização se desenvolve por uma série de

estereótipos (muitos dos quais acabam por aproximar seus biografados de personagens

literários, como é o caso das representações bufônicas de um Calígula ou de um Nero, ou

ainda da monstruosidade repugnante de um Tibério em sua fase decadente), em sua

maioria negativos, que também compartilham da tradição pró-senatorial de Tácito, embora

ele às vezes estruture suas biografias dividindo-as em seus aspectos negativos e positivos

dos príncipes (mas nos quais se sobressaem os aspectos negativos, quando se trata de um

personagem estigmatizado). Ele se utiliza de uma série de características estereotipadas,

como a do tirano cruel, sanguinário, devasso, que farão parte de todo um modelo negativo,

e que pode ser encontradas nos retratos negativos feitos por Lactâncio em seu De mortibus.

Também em Suetônio se percebe a constituição de um ideal a ser exaltado e imitado (ou no

seu aspecto negativo a ser execrado e evitado), e que permeia sua narrativa.

3.2.3 O De mortibus persecutorum

A obra De mortibus persecutorum foi descoberta na biblioteca Colbert de Paris em

1676 por S. Baluze, em um manuscrito – o único, Colbertinus (C), um códice em

48 LACTANCIO. Sobre…, p.67.

minúsculas visigóticas de fins do século XI – proveniente da abadia beneditina de Moissac,

– conservado atualmente na Biblioteca Nacional de Paris (nº 2627) – p.51, encabeçado

Lucii Cecilii incipit liber ad Donatum confessore de mortibus persecutorum identificado

pelo seu descobridor à obra que S. Jerônimo atribui a Lactancio denominada De

persecutione, não sem controvérsias sobre sua autenticidade ou não, mas na atualidade

geralmente aceita. A edição utilizada aqui é uma tradução feita diretamente do original

latino para o castelhano – baseado no texto latino fixado por J. Moreau49 – por Ramón Teja

e publicado pela editorial Gredos em 1982.

Classificada como um opúsculo – é uma obra breve, de 52 capítulos. Estes podem

ser agrupados em duas partes distintas: uma que vai do I ao VI e outra que vai do VII até o

fim. O primeiro capítulo é uma espécie de introdução, com a dedicatória a Donato (um

típico confessor que passou por perseguições sucessivas), em que apresenta o roteiro da

obra. Do II ao VI trata dos imperadores anteriores à tetrarquia, parte agregada

posteriormente. Depois o núcleo inicial da obra que, por sua vez, pode ser dividido, do

ponto de vista da cronologia também em duas partes: a primeira que trataria do período de

Diocleciano (VII-XIX) e a segunda do período restante da tetrarquia e da progressiva

ascensão de Constantino até o momento de equilíbrio entre este e Licínio, que é onde

termina a obra. Nos capítulos de VII a IX, ele faz uma apresentação dos personagens

estigmatizados da tetrarquia, no estilo de um Suetônio. De X a XIX refere os

acontecimentos relativos ao período que vai do início da tetrarquia até a abdicação de

Diocleciano, dando ênfase ao tema da perseguição. No capítulo XVIII utiliza-se de um

recurso retórico recriando um suposto diálogo entre Diocleciano e Galério, no qual

aproveita para apresentar as figuras restantes – Severo, Maximino Daia, Maxêncio e o

próprio Constantino. De XX a XXIII trata especificamente do período de governo de

Galério; e a partir de XXIV inicia-se o processo de ascensão de Constantino, e seguem-se

os conturbados acontecimentos relativos aos confrontos entre os distintos imperadores. A

partir de então a obra segue os passos vitoriosos de Constantino e do fim da perseguição (é

interessante ver-se os dois aspectos ligados, pois a obra de Lactâncio acaba por sugerir essa

conexão entre a vitória política de Constantino e a vitória religiosa do cristianismo), com

cada um dos perseguidores sofrendo as conseqüências da ira divina um a um, para

culminar ao final com a ferocidade de Licínio atuando como instrumento da vingança

divina eliminando todos os parentes restantes dos perseguidores (embora seus expurgos

49 MOREAU. Lactance, De la mort des persécuteurs. Paris, 1954.

possam ser entendidos num sentido mais político que religioso), terminando (LII) com um

epílogo, em que louva a justiça divina.

Como o faz notar Teja, Lactâncio defende uma idéia central a de que a Providência

rege o mundo e as ações humanas50. Nesse sentido, em Lactâncio, a Providência substitui a

Fortuna (deusa, mas também o acaso) no seu papel de reguladora da sucessão dos

acontecimentos humanos, como se pode perceber pela seguinte citação: “Éstos eran sus

planes. Pero Dios, cuya ira se había atraído, desbarató todos sus designios”51.

A obra foi escrita provavelmente entre finais de 314 e começos de 315 52, trata-se

de um momento de circunstâncias muito específicas, do curto período de equilíbrio entre

Constantino e Licínio, e que não muito depois seria quebrado. Constantino havia recém-

assumido o controle dos territórios ocidentais e se realizava um acordo com Licínio e a

partir de então começa o processo de simbiose entre cristianismo e Império Romano. É

uma obra escrita por um contemporâneo e em data próxima aos acontecimentos e que

portanto reflete o seu momento. Na escrita de sua obra Lactâncio se utiliza de sua

experiência pessoal, dos testemunhos de seus contemporâneos e dos documentos oficiais53.

Por ser uma mistura de tendências variadas, é obra de difícil classificação, mas de

acordo com Teja é um misto de história com apologia cristã54. E mesmo no que diz

respeito à história também é a fusão de duas tradições historiográficas diferentes, uma das

crônicas das perseguições, de origem cristã, e outra da história política pagã55. No que diz

respeito à crônica cristã assume grande importância o nome de Eusébio de Cesárea que

inaugura uma nova vertente historiográfica, cristã. Esta parece se alimentar da vertente

apologética (pois vem da necessidade de fornecer provas para demonstrar sua tese), mas a

transcende, e se diferencia da vertente pagã por se despojar das tendências retóricas e de

ser mais documental56. De certa forma também Lactâncio já prefigura alguns desses

elementos, pois também inseriu alguns documentos em sua obra como é o caso do edito de

tolerância de Galério e da circular de Licínio.

Nesse ponto, o que se tentou fazer até aqui foi delinear os caracteres básicos dessas

múltiplas tendências que confluem para formar a obra de Lactâncio tão rica em seus mais

50 TEJA, R. In: LACTANCIO. Sobre..., p.11. 51 LACTANCIO. Sobre…, p.125. 52 TEJA, R. In: LACTANCIO. Sobre..., p.19. 53 ibid., p.21. 54 ibid., p.23-4. 55 ibid., p.21. 56 TEJA. op. cit., p.14.

variados aspectos, para que se possa tê-los em mente antes de se iniciar a sua análise e

interpretação.

4 AS REPRESENTAÇÕES DE DIOCLECIANO NO DE MORTIBUS

PERSECUTORUM

4.1 As Relações entre Cristianismo e Império: da Perseguição de 303 ao Cristianismo

de Estado de Constantino

Durante os primeiros séculos de existência cristã, pode-se distinguir dois períodos

em que se sobressaem diferentes atitudes com relação ao cristianismo da parte do poder

imperial. Num período inicial o cristianismo fora, se não favorecido, ao menos tolerado,

como sucedeu com a maioria dos outros cultos estrangeiros que tendiam sempre a ser

assimilados (talvez alguns deles tenham sofrido resistência como é o caso do culto egípcio

a Ísis, mas depois acabaram sendo aceitos), com alguns poucos casos em que fora

reprimido, por ser julgado incompatível com as estruturas de poder. Nesse caso não se

pode falar em perseguições da parte do governo senão a partir do século III, sendo que nos

dois primeiros séculos essas manifestações de hostilidade ou são situações ocasionais

(como no caso de Nero57), ou então resultado da própria iniciativa popular como nos

acontecimentos relativos à Bitínia na época de Plínio, o Jovem, sob Trajano, ou nas Gálias

sob Marco Aurélio58. Sendo que muitas vezes o cristianismo era claramente favorecido

pelo governo imperial contra os ataques populares, como nos demonstra o rescrito de

Adriano ao procônsul da Ásia, Minúcio Fundano59. Somente no século III, com Severo e

Maximino Trácio (que foi um caso mais circunscrito), mas principalmente com Décio e

Valeriano é que se iniciam as hostilidades da parte do Estado imperial contra o

cristianismo, mas que longe de serem constantes, tiveram várias interrupções durante o

período, sendo que os momentos de perseguição acabavam ficando muito restritos, além

disso, não era aplicada da mesma forma em todo o território.

De qualquer modo é o caso de se perguntar por que razão apenas nesse momento o

governo passa a ser hostil ao cristianismo, sendo que embora o cristianismo já tivesse se

disseminado estava longe de ser majoritário (não o será nem com Constantino) e de se 57 TÁCITO. op. cit., p.237-45. 58 BUENO, D. R. Actas de los Mártires. Madrid: Editorial Católica, 1951, p.241-247; 316-348. E para o caso das Gálias, cf. também EUSEBIO DE CESÁREA. Historia Eclesiástica. Buenos Aires: Editorial Nova, 1950, p.218-233. 59 BUENO, D. R. op. cit., p.251-257.

tornar uma ameaça? Deve-se ter em conta que essas manifestações de hostilidade

coincidem com o período de crise do Império romano, ou seja, o poder imperial sofria de

carência de legitimidade, e essas medidas persecutórias geralmente fazem parte de um

conjunto de medidas que tem por intenção restaurar o Império e a sua ameaçada unidade.

E, nesse sentido, o cristianismo pôde ser tomado como um empecilho no caminho do

fortalecimento estatal (somente mais tarde é que Constantino percebe a possibilidade de o

cristianismo ser utilizado como base ideológica do seu poder centralizado). Mas, a despeito

da crise, a tendência a perseguir o cristianismo da parte dos imperadores ainda é

minoritária, visto que a maioria dos imperadores da época não incomoda o cristianismo,

alguns sendo-lhe até favorável, como Filipe o Árabe, antecessor imediato do imperador

Décio. E mesmo Diocleciano, somente no seu décimo oitavo ano de governo é que resolve

publicar o primeiro edito contra os cristãos, sendo que até então não tinham sido

perturbados.

E o segundo período, que se inaugura com Constantino, consiste de franco

favorecimento do cristianismo pelo poder imperial. Esse processo será feito de idas e

vindas (pois além de Juliano que se configura como a última tentativa de restaurar o

paganismo tradicional, ainda houve imperadores adeptos de seitas cristãs tidas por

heréticas), até que Teodósio, geralmente tido como o marco final dessa transformação,

oficialize o cristianismo como religião de Estado. O que demonstra que as mudanças se

processam de modo gradual, mas não-linear. De qualquer forma Constantino é o

responsável pelo estabelecimento dessa nova atitude.

No que diz respeito ao regime de Diocleciano é possível distinguir dois períodos

em que se pode perceber essas duas atitudes. Num primeiro momento (de 284 a 303) o

cristianismo, goza de uma situação de ampla tolerância, havendo muitos cristãos na corte e

no exército como o sugere Lactâncio60, levantando as suspeitas, em especial pelo modo

como trata essas duas personagens em sua obra, de que até mesmo a esposa e a filha de

Diocleciano fossem cristãs61, ou que ao menos dentro de uma religiosidade sincrética

adotassem algo da religião cristã. Somente no final de seu governo (303-5) é que a sua

postura com relação aos cristãos muda, dando-se início à perseguição, que ainda se estende

para além de sua abdicação. Isso favorece a possibilidade de uma interpretação de que ele

60 LACTANCIO. Sobre..., p.94; 97. 61 TEJA, R. In: LACTANCIO. Sobre..., p.34; cf. ainda nota 490, p.211.

não fosse o verdadeiro responsável pela perseguição, idéia apresentada pelo próprio

Lactâncio, que representa Galério como o seu verdadeiro instigador62.

Talvez por isso mesmo é que se tenha uma imagem de Diocleciano um tanto quanto

ambígua. Para Lactâncio, ele fora perseguidor mas em um grau menor que Galério ou

mesmo Maximino Daia, por exemplo. É por isso que é preciso ter em conta os dois pré-

requisitos básicos da categorização de Lactâncio do que seria um mau imperador: a política

anti-senatorial e a política religiosa anti-cristã. Na sua caracterização os dois elementos,

político e religioso se interpenetram de forma que o perseguidor e o imperador anti-

senatorial, muitas vezes coincidem. Os problemas que surgem dessa categorização, são

conseqüência da não compatibilidade dos dois termos em todos os casos.

Quanto à dimensão da perseguição de 303-4, como já foi dito em outras passagens,

ela acaba assumindo uma proporção bem mais limitada do que se queria fazer crer. Além

disso, a importância da figura de Diocleciano como perseguidor para os cristãos, tem suas

bases em uma tradição cristã relativa às perseguições. Baseada talvez nas próprias

escrituras, à qual muitos remetem a profecia de que os cristãos seriam perseguidos, sendo

assim, independentemente dos motivos que geraram certas hostilidades para com os

cristãos (como foi o caso da ‘perseguição’ atribuída a Domiciano63, mal comprovada e que

na realidade teria se tratado de uma situação de cunho político), era preciso atribuir a certas

figuras essa imagem de perseguidor para não apenas dar maior credibilidade às profecias e

assim impressionar os pagãos, como para fortalecer os ânimos dos cristãos durante as

perseguições. Até mesmo constituiu-se uma tradição de um número fixo de perseguições,

que vai variando conforme o tempo e os interesses do autor. O próprio Lactâncio fixa sua

atenção em determinadas figuras: com Nero, Domiciano, Décio, Valeriano, Aureliano e

Diocleciano são seis, isso se se considera a última perseguição como num conjunto,

podendo-se acrescentar ainda as figuras de Galério e Maximino Daia. Mas em decorrência

de suas convicções ele acaba por deixar de fora algumas figuras que em outros contextos

poderiam ser acrescentadas, por motivos variáveis seria o caso de: Trajano, Marco Aurélio,

Cômodo, Severo e Maximino o Trácio. Esses acréscimos e omissões, além do motivo mais

evidente da tese defendida por Lactâncio e de suas convicções, talvez sejam significativos

também no plano simbólico, relativo ao simbolismo numerológico cabalista judaico, do

qual o cristianismo toma emprestado alguns elementos, em especial se se considerar que

Lactâncio estrutura sua Instituições Divinas em exatamente sete livros.

62 LACTANCIO. Sobre..., cap. XI-XV, p.96-108. 63 BUENO, D. R. op. cit., p.233-238; EUSEBIO DE CESÁREA. op. cit., p.122.

Em passagem citada por Lactancio do edito de tolerância de Galério, em que refere

os motivos da perseguição, pode-se perceber a dimensão assumida pelo cristianismo diante

do poder imperial tetrárquico. O cristianismo se constitui como uma ruptura com a

tradição, pois entra em contradição com o intento de restauração da autoridade Imperial e

do fortalecimento estatal que nesse momento estava fundamentado na religião ancestral,

daí a acusação de que abandonavam os costumes dos antigos:

“con el intento de amoldar todo a las leyes tradicionales y a las normas de los romanos, que también

los cristianos que habían abandonado la religión de sus padres retornasen a los buenos propósitos.

En efecto, por motivos que desconocemos se habían apoderado de ellos una contumacia y una

insensatez tales, que ya no seguían las costumbres de los antiguos, costumbres que quizá sus mismos

antepasados habían establecido por su vez primera, sino que se dictaban a si mismos, de acuerdo

únicamente con su libre arbitrio y sus propios deseos, las leyes que debían observar y se atraían a

gentes de todo tipo y de los más diversos lugares. Tras emanar nosotros la disposición de que

volviesen a las creencias de los antiguos, muchos accedieron por las amenazas, otros muchos por las

torturas”64.

Quando, de acordo com a percepção do Estado imperial, o cristianismo deixa de ser

incompatível com as estruturas de poder é-lhe devolvida a liberdade de culto, desde que

essa não venha a contestar a ordem: “de modo que puedan nuevamente ser cristianos y

puedan reconstruir sus lugares de culto, con la condición de que no hagan nada contrario al

orden establecido”65.

Para Lactâncio entretanto, quando se refere à perseguição, que como já foi dito,

consistiu em quatro editos nesse curto intervalo de pouco mais de um ano (303-304),

embora Lactâncio condense as informações acerca da perseguição e seus editos, referindo-

se a eles como se fossem um único edito, segundo ele:

“en el que se estipulaba que las personas que profesasen esta religión fuesen privadas de todo honor

y de toda dignidad y que fuesen sometidas a tormento, cualquiera que fuese su condición y

categoría; que fuese lícita cualquier acción judicial contra ellos, al tiempo que ellos no podrían

querellarse por injurias, adulterio o robo; en una palabra, se les privaba de la libertad y de la

palabra”66.

Perceba-se que o que ele refere nessa passagem são efeitos de ordem política, pois

o que se pode depreender é que os cristãos perdiam seus direitos políticos. Na prática era a

sua cidadania que estava sendo afetada, e não tanto a convicção religiosa, daí esse destaque

na relação entre a perseguição e a ‘tirania’ (entendendo o tirano como sinônimo do

64 LACTANCIO. Sobre..., p.165-6. 65 ibid., p.166-7. 66 ibid., p.102.

imperador anti-senatorial, como o estabelece Lactâncio67). Tem-se a impressão de que

Lactâncio está tentando “laicizar” a perseguição, deixando seu conteúdo religioso para

segundo plano. No fim das contas o que é criticado é a própria legitimidade do governo,

pois que subtrai a liberdade de seus cidadãos, como se pode perceber numa outra passagem

citada mais à frente (p.34) acerca de Galério, em que faz essa associação entre o governo

‘tirânico’ desse imperador e a transformação dos cidadãos em súditos, pela perda de sua

liberdade.

4.2 O Cerimonial de Corte Baixo-Imperial

Uma questão bastante controversa e que geralmente é referida como uma das

causas das perseguições aos cristãos é a questão do culto imperial e do cerimonial de corte,

que os cristãos se recusavam a realizar, por verem nisso uma manifestação pagã, mas que

era interpretado num sentido político, como uma recusa em aceitar o poder imperial. Essa

questão já havia sido suscitada com relação às perseguições de Décio e Valeriano. Mas

como o demonstra o testemunho das atas do martírio de São Dionísio68 (séc. III) os cristãos

faziam questão de enfatizar que não estavam se opondo à autoridade imperial. Era até

mesmo comum que muitos deles simplesmente realizassem os rituais pagãos (ou que o

falseassem, inscrevendo seus nomes nas listas, ou forjando falsos certificados, no caso da

perseguição de Décio, de que haviam cumprido os rituais, como o testemunha S. Cipriano,

na controvérsia sobre os lapsi69), apenas como uma exigência do exercício de sua

cidadania, mas que no íntimo mantivessem as suas convicções (aliás parecia ser esta a

intenção do próprio governo ao iniciar as medidas persecutórias, a de que houvesse uma

conciliação entre a crença íntima e as manifestações exteriores, como fica mais

evidenciado para o caso de Aureliano, em que esta sua tendência sincrética favorece uma

atitude de assimilação).

Além disso, como se verá mais à frente, a questão do ritual de corte Baixo-imperial

suscitava controvérsias mesmo da parte dos pagãos, mas por outros motivos, o que parecer

é que também Lactâncio compartilhava dessas convicções. Mas que era na verdade algo de

alcance muito restrito, visto que o cerimonial tinha justamente por fim restringir o acesso à

67 ibid., p.69. 68 “Nosotros, consiguientemente, al que es solo Dios uno y artífice de todas las cosas, al que justamente ha puesto el Imperio en manos de los piísimos Augustos, Valeriano y Galieno, a Éste damos culto y adoramos y a Él continuamente dirigimos nuestras súplicas por el Imperio de los Augustos, pidiéndole que permanezca inconmovible” (BUENO, D. R. op. cit., p.698) 69 BUENO, D. R. op. cit., p.562.

pessoa do imperador, sendo era algo muito distante da realidade da maioria dos cristãos (e

das pessoas comuns).

A própria presença de Lactâncio na capital, próximo da corte imperial, mesmo

durante a perseguição, perece sugerir que ou a perseguição não tenha sido tão violenta

enquanto estava Diocleciano, ou que o próprio Lactâncio tenha adotado medidas de caráter

conciliatório para que pudesse permanecer sem ser incomodado, sendo que apenas a

mudança de governo o obriga a ter de se retirar.

4.2.1 O culto imperial e a religiosidade de Estado

Segundo Aymard e Auboyer70, além do poder militar, dos dispositivos legais havia

ainda outro elemento que dava sustentação ao poder imperial que era um certo teor

religioso, consubstanciado no culto imperial. Este assume, pois, um importante papel no

sentido de dar estabilidade ao poder imperial, pois esse poder entra em conexão direta com

o sagrado. Contudo, o culto tal como o estabelece Augusto, não continha uma completa

divinização da figura do imperador, mas apenas do Império, do qual ele era o

representante. Assim, o imperador se configura como o intermediário entre as divindades e

o Estado, que deve representar o corpo dos cidadãos. É, portanto, necessária preservar a

harmonia com as forças cósmicas que regulam o destino de todas as coisas para que o

Estado permaneça próspero e preserve o bem-estar da população (é um pouco essa a idéia

também com o cristianismo, pois apenas com a proteção do verdadeiro Deus é que o

Estado poderia se manter próspero, e se se mantinha era por causa dos cristãos, mesmo

quando o Estado não os favorecia). Nesse sentido, é bastante interessante a seguinte

passagem da circular de Licínio e Constantino, transcrita por Lactâncio, na medida em que

denota essa concepção da espiritualidade do poder imperial: “conceder a los cristianos y a

todos los demás la facultad de practicar libremente la religión que cada uno desease, con la

finalidad de que todo lo que hay de divino en la sede celestial se mostrase favorable y

propicio tanto a nosotros como a todos los que están bajo nuestra autoridad”71. Numa

atitude que prefigura a tendência adotada posteriormente por Constantino, o que se

pretende é captar a força político-social que o cristianismo tem para utilizá-la a favor do

Estado.

70 AYMARD, A. & AUBOYER, J. op. cit., p.39 71 LACTANCIO. Sobre..., p.203.

Já que da harmonia cósmica depende o bom funcionamento das coisas terrenas, daí

a importância de manter os cultos todos em dia, por isso Augusto promove uma

revivescência geral do paganismo tradicional. Estabelecendo uma maior relação entre a

religiosidade tradicional e o novo regime imperial no sentido de torná-lo aceitável aos

olhos dos cidadãos. A religião na sociedade clássica (tanto em Roma quanto na polis

clássica) tinha uma função eminentemente política, sendo o culto oficial mais um dever

cívico do que a resultante das demandas espirituais individuais. A religião assim como a

política tinha como função assegurar a manutenção do bem comum, daí que assumisse um

teor ritualizado e oficial. Somente com a crise dos valores tradicionais ocorridas no século

III é que começa a se delinear uma religiosidade de cunho mais individual, cuja maior

preocupação seria a salvação individual, donde resulta a difusão de novas crenças de

origem oriental, por todo o território romano.

Desse modo, mesmo com a tentativa de resgate dos valores tradicionais por

Augusto, nos séculos seguintes o culto pagão vai sendo gradativamente abandonado em

prol das religiões estrangeiras, geralmente orientais (como o próprio cristianismo), em

decorrência dessa nova religiosidade, como já no século II o testemunhava Plínio, o Jovem,

para o caso da Bitínia.72 Talvez mais adequado seria dizer que acabasse ocorrendo uma

fusão entre o paganismo tradicional e as tendências orientais.

Portanto, pode-se perceber, que a religiosidade imperial vai gradativamente

assumindo um caráter diferenciado. A religiosidade de Augusto se adequava às estruturas

por ele estabelecidas, relativas ao modelo do Principado, em que se sobressai o ideal

romano da liberdade. Mas aos poucos o poder imperial tendente à centralização, passa a

corresponder a uma espiritualidade de teor mais transcendental. Novamente o processo de

dá de modo lento e gradual e tem suas idas e vindas, daí que as fontes não tenham

unanimidade ao afirmar quem foi o responsável por introduzir certas práticas, talvez

porque logo após a sua adoção por determinado imperador esta tenha sido abandonada e

sua memória execrada.

De qualquer modo, a exceção das intenções teocráticas de Calígula (e se se quiser ir

mais longe pode-se encontrar raízes dessa atitude mesmo na República, com César e

Marco Antônio, ligados à tendência helenística, aposta à vertente republicana nas guerras

civis), outro importante marco nesse processo parece ter sido o governo de Domiciano, que

segundo as fontes foi o primeiro a exigir que fosse oficialmente chamado “deus e

72 cf. supra, nota 56.

senhor”73. Após ele, ao que parece, a palavra dominus (‘senhor’), que antes tinha uma

conotação pejorativa quando utilizada em um contexto político74, acaba se tornando usual

para se referir e tratar diretamente com o príncipe. De forma que já na época de Trajano os

termos dominus e domina passam a ser adotados para se dirigirem ao imperador ou aos

seus familiares e próximos de modo mais corriqueiro, ao menos no seu círculo íntimo, sem

que com isso acarrete algum problema75. Depois dos Antoninos, em que suas tendências

pró-senatoriais contrabalançam esse costume, Severo também é tido como um dos

primeiros a adotar suma política de franca divinização do poder imperial, correspondente

ao processo de intensa concentração por ele favorecido, segundo o testemunho da

iconografia, pois há moedas em que é identificado à divindade solar76. Isso, antes de

Aureliano que é quem dará o passo decisivo, pois, identificado como dominus et deus

natus 77, ele adota uma ideologia monoteísta para dar embasamento ao seu poder de cunho

quase absoluto.

Daí por diante essa associação do imperador à figura de uma divindade se dá de

modo mais evidente e intenso, até que se chegue ao período da tetrarquia, em que o resgate

da religião tradicional não implica que tenha havido um retrocesso, pois que o paganismo

romano já está pleno desse sentido monoteísta que impregnava a sociedade na época. A

despeito da memória negativa preservada desses primeiros imperadores que tentaram algo

nessa direção, Diocleciano e Constantino provam que essa tendência não foi infrutífera, o

imperador torna-se como um reflexo, emanação, ou encarnação da força divina que preside

a harmonia cósmica.

Uma passagem que demonstra esse caráter sagrado do poder baixo-imperial e das

relações entre os tetrarcas, pois se utiliza da palavra “impiedade” para se referir a um

comportamento que ia contra a autoridade imperial: “habiendo hecho César a um personaje

oscuro com el objetivo de que se le mantuviese sumiso, éste (Maximino), olvidándose del

favor recibido, se resistía impíamente a sus deseos y a sus súplicas”78. Já que os desejos do

imperador se revestiam de um caráter sagrado, o que demonstra uma relação hierárquica

que se estabelece e o estado de deterioração do sistema tetrárquico, em que Galério se vê

73 SUETONIO. op. cit., p.334. 74 Um pouco como a palavra grega, que dá origem ao nosso termo ‘déspota’ (δεσπότης), pois ambas tinham apenas um sentido neutro, indicando o chefe da casa, onde as relações de poder são hierárquicas. Já quando transpostas para a política, lugar onde as relações se dão entre iguais, é que estes termos assumem uma conotação negativa, ao menos inicialmente. 75 AYMARD, A. & AUBOYER, J. op. cit., p.94. 76 PIGANIOL, A. Historia de Roma. Buenos Aires: EUDEBA, 1961, p.375. 77 AYMARD, A. & AUBOYER, J. op. cit., p. 304. 78 LACTANCIO. Sobre..., p.160.

forçado a dar o título de Augusto aos quatro, pondo-os todos no mesmo nível. E isso, na

prática, dificultava o exercício de sua autoridade de Augusto mais velho (senior Augustus).

4.2.2 O ritual de proskynesis e o cerimonial Baixo-imperial

Quanto ao ritual de proskynesis79 que de acordo com Gonzalo Bravo teria uma

morfologia variada, mas que “Generalmente se entiende por tal la costumbre de hacer

venia o genuflexión, arrodillarse e incluso postrarse ante las imágenes de dioses, reyes y

emperadores o en presencia de estos últimos, como muestra de respecto, sumisión u

obediencia”80. E que teria uma relação com a adoratio romana, ambos os termos procedem

do vocabulário religioso sendo já um costume no que dizia respeito aos deuses apenas, mas

que acaba tendo seu uso estendido em especial quando ocorre essa transformação no teor

do poder imperial. Como algo alheio ao repertório político romano era imputado a uma

influência de origem oriental, em especial persa, pois era tido como um costume bárbaro a

proskynesis/adoratio quando dirigida ao príncipe, visto que este nada mais era do que o

primeiro cidadão. Por isso é que Lactâncio se refere à introdução desse costume

atribuindo-a a uma imitação dos costumes bárbaros (talvez no sentido de deslegitimar a

figura a quem imputa a sua adoção), embora esse costume tenha raízes na própria tradição

clássica. O curioso é que ao contrário da maioria das fontes81, Lactâncio responsabilize

Galério pela introdução (ou melhor pela intenção de introduzir) entre os romanos desse

costume e não a Diocleciano. Essa passagem é altamente reveladora dos ideais e

concepções políticas de Lactâncio:

“En efecto, después de someter a los persas, para quienes es norma y costumbre que los súbditos se

entreguen al servicio de los reyes como esclavos y que los reyes se sirvan de su pueblo como si se

tratase de los esclavos de su propia casa, este hombre nefasto quiso introducir en el mundo romano

esta misma costumbre, que públicamente pregonaba desde que consiguió aquellas victorias sobre

ellos. No podía instituirlo abiertamente, pero sus actos estaban orientados a privar de la libertad a

todos los hombres”82.

Já segundo Aurélio Victor, Diocleciano:

“fue el primero que deseó vestidos recamados de oro y el brillo de la seda, de la púrpura y de las

piedras preciosas para su calzado. Y aunque estas cosas son propias más bien de un espíritu lleno de

orgullo y desmesurado que de un ciudadano, sin embargo son poco en comparación con las demás.

79 προσκύνεσις, do verbo grego προσκυνέω que significa ‘adorar’, ‘render culto a’. 80 BRAVO, G. op. cit., p.178. 81 Nesse sentido Gonzalo Bravo (cf. nota anterior) realiza um inventário mais completo das fontes nas quais se encontram tais referências. 82 LACTANCIO. Sobre..., p.125-6.

Pues fue el primero de todos después de Calígula y de Domiciano que permitió ser llamado ‘señor’

públicamente, ser adorado y ser invocado como un dios.”83

Além dele a citação de Eutrópio84, também vai no mesmo sentido, mas todos eles

independentemente de se pagãos ou cristãos concordam em que esses elementos entram em

contradição com o ideal romano de liberdade. Inclusive a seqüência da citação de Victor85

é bastante significativa, pois demonstra que a despeito da aversão a esse cerimonial, já há

uma certa banalização, ao menos em sua época (cerca de meio século depois de Lactâncio).

E que seu ato acaba como que justificado pelas suas intenções.

A questão do porquê Lactâncio atribui a Galério e não a Diocleciano, quando os

outros assim o fazem, ainda permanece controversa86, mas que deve ter relação com a

imagem exacerbadamente negativa de Galério, em decorrência talvez de sua experiência

pessoal negativa com o governo deste imperador e também por este ter sido um dos

principais opositores de Constantino, pelo que tenta ao rebaixar aquele elevar este.

Todavia, em uma outra passagem o próprio Lactâncio se refere à existência do

ritual num momento em que Diocleciano ainda estava no poder, quando trata da figura de

Maxêncio: “Tenía una mente malvada y perversa y era tan soberbio y terco, que no

acostumbraba a rendir culto (adorare) ni a su padre ni a su suegro, por lo que ambos le

odiaban”87. Seu pai Maximiano e seu sogro Galério, era na época, respectivamente,

Augusto dos territórios ocidentais e César dos territórios orientais.88

Portanto, todo o aparato cerimonial introduzido por Diocleciano, embora repulsivo

aos olhos de seus contemporâneos (aristocratas), nada mais era do que uma estratégia

necessária ante as vicissitudes de seu tempo, pois que servia para causar um impacto na

imaginação popular, para que pudesse intimidar as pessoas. Além dessa, dimensão mais

ampla de ser uma conseqüência da nova religiosidade imperial, relacionada à realidade

política. Pois por trás dessa nova estrutura havia um Estado fortalecido, centralizado e uma

ideologia (talvez uma teologia) unificadora. Se Diocleciano institui esse cerimonial

fundamentado na religião tradicional assumindo o título de Iouius, isso não significa que

esteja restaurando os antigos valores, pois essa adoção se dá sob o signo de uma nova

83 AURELIO VICTOR. op. cit., p.236-7. 84 cf. supra, p.12. 85 “por esto mismo, porque se dejaba llamar señor, actuó como un padre y es bien sabido que este sabio varón quiso demostrar que la crueldad de los hechos era más perjudicial que la de las palabras” (AURELIO VICTOR. op. cit., p.236-7). 86 BRAVO, G. op. cit., p.181. 87 LACTANCIO. Sobre..., p.118. 88 A interpretação de Bravo é a de que Maxêncio apenas aceitava a autoridade do senior Augustus. Cf. BRAVO, G. op. cit., p.181.

tendência. E não tardará para que Constantino o prove colocando o cristianismo

definitivamente nas estruturas do poder imperial.

E depois dele os próprios monarcas cristãos serão responsáveis pela adoção

definitiva desse ritual, embora desprovido de seu conteúdo pagão original mantendo um

caráter meramente formal.89 Nesse sentido, o que diferencia Diocleciano de Constantino

não é a forma adotada (forma pela qual um é mal visto apenas por pagãos e o outro por

ambos), mas o conteúdo.

4.3 A Representação de Constantino Enquanto Ideal de Governante

Com relação à imagem que Lactâncio constrói de Diocleciano, sua caracterização é,

como não se poderia deixar de esperar, eminentemente negativa. Mas levando-se em conta

que para as personagens que se adequam ao estereótipo do perseguidor/imperador anti-

senatorial, nada pode ser positivo há uma nuance significativa com relação à caracterização

extremamente pejorativa de Galério ou Maximino Daia. Assim, entre os dois extremos

opostos, Constantino e Galério, dessa sua caracterização parece haver uma série de graus

intermediários, pois quanto aos dois primeiros Augustos parece ser um pouco mais

benevolente, embora não se igualem às figuras idealizadas de Constâncio Cloro e

Constantino, ou à imagem “semi-positiva” de Licínio. Pode-se portanto fazer uma espécie

de gradação conforme o maior ou menor grau de desagrado que o retratado e sua atitude

causam no autor. Nesse ponto a figura de Maxêncio é bastante interessante visto que,

embora tivesse uma política anti-senatorial e fosse adversário de Constantino (e deve-se

lembrar que Lactâncio escreve apenas alguns anos depois dos acontecimentos, estando a

memória dos perseguidores ainda bastante viva), foi favorável aos cristãos, de tal modo

que, embora mereça dele uma caracterização bastante negativa, não pode ser posicionado

entre os perseguidores90.

Assim, suavizada quando comparada com a imagem de Galério ou Maximino Daia,

a imagem de Diocleciano, não deixa de ter alguns dos estereótipos característicos do

modelo negativo de imperador, tais como sua suposta avareza (que de certa forma acaba

sendo contraditoriamente anulada pela sua prodigalidade91) e covardia (que se tratariam

muito mais de prudência em especial no que diz respeito à guerra contra os persas). Mas no

89 BRAVO, G. op. cit., p.191. 90 LACTANCIO. Sobre..., p.185. 91 ibid., p.83.

geral, parece ser um tanto benevolente para com ele, se não de modo afirmativo, ao menos

por omissão (visto que as características que atribui a Galério e Maximino, são bem mais

exacerbadas). Com relação às suas medidas, seja do que se tratar, afirma que teve

conseqüências funestas para o Império, mas trata-se evidentemente de um exagero.

Acontece que simplesmente ele toma a parte pelo todo, ou seja, a partir suas medidas de

cunho anti-senatorial (que para sua concepção são evidentemente perniciosas) ele estende

esse julgamento para toda a sua política de reformas.

O principal aspecto enfatizado é a questão fiscal, que em decorrência das

circunstâncias da época parece ter tido realmente um peso bastante grande no aspecto

social. Embora Lactâncio se esforce por trazer a tona os prejuízos sociais causados por

suas medidas como na questão dos impostos, os abusos das cobranças, o empobrecimento

da população, o aumento da mendicidade e do banditismo. Até certo ponto as reformas

tributárias de Diocleciano tiveram um efeito negativo nesse ponto, contudo não é

responsabilidade dele apenas, isso é a culminação de toda uma situação, que acaba sendo

agravada pela necessidade de se aumentar as receitas.

Por outro lado, os autores pagãos supracitados, embora concordem com Lactâncio

na questão do cerimonial, acabam tendo que reconhecer as habilidades e qualidades de

Diocleciano92, o que já não acontece em Lactâncio, que se o faz não o faz jamais de modo

explícito93, até pela natureza de sua obra já que se o fizesse poderia por a perder sua tese

central de identificação do perseguidor ao mau imperador (imperador anti-senatorial). É

uma caracterização que se dá sobretudo por privações de virtudes (pró-senatoriais), na

ausência de vícios que imputar-lhe. Pois da mesma maneira do que ocorre com o retrato do

imperador Décio (que a despeito de ser perseguidor, é exaltado pelas fontes pagãs, por ser

um dos últimos patriotas romanos94), em que não encontra outro defeito senão o de ser

perseguidor: “Pues quién sino um malo puede ser perseguidor de la justicia?”95, o que

poderia valer igualmente para Diocleciano. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma relação

com a visão idealizada que nos passa de Constantino.

Tal como Suetônio vê em Augusto o seu ideal de governante, Lactâncio também

estabelece um ideal seu que está representado na figura de Constantino (e o paralelo é,

como notado anteriormente, bastante significativo, pois que os dois acabam por se

92 EUTROPIO. op. cit., p.134; AURELIO VICTOR. op. cit., p.236-7. 93 LACTANCIO. Sobre..., p.98. 94 AURELIO VICTOR. op. cit., p.235. 95 LACTANCIO. Sobre..., p.72.

configurar ambos como fundadores. Talvez por essa razão tente diminuir a importância de

Diocleciano, para enfatizar o papel de Constantino nesse novo Império Romano.):

“joven santísimo y totalmente digno de este alto cargo, a quien, por su distinguida y digna

prestancia física, por su genio militar, por su integridad de costumbres y de su

extraordinaria afabilidad, los soldados le amaban y los simples particulares le deseaban

como emperador”.96

É interessante como Lactâncio traça retratos completamente opostos de Galério e

de Constantino, colocando este como um imperador pró-senatorial e aquele como inimigo

do Senado e povo romano:

“Entretanto, Galério, tras haber reunido su ejército, invade Italia y se acerca a la capital con

la intención de eliminar el Senado y masacrar su población”.97

“Una vez terminada esta durísima guerra, Constantino es recibido con enorme satisfacción

por el Senado y el pueblo de Roma. (...) El Senado concedió a Constantino, en virtud de los

méritos contraídos, el título de primer Augusto”.98

Constantino surge, pois, como o libertador de Roma da “tirania” de Maxêncio,

recebendo a aprovação da assembléia senatorial, que o revestiria do poder supremo99. Há

novamente aqui, como em outras passagens, essa intenção de legitimar o poder de

Constantino, dessa vez pela autoridade da tradição, opondo-o ao tirano, cujo poder é

ilegítimo, pois não se importa com a aprovação do Senado. Da mesma forma, embora

pareça colocar no mesmo nível as figuras de Constantino e Licínio, em decorrência da

ocasião em que a obra foi composta, a aproximação de Licínio à figura de Galério, já é

algo que o desabilita ante a figura de Constantino, pelo que se percebe um sutil

favorecimento da figura deste.

Do mesmo modo, Diocleciano é criticado pelo seu suposto desapego à tradição

romana, e uma prova disso para Lactâncio seria o fato de mudar de capital, como se a

quisesse por no mesmo nível de Roma, relegando esta, para ele tão representativa: “su

demencia le llevaba a desear igualar Nicomedia con la ciudad de Roma”100. Embora, de

modo irônico, o passo decisivo para isso tenha sido dado pelo próprio Constantino,

posteriormente, com a fundação de Constantinopla.

96 ibid., p.118. Contraste-se com a imagem extremamente pejorativa que dele faz Zósimo, em especial no que diz respeito a sua origem tida por duvidosa (ZÓSIMO. op. cit., p.182). “Cuando todo el poder quedó en manos de Constantino, no ocultó éste por más tiempo su natural vileza, sino que dióse a obrar em todo a su placer” (ibid., p.207), ou com a caracterização mais contida de Eutrópio: “Um hombre comparable al principio de su reinado a los mejores emperadores al final a los mediocres” (EUTROPIO. op. cit., p.138). 97 LACTANCIO. Sobre..., p.146. 98 ibid., p.193. 99 ibid., p.194. 100 ibid., p.84.

Outro aspecto extremamente significativo da representação de Diocleciano, que se

contrapõe ao modelo pró-senatorial de Constantino, é o fato de que use o termo rex (“rei”)

para defini-lo, o que acaba tendo conotação pejorativa, pois fazia uma referência direta à

idéia de monarquia oriental, correspondendo à idéia de servidão como fica explícita na

supracitada passagem, acerca de Galério: “Se inicia entonces el descenso y el viejo rey

(veteranus rex), llevado en un simple carruaje, es transportado a través de la ciudad hasta

las puertas y enviado a su patria”101. Outro elemento que se destaca nessa passagem é a

idéia de um declínio, de retrocesso, para diminuir-lhe mais importância.

O que confirma a idéia de que o que regula a imagem negativa desse imperador é a

sua orientação política, sendo revelador no que diz respeito à percepção acerca da mudança

no regime que Diocleciano institui. Assim, Lactâncio enxerga o novo regime estabelecido

por Diocleciano como uma monarquia de verdade (dominatus). Ele faz um retrato de

Diocleciano como o de um monarca, um rei, embora muitas vezes não o faça de modo

explícito. Sua caracterização mais benevolente talvez derive de uma consciência que

Constantino se apropria do regime de Diocleciano, de uma espécie de reconhecimento

implícito da obra desse imperador.

O ideal criado em torno de Constantino se desenvolve basicamente em dois eixos: o

modelo de príncipe senatorial e seu pró-cristianismo. Assim, como se pode perceber por

essa dupla formação, a imagem de Diocleciano se guia por uma dupla perspectiva: sua

imagem enquanto perseguidor está condicionada à sua imagem de ‘tirano’, ou seja,

imperador anti-senatorial, e esta àquela; caso contrário, algo faltaria como no caso de

Maxêncio, que embora anti-senatorial, não fora perseguidor, mas vem caracterizado de um

modo ambíguo com todos os rasgos típicos do tirano.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, alguns elementos conformam a imagem de Diocleciano por Lactâncio

e que fazem parte da visão de mundo do autor. Ele parte de uma dupla perspectiva ao

mesmo tempo romana e cristã. Relativa à primeira estão as suas convicções políticas,

relacionadas à sua origem e formação. Já no que diz respeito à segunda, está a ideologia

que permeia a obra, visto que a noção de perseguição, só assume sentido para o cristão,

pois o “perseguidor” não pode ser perseguidor para si. O que explicita a idéia de que a

noção de perseguição/perseguidor também é uma construção teórica, visto que depende de

101 ibid., p.122-3.

um ponto de vista. Não se está querendo com isso afirmar a não-realidade do fenômeno das

perseguições aos cristãos, mas apenas que cada um dos grupos envolvidos terá uma

percepção distinta do fenômeno. Pois enquanto os que perseguiam achavam que estavam

fazendo o certo, os que eram perseguidos estavam convencidos da injustiça dessa situação.

Mas afinal de contas o que Lactâncio tenta provar, em sua obra é que o cristianismo

não é incompatível com o poder imperial, e desse modo está estabelecendo uma relação

entre as medidas de caráter persecutório a uma orientação política centralizadora da parte

dos imperadores perseguidores.

Assim, tentou-se compreender como a imagem concebida por Lactâncio de

Diocleciano, enquanto perseguidor, não muito distante das representações negativas que os

historiadores do século II imortalizaram acerca de alguns imperadores do século I, está

relacionada não tanto com a sua posição religiosa quanto com a política por ele perpetrada.

Se se tiver em conta que a perseguição de 303-305 teve uma dimensão muito limitada

dentro do conjunto de reformas realizadas por Diocleciano, visto que se restringe aos dois

últimos anos do governo deste, além do fato de que o próprio Lactâncio fora chamado pelo

mesmo imperador para trabalhar como professor de retórica em sua nova capital, então se

deve visualizar no seu conjunto a obra de Diocleciano para compreender que, no todo, suas

tendências a tornar mais exacerbada o processo de fortalecimento do poder desagradavam

as tendências pró-senatoriais de Lactâncio. E que este faz uma reapropriação de um

conceito pagão (qual seja, o de mau imperador/imperador anti-senatorial, ou mesmo

‘tirano’ em alguns contextos) redimensionando-o, de forma a dar-lhe um conteúdo cristão.

REFERÊNCIAS

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