Blimunda # 29 - outubro 2014

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M ENSAL N. º 29 O UTUBRO 2014 F UNDAÇÃO J OSÉ S ARAMAGO HaY FESTIVAL DE SEGOVIA Mario Vargas Llosa, Le Clézio e Javier Marías O A Viagem do Elefante O América Latina por Eduardo Lourenço O Julio Cortázar por Dulce Maria Zuñiga O Rol de Livros:Uma história em fichas de leitura O Saramaguiana: A espiritualidade clandestina de José Saramago BLIMUNDA

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Levar a literatura até as pessoas, seja através do Teatro, das Feiras do Livro, Festivais Literários ou de Bibliotecas Itinerantes. Boa parte da Blimunda de outubro é dedicada a este assunto - que também é abordado por Pilar del Río no editorial. Ricardo Viel esteve na encantadora Segóvia, no Hay Festival, e voltou com histórias do encontro entre grandes nomes da literatura, do jornalismo e do mundo dos livros com um animado e cúmplice público. Sara Figueiredo Costa conta como foi “fugir com o circo” por quatro meses e acompanhar a digressão do Trigo Limpo/Teatro Acert pelas terras de Viseu Dão Lafões com o espetáculo “A Viagem do Elefante”, adaptação teatral do livro homónimo de José Saramago. Andreia Brites revela os bastidores das fichas de leitura que a Fundação Calouste Gulbenkian manteve secreta durante décadas. Um contributo para o trabalho das bibliotecas itinerantes (as famosas carrinhas da Gulbenkian) que cruzavam Portugal no século passado levando livros aonde eles não existiam.Os convidados desta edição da revista são Dulce Maria Zúñiga, diretora da Cátedra Latino-Americana Julio Cortázar que nos explica por que vale a pena ler o autor de Rayuela; e o ensaísta Eduardo Lourenço que recupera um texto escrito em 2003 e até agora inédito sobre a América Latina.Na secção Saramaguiana publica-se um excerto do prólogo de A espiritualidade clandestina de José Saramago, livro de Manuel Frias Martins a ser publicado em breve pela Fundação José Saramago.Esta é a nossa Blimunda # 29. Que agora também é vossa. Boas leituras!

Transcript of Blimunda # 29 - outubro 2014

  • M E N S A L N . 2 9 O U T U B R O 2 0 1 4 F U N DA O J O S S A R A M A G O

    HaYFESTIVAL DE SEGOVIAMario Vargas Llosa, Le Clzio e Javier Maras O A Viagem do Elefante O Amrica Latina por Eduardo Loureno O Julio Cortzar por Dulce Maria Zuiga O Rol de Livros:Uma histria em fichas de leitura O Saramaguiana: A espiritualidade clandestina de Jos Saramago

    BLIMUNDA

  • Sim, senhor, disse artur paz semedo. Apertou a mo que o administrador

    lhe estendia e retirou-se. No caminhava, voava. Entrou na

    seco com um ar triunfador que ningum lhe conhecia e que todos

    os subordinados, sem exceo, atriburam a um substancial aumento

    de vencimento. To limitada a imaginao da gente comum.

    Jos Saramago, Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas

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    O outro lado da sociedade de espetculo

    Pilar del Ro

    Cinco minutos com Maria Sheila

    CremaschiRicardo Viel

    Notas de rodapAndreia Brites

    Leiturasdo ms

    Sara Figueiredo Costa

    A Viagem do Elefante

    Sara Figueiredo Costa

    A espiritualidade clandestina de Jos Saramago

    Manuel Frias Martins

    EstanteSara Figueiredo Costa

    e Andreia Brites

    Salvemos a Amrica (Latina)

    Eduardo Loureno

    Agenda

    Hay festivalde Segvia

    Ricardo Viel

    Porqu ler Cortzar

    Dulce Maria Zuiga

    Dicionrio infantil e juvenil

    Gonalo Viana Sara Reis da Silva

    Javier Maras eo risco de contar

    Ricardo Viel

    Rol de LivrosAndreia Brites

    Espelho MeuAndreia Brites

  • Vivemos na sociedade do espetculo e temos que assumir este dado como uma verdade revelada ou cientfica cada um decidir de acordo com a sua forma de estar no mundo. Tudo espetculo, da representao religiosa poltica, das imagens de um acidente ferrovirio a um concerto. O teatro puro espetculo como a morte de um rei ou como pode ser um pr do sol retratado e colocado nas redes sociais para contemplao coletiva. Diante dessa lgica milenar os livros no podiam permanecer margem, protegidos em estantes, eternamente esperando que algum, por erro, curiosidade ou empenho real viesse busc-los e dar-lhes vida. Dessa maneira os livros no respiravam, de modo que foi preciso que se lhes inventasse um espetculo e nasceram assim as feiras de livros, bendito seja

    quem concebeu esses eventos. Com o tempo se viu que as feiras no eram suficientes para competir, por exemplo, com as doses dirias de futebol que os meios de comunicao transmitem e foram lanados festivais literrios no mundo todo para que os leitores e os escritores encontrassem um lugar onde pudessem olhar-se

    nos olhos e trocar ideias j escritas ou essas outras que todos temos depois de termos lido e entendido.

    Cada dia h mais festivais na Europa e na Amrica. Alguns, os Hay Festival, por exemplo, celebram-se em lugares pequenos, outros procuram complementar grandes feiras. H os que celebram um autor, como a Escritaria de Penafiel que este ano foi dedicada a Ldia Jorge. H os encontros que transformam as cidades e as cidades que transformam e deixam a sua marca nos escritores. H a magia das sesses multitudinrias, em que escritores so aplaudidos como cantores, e h as sesses pequenas onde se escuta o palpitar de

    O outro lado da sociedade do espetculo Pilar del Ro

    um poema. Tudo isso acontece na sociedade do espetculo, na qual finalmente a literatura se incorporou para benefcio da sua alma a da sociedade e para fazer letreiros luminosos de livros e no s de marcas de automveis. uma forma necessria de justia neste sculo XXI que defendemos, ns os que queremos que os livros cheguem a todos os cantos, porque o conceito de elite, relacionado com o poder social e econmico, foi destronado, assim queremos acreditar, pelo conceito mais perfeito de democracia. No banalizao, colocar a Divina Comdia, pintada por Barcel, nas livrarias do mundo, e fazer-nos perder o medo de entrar numa sala para escutar Bach, pois isso no apenas um privilgio de cinco escolhidos por ignotos deuses. Festivais no Brasil, na Argentina e na Colmbia, cidades que se convertem, durante alguns dias, como Medelln, em livros abertos de poesia; ou Segvia, cujo aqueduto romano v passar escritores do mundo todo; ou Xalapa, onde se desfruta do verbo de um autor sonhado; ou como em Gijn, onde os leitores inventam histrias para receber os que fazem da arte da palavra o seu ofcio.

    H tambm as cidades que se convertem em cenrios para receber um elefante chamado Salomo, que foi animal de verdade e agora um mito que revive no imaginrio de muitos leitores e nas praas de Portugal, segundo se conta nesta revista. Porque a cultura um espetculo para o espetacular movimento dos nossos coraes, tantas pulsaes por minuto, tanta beleza perfeita que nos mantm levantados e com os olhos abertos.

    Destes e de outros assuntos como a curiosa histria das secretas fichas de leitura da Fundao Calouste Gulbenkian, que hoje so pblicas - se falar neste nmero da Blimunda, no qual, alm dos habituais colaboradores, escrevem o ensasta Eduardo Loureno, com um texto sobre a Amrica Latina, Dulce Ziga, diretora da Ctedra Latino-Americana Julio Cortzar, em Guadalajara, que explica porqu ler o autor argentino e universal, e o professor da Universidade de Lisboa Manuel Frias Martins, que se ocupa da espiritualidade na obra de Jos Saramago.

    Bem-vindos a esta Blimunda, a revista da Fundao Jos Saramago.

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  • FUNDAO JOS SARA

    MAGO

    THE JOS SARAMAGO

    FOUNDATION

    CASA DOS BICOS ONDE ESTAMOS WHERE TO FIND USRua dos Bacalhoeiros, LisboaTel: ( 351) 218 802 [email protected]

    COMO CHEGAR

    GETTING HERE

    Metro Subway Terre

    iro do Pao

    (Linha azul Blue Line

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    Autocarros Buses 25

    E, 206, 210,

    711, 728, 735, 746, 75

    9, 774,

    781, 782, 783, 794

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    Segunda a SbadoMonday to Saturday

    10 s 18 horas10 am to 6 pm

    AKA COR

    LEONE

    Blimunda 29

    outubro 2014

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIO E REDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    REVISO

    Rita Pais

    DESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

    dos respetivos autores.

    Os contedos desta publicao

    podem ser reproduzidos

    ao abrigo da Licena

    Creative Commons

  • 6gneros, desconstruyendo, estn en lo cierto y deben apoyarse en mi primer maestro, Andr Gide, y en mi disciplinador fi losfi co, Jacques Derrida. Soy obsesivo e infi el por naturaleza. Soy tambin individualista y, al mismo tiempo, me divierto despersonalizndome, medio a la Fernando Pessoa. Por otro lado, por defecto profesional (profesor investigador) me gustan los clsicos de la prosa de fi ccin. No me satisface la narrativa de la miseria ajena que fundamenta el trabajo de algunos escritores actuales, pero siempre estar a favor de una literatura romntica (en el sentido amplio del trmino), aquella que, como el pelcano de Alfred de Musset, entrega su propio corazn a sus hijos hambrientos. El profesor ley de todo y el escritor fue seletivo sin ser intolerante.

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    EntrevistaSilviano SantiagoDistinguido com o Prmio Ibero--Americano de Letras Jos Donoso, o escritor brasileiro Silviano Santiago esteve em Buenos Aires e deu uma entrevista revista , do jornal Clarn. Entre as suas preferncias literrias e alguns aspetos do modo como escreve, o autor falou ao jornalista Mauro Libertella sobre o modernismo brasileiro, a censura literatura e s artes no tempo da ditadura militar, o tropicalismo e a sua relao com o movimento antropofgico. Sobre a sua prpria literatura, disse o seguinte em resposta pergunta: Muchos crticos lo sitan en una tradicin de autores que cruzan gneros, que barren fronteras. Se siente cmodo en ese linaje?Si me afi lian a los autores que cruzan, descruzan y recruzan

    Estado IslmicoResistir em Kobane data do fecho desta edio, o chamado Estado Islmico avana perigosamente sobre vrios territrios da Sria e do Iraque, deixando um rasto de morte, violaes e destruio sua passagem. Cada localidade que cai s suas mos um passo mais na direo de um mundo fundamentalista, sem espao para os direitos mais bsicos e seguramente marcado pela tortura e pelo assassnio de quem ousar levantar a voz. Em Kobane, os curdos resistem h semanas contra os fundamentalistas, lutando heroica e desigualmente enquanto a comunidade internacional assiste de camarote a um massacre, discutindo a possibilidade de uma interveno que parece ter sido agendada nas calendas gregas. No Guardian, David Graeber assinou um texto sobre o tema, que o Portal Anarquista generosamente traduziu para portugus. Alguns excertos muito relevantes: H milhares de diferenas entre o que aconteceu em Espanha em 1936 e que est a acontecer hoje em Rojava, as trs provncias de maioria curda do norte da Sria. Mas as semelhanas so to impressionantes, e to angustiantes, que sinto que minha obrigao dizer, como algum que cresceu numa famlia cuja ao poltica era, em muitos aspetos, defi nida pela revoluo espanhola: no podemos deixar que tudo termine,

    outra vez, da mesma forma. E, mais adiante: Agora, o ISIS voltou, com dezenas de tanques e artilharia pesada, de fabrico norte-americano, capturados s foras iraquianas, para se vingar de muitas dessas mesmas milcias revolucionrias em Kobane, afi rmando a sua inteno de massacrar e escravizar sim, literalmente escravizar toda a populao civil. Enquanto isto, o exrcito turco est na fronteira impedindo que reforos e munies cheguem aos defensores (de Kobane, ndt), e os avies dos Estados Unidos fazem-se ouvir em ocasionais e simblicos ataques rpidos aparentemente, apenas para que no se diga que no fi zeram nada quando um grupo, contra o qual afi rma estar em guerra, esmaga os defensores de uma das grandes experincias democrticas do mundo. Se se fi zesse um paralelismo hoje com os falangistas de Franco, superfi cialmente devotos e assassinos, com quem seria seno com o ISIS? Se h um paralelismo com as Mujeres Libres da Espanha, com quem ser seno com as mulheres corajosas que defendem as barricadas em Kobane? O mundo e desta vez da forma mais escandalosa de todas, a esquerda internacional vai ser outra vez cmplice ao deixar que a histria se repita?

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    L E I T U R A S D O M S / S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • 7infncia no pensamento de Walter Benjamin e de outros autores, Elisabete Marques escreve sobre Finisterra, de Carlos de Oliveira, e sobre modos de experimentar, ver ou pensar a paisagem. H ensaio, poesia e refl exes sobre diferentes objetos artsticos, sempre com a preocupao da interdisciplinaridade, no como uma espcie de fogo de artifcio terico, mas antes como um modo plural de olhar e pensar sobre o mundo.

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    se fazem aproximaes entre as mais variadas formas de expresso artstica: literatura, msica, cinema, vdeo, banda desenhada, ilustrao, animao, fotografi a, arquitetura, teatro, performance, design, pintura, street art, DJing, e demais artes plsticas e performativas. Lado a lado, ensaiando tanto a refl exo como a prtica destas e de outras relaes. A ESC:ALA , afi rmativamente, indisciplinar.Neste nmero, e entre muitos outros trabalhos, Emlia Pinto de Almeida assina uma conversa com Maria Filomena Molder sobre o papel da

    Patrick Modiano Nobel da Literatura Na sequncia da atribuio do Prmio Nobel da Literatura a Patrick Modiano, o crtico (e tambm escritor) Jos Rio Direitinho assinou, no Pblico, um texto sobre o autor francs. Refl etindo sobre o potencial da escrita de Patrick Modiano como uma matria que luta contra o esquecimento, Rio Direitinho destaca igualmente o papel da cidade de Paris na obra do autor: O autor francs recorre em quase todos os seus romances a uma cartografi a parisiense muito precisa, nostlgica e romntica, etrea e eterna, onde personagens frgeis, solitrias e desenraizadas buscam a sua identidade remexendo numa espcie de matria escura (a expresso do prprio no romance O Horizonte) feita de possibilidades passadas de um futuro que, por uma ou por outra razo, nunca chegou a acontecer. Como se as aes que no aconteceram e as palavras que nunca foram ditas, as daqueles anos em que a vida entrecortada de encruzilhadas e se abrem tantas vias aos nossos olhos que a escolha se torna difcil, fi cassem a pairar num qualquer abismo e coubesse ao autor ir l ouvir os seus ecos e assim faz-las fi nalmente viver.

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    Revista eletrnicaUma ESC:ALA interdisciplinarJ est disponvel o terceiro nmero da ESC:ALA, a revista eletrnica de estudos e prticas interartes editada pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Como se l na apresentao da revista, a ESC:ALA prope-se sobretudo como um espao de experimentao. [] pretende ser um frum, um laboratrio onde

    L E I T U R A S D O M S

  • 8Chegada quarta edio, a Granta portuguesa dedica as suas pginas a frica, o continente, mas igualmente s ideias e imagens que sobre esse enorme espao se criam. O modelo o que j se conhece: autores portugueses e de outras latitudes escrevem sobre o tema de capa, uns por encomenda, outros em traduo de textos anteriormente escritos e que cabem no perfi l escolhido para este nmero.Quem esperar os habituais clichs de longos horizontes, cus avermelhados e animais de grande porte (ou, em alternativa, os escassos recursos, a seca intensiva e a misria, a misria, a misria), fi car desiludido. Como se l no editorial, assinado por Carlos Vaz Marques, no dessa frica cristalizada em memrias e cartes postais que aqui se quer falar: Que isto sirva de aviso: neste nmero da Granta no se pretende de modo algum retratar frica. O que aqui temos - se me permitido pilhar um ttulo alheio - so partes de frica. A referncia da pilhagem ao livro de Hlder Macedo (que no tem texto na revista), mas o trabalho que melhor ilustra esta ideia do escritor queniano Binyavanga Wainaina, a fechar o volume. Como escrever acerca de frica desfi a

    lugares-comuns com ironia de mestre, utilizando-os como quem revela a receita para o texto infalvel num curso de escrita criativa de trazer por casa enquanto confi rma quanto vazio de ideias se pode achar em cada um desses textos sobre frica que querem ser bandeira de qualquer coisa. Um exemplo: No teu texto, aborda frica como se fosse um s pas. um lugar quente e poeirento, com ervaais suavemente ondulados e enormes manadas de animais e habitantes altos e magros que esto cheios de fome. E mais adiante: Vinca logo de entrada que possuis convices liberais inatacveis e refere nas primeiras pginas o quanto amas frica, como te apaixonaste por aquela terra e no consegues viver sem ela. Implacvel.A Binyavanga Wainaina juntam-se Chimamanda Ngozi Adichie, Teju Cole, Nadine Gordimer, Aminatta Forna, Martin Kimani, Taiye Selasi e Bruce Chatwin. Sousa Jamba vem baralhar as ideias feitas sobre a lngua em que se nasce e aquela em que se escreve. Jos Eduardo Agualusa e Mia Couto partilham correspondncia sobre a vida e o labor da escrita, mas onde a epistolografi a ganha flegos de obra-

    -prima no conjunto de mensagens e fotografi as enviadas por Ruy Duarte de Carvalho a Rute Magalhes a partir de Swakopmund, na Nambia, onde o autor viria a morrer. Antnio Cabrita, Hlia Correia, Ldia Jorge, Sandro William Junqueira, Jos Tolentino Mendona e Lus Carlos Patraquim completam o ndice de textos.s palavras juntam-se as ilustraes de Alain Corbel, respondendo aos textos com a delicada lucidez que caracteriza o seu trabalho, e o ensaio fotogrfi co de Dlio Jasse, fotgrafo angolano que aqui rene imagens urbanas onde as tais ideias feitas sobre frica se desfazem perante a constatao da homogeneidade de certos traos no que s grandes cidades do mundo diz respeito. O aviso do editorial , portanto, para levar a srio, sob pena de fi car por perceber que o que se junta nestas pginas so olhares, modos de ler e entender, experincias e relaes entre pessoas, lugares reais ou nem por isso. Perante tamanha riqueza, apenas v a tentativa de reduzir tudo ao nome de um continente.

    L E I T U R A S D O M S

    Vrios Autores Granta #4: fricaTinta da ChinaEstragar clichs

  • A S B S

  • ESTANTE

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    XenofonteA Retirada dos Dez MilBertrand EditoraReedio de um clssico grego onde se narra uma expedio (e consequente retirada) do exrcito helnico Prsia na sequncia das Guerras do Peloponeso. Esta edio tem a particularidade de ter sido traduzida por Aquilino Ribeiro, ainda estudante em Paris, que lhe deixou a marca do seu prprio (e inconfundvel) labor de linguagem. Como diz Mrio de Carvalho no prefcio, Este um dos mais movimentados e arrebatadores livros de aco que jamais se escreveram.

    Ins Fonseca Santos (texto), Marta Madureira (ilustrao)A palavra perdidaArranha-cusNesta narrativa enigmtica, um pequeno narrador, de nome Manuel, partilha com o leitor uma angstia que o assola: onde est a palavra que perdeu? Sem nunca a encontrar, Manuel desvenda, nesta misso, as palavras mais importantes, aquelas que nomeiam as pessoas e as coisas de que mais gosta. Numa parbola, Ins Fonseca Santos explora a ideia fi losfi ca da identidade pela nomeao e do valor emocional de o poder fazer. Marta Madureira compe caracteres como se de um jogo de construo se tratasse, ampliando no apenas o enigma narrativo, mas acrescentando-lhe igualmente um enigma visual.

    David ToscanaO Exrcito IluminadoParsifalUm professor mexicano cria um exrcito para recuperar o estado do Texas para o Mxico, loucura na qual contar com o apoio de vrios alistados que acreditam lutar para repor a dignidade nacional. Romance distinguido com o Prmio Casa de las Amricas de Narrativa em 2008, O Exrcito Iluminado refl ete sobre a melancolia do fracasso, mas igualmente sobre a sua satisfao se o que o motivou foi uma convico forte ao avanar para o erro.

    Carlos FuentesPantallas de PlataAlfaguaraVolume pstumo que rene textos de Carlos Fuentes sobre cinema, arte a que o autor se dedicou como espectador vido e muito informado. Dos primeiros fi lmes a que assistiu em sala at s preferncias que foi construindo ao longo da vida, passando por conversas com realizadores e atores e por pequenos episdios que presenciou, Pantallas de Plata uma declarao de amor, sentida e muito completa, de um escritor cinefi lia que tambm o alimentou durante a vida.

  • 11

    Matthias PicardJim Curioso Polvo Neste lbum de BD sem texto, acompanha-se a viagem de um pequeno escafandrista, Jim, pelo fundo do oceano. Com ilustrao a preto e branco, a tcnica de gravura e de impresso que, com a ajuda de culos 3D, permite ao leitor percecionar a volumetria e a profundidade de elementos neste espao fantstico pleno de vestgios histricos e pistas narrativas. Do lixo da sociedade contempornea ao tesouro revelado num galeo afundado, a histria caminha s arrecuas, numa descida nem sempre direta, em direo a um retorno transformador.

    Adlia Carvalho (texto), Ctia Vidinhas (ilustrao)WonderPortoTcharanA referncia explcita e comea logo no ttulo: Adlia Carvalho recruta Alice na sua viagem pelo Pas das Maravilhas para a tornar protagonista de um passeio pelos lugares mais carismticos da cidade do Porto: Ribeira, Magestic, Bolho, Serralves, Biblioteca Almeida Garrett, entre outros. A ilustrao e o design convidam o leitor a registar momentos desse passeio pela cidade, atravs de fotografi as, desenhos e texto. Um guia que no se deseja exclusivamente instrumental e convida tambm literatura e criao.

    Antonio Carlos SecchinJoo Cabral de Melo Neto: Uma fala s lminaCosac NaifyAntonio Carlos Secchin, crtico da Academia Brasileira das Letras, rene neste volume alguns dos muitos ensaios que dedicou a Joo Cabral de Melo Neto. Dividido em duas partes, a primeira analisa cada um dos livros do autor brasileiro, organizados cronologicamente. Na segunda parte, incluem-se ensaios dispersos sobre a obra de Joo Cabral de Melo Neto. No fi m, uma seco iconogrfi ca rene as capas das primeiras edies dos livros de poesia.

    Michel PastoureauPreto. Histria de uma corOrfeu NegroEspecialista em simbologia e histria da Idade Mdia, Michel Pastoreau analisa neste livro a histria da cor negra, traando-lhe a cronologia possvel entre leituras fi losfi cas, escolhas estticas e referncias simblicas. Associada ao lado mais sombrio da alma ou ao luxo que se quer exibir, o preto no est, hoje, entre as preferncias ou os desmerecimentos mais fortes: Ter-se- tornado por fi m uma cor mdia? Uma cor neutra? Uma cor como as outras?

    ESTANTE

  • A S B S

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  • S e g v i aR i c a r d o V i e l

    d eF e s t i v a lH a y

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    S e por algum misterioso motivo o mundo fosse sem som, se no pudssemos ouvir msicas, e histrias, e ideias, ainda assim teria valido a pena acompanhar o Hay Fes-tival de Segvia. Porque ver um grupo de crianas sentadas no cho da linda Plaza Mayor da cidade espanhola, num dia de outono de sol e calor, atentas a um senhor com um microfone e outro com um violo, e como fundo a impo-nente catedral , por si, animador. Eram contadores de histrias, ciganos, e por sorte o mundo tem som. Mas mesmo que no ti-vesse, valeria a pena pelo impacto de entrar num convento com quase mil anos de histria e ver que centenas de pessoas esto ali reunidas para escutar conversas que giram em torno da cultu-ra, das artes, das humanidades; e pela alegria de ver uma cadeia transformada em sala de exposies e cinema, ou de uma igreja onde se toca e se baila flamenco, ou de um jardim que num sbado pela manh tomado de assalto por escutadores e declamadores de poesias.

    Em setembro, e durante alguns dias, a cidade de Segvia re-cebeu pela nona vez uma edio do Hay Festival, encontro que nasceu h 25 anos na pequena localidade de Hay on Wye, no Pas de Gales, e que hoje se replica em vrias partes do mundo. Se o festival originalmente foi criado para ser um encontro literrio, h

    muito que as fronteiras foram ampliadas. Em Segvia, no ltimo fim de semana de setembro, houve espao para o cinema, a msi-ca, a arquitetura, o jornalismo, a culinria e o futebol, alm da lite-ratura, claro (leia a entrevista com a diretora do festival espanhol).

    O que se segue um breve relato do que presenciei nos trs dias em que por l estive. Por questo de espao e falta de capacidade minha, ficam de fora muitos outros momentos especiais. O am-biente de celebrao que pairou por Segvia nesses dias difcil de descrever, espero que o leitor consiga ter uma mnima ideia do que esse festival movimenta, cria e partilha. E quem puder, que visite Segvia em setembro de 2015.

    Dois Prmios Nobel, e muito mais em comum

    S e temos ao lado dois Prmios Nobel de Li-teratura, por onde comear a conversa? Talvez o melhor seja comear pelo incio. Foi o que fez o colombiano Carlos Grans, moderador da mesa mais aguardada do festival, o encontro entre o peruano Mrio Vargas Llosa e o francs Jean-Marie Gus-tave Le Clzio cujas entradas se esgota-ram vrios dias antes do incio do festival. Para arrancar com a conversa, Grans buscou um ponto em comum entre ambos e re-

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

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    gressou primeira infncia dos escritores caracterizada por uma figura paterna que teve como marca a ausncia e a rigidez. No caso de Vargas Llosa (Arequipa, 1936), o pai foi algum que ele conhe-ceu quando tinha dez anos de idade. At ento achava que o pai tinha morrido. Num dia, Ernesto Vargas reapareceu e voltou a vi-ver com a me do escritor. Para mim, a vida adulta comea quan-do conheo o meu pai e vou viver com ele, contou. A relao no foi pacfica, e a figura autoritria era um obstculo difcil de ser superado. Creio que comecei a levar a srio a literatura graas hostilidade que meu pai mostrou a essa vocao. Ele pensava que a literatura era um passaporte para o fracasso, que a poesia era pouco viril. Para o escritor, escrever era uma maneira de resis-tir autoridade paterna. Nesses anos, a literatura representava para mim uma maneira de viver com liberdade, um refgio. Digo isso agora, em perspetiva: a literatura devolveu-me a dignidade.

    No caso de Le Clzio (Nice, 1940), o convvio com o pai, um m-dico militar que passou anos na Nigria, sem voltar a casa, tam-bm foi de alguma maneira traumtica. A vida dele era dura e ele era duro. Quando o conheci, aos 8 anos, a sua autoridade causou--me medo. A inveno de contos era um bom mtodo para fugir disso. Conta o francs que at comearem a aparecer os prmios o pai ignorou por completo a vocao do filho.

    Com destreza, Carlos Grans foi encontrando pontos em co-mum entre os dois Prmios Nobel de Literatura (Le Clzio em 2008

    e Vargas Llosa em 2010): a publicao do primeiro livro no mesmo ano (1963), a atrao pelo diferente que no caso do francs era a Amrica Latina, e no do peruano, era a Europa, mais especifica-mente Paris , e a descoberta dos segredos dos povos indgenas, o fascnio pela palavra.

    Desde pequeno que queria vir Europa. Cresci com a ideia de que se queria ser escritor tinha que chegar a Paris. E em Paris aprendi que eu era latino-americano. No me sentia latino para nada, e l descobri que existia uma literatura latino-americana e que eu pertencia a ela, confessou Vargas Llosa. Paris no me atraa. Para mim, era Londres a porta para o mundo. Um dia li um livro sobre a cultura maia em que explicava que era um povo submetido s formigas, contou o francs. Partiu para o Mxico e depois chegou ao Panam.

    Entre a Europa e a Amrica, entre as frustra-es, os sonhos e as conquistas, o passar dos anos, a conversa fluiu. Contaram. Sorriram. Trocaram impresses e opinies. Foi a pri-meira vez que participaram de um ato pbli-co, e tinham tanto a dizer que conseguiram um feito indito: extrapolaram o tempo. De-pois de uma hora de conversa e instrudas pela organizao, duas voluntrias aproximaram-se do plpito

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

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    da igreja do convento com flores na mo. Esperavam apenas que Le Clzio terminasse o seu comentrio para entrarem em cena. O moderador j estava avisado de que no havia mais tempo. Mas eis que Vargas Llosa se antecipa e diz que as lembranas do es-critor francs sobre a sua vivncia no Panam com um grupo de indgenas conviver com essa comunidade fez-me entender a importncia da literatura o fez recordar uma histria que havia escutado quando conheceu os ndios machiguengas. Durante v-rios minutos, o autor de Conversaciones en la Catedral falou sobre os contadores de histrias desse grupo da Amaznia peruana, en-carregados de preservar a memria coletiva daquela comunidade, que o mais precioso que aquele grupo tem, explicou o peruano. Quando acabou de contar, o relgio marcava quinze minutos alm do trmino da sesso. Ningum se importou.

    O futuro das livrarias

    Como sero as livrarias dentro de dez anos? Elas existiro? E os livros em papel, sobre-vivero? Foi em torno a essas perguntas que girou a conversa entre Maarten Ass-cher, escritor e diretor da livraria Athe-naeum, uma das mais emblemticas da Holanda, Patrick Neale, livreiro britnico independente e ex-presidente da Book-

    sellers Association e Antonio Ramrez, diretor das livrarias espa-nholas La Central. A seguir os principais trechos desse encontro:

    Maarten Asscher (Holanda)

    No posso responder por todos, mas posso falar pela livraria pela qual sou responsvel, em Amesterdo. Ocupo-me dos livros de cultura e parece-me que h trs aspetos que me permitem ser otimista em rela-o ao futuro das livrarias. Primeiro, algum tem que selecionar os livros. Dada a quantidade de produo que h, no se pode contar com que as pessoas encontrem o caminho que querem sem ajuda. H de haver algum que selecione, que diga que isto tem valor e aquilo no vale nada, que recomende a leitura de certos livros. Antes, essa seleo era feita pelos editores e agentes literrios. Hoje em dia, devido Internet, essa pilha de coisas que no valem nada, todos aqueles manuscritos que se amontoavam na mesa dos editores agora esto na Internet. As pessoas j no so capazes de descobrir o que lhes interessa, o que vale e o que no vale, e nessa parte que entram os livreiros. Em segundo lugar, os livros que simplesmente esto amontoados em garagens ou armazns, na escurido, no meio de outros 25 mil livros numa livraria, esses livros, de alguma ma-neira, no existem. Algum tem que lhes dar vida, destaque. Fazer eventos nas prprias livrarias, ou museus ou centros culturais, os livreiros sabem como apresentar um livro, como fazer um aconteci-

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

  • 17

    mento diante de um livro. As pessoas tm que ser animadas, quase que foradas a ler. Este um livro maravilhoso, venham ver essa apresentao. um papel valioso e acho que as pessoas esto dis-postas a pagar por ele. Terceiro, a Internet uma ameaa para a ven-da de livros, mas ao mesmo tempo uma oportunidade maravilhosa porque oferece alternativas para que a sua livraria seja muito maior do que parece. Crimos uma plataforma onde se publicam crticas, palavras dos tradutores, uma loja eletrnica em que temos 800 mil visitantes por ano. Acho que uma possibilidade realista. O livreiro, a livraria, tem que estar na vanguarda, tem que ir procura do novo. No s necessrio uma diversidade de ttulos, mas de livrarias. Um livro em papel algo que pode ser partilhado com mais pessoas, que dura, e isso levado em conta na escolha em continuar a compr-lo em papel.

    Patrick Neale (Reino Unido)

    Comecei a trabalhar em livrarias nos anos 80. Nos anos 90 tambm encontrmos muitas dificuldades. Primeiro foram os supermercados a fazer descon-tos aos best sellers. Depois veio a Amazon, que en-trega livros num dia. Vender livros tornou-se algo muito complicado, mas as livrarias adaptaram-se, conseguiram ser acessveis. H esperana para as livrarias pelo seguinte moti-vo: se vendssemos latas de feijo, a Internet e os supermercados

    tirar-nos-iam o lugar, mas h muita paixo nesse trabalho que fa-zemos, e as livrarias continuam a ser lugares perfeitos para des-cobrir livros.

    A livraria onde eu trabalho pequena, mas todos os livros que esto ali so conhecidos por pelo menos uma das pessoas que ali trabalham. H sempre uma pessoa capacitada para falar sobre qualquer dos livros que vendemos. [...] Os livros de bolso, cuja qualidade menor, tiveram uma queda muito mais acentuada do que os demais. A crise fez com que as editoras se esmerassem em fazer edies cada vez mais bonitas, com capas de alta qualidade.

    Antonio Ramrez (Espanha)

    As livrarias independentes de mdio porte so as que menos sentiram esta crise. Estamos h um ano com nmeros em crescendo. Em Madrid, nos ltimos anos, abriram doze pequenas livrarias, com caf. So alternativas compra online. Se o bom leitor continua a preferir comprar o livro presencialmente por-que as pessoas ainda precisam de espaos fsicos para se encontrarem com pessoas reais e objetos tangveis. Tentamos criar espaos arqui-tetnicos agradveis para os leitores. Os livros esto selecionados de uma maneira. A livraria como um ponto de encontro, um lugar para criar comunidades, no s tem futuro como um espao privilegiado. No ter a Amazon como grande inimiga, mas dizer ao governo que

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

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    no deve apoiar uma empresa que no paga impostos e por isso no pode dar-lhe nem um cntimo.

    Uma livraria, mais do que especializada, tem de ser especialista. O leitor percorre aquilo e sabe que ali h algum que, como ele, l, e tem de encontrar o que esperava e tambm o que no esperava. O leitor tem que visitar a livraria como algo que lhe d prazer. Um leitor confia em outro leitor. Pode desconfiar de um crtico, da capa de um livro, mas no desconfia de outro leitor, e o livreiro , antes de tudo, um leitor. H uma relao de confiana que no pode ser per-dida. [...] As pessoas compram livros tambm pela coleo qual ele pertence, pelo editor que est por trs.

    Na linha de frente do jornalismo

    Marc Marginedas, 47, cobriu a pri-mavera rabe, as guerras do Iraque e do Afeganisto, foi cor-respondente em Moscovo e na Arglia, e especialista no Mun-do Islmico. Em setembro de 2013 a notcia de que fora sequestrado na Sria rodou o mundo. Foram seis meses em poder dos jihadistas. Sobre esse episdio, o jorna-lista do El Peridico de Catalua prefere o silncio. H outros pro-fissionais da imprensa que esto a passar por situaes como essa

    e temos que evitar que jornalistas se tornem protagonistas. Se o sequestro atrai a ateno dos mdia, faz com que os confrontos que cobram milhares de vidas fiquem em segundo plano, argu-menta. Marginedas muito crtico quanto divulgao de ima-gens de jornalistas em poder de sequestradores (como nos ltimos meses tem acontecido). Ver a fotografia de um profissional ves-tido de laranja a ponto de ser assassinado no acrescenta nada. Eles fazem isso para captar combatentes e se divulgamos essas imagens estamos a jogar o jogo deles, no estamos a fazer jorna-lismo responsvel. Ns no devemos s traduzir dados, devemos formar a sociedade.

    O catalo autor do livro Periodismo en el campo de batalla (2012) de-fende que um jornalista de guerra que paga com a vida pelo trabalho que exerce deve ser recordado pelo que fez e escreveu, e a imagem que deve ser mostrada dele justamente no trabalho, e no privado de li-berdade. Assim dizemos que nem mesmo matando podem cal-lo. Marginedas define-se como um jornalista em lugares que esto em guerra, no um jornalista de guerra. Vamos a lugares que esto em conflito e devemos cobrir o ps-guerra tambm.

    Fazer jornalismo de qualidade custa caro e a sociedade tem que perceber que se quer informao de qualidade preciso pa-gar, para que o trabalho possa ser feito com tempo, qualidade e segurana. Sem jornalismo a nossa sociedade seria muito mais manipulvel, e j o .

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

  • 19

    O fotojornalista Gervsio Snchez, 59, escutava com ateno o que o colega dizia, e quando lhe passaram a palavra, a primeira coisa que fez foi elogiar a nobreza e a dignidade do companheiro, que no quis fazer da sua situao pessoal um show. Especialista em Amrica Latina, Snchez tambm foi testemunha, nesses 59 anos de vida e quase 30 de profisso, de dezenas de conflitos. Es-tar no lugar aonde as coisas acontecem, ver com os teus prprios olhos, definir o que vs com as tuas obsesses, isso sagrado no jornalismo e serve para descrever tambm o que acontece na es-quina da tua casa.

    direto ao falar sobre o que presenciou. As guerras so o maior fracasso dos seres hu-manos. muito fcil que uma guerra come-ce e muito difcil que termine. muito difcil superar as consequncias de um conflito ar-mado. Vi gente normal, que eram jornalistas, mdicos, motoristas, transformarem-se em assassinos de um dia para o outro. Creio que a guerra tira dos seres humanos o pior que h neles.

    Autor de mais de uma dezena de livros, e colaborador de diver-sos meios (rdios, jornais e revistas), Snchez um grande crtico do tipo de jornalismo produzido pelo grandes grupos. O jorna-

    lismo no existe para dormir com o poder poltico como tem sido frequente acontecer. Segundo o espanhol nascido em Crdoba, uma das lutas mais difceis dos meios de comunicao conse-guir que as notcias no sejam dadas esporadicamente, mas que haja uma cobertura constante. Se no se fala todos os dias do que est a acontecer, os leitores no percebem o que acontece. No ser-ve para nada contar s o que mais meditico. Para ele, o jor-nalismo espanhol sofre com a concentrao de meios em poucas mos e com a cumplicidade com o poder. So empresas que tm interesse em certos pases e estabelecem relaes obscenas com eles. No o jornalismo o que est em primeiro lugar, so os inte-resses dos grupos mediticos, dispara, e exemplifica: O Banco Santander o maior financiador de compras de armas deste pas, e ningum diz isso. Ningum fala disso porque o Santander com-prou parte da dvida da maioria dos grupos de comunicao.

    Sem meias palavras, Snchez defendeu que o jornalismo atual no sofre com uma crise financeira, mas sim de identidade. Quanto mais publicidade h num jornal, maior a incidncia de censura nela. Traiu-se o princpio bsico do jornalismo h muito tempo. Sobre a disponibilizao de contedo gratuito por Internet, Sn-chez categrico: Investigar o que acontece difcil e custa muito dinheiro. Se no queremos pagar por isso, teremos uma sociedade mais mal informada e manipulada.

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

  • F O T O G R A F I A S : H A Y F E S T I V A L / D I V U L G A O

  • c o n t a rd e

    r i s c oe o

    M a r a sJ a v i e r

    H a y F e s t i v a l :

  • 25

    Paul Ingendaay, o entrevistador, pede. Javier Maras, o entrevistado, duvida. Diz que talvez a luz e o fac-to de estar sem os culos possam atrapalhar. S o comeo, insiste o jornalista alemo. Maras apa-nha o livro sobre a pequena mesa, engole saliva para limpar a voz e, sem se levantar da cadeira, d in-cio leitura: No faz muito tem-po que aconteceu aquela histria. Menos do que costuma durar uma vida, e que pouco uma vida uma vez terminada e quando j se pode contar em umas frases... A voz levemente metalizada do escritor espanhol, amplificada pelas caixas de som, dissemina--se pela Igreja do Convento de Santa Cruz de la Real, em Segvia. As palavras lidas lentamente, com ritmo e segurana, parecem ir preenchendo o espao, contornam os arcos de mrmore, tocam os vitrais, chegam at alta cpula, envolvem os ouvintes. Durante alguns minutos, o silncio das centenas de pessoas, a voz de Ma-ras, a construo, tudo fazia lembrar uma cerimnia religiosa, e talvez de alguma maneira se tratasse disso: um ato de devoo. Neste caso, devoo literatura.

    O trecho lido durante o Hay Festival de Segvia o comeo

    de As empieza lo malo, romance que o escritor acaba de publicar. Ali, naquele princpio de histria, esto algumas das temticas que marcam a trajetria literria de Javier Maras, um dos auto-res mais consagrados da atualidade no universo da lngua espa-nhola. O perdo, o esquecimento, o rancor, o passado, a renncia a saber, o contar ou no contar um segredo, questes que apare-cem constantemente nos relatos do autor de Maana en la batalla piensa en mi (2000), esto novamente presentes no seu mais re-cente livro.

    Nos meus romances, o narrador muitas vezes no queria ter sabido que algo aconteceu. Eu no quis saber, mas soube que, diz o narrador de Corazn tan Blanco [1992]. Esse dilema de renun-ciar a saber o reverso do detetivesco, explicou, na conversa com Ingendaay, o autor de Tu Rostro Maana/Fiebre y lanza, cujo prin-cpio : No deveramos nunca contar nada. Porqu contar? O que contar? Como contar? Quais as implicaes de contar? So dvidas que esse escritor nascido em Madrid em 1951 carrega h dcadas. Talvez j estivessem presentes em 1971 quando, com ape-nas 19 anos, publicou o seu primeiro romance. Desde ento tem dedicado a vida literatura (foi professor universitrio, tradutor e alm de romances escreve contos e ensaios), e tem-se debruado sobre essas questes. A elas nos ltimos tempos juntou-se outra: at quando contar?

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

  • 26

    Depois de escrever as cerca de 1600 pginas da trilogia Tu ros-tro maana Javier Maras pensou que havia chegado a hora de se calar, ou de pelo menos no escre-ver mais fico. Tinha alcanado grande notoriedade e respeito, e prximo dos 60 anos e dos qua-se 40 como escritor cogitou ser o momento de parar. Faz anos que ele diz que est cansado de escrever romances, e no para de es-crev-los, provocou, com bom humor, Ingendaay na conversa em Segvia. A verdade que naquele momento eu tinha a sensao, depois dos oito ou nove anos que levei para escrever Tu Rostro, que j no tinha muito a dizer, respondeu Maras. Fez uma pausa, e con-tinuou: s vezes pergunto-me se realmente no suprfluo. Bem, talvez seja um livro suprfluo, mas todos os livros, em realidade, o so. No h nada necessrio nesse campo. O mundo seria o mesmo sem a obra de Shakespeare, de Joseph Conrad Sem a obra de todos, talvez no fosse o mesmo, mas sem cada uma delas, sim.

    Depois da trilogia de Tu Rostro Maana finalizada em 2007 com a entrega de Veneno y sombra y adis o escritor escreveu mais dois livros: Los Enamoramientos (2011) e o romance que agora publica. A

    explicao para continuar a escrever menos metafsica, e mais hu-morada. J so 43 anos a escrever, mas talvez eu continue porque de outra maneira o tempo no passaria. Ainda no cheguei idade da reforma, mas estou prximo, e ningum me daria trabalho agora. De algum modo h que se passar o tempo. s vezes pergunto-me se no continuo a escrever romances porque no sei o que fazer.

    Recentemente Javier Maras pu-blicou um artigo em que cita sete motivos para no se escrever um romance entre eles a existncia de muitos bons livros, a nfima possibilidade de ganhar dinhei-ro ou fama com algo que exi-ge muito tempo e obriga a uma completa solido e apenas um para o fazer: Escrev-los per-mite ao romancista viver boa parte do seu tempo instalado na fic-o, seguramente o nico lugar suportvel, ou o que o mais. E talvez seja por isso que, apesar de tantas dvidas quanto serventia do que faz, e apesar do cansao, Javier Maras continue a contrariar a sentena inicial de um dos seus livros mais conhecidos e continue a contar.

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

  • C r e m a s c h iS h e i l aM a r i a

    a d i r e t o r am i n u t o s c o m

    c i n c oH a y F e s t i v a l :

  • 28

    O que faz do Hay Festival de Segvia esse encontro to agradvel? a cidade, com os seus espaos monumentais, as suas igrejas romnicas, os seus jardins renascentistas e

    palcios medievais que nos convoca a ocup-la. O festival, alm dos debates, tem um programa de artes visuais, concertos e leituras pblicas em 15 espaos simultneos.

    O que o mais complicado para quem organiza: convencer os participantes? Fazer com que o programa seja atrativo ao pblico? Encontrar financiamento?

    Sem dvida encontrar financiamento, e com a crise o desafio maior a cada ano.

    Porqu essa opo por um programa to diverso quanto temtica? Trata-se de um festival de ideias e desde a primeira edio segue o nome do festival fundado em Gales: Hay

    Festival of Literature and the Arts. Neste ano detivemo-nos em vrios focos: inovao (com gastronomia, dese-nho e arquitetura), Europa (cultura, guerras e futuro da Unio Europeia), fomento leitura (leituras pblicas e associao de desportistas) e cultura transversal.

    Quais os nmeros deste ano?Foram 75 sesses, mais de 150 participantes e mais de 21 mil espectadores.

    Que imagem guardar deste festival? Guardarei a dos espaos cheios de gente e alegria. Dos carros antigos de bombeiros que recolhiam os partici-

    pantes no Hotel San Facundo e os levavam at ao convento. Foi maravilhoso ver Lord Chris Patten, Javier Maras, Vargas Llosa, a serem conduzidos nos carros de bombeiros antigos.

    Em 2015 h mais? Comearemos agora as visitas aos patrocinadores para saber com quem podemos contar para o prximo ano.

    E assim, tijolo a tijolo, comeamos a construir o festival do ano que vem.

    H A Y F E S T I V A L D E S E G V I A

  • CRNICA DE UMA DIGRESSOEM NMEROS NADA REDONDOS

    A VIAGEMDO

    ELEFANTESARA FIGUEIREDO COSTA fotografias de RICARDO CHAVES

  • 17.070

    espectado

    res

    No passado dia 27 de setembro, a digresso de A Viagem do Elefante por Viseu Do Lafes fez a sua ltima

    paragem deste ano. O espetculo construdo pelo Trigo Limpo/ ACERT a partir do romance homnimo de

    Jos Saramago encerrou em Aguiar da Beira o seu priplo, que contou com a adio de dois jornalistas,

    em regime de cronistas, equipa habitual (esta que vos escreve e o camarada de redao desta revista,

    Ricardo Viel), e de dois fotgrafos cuja disponibilidade no tem descrio altura.

    Passar quatro meses na estrada com uma companhia de teatro d uma nova perspetiva expresso

    fugir com o circo, retirando-lhe todo o sarcasmo com que normalmente utilizada e conferindo-lhe

    o sentido pleno de quem experimenta, em comunidade, o processo de erguer um espetculo e partilh-

    -lo com um pblico. H uma parte de loucura nisto tudo, claro, ou daquilo a que chamamos loucura, mas que capaz de ser, afinal,

    coragem, vontade de contrariar os impossveis, um gesto em direo ao que est por fazer e merece ser feito. Talvez tenha sido assim

    que algum se lembrou de construir um elefante em tamanho natural, ferro e vime a darem forma a um paquiderme que se move, emite

    barritos, ganha vida e alma e nervo medida que nos aproximamos. A ACERT chama-lhe engenho cnico, e assim h de ficar registado,

    mas este enorme Salomo est mais para ser do que para parecer.

    Os dados reunidos pela organizao registaram nmeros grandiloquentes: 17 070 espectadores ao longo de 14 apresentaes; 8722

    horas de trabalho nos dias passados em cada localidade; 680 participantes locais que se juntaram aos atores do Trigo Limpo para integrarem

    o elenco; 1 239 378 visualizaes de notcias relacionadas com a digresso no Facebook. Do que ningum se lembrou foi de contabilizar o n-

    mero de pessoas que se aproximaram do elefante e quiseram tocar-lhe. Houve crianas, sim, naquele limbo de dvida perante a realidade do

    animal, mas houve igualmente muitos adultos, certos de que o que ali viam era um boneco e ainda assim decididos a fazerem uma festa num

    bicho que, graas a esse gesto tantas vezes repetido, foi ganhando corpo para alm da verosimilhana, quase como um Pinquio de tromba.

    A V I A G E M D O E L E F A N T E

    36

  • 15.212 kilmetros

    Quatro meses na estrada renderam 15 212 quilmetros de alcatro (e alguns caminhos de cabras) per-

    corridos pela equipa ao longo dos municpios de Viseu Do Lafes. Outros nmeros reunidos pela

    organizao seriam melhor carto de visita para esta espcie de balano em ritmo de crnica, mas

    quando se tem pavor de andar de carro e se cumpre parte considervel dessa distncia dentro de uma

    viatura, esse o valor a que nos agarramos. A quantidade de Vomidrin ingerida pela cronista, que ao

    medo da estrada acrescenta o enjoo sobre as quatro rodas, tambm no entra nas contas, mas a far-

    mcia aqui do bairro agradece. Felizmente, as nuseas terminam quando se pisa terra firme, pelo que

    os percalos de um estmago fraco para viagens nunca interferiram com o convvio nem com a hora

    de comer. Entre pratos e talheres, foram 1338 as refeies consumidas pela equipa da ACERT nos catorze locais por onde passou o ele-

    fante. Dito assim, parece apenas estatstica, mas porque a mesa muito mais do que o lugar onde se come, importa dizer que A Viagem

    do Elefante foi tambm um percurso pelo interior de um pas que tantas vezes acredita que se acaba no litoral, pelo patrimnio cultural

    onde cabem muito mais do que monumentos e, claro, pela gastronomia, elemento essencial na cultura de cada stio. Entre chanfanas

    capazes de acordar um morto, vitelas de Lafes que se cortam como manteiga e broas cozidas em velhos fornos de lenha que nenhuma

    padaria de franchising alguma vez poder imitar, o que se comeu nesta digresso no foi apenas alimento para o corpo.

    Enquanto acompanhava Salomo e a ACERT, aprendendo a cada semana um pouco mais sobre como se monta um espetculo,

    como se colocam pessoas sem nenhuma experincia de palco a interpretarem um texto, como se move um elefante entre municpios

    sem interromper o trnsito nas estradas nacionais, tive a sorte de ver um pedao de burel transformar-se em capucha pelas mos da

    Dona Adelaide, ou um crivo a ganhar forma a partir da madeira e do arame dobrado pelo Sr. Manuel. Provei broinhas doces em Santa

    Comba Do, vi o belo queijo da Serra a curar temperatura certa em Canas de Senhorim, assisti debandada de rebanhos de cabras

    A V I A G E M D O E L E F A N T E

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  • 1.239.378

    visualizae

    s facebook

    e ovelhas, assustados com a curiosidade de quem vem de fora e ousa invadir o pasto, descobri a serra de So Macrio e a lentido do

    tempo na aldeia das Covas do Monte, em So Pedro do Sul. Tudo isto poderia ter sido visto e experimentado em qualquer momento,

    claro, afinal o pas pequeno e chega-se a qualquer parte em menos de nada, mas os stios por onde passmos, as pessoas que nos

    receberam e as histrias que nos contaram no seriam iguais noutro contexto.

    Um elefante bicho demasiado grande para no interferir nas vidas com que se cruza e Salomo no ex-

    ceo. A digresso de A Viagem do Elefante passou por 14 lugares, sim, mas passou sobretudo pelas vidas

    de milhares de pessoas, entre atores, tcnicos, participantes, espectadores e viajantes do caminho. Os n-

    meros j se referiram, e queira a cidadania que possam servir para iluminar as cabeas de tantos burocratas

    sobre a importncia da cultura e de um trabalho que envolve a comunidade no tal desenvolvimento de que

    tanto se fala nos telejornais do nosso descontentamento, mas das pessoas que vale a pena falar. A senhora

    de Canas de Senhorim que agradecia sentidamente o facto de algum ter levado um espetculo to bonito

    sua terra. Os midos do Conservatrio de Msica e Artes do Do que participaram no espetculo, tocan-

    do ao lado dos msicos do elenco. Os dois homens que discutiam, no caf, sobre se o elefante seria capaz de atravessar o largo ou no.

    Um dos participantes da digresso do ano passado, que foi de Figueira de Castelo Rodrigo at Viseu apenas para rever Salomo. O padre

    de Aguiar da Beira, que desligou o sino no sbado noite para que as badaladas no interferissem no espetculo. Sempre por perto,

    uma jornalista feita cronista a perceber, semana aps semana, que no se volta igual de uma viagem assim. Fugir com o circo parece-

    -me, depois destes quatro meses, a coisa mais sensata, lgica e necessria que se pode fazer com a vida, mesmo sem uma companhia

    de teatro, mesmo sem um elefante.

    A V I A G E M D O E L E F A N T E

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  • 39

    C

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    Y

    CM

    MY

    CY

    CMY

    K

    ANUNCIO A4_autores.pdf 1 14/10/20 22:14

  • 40PORQU LER CORTZAR?

    DULCE MARIA ZUIGA

  • 41

    2014 um ano de efemrides centenrias na literatura mundial. Faz cem anos vieram luz (entre muitos outros) o poeta chile-no Nicanor Parra (que continua to vivo como em 1914), os mexicanos Octavio Paz, Efran Huerta e Jos Revueltas. Tambm Marguerite Duras, Dylan Thomas, Oscar Lewis, Roman Gary, William Burroughs

    Todos eles vm ao mundo num ano transtornado pelo incio do que se converteria na Grande Guerra, a Primeira Guerra Mundial. Paradoxo vital, no ano que ser recordado como o ano blico, nasce-ram tambm grandes pensadores e escritores, que deixariam a sua prpria marca na Histria. Um deles Julio Cortzar, que viu a luz a 26 de agosto de 1914, na Blgica, mas com nacionalidade argentina.

    H que se reconhecer que a efemride centenria comove porque os nmeros redondos impressionam a maioria dos seres humanos: comemoramos com fervor especial os aniversrios que culminam em 0, 10, 20, 40, 50 E, portanto, o simbolismo do 100 e a palavra sculo revestem-se de um significado arcano. Ns, os leitores de Cortzar (que continuam a multiplicar-se dia a dia no planeta), aproveitamos esta data para repensar a sua figura e obra.

    Cortzar , sem dvida, um dos autores mais destacados da ln-gua espanhola. Foi tambm um escritor revolucionrio: pela sua conceo de linguagem, pela forma como envolveu a estrutura dos seus romances, ensaios e contos, e pela sua adeso sincera (agora poderamos classific-la de ingnua) s causas revolucionrias do seu tempo: Cuba e Nicargua.

    Cortzar gostava de se aventurar dentro das possibilidades ex-tremas da linguagem e brincou com o idioma espanhol at chegar ao virtuosismo. A palavra que o define procura: do fantstico no real, do mgico no quotidiano, procura de um sentido trans-cendente, ainda que religioso, para o homem; procura, enfim, de uma sada (passagem, tnel, ponto, galeria) que nos permita sair da rotina quotidiana que uma das formas de designar a morte. Cortzar foi um humorista moda de Alfred Jarry, para quem s o riso era srio; tambm um otimista no convencional, e um apai-xonado pelos jogos.

    Cortzar acreditava na solidariedade humana e isso levou-o a aderir s causas revolucionrias latino-americanas, como j dis-semos antes. Durante a juventude e primeira maturidade, man-teve-se alheio aos processos sociais. As manifestaes peronis-tas em Buenos Aires provocavam-me espanto; eu fechava-me em

    O C R O N P I O C E N T E N R I O . P O R Q U L E R C O R T Z A R ?

    No dia 22 de setembro Dulce Mara Ziga, diretora da Ctedra Julio Cortzar da Universidade de Guadalajara, esteve em Lisboa para participar numa homenagem ao escritor argentino no Biblioteca Nacional de Portugal. Preparou um discurso, mas preferiu falar de improviso, como os demais participantes (Nuno Jdice e Carles lvarez Garriga) da

    mesa. O jornalista e editor Carlos Vaz Marques, que moderou a sesso, ao ler o texto que a professora mexicana havia preparado, sugeriu-nos que essas palavras no se perdessem e fossem publicadas na Blimunda. Aqui esto.

  • 42

    O C R O N P I O C E N T E N R I O . P O R Q U L E R C O R T Z A R ?

    casa e escutava uma sonata de Mozart enquanto l fora gritavam: Pern, Pern! Evita, Evita! A sua converso e o compromisso po-ltico do-se com a Revoluo Cubana, que tem incio em 1959. Mas pouco antes, em 1957, na altura de escrever O Perseguidor aconteceu alguma coisa. At ento a sua procura na literatura tinha sido est-tica. O Perseguidor obrigou-o a sair de si, a encarnar o outro atravs da escrita, porque at ento se havia mantido distante. No Perse-guidor disse Cortzar a Evelyn Picon Garfield h uma espcie de final de uma etapa anterior e comeo de uma nova viso do mundo: a descoberta do meu prximo, a descoberta dos meus semelhantes [...] comecei a interessar-me pelos problemas histricos que at esse momento me tinham deixado totalmente indiferente. 1

    Cortzar atribua leitura uma funo transcendente. Apesar de no se definir como algum com grande capacidade crtica isso eu no tenho, tenho intuies escreveu em 1947 um im-portante ensaio sobre a literatura contempornea intitulado Te-oria do tnel, publicado no primeiro volume da sua Obra Crtica. Nesse ensaio, depois de examinar o estado da literatura luz do existencialismo e do surrealismo, conclui que ambos os movimen-tos reafirmam com amargo orgulho que o paraso est aqui em baixo, situao que o deixava enormemente satisfeito porque renegam a promessa transcendente.

    A literatura devia abrir um buraco na realidade, construir um tnel que pudesse levar-nos a outra parte. Na essncia isso o que ressalta na maioria dos seus extraordinrios contos de Bestiario (1951), Final del juego (1956) y Las armas secretas (1959).

    Extraordinrios contos: pela qualidade da sua prosa e pelo seu alto voo imaginativo, mas sobretudo porque prope uma passa-gem a outra realidade. A literatura ali exposta abria um tnel co-municante superao da angstia existencialista e do onirismo surrealista entre o real e o fantstico; um tnel que conduzia o leitor a um plano transcendente, mas essa transcendncia estti-ca, metafsica, em breve se lhe afigurou insuficiente. Foi ento que escreveu o conto El Perseguidor.

    A transcendncia que Cortzar experimen-tou em O Perseguidor foi sobretudo tica. Um tnel do humano ao humano. Uma fissura para passar do eu ao outro. O Per-seguidor foi o primeiro passo nessa dire-o; Rayuela (1964) no foi um segundo passo, foi um enorme salto, no vazio, uma revoluo no sentido mais pleno da pala-

    vra. Rayuela props-se a revolucionar, como nenhum outro romance o tinha feito antes no nosso idioma, a estrutura do romance; props-se revolucionar a prpria lngua, mas sobretudo modificar o sentido final da literatura. No de maneira existencialista (mas a literatura envol-via um compromisso profundo com o homem). Tambm no de modo surrealista (mas a literatura devia encarnar os sonhos). Em resumo, a literatura devia servia para transformar o homem, para conduzi-lo a outro plano da rea-lidade.

    1. Cortzar por Cortzar, entrevista com Evelyn Picon Gar-dfield, Universidad Veracruzana, col. Texto crtico, 1978.

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    O C R O N P I O C E N T E N R I O . P O R Q U L E R C O R T Z A R ?

    Esta pretenso desmesurada ficou exposta no seu esclarecedor Cuaderno de bitcora de Rayuela (1983) escrito com Ana Mara Bar-renechea. Ali exibe os planos, as notas e o seu dirio de escrita. Como o leitor recorda, Rayuela composta por captulos narrati-vos e por passagens reflexivas, o chamado Cuaderno de Morelli. Ali diz: Que , no fundo, essa histria [refere-se histria de Oli-veira, Traveler, Talita e da Maga] seno a esperana de encontrar um reino milenrio, um den, outro mundo? A isso aspirava Cortzar, e no devemos minimizar a sua tentativa: desejava al-canar, a partir do romance, outro mundo. Mas, como se pode conseguir isso? A maioria dos romancistas quer contar uma boa histria, provocar arrebatamento ao seu leitor; Cortzar preten-dia outra coisa, queria que o leitor alcanasse mediante a leitura o que ele mesmo havia alcanado atravs da escrita. Queria que o leitor, graas a complicados jogos de estrutura e de linguagem, vislumbrasse que este mundo podia ser outro: o reino milen-rio, o kibbutz do desejo. Que era a realidade para Cortzar? Algo que entorpecia a procura individual; a realidade era um vu que impedia perscrutar o real. Cortzar intua uma realidade mais real na qual o homem se encontrasse consigo mesmo numa es-pcie de uma reconciliao total e de anulao de diferenas, se-gundo confessou a Luis Harss em Los nuestros. 2

    Cortzar queria levar o seu leitor ao abismo do ser de Octa-vio Paz, ao Nirvana budista. Rayuela um convite disse Harss a dar um salto mortal fora do tempo para cair na outra margem, na eternidade. Muito bem, mas como conseguir, com as ferra-

    mentas com as quais conta um narrador, que o leitor alcance essa outra margem?

    Cortzar, por meio de uma estrutura narrativa que avana em saltos no tempo e no espao, teceu um labirinto engenhoso que conduz o leitor do lado de l e do lado de c, para lev-lo ao centro da sua mandala, ao ponto do seu romance que ele pretendia que fosse a passagem que levasse o leitor, de golpe, ao outro lado. Quis, numa passagem especfica

    do romance, provocar no leitor uma espcie de satori, essa ilumi-nao sbita de que fala o budismo zen. Essa passagem (tnel, ponte, galeria) encontra-se no centro do seu romance.

    No seu Bitcora, Cortzar anota uma citao de Mircea Eliade: No corao da mandala -lhe possvel operar a rutura dos nveis e ter acesso a um modo de ser transcendental. O leitor, conduzido por Cortzar, transitaria por passagens altamente emotivas (o culto ao in-fortnio da Maga, a fraternidade parisiense de um grupo de amigos unidos pelo jazz) e reflexivas, at ao centro do seu labirinto narrativo. Ali lhe soltaria a mo e lhe daria um leve empurro para o vazio.

    A obra inteira de Cortzar est vigente. Vale a pena revist-la e deixar-se guiar e convencer pelas personagens inesquecveis. O tem-po, o nico crtico literrio certeiro e incorruptvel, situou-o no lugar de honra da biblioteca ideal. 2. Luis Harss, Los nuestros,

    Alfaguara, 2012, 1. ed. 1966.

  • EDUARDO LOURENOSALVEMOS A AMRICA

    EDUARDO LOURENOSALVEMOS A AMRICA

    EDUARDO LOURENO

    (LATINA)

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    Talvez no haja no mundo nenhum espao cultu-ral mais disperso por fora e mais unido por den-tro que o enraizado, desde o sculo XV, na antiga Ibria fi lha de Roma e do Mediterrneo.

    Foi o primeiro espao global e j globalizan-te do Ocidente, de Lisboa e Sevilha a Malaca, s Filipinas, do Rio Grande Patagnia, de Ceuta Ilha de Moambique, de Macau a Timor.

    Deste antigo e duplo manto imperial ibrico, hoje convertido em mtica nostalgia como Histria, pouco restaria se o tecido onde foi recortado no fora o da lngua ibrica de dupla face onde possvel a milhes de homens conversarem mesma mesa onde outrora se sentaram Cames e Cervantes e hoje se entendem sem precisar de tradues Garca Marquez e Saramago ou Javier Maras e Haroldo de Campos. No pequeno milagre este e o seu alcance de todas

    as ordens, desde a cultural geo-estratgica em sentido largo, onde, felizmente, a planetria presena da cultura de raiz ibrica a de um arquiplago com vocao de paz. no seu vasto espao que obst-culos at hoje insuperveis, contradies da Histria e da sua von-tade de as solucionar medida da utopia universal, que Colombo e Vasco da Gama levaram da velha Europa, fazem da galxia ibrica, ibero-americana, ou ibero-africana, um paradoxal mundo cindido no seu prprio corao, ou na sua vida, que podia ser paradisaca, entre o esplendor e a mais inaceitvel misria.

    Nunca uma parte do nosso espao culturalmente prximo co-nheceu no seu seio um to dissimtrico destino. Pensemos no mun-do de raiz ibrica ps-colonial. Apenas h uma vintena de anos pases como a Argentina, o Uruguai, a Colmbia, a Venezuela, o imenso Brasil pareciam querer sair desse passado colonial a que, evocando-o para fi ns polmicos, atribuam a causa dos seus males

    A propsito do centenrio de Julio Cortzar, o professor Eduardo Loureno recuperou um texto escrito em 2003 que agora se publica pela primeira vez.

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    S A L V E M O S A A M R I C A ( L A T I N A )

    endmicos: guerrilha poltica permanente, desenvolvimento eco-nmico alternando milagres e insucessos catastrficos tornando impossvel um futuro digno daquela Europa de onde uma parte dos novos pases tinham vindo para inventar um mundo novo e, se possvel, mais humano e atraente. Neste momento alguns desses pases como se fossem um barco naufragado aspiram at a voltar ao ponto de partida. Para ns ibricos europeus no h hoje dever mais imperioso do que meditar numa tragdia que nos diz respeito, no apenas como outras da humanidade em geral, mas como nossa. Tanto mais que essa nova situao dos antigos filhos da Amrica, dos eldorados que foram ou querem ser para eles mesmos e para a Europa de onde partiram, no so apenas dolorosas peripcias na marcha do Ocidente para um destino americana mas, vir-tualmente, um aviso para o nosso prprio futuro de ocidentais ou mesmo de simples cogerentes de um mundo cada vez mais difcil de assumir em termos de sucesso e de solidariedade universal.

    A Europa que to egoistamente feliz e bem sucedida se contempla e nela ns mesmos ibricos quase terceiro mun-do h apenas meio sculo em sentido prprio agoniza nos bairros do Uru-guai e da Argentina, culturas e socieda-des florescentes de vinte anos. Simboli-camente, mesmo se era por excesso de

    utopia, aos ibricos europeus sempre perdoavam o futuro nessas

    naes que, por definio, eram novo mundo. Gostamos, e natu-ral que nessa nova dimenso da nossa prpria cultura novas ver-ses dela, hoje exemplares para a humanidade inteira, os Borges, os Lzama Lima, os Varga Llosa, os Guimares Rosa, os Portinari, os Niemeyer, acrescentem ao patrimnio do nosso velho mundo uma outra voz, uma outra msica, uma outra maneira de ser a mesma coisa com outro sabor, como uma Igreja de Minas ou do Mxico so as nossas em outro cu e com outro esplendor. Contudo uma parte desse mundo, dessa cultura, dessa civilizao que tambm nos-sa ou com ela tem laos indelveis est ameaada na sua prpria existncia. No apenas pelo carcter anmalo ou patolgico de al-gumas das suas expresses, como na Colmbia, mas quase no seu funcionamento estrutural de sociedade com passado j glorioso e incapazes, pura e simplesmente, de subsistir. Em tempos, Miguel de Unamuno dizia que a Espanha lhe doa. Talvez j no o dissesse hoje ou pelos mesmos motivos. Neste momento di-nos a Amrica Latina ou parte dela e talvez no haja para ns, ibricos, impe-rativo poltico e cultural mais urgente do que salvar um mundo com que em tempos de misria nossa sempre pensmos para nos salvar. Ou apenas para ser quem somos no mundo por eles existirem e serem quem so.

    Vence, 30 de abril de 2003

  • ROL DELIVROSUMA HISTRIAEM FICHASDE LEITURA

    A N D R E I A B R I T E S

  • Esta uma histria de leituras e da sua legitimao, que nasceu para ser secreta e hoje pblica. Com alguns protagonistas e

    muitas personagens annimas, idealizadas: os leitores.

    Nas origens da Comisso de Leitura

    Tudo comea em finais da dcada de cinquen-ta do sculo passado: a Fundao Calouste Gulbenkian, em Portugal, havia sido recente-mente legitimada juridicamente, e comeava a desenvolver projetos culturais, em nome prprio ou atravs do seu servio de Bolsas, o primeiro a ser criado. Azeredo Perdigo, pre-sidente vitalcio da instituio, convida ento o escritor Branquinho da Fonseca para que este crie e dirija o Servio de Bibliotecas Itinerantes, que marcaria profundamente vrias gera-es de leitores por todo o pas e lhes deixaria gravada na memria a imagem das carrinhas cheias de estantes com livros.

    Estamos em 1959 e Branquinho depara-se com uma questo: que li-vros levar a populaes maioritariamente analfabetas, isoladas, rurais e semiurbanas, geograficamente distintas? preciso analisar a situa-o luz da poca, para no acharmos tudo ridculo, como j ouvi al-gumas pessoas dizerem, alerta Maria Helena Borges, atual Diretora--Adjunta do Programa Gulbenkian de Lngua e Cultura Portuguesas.

    Quando Branquinho da Fonseca comea a avaliar a situao editorial constata que h poucas ou nenhumas edies de quali-dade de autores que considera de referncia: os clssicos oitocen-

    tistas, de entre os quais o seu preferido, Camilo Castelo Branco. Encomenda ento a edio de uma coleo, cuidada, que at hoje persiste no fundo de algumas bibliotecas pblicas, herdeiras das Bibliotecas da Gulbenkian e que se reconhece pela encadernao vermelha com um O, inicial de Obras de Camilo. O escritor, agora diretor de servio, manifesta tambm srias reservas no que res-peita s tradues de livros estrangeiros, que considera maiorita-riamente sem qualidade. Numa circular de 1970, passada uma d-cada de existncia das Bibliotecas Itinerantes, pode ainda ler-se: A leitura de autores portugueses a primeira condio para o conhecimento da nossa cultura e para o melhor domnio da lngua portuguesa []. Sem lhes limitar a liberdade de escolha devem no entanto ser aconselhados (sem insistncia, mas convictamente) a preferir a leitura de obras portuguesas. A maior parte das tra-dues so de inferior qualidade, [] viciando-os (os leitores) em formas de linguagem pobres ou de construo estrangeirada []

    Com um diagnstico traado sobre o mercado editorial e uma ideia muito concreta para o servio, Branquinho da Fonseca de-cide ento criar uma Comisso de Leitura que ter como funo avaliar a qualidade e adequao dos livros a montante da sua in-tegrao nas carrinhas itinerantes. Pretendia-se assim controlar o acesso ao livro, que no local seria livre, apenas mediado pelas sugestes do Encarregado da Biblioteca.

    poca, as editoras enviavam dois exemplares de cada novo ttulo para a Fundao Calouste Gulbenkian: um ficava no fundo geral, o outro era entregue ao consultor para anlise. Dessa leitura

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    resultaria um registo numa ficha com um formulrio especfico para a avaliao do texto, propriamente dito, a sua adequao ao pblico em geral e a deciso ou no de se comprar um determina-do nmero de exemplares para as Bibliotecas Itinerantes.

    So essas fichas de leitura que o site Leitur@Gulbenkian dis-ponibiliza na seco Rol de Livros. Nestas fichas, nas suas moti-vaes e nos seus critrios crticos residem exemplos notveis da histria da leitura em Portugal. Como se leu, nos ltimos cinquen-ta anos, por exemplo, O Crime do Padre Amaro, de Ea de Quei-rs? Ao pesquisar pelo ttulo, chegamos a quatro recenses (uma annima, sem data, da qual consta apenas uma anotao mo; a de Domingos Monteiro, em 1961, a de Monteiro Grilo em 1964 e a de Adolfo Simes Muller em 1980) com apreciaes distintas, no exclusivamente do ponto de vista literrio mas da receo da leitu-ra, condicionada pelos valores morais de cada momento.

    Recenseadores e Critrios de apreciao

    Recuemos no tempo de volta origem da criao da Comisso de Leitura. Quan-do Branquinho da Fonseca funda o Servio de Bibliotecas Itinerantes traz consigo a experincia da Biblioteca Iti-nerante que criara aquando Conserva-dor do Museu Biblioteca Conde Castro de Guimares, em Cascais. A sua viso acerca do tipo de pblico das Bibliotecas Itinerantes, explicitada

    logo na apresentao do projeto e em circulares internas da Fun-dao Calouste Gulbenkian, centrava-se em utilizadores pouco alfabetizados, maioritariamente adultos, com pouco ou nenhum conhecimento sobre obras e autores. Era por isso, na sua perspeti-va, essencial mediar o acesso ao livro, no atravs de uma censura prvia mas do aconselhamento e da melhor adequao possvel do fundo disponvel na carrinha, com cerca de 2000 ttulos, s com-petncias dos leitores.

    A partir desta premissa a da adequao do livro ao leitor Bran-quinho da Fonseca elabora a tal ficha de leitura a que corresponder um cdigo visual inscrito na lombada dos livros, para maior rigor na disposio dos volumes nas prateleiras das Bibliotecas Mveis. A ficha tem vrios campos, entre eles uma escala de qualidade do livro, uma de dificuldade e outra de adequao: um livro muito bom ou excelente, do ponto de vista literrio, poderia ser recomendado apenas para pessoas com formao cultural, dado o grau de dificul-dade da obra. Ao invs, a obra pode ter apenas um valor mdio mas o recenseador recomenda-a para todos, sem exceo, significando isto que no estava vedada ao leitor comum.

    Em 1961, escreve Branquinho da Fonseca numa circular: Entre os prximos livros que sero enviados s bibliotecas figuram vrios de Shakespeare. Chama-se a ateno dos Srs. Encarregados para a circunstncia de tais obras, embora, em geral, de difcil compreen-so, se encontrarem classificadas como fceis, fila laranja a meio da lombada, afim de que o seu emprstimo possa ser feito aos adoles-centes com o grau de cultura suficiente para as compreender.

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    H todo um protocolo sempre em aperfeioamento para dis-tinguir a oferta que o fundo itinerante levava s populaes dos ttulos que poderiam ser requisitados pelos leitores. Muitos deles no existiam e outros constavam entre aqueles que apenas se ade-quavam a pessoas de formao cultural e moral elevadas, por de alguma maneira criticarem ou ajuizarem sobre o modelo social e os valores morais da poca. Havia por isso uma biblioteca central onde esses ttulos estavam reservados a leitores especiais.

    Quem determinava as escolhas era a Co-misso de Leitura, liderada em ltima instncia pelo diretor do servio, cuja avaliao era soberana e acontecia por vezes como forma de desempate. No caso do Amor de Perdio, de Camilo Castelo Branco, por exemplo, h nas fi-chas de leitura a indicao 1.a leitura e 2.a leitura, realizadas por recenseadores distintos (Monteiro Grilo e Antnio Quadros) por divergncias quanto disponibilizao do ttulo nas carrinhas ou apenas mediante pedido de reserva do leitor.

    O modelo das fichas manteve-se praticamente inalterado at ao encerramento do Servio das Bibliotecas Itinerantes, j na dcada de noventa. No entanto, o discurso dos recenseadores foi sofren-do alteraes, motivadas por outras perspetivas sociais, polticas e educativas. Os prprios recenseadores mudaram. A questo da censura ser a mais delicada. Daniel Melo, no estudo Leitura e

    Leitores nas Bibliotecas da Fundao Gulbenkian disponvel na internet, reala os condicionalismos da requisio domiciliria e acentua questes relacionadas com o regime salazarista e o dis-curso vigente. Maria Helena Borges salvaguarda: As carrinhas tinham 2000 ttulos, todos disponveis para os leitores, que os po-diam requisitar todos. S havia controlo para as crianas: havia livros para crianas e elas no levavam livros para adultos a no ser que os encarregados da biblioteca, que eram uma espcie de mentor das crianas e dos leitores, fossem vendo que a evoluo do mido j permitia que lesse certas coisas. Tinha a ver com a maturidade da criana, no havia censura.

    Inclusivamente, por parte do poder central no houve nunca, se-gundo Maria Helena Borges, ingerncia neste servio, chegando o prprio Salazar a inaugurar algumas das primeiras bibliotecas iti-nerantes. Tambm verdade que alguns dos recenseadores estavam relativamente prximos do regime, tanto quanto outros se lhe opu-nham, alguns dos quais chegaram a ser contratados por Branquinho da Fonseca em hora de maiores aflies com o regime. Em contrapar-tida, os poderes locais manifestavam aqui e ali uma presso poderosa contra as Bibliotecas Mveis. H histrias inacreditveis. Quando viam a carrinha os padres tocavam os sinos a rebate, para no deixa-rem as pessoas irem H uma histria de uma carrinha que chegou a um stio e quando se aproximou viu os livros todos a serem atirados para o adro da igreja e a serem-lhes pegado fogo. Aquilo para os pa-dres era o demnio, recorda Maria Helena Borges.

    O que havia, e isso claro, era uma viso um pouco absoluta do

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    E O Crime do Pad

    re Amaro

    O Crime do Padre

    Amaro F

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    E O Estrangeiro

    O Livro da Tila F

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    E Era bom que troc

    ssemos umas

    ideias sobre o

    assunto

    Rosa, Minha Irm

    Rosa F

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    A Comisso era escolhida por Bran-quinho da Fonseca, e nela consta-vam figuras externas e internas prpria Fundao, representando reas nas quais se poderiam con-siderar especialistas. O contrato de recenseadores tinha a durao de dois anos, podendo ser reno-vvel por mais um. essa a razo pela qual a lista de nomes, que pode ser facilmente pesquisada no site, to extensa e diversa.

    Nela encontramos, entre outros, Domingos Monteiro, o principal recenseador no incio da Comisso, o prprio Ant-nio Quadros, Natrcia Freire, Esther de Lemos, Maria Alzira Seixo, lvaro Manuel Machado e David Mouro Ferreira, entre tantos outros, com um contributo mais ou menos duradouro e regular. Urbano Tavares Rodrigues, assim como Manuel Ant-nio Couto Viana e Fernanda Botelho j integravam o painel de recenseadores antes de 1996, um ano importante na histria do Rol de Livros, e ali continuaram at morrer. Ainda h recen-ses assinadas por Urbano Tavares Rodrigues em 2012. Nesta ltima fase o prazo de colaborao deixou de ser estanque e fi-nito, como inicialmente, passando a dar-se mais ateno cria-o de uma equipa ecltica. A entrada de Margarida Medeiros Ferreira e Jos Manuel Garcia resultou, depois de 1996, numa maior representao das cincias e da histria nas escolhas de ttulos a recensear.

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    leitor modelo destas bibliotecas, e a seleo dos ttulos era por isso condicionada. No entanto possvel identificar alteraes, quer nas aquisies quer nas recenses, que resultam da experincia direta do terreno. Um exemplo disso o crescente nmero de t-tulos juvenis nas estantes das Bibliotecas Itinerantes, que pro-curam dar resposta a um pblico que utiliza o servio em maior quantidade e at qualidade do que o esperado. Os encarregados das Bibliotecas tinham um papel essencial ao dar conta das pre-ferncias e competncias do seu pblico, tanto quanto em respon-der ao leitor em funo dos critrios que subjaziam apreciao dos livros que disponibilizava. Assim se escreve noutra circular de 1961: Um dos aspetos essenciais das nossas Bibliotecas, pois dele depende em grande parte o interesse dos leitores, o gnero de livros que as constituem. [] H, assim, zonas onde so mais lidas as obras de poesia ou filosofia, enquanto noutras a prefern-cia quase exclusiva vai para a literatura de fico [] Ora ningum melhor do que o Encarregado de cada Biblioteca pode auxiliar os Servios Centrais na definio dessas preferncias [] para a aquisio de novos livros e para a renovao dos existentes que se pede a colaborao dos Encarregados.

    H que notar que estes Encarregados, cuja contratao no de-pendia de um grau acadmico superior mas sim de uma formao cultural e de uma capacidade de comunicao superior, tinham um papel decisivo na relao estabelecida com o pblico e que nomes como os de Alexandre ONeill, Toms Quim ou Herberto Helder constam entre os funcionrios da Fundao Calouste Gul-benkian que desempenharam tais funes.

  • Mudana de paradigma

    B ranquinho da Fonseca manteve-se frente do Servio at sua morte em 1974. Depois disso, e com o 25 de abril, outros nomes reconhecidos da cultura e das letras nacionais assumiram essa funo: Antnio Quadros, David Mou-ro Ferreira e Vasco Graa Moura. Na dcada de oitenta comea a con-figurar-se uma poltica de leitura pblica e a Fundao Calouste Gulbenkian enceta igualmente algumas mudanas. A comisso altera a sua denominao, passando a chamar-se Comisso Con-sultiva de Apreciao de Livros e nenhum dos recenseadores con-vidados tem qualquer vnculo Fundao.

    Com o arranque da Rede de Bibliotecas Pblicas, a Fundao encerra progressivamente as suas Bibliotecas Fixas, cedendo os fundos aos Municpios com quem o Estado estabelece protocolos. As bibliotecas itinerantes comeam igualmente a ser desativadas no final dos anos oitenta. Por esta altura, as fichas de leitura per-dem a sua principal razo de ser visto que j no servem de ba-rmetro para aquisio de fundos. No entanto, at 1996, data da morte de David Mouro Ferreira, a comisso continua ativa, com reunies semanais, como sempre acontecera desde a sua criao.

    na segunda metade da dcada de oitenta que muitas fichas comeam a dar lugar a recenses, inicialmente cumprindo o mo-delo fsico, depois apenas em texto corrido, sem categorias de qua-

    lidade ou adequao. H uma transformao visvel do ponto de vista da inteno e do discurso, o que levanta uma questo de fun-do: por que se continuam a recensear livros e para quem, agora que o servio que lhes configurava um sentido deixa de existir?

    A resposta dada por Vasco Graa Moura, que dirige o rebati-zado Servio de Bibliotecas e Apoio Leitura entre 1996 e 1999. Al-tera-se ento profundamente o paradigma destas fichas: at ento o seu contedo era mantido secreto, sendo dada especial ateno ao anonimato de quem assinava cada um desses pareceres. Mas, na viragem do milnio, quando as Bibliotecas Pblicas ganhavam flego com equipamentos modernos, fundos e programao, cabia Gulbenkian um outro papel, no que leitura dizia respeito.

    Vasco Graa Moura props ento que as fichas sejam dispo-nibilizadas ao pblico e a nica forma de o fazer seria atravs de uma plataforma digital. As fichas deixavam a sua primeira funo instrutiva e passavam a constituir um vastssimo patrimnio da histria da leitura na segunda metade do sculo XX, em Portu-gal, na perspetiva sociolgica, editorial e literria. Que livros se editavam? Que livros se consideravam referncias? O que diziam sobre eles figuras tutelares da cultura da poca? Como se viam os leitores? Quem editava, quanto custavam

    O processo posto em marcha: digitalizam-se as fichas em pa-pel, cria-se uma plataforma de alojamento para as novas recen-ses e um motor de busca para aceder, atravs de vrios campos de pesquisa, a todo o arquivo. Em 2004, nasce o Rol de Livros, um dos trs elementos do site [email protected], que integra os

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  • Com o objetivo de levar estas leituras e tamanho patrimnio a um pblico mais abrangente, a Gulbenkian continua a chamar a si uma causa que faz parte do seu ADN e da qual no se quer afastar, assegura Maria Helena Borges. Programando o futuro, a Fundao est a desenvolver uma nova estrutura informtica que possa ligar eficazmente todos os arquivos, notcias, programas e informaes acerca das suas vrias reas de atuao. Quando essa estrutura estiver operacional, a plataforma [email protected] ficar mais acessvel, o que no acontece neste momento, em que no h ligaes a partir do site da Fundao Calouste Gul-benkian. Ser ento possvel divulgar as recenses nas redes so-ciais da Fundao, alcanando assim um nmero significativa-mente maior de leitores e concretizando o seu principal objetivo: dar pistas de leitura, possibilitar o acesso informao, ajudar o leitor a determinar os seus prprios critrios de seleo.

    A fundao sempre foi dinmica!, declara Maria Helena Borges. Hoje e apenas no universo da leitura, a FCG conta com mais dois portais, A Casa da Leitura, para todos os mediadores, e o Cata Livros, destinado ao pblico infantojuvenil. No sabemos exatamente como se far a histria deste presente, mas certamen-te haver novas nebulosas, novos juzos que o tempo permitir, novos rasgos. Certo que Rol de Livros um arquivo aberto e re-gular de 91 000 recenses, que muda tambm em funo do seu pblico. Ontem, no isolamento geogrfico de um pas analfabeto e salazarista, hoje distncia de uma ligao internet. Pode ser mnima, pode ser gigante.

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    Boletins Culturais que a Fundao edita desde 1960, e um arqui-vo com iniciativas marcantes ou testemunhos em torno do livro e da leitura. De repente, qualquer pessoa pode aceder a todas as recenses escritas em 1961, sem distino entre temas ou recense-adores. Ali se encontram ttulos de autores como Aldous Huxley, Jlio Dantas, Albert Camus, Matilde Rosa Arajo, Oscar Wilde ou Jorge de Sena, entre mais de uma centena de nomes.

    A tualmente, o Rol de Livros conta com 3 recenseadores, Rita Tabor-da Duarte e Mrio Braga na rea da literatura e Jos Manuel Garcia na rea da Histria. As suas reu-nies so mensais e cada colabo-rador escolhe os ttulos que con-sidera mais pertinente recensear, de acordo com a sua apreciao crtica do mercado e da qualidade das obras. O servio disponibiliza uma verba anual para a aquisi-o dos ttulos, cabendo no mnimo trs recenses por ms a cada um dos colaboradores. Assim, prev-se que o projeto mantenha sempre o carcter de atualidade que o alimentou ao longo de meio sculo, tendo agora em mente a voragem do mercado que muitas vezes torna difcil a escolha desinformada e descontextualizada. O que se pretende, do ponto de vista programtico, se assim se pode chamar, que estas recenses sejam hoje uma leitura crtica, num universo repleto de sinopses e apologias mediticas.

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    JJJJJJJoelhoO joelho o vrtice da perna, cume de montanha imaginria onde pequenos alpinistas trepam canela acima, fartos de estar sentados e querendo estar de p. Por vezes, apanhando-se os pais a jeito, a cabea de um cavalo que galopa, perna para cima e perna para baixo, em cavalgadas junto ao sof. Ponte entre a perna e a coxa, permite andar, correr e saltar, tornando-se uma pintura abstrata de traos e ndoas vrias. O joelho e o cho so um par enamorado que se encontra vezes sem conta, originando algumas lgrimas, arranhes interessantes e autnticas medalhas de valor mostradas com orgulho aos amigos. No que toca a roupa, prefere seguir o exemplo dos cotovelos e andar ao ar livre, ou ento caminhar com o seu amigo, o penso no joelho.

    Gonalo Vianailustrador

    Joo(Pedro Msseder), Jorge (Sousa Braga), Jos (Jorge Letria) toda a sua poesia para pequenos e jovens leitores! E um outro JOS (SARAMAGO) com as suas narrativas lidas tambm pelos mais novos!Todos juntos! Quem sabe lendo, at, umas tais Histrias com Juzo e umas Aventuras Maravilhosas de [um] Joo Sem Medo? Ou conhecendo um Jardim Zoolgico em Casa? A conversar com o infeliz Joo Rato ou com o Pateta Joo? Mas, na carruagem deste comboio, viajam, ainda e tambm, ingleses: Jack and the Beanstalk, Jemima Puddle-Duck ou The Jungle Book.Sim, h lugar reservado para Jules Verne (e as suas viagens de vinte mil lguas, em apenas oitenta dias, por vezes, ao centro da terra!).O J nos livros e na literatura, do jardim de infncia at juventude. Lanam-se os dados e organizam-se as peas E o jogo, enfi m, comea!

    Sara Reis da Silvaprofessora universitria (Instituto de Educao Universidade do Minho)

    D I C I O N R I O D E L I T E R A T U R A I N F A N T I L E J U V E N I L

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    e estudou embora no goste de estudar.Na contracapa l-se que A leitura deste livro pode comear por qualquer pgina. Assim . Pode at ler-se cada poema (em prosa) pela ordem que se desejar. Todavia, a coerncia do volume no prescinde daquela ordem. Porque uns sentidos puxam outros, numa cadncia metonmica de contgio, contaminao, associao. Que relao se pode estabelecer entre o mar, o sono e o pijama? E entre este poema, que inaugura a pgina, e o que se segue, sobre bicicletas e culos? E entre um beliche e os corrimes? Rachel Caiano une todos estes elementos em torno do menino que dorme, submerso nesse mar de sonhos que vagueiam, redondos, como bolhas de oxignio, ou bolas de sabo. Mas no s na ilustrao reside a chave para esta unidade. O sono e o sonho, implicitamente, tambm esto alojados nos sentidos textuais. Mergulhar no mar do sono implica mudar de dimenso, ir em profundidade, movimentar-se; os culos e as bicicletas tm em comum a forma circular e com o poema anterior o movimento e o ato de ver de outra maneira. Assim como os sonhos no beliche que se emaranham se movimentam

    Tudo sempre outra coisaJoo Pedro MssederRachel CaianoCaminho

    Enigmtica tese, a deste ttulo, que numa metonmia natural se estender a todo o corpo do livro, supe-se. A dualidade criada pela ilustrao comea na capa e na contracapa: envolve o livro e integra-o. A linha que separa, pela cor, dois universos, remete para os dois hemisfrios geogrficos, ou cerebrais, ou ainda para o clssico mundo superior e inferior. Talvez mais do que tudo, ao observar as pernas do menino submersas pela gua, seja esta a linha que Narciso deseja aniquilar, no seu desejo de si mesmo, e que aqui se desfaz, pela mudana de estado. As pernas do menino continuam a ver-se transparncia da gua, mas agora mais escuras. A alterao de cor apenas uma, de entre as possveis: forma e volume so outras, que tambm contribuem para que tudo seja sempre, pelo menos potencialmente, outra coisa. No nos detenhamos em questes de identidade.Outra coisa uma ampliao, uma associao, uma disseminao, ou simplesmente algo outro, novo ou no, vestgio, marca, efeito. De facto, o outro pode chegar a ser indizvel, irrepresentvel, vazio no limite. Tudo sempre outra coisa no subjectiviza. Na verdade, no sabemos o que : ainda no abrimos o livro.

    Nas guardas inverte-se a posio da cor. A claridade agora inferior e a menina que recebe as gotas num copo est ali. Nas guardas finais, a mo que escreve escolhe o azul anisado no hemisfrio superior, contrastando com o avio de papel. Onde se voa, afinal? Na poesia, que abre e fecha o livro? Ou no muro da memria de infncia do poeta, que pode bem ser essa fronteira visual que acompanha todas as pginas? Esse muro misterioso que se apresenta como desafio e permite espreitar para outro lado e observar o que existe e o que se sonha existir. A poesia que uma seca, ltima metfora do texto, descrita, desnovelada em modo instrutivo, figurado tambm, em contraste com o mar, as ondas, o ribeiro, a chuva que povoam outras metforas ao longo do livro. a tal outra coisa que contraria o estado recorrente, frequente, comum das palavras e deixa uma espcie de demonstrao de tudo o que a escrita criou nas pginas anteriores. No uma lio, uma moral ou um ensinamento, at porque o mistrio do estudo reside noutro lugar: Na visita de estudo, convencido de que est a brincar, o olhar estuda, estuda sem dar por isso. Tanto estuda que, mais tarde, at d raiva ao que tanto vi