A UNIÃO EUROPEIA PÓS-NICE NA BIFURCAÇÃO: QUE...

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Isabel Anunciação Ferraz Camisão A UNIÃO EUROPEIA PÓS-NICE NA BIFURCAÇÃO: QUE CAMINHO(S)? Dissertação de Mestrado em Estudos Europeus apresentada para a obtenção do grau de Mestre em Estudos Europeus* Orientador: Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes * O presente documento é uma versão reduzida e adaptada do trabalho original (ao qual foram retirados alguns capítulos) de forma a respeitar o número máximo de páginas estabelecido pelo regulamento do concurso. Universidade do Minho Escola de Economia e Gestão Braga, 2003

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Isabel Anunciação Ferraz Camisão

A UNIÃO EUROPEIA PÓS-NICE NA BIFURCAÇÃO: QUE

CAMINHO(S)?

Dissertação de Mestrado em Estudos Europeus apresentada para a obtenção do grau de Mestre

em Estudos Europeus*

Orientador: Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes

* O presente documento é uma versão reduzida e adaptada do trabalho original (ao qual foram retirados

alguns capítulos) de forma a respeitar o número máximo de páginas estabelecido pelo regulamento do

concurso.

Universidade do Minho

Escola de Economia e Gestão

Braga, 2003

Para Isabel, São e Sara

- ii -

AGRADECIMENTOS

A tarefa que me propuz nesta dissertação não teria sido possível sem o contributo

inestimável de um conjunto de pessoas. Em primeiro lugar, uma palavra de apreço especial e

de profundo agradecimento para o meu orientador, o Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes,

cujos sábios conselhos, sempre modestamente apresentados como propostas, denotam um

singular rigor intelectual, sobejamente reconhecido no meio académico, mas que, ano após

ano, não cessa de me surpreender. O seu entusiasmo, o seu vastíssimo conhecimento dos

temas comunitários e a sua actualização permanente, fizeram da minha investigação uma

jornada empolgante, marcada pela exigência, mas também pela consciência de que para lá do

caminho percorrido fica ainda um mar de possibilidades por explorar.

Esta dissertação é, todavia, o culminar de um processo iniciado com a admissão no VI

Curso de Mestrado em Estudos Europeus da Universidade do Minho. Por esta razão, os meus

agradecimentos não estariam completos sem uma referência aos responsáveis por este curso

que, mesmo roubando horas a um merecido descanso debatendo-se com a incontornável

burocracia, insistiram em manter de pé um mestrado de reconhecido prestígio nacional. Uma

palavra ainda para os professores cujo rigor científico suscitou um olhar crítico e aprofundado

sobre a União Europeia e para os colegas cuja camaradagem proporcionou um excelente

ambiente de trabalho.

Por fim, permitindo-me uma nota de cariz mais pessoal, o meu obrigada vai também

para o meu marido, pelo apoio incondicional e pela inesgotável paciência que demonstrou ao

assumir a tarefa de imprimir o resultado das minhas intermináveis “navegações” na internet.

- iii -

RESUMO ANALÍTICO

Esta dissertação procura demonstrar em que medida os últimos anos da história

comunitária revelam uma evolução de cariz neofederal. Conclui que as inovações

introduzidas pelos três últimos tratados (Maastricht, Amesterdão e Nice) representam, embora

em escalas diferentes, um salto qualitativo na construção de uma união política alicerçada em

premissas de natureza federalizante. Não obstante, nota também que - apesar do ritmo

frenético das conferências intergovernamentais - não foi ainda possível operar a desejável

reforma de fundo do sistema comunitário, indispensável a um maior aprofundamento político

e ao ambicioso alargamento que se avizinha. Na realidade, o número de CIG’s parece mesmo

ter aumentado proporcionalmente à diminuição da sua eficácia.

Este estudo revela ainda que o pós-Nice, considerado o período de “grandes escolhas”,

surge como uma tentativa de inverter esta tendência: a aposta num debate alargado, aberto à

participação dos cidadãos e numa Convenção encarregue de redigir uma constituição para a

UE, marca o início de uma fase decisiva do projecto comunitário que, se bem sucedida,

representará o salto para um novo estádio da integração. Os modelos propostos são

heterogéneos, mas a tendência parece apontar para aquele que nomeadamente Elfriede

Regelsberger classificou de cenário federal/constitucional. Ainda assim, sublinha-se que está

nas mãos dos convencionais e dos Estados-membros produzir um texto capaz de reflectir esta

viragem; sendo que a alternativa será provavelmente mais um “estranho híbrido” talvez

incompreensível para o cidadão europeu.

Esta dissertação defende também que o federalismo comunitário – que preferimos

designar de neofederalismo - é na sua essência um federalismo aberto, alicerçado no respeito

pela diversidade e na proximidade dos cidadãos, pelo que embora recebendo “inspiração” dos

modelos federais existentes (EUA, Alemanha, Suíça), não se confunde com nenhum deles.

- iv -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Ainda assim, e mesmo não visando a construção de um superestado europeu, parece certo que

a concretização desta nova forma de organização política marcará uma transformação

qualitativa assinalável do sistema internacional, até aqui “dominado” pela centralidade do

estado-nação.

Em suma, esta dissertação conclui que a União é, e muito provavelmente permanecerá,

uma construção única, assente numa dupla legitimidade – Estados e povos - cujo sucesso

reside num modelo misto que, apesar do progressivo reforço de elementos federadores, não

negará certamente as potencialidades da cooperação intergovernamental. Por esta razão, o

neofederalismo parece apresentar-se como a melhor forma de conseguir a desejada superação

da tensão entre a Europa intergovernamental e a Europa supranacional, o mesmo será dizer

entre a associação voluntária dos Estados e o “Estado federal”. Sublinha-se, porém, que

caberá aos convencionais (e posteriormente aos líderes europeus) elaborar um figurino

institucional capaz simultaneamente de reflectir esta singularidade e de fazer uma aposta

“definitiva” no cidadão europeu, quer através do reforço da sua participação política, quer

através de uma clarificação do intrincado sistema de governação multinível da CE/UE. A

conciência plena do “para que serve a União?” desculpará certamente os eventuais

“sacríficios” do interesse nacional ditados pela pertença a uma entidade que continua sem

rival no papel de catalizador da paz, da prosperidade e da democracia no continente europeu.

- v -

ABSTRACT

This dissertation seeks to demonstrate to what extent the last years of the Community

history reveal an option for a neofederal evolution model. It concludes that the innovations of

the last three treaties (Maastricht, Amsterdam and Nice) represent, though in a different scale,

a qualitative step in the contruction of a political union build on federal premisses.

Nevertheless, it also notes that, in spite of intergovernmental conferences’ frenetic rhythm, it

has not still been possible to manage the desirable reform of the Community system, crucial

both to a bigger political deepening and to the next enlargement. In fact, the IGC’s number

seems to have increased proportionally to the decrease of its inefficacy.

This study further reveals that the post-Nice period, considered the period of the “great

choices”, appears to be an attempt to invert this tendency: the bet on a wider debate, open to

citizens, and in a Convention entruste with the writting of an EU constitution, marks the

beggining of decisive stage which, if sucessfull, will lead to a new stadium of the european

integration. The so far proposed models are heterogeneous, but the tendency seems to point

for Elfriede Regelsberger’s federal/constitutional hypothesis. Yet, this dissertation

emphasizes that it is in the conventionals’ hands to produce a text capable of reflecting this

change; being the alternative another “strange hybrid” unintelligible to the european citizen.

This dissertation posits, furthermore, that the Community federalism – which we

prefer to call neofederalism – is an open federalism built on the respect for diversity and in the

proximity to the citizens. That is why, even receiving inspiration from the existent federal

models (USA, Germany, Switzerland) it is not similar to any of them. However,

even though it is not aimed to generate a superstate, it will create a new form of political

organization that can represent a qualitative transformation of the international system, thus

far “dominated” by the centrality of the nation-state.

- vi -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

In sum, this dissertation concludes that the Union is, and probably will remain, a

unique construction, based on a double legitimacy – States and people – whose success lays

on a hibrid model which, in spite of the progressive strenghtening of the federative elements,

does not neglect intergovernmental cooperation potential. For that reason, neofederalism

seems to present itself as the best way of getting the desirable surmountableness of the tension

between intergovernmental and supranational Europe, that is to say, between a States’

voluntary association and a “federal state”. Yet, it is up to the conventionals (and afterwards

to the European leaders) to draw an institutional pattern both capable of reflecting this

European singularity and make a clear bet on the European citizen, either by reinforcing its

political participation and by clarifying the EC/EU multilevel governance. The fully

consciousness of “what the Union is for?” will most certainly excuse an eventual “sacrifice”

of the national interest, dictated by the belonging to an entity which remains without a rival as

the catalyst for peace, prosperity and democracy in the European continent.

- vii -

ÍNDICE

AGRADECIMENTOS __________________________________________________ iii

RESUMO ANALÍTICO _________________________________________________ iv

ABSTRACT ___________________________________________________________ vi

GLOSSÁRIO _________________________________________________________ xi

INTRODUÇÃO _______________________________________________________ 14

PRIMEIRA PARTE - DE MAASTRICHT A NICE: RUMO A UMA UNIÃO DE

ESTADOS OU ENTRE ESTADOS _______________________________________ 21

Capítulo I. O Tratado de Maastricht: a conclusão da integração económica como

trampolim para a integração política ______________________________________ 27

A) O aprofundamento da integração económica: na senda do federalismo monetário

________________________________________________________________ 29

B) A génese de uma união política: rumo a uma construção de tipo federal? ___ 31

1.1 A eficácia interna da União e a questão da legitimidade do projecto comunitário

_______________________________________________________________ 33

1.1.1 As principais reformas institucionais_______________________ 33

1.1.2 O processo de co-decisão ________________________________ 38

1.1.3 O princípio da subsidiariedade ____________________________ 40

1.1.4 A cidadania da União ___________________________________ 43

1.1.5 O acordo sobre a política social ___________________________48

1.1.6 Justiça e assuntos internos _______________________________50

1.2 O embrião de uma identidade externa da União no domínio político _____ 52

1.3 Conclusão: Maastricht ou a revelação de um federalismo aberto ________ 59

Capítulo II. O Tratado de Amesterdão: do mercado interno à Europa social ____62

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

2.1 A eficácia interna da União e a questão da legitimidade do projecto comunitário

________________________________________________________________ 66

2.1.1 As principais reformas institucionais: as novas disposições e a

reestruturação adiada _________________________________________ 66

2.1.2 A União e o cidadão _____________________________________71

2.1.3 A clarificação do princípio da subsidiariedade ________________ 75

2.1.4 A comunitarização de parte do terceiro pilar: o espaço de segurança,

liberdade e justiça ___________________________________________ 77

2.1.5 A “cooperação reforçada”: uma Europa de geometria variável? ___ 82

2.2 O reforço da capacidade de actuação externa da União _________________ 85

2.3 Conclusão: Amesterdão um Tratado de transição _____________________ 93

Capítulo III. O Tratado de Nice: um passo em frente, dois atrás? ______________ 96

3.1 A eficácia interna da União e a questão da legitimidade do projecto comunitário

_______________________________________________________________ 99

3.1.l As principais reformas institucionais ________________________ 100

3.1.2 Um reforço tímido da Europa dos cidadãos _________________ 114

3.1.3 Um passo limitado para a Europa social ____________________ 116

3.1.4 Uma maior operacionalização da “cooperação reforçada” ______ 117

3.1.5 Um resultado muito modesto no terceiro pilar _______________ 119

3.2 A identidade externa da União: o perpetuar do abismo entre os avanços de jure e

os avanços de facto_____________________________________________________ 120

3.3 O “processo” de constitucionalização: a Carta dos Direitos Fundamentais da

União Europeia__________________________________________________127

3.4 Conclusão: uma (re)avaliação de Nice ____________________________ 130

SEGUNDA PARTE – NICE E O PÓS-NICE: QUE CENÁRIOS PARA A NOVA

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Índice

EUROPA? __________________________________________________________ 133

Capítulo IV. A Declaração de Laeken: uma nova oportunidade? _____________ 135

4.1 O projecto da Declaração: um documento ambicioso _________________ 135

4.2 A Declaração adoptada: o recuo na ambição federal _________________ 137

4.3 Conclusão: uma “Declaração histórica” ou uma “Declaração biodegradável”?

_____________________________________________________________ 141

Capítulo V. A Convenção Europeia _____________________________________ 143

5.1 O porquê da convocação de uma convenção? ______________________ 144

5.2 Composição e regras de funcionamento da Convenção _______________ 148

5.3 A Reforma institucional: as principais propostas em debate ___________ 151

5.3.1. A Comissão Europeia ___________________________________ 152

5.3.2. O Conselho de Ministros ________________________________ 157

5.3.3. O Parlamento Europeu _________________________________ 163

5.3.4. A presidência da União __________________________________ 165

5.4 Conclusão: o projecto de constituição – uma breve nota _____________ 174

CONCLUSÃO ______________________________________________________178

BIBLIOGRAFIA ___________________________________________________ 187

- x -

GLOSSÁRIO

Siglas e Acrónimos mais usados:

CIG Conferência Intergovernamental

PE Parlamento Europeu

PESC Política Externa e de Segurança Comum

TCE Tratado da Comunidade Europeia

TUE Tratado da União Europeia

UE União Europeia

Lista Geral:

AUE Acto Único Europeu

CECA Comunidade Europeia do Carvão e do Aço

CED Comunidade Europeia de Defesa

CEEA Comunidade Europeia da Energia Atómica (EURATOM)

CES Comité Económico e Social

CIG Conferência Intergovernamental

CMUE Comité Militar da União Europeia

COSAC Conferência dos Órgãos dos Parlamentos Especializados em

Assuntos Europeus

CPE Cooperação Política Europeia

CPS Comité Político e de Segurança

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

EMUE Estado-Maior da União Europeia

Eurojust Unidade Europeia de Cooperação Judicial

EUA Estados Unidos da América

FERR Força Europeia de Reacção Rápida

GATT General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Mundial do Comércio)

IESD Identidade Europeia de Segurança e Defesa

JAI Justiça e Assuntos Internos

NATO North Atlantic Treaty Organization (Organização do Tratado do Atlântico

Norte)

OSCE Organização para a Segurança e Cooperação na Europa

PE Parlamento Europeu

PECSD Política Europeia Comum de Segurança e Defesa

PESC Política Externa e de Segurança Comum

SEBC Sistema Europeu de Bancos Centrais

SME Sistema Monetário Europeu

TUE Tratado da União Europeia

TCE Tratado da Comunidade Europeia

UE União Europeia

UEM União Económica e Monetária

UEO União da Europa Ocidental

vmq votação por maioria qualificada

- xii -

“(...) a utopia europeia em marcha foi, é, a resposta que se nos

impôs ou impôs às nações pilotos dessa mesma Europa para

domesticar, e desta vez, de mútuo acordo, a sua intrínseca barbárie, a

sua demoníaca inquietude que fez delas (e de nós) o Fausto da

história universal” (Lourenço 2001, 239) [ênfase no original].

- xiii -

INTRODUÇÃO

Durante a última década a União Europeia tem procurado responder de forma positiva

ao novo cenário geopolítico e estratégico decorrente da queda do Muro de Berlim e da

desintegração do império soviético. As soluções encontradas, plasmadas em três novos

tratados (Maastricht, Amesterdão e Nice), marcam um ciclo histórico que conferiu ao

processo de integração um renovado alento. Não obstante, em vésperas de um novo

alargamento1, a Europa continua à procura de um rumo: Como funcionará a “Grande

Europa”? Que forma de governação adoptará? Que modelo político – confederal, federal,

misto, ou outro – preconiza? As grandes questões de fundo parecem permanecer sem resposta

e a nova balança institucional emergente em Nice parece mais apta a proporcionar

interrogações do que a conferir a indispensável estabilidade.

Apesar de ter cumprido o seu principal objectivo – remover os obstáculos

institucionais ao próximo alargamento – o mais recente Tratado, longe de contribuir para

clarificar o estado da União, veio acrescentar-lhe novas ambiguidades. As reformas previstas,

em vez de facilitar, parecem dificultar a eficiência da actuação comunitária e a nova balança

de poder deixa adivinhar uma hierarquização dos Estados (com clara vantagem dos

“grandes”) que contraria claramente a máxima comunitária da igualdade jurídica entre os seus

membros. Apelidado por alguns de “fracasso completo”, o Tratado que abriu caminho à

1 Reunidos em Copenhaga a 12 e 13 de Dezembro de 2002, os chefes de Estado e de governo completaram o ambicioso processo iniciado em 1993 (também em Copenhaga) ao concluírem as negociações de adesão com dez dos treze países candidatos a membros da União. Como resultado, ao “clube europeu” juntar-se-ão, a partir de 01 de Maio de 2004, Chipre, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, República Eslovaca e Eslovénia, a tempo, portanto, de poderem participar nas eleições para o PE que terão lugar em Junho do mesmo ano. De fora desta nova ronda do alargamento ficarão, por enquanto, a Bulgária, a Roménia e a Turquia. Quanto aos dois primeiros, e de acordo com o definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas (24 e 25 de Outubro de 2002), a União aponta como data provável de adesão o ano de 2007. Já no que respeita à Turquia, as previsões do Conselho Europeu de Copenhaga são mais cautelosas. Assim, malgrado a grande pressão para o início imediato das negociações de adesão com o Estado turco, particularmente por parte dos EUA, os líderes europeus acordaram que tais negociações ficarão dependentes de uma apreciação positiva das reformas levadas a cabo na Turquia, pelo conselho europeu de Dezembro de 2004 (que decidirá com base num relatório e numa recomendação apresentados pela Comissão).

- 14 -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

adesão de dez novos Estados foi alvo de um processo de ratificação conturbado, tendo mesmo

sido rejeitado num primeiro referendo realizado na Irlanda. Ainda assim, o seu resultado

modesto encontra explicação, pelo menos em parte, num mandato excessivamente limitado da

CIG (herdado de Amesterdão), cujo produto dificilmente poderia ir além de um “Tratado

pequeno” que deixou sem resposta questões de importância vital para o futuro do projecto

europeu2. Assim parecem ter entendido também os chefes de Estado e de governo, em

especial, quando resolveram juntar à acta final da CIG 2000 a “Declaração respeitante ao

futuro da Europa” que chama a atenção para a necessidade de um debate alargado e aberto

sobre o desenvolvimento futuro da União e aponta algumas das questões para as quais se

torna imperativo encontrar uma solução, como sejam: a delimitação de competências entre os

Estados e a União e a consequente clarificação do, ainda algo ambíguo, princípio da

subsidiariedade; o estatuto da Carta dos Direitos Fundamentais; a simplificação dos tratados3

e o papel dos parlamentos nacionais na arquitectura europeia. Pelo exposto, Nice só parece

fazer sentido se entendido como um ponto de partida para uma discussão mais ampla e

aprofundada sobre o futuro de uma União que se quer mais transparente, mais democrática e

mais próxima do cidadão (o aprofundamento da cidadania europeia deverá constituir, aliás,

um ponto chave da reflexão em curso)4.

2 De facto, Nice deixou sem resposta questões que se prendem directamente com a natureza do projecto europeu e que implicam uma reflexão aprofundada sobre matérias tão diversas como o método comunitário, o (des)equilíbrio institucional, a personalidade jurídica da União (ou a ausência dela), a redacção de um texto constitucional ou o papel da União no mundo, apenas para referir algumas. A confirmar isto mesmo está o documento intitulado “Um Projecto para a União Europeia”, apresentado pela Comissão Europeia à Convenção sobre o futuro da Europa, onde pode ler-se: “[E]m Nice, em Dezembro de 2000, os Estados-Membros tomaram as decisões necessárias para assegurar, de um ponto de vista técnico, a adesão de novos Estados. Mas o sentido da integração europeia ou a dimensão do que pretendemos construir em conjunto não foram objecto de debate” (COM (2002) 247 final, 3) [sublinhado nosso]. 3 Questão que surge inevitavelmente ligada à oportunidade de elaborar um texto constitucional. O lançamento das bases de uma constituição europeia foi, aliás, o ponto mais negligenciado durante as negociações que antecederam o novo Tratado. Demasiadamente preocupados com as questões institucionais, os participantes na CIG 2000 pareceram esquecer a importância de definir para onde caminha a União, sendo que, curiosamente, a resposta a esta questão nos parece indispensável para que se possam desencadear quaisquer reformas de fundo (incluindo as institucionais). 4 A este propósito não poderíamos deixar de citar as palavras de António Barreto que, no prefácio à edição portuguesa do livro de Philippe de Schoutheete Uma Europa para Todos, escreveu: “[A] Europa não será

- 15 -

Introdução

O debate iniciado ainda no decorrer da conferência intergovernamental, em grande

medida graças ao hipermediático discurso de Joschka Fischer5, conta já com inúmeras

contribuições de relevo. As soluções para a futura arquitectura europeia são variadas e,

algumas delas, mesmo juridicamente incongruentes (veja-se, a título de exemplo, o aparente

paradoxo que representa a ideia de uma Federação de Estados-nação que, não obstante, nos

parece ser uma das mais apropriadas6). Ainda assim, e malgrado as divergências

provavelmente irreconciliáveis que marcam algumas das propostas, as diversas fórmulas

encontradas para um possível modelo eurocomunitário parecem gravitar, quase

invariavelmente, em torno de um certo “federalismo revisitado” ou, talvez mais

correctamente, de um modelo neofederal.

Na verdade, o facto de a União apresentar já características de recorte federal tornou-

se uma realidade aparente (lembre-se, por exemplo, a existência de federalismo monetário),

muito embora a ideia de uma Federação esteja longe de ser consensual. É reconhecido que a

doutrina federalista permite demasiada “elasticidade” na interpretação dos seus princípios e a

noção “clássica” de federalismo (mais próxima do modelo americano) parece ser aquela que

predomina ainda em muitos dos espíritos, fazendo esquecer o aparecimento de um novo

federalismo europeu, tendencialmente descentralizador. A interrogação central reside,

portanto, no modelo político a adoptar para uma União muitas vezes apelidada de sui generis,

duradoura, ágil e segura enquanto não estiver inscrita e livre no espírito dos cidadãos”. Esta é, de facto, uma realidade incontornável. É verdade que os cidadãos reclamam “mais Europa” em domínios como a preservação da paz e da segurança, a luta contra o desemprego e contra as descriminações sociais, a protecção do ambiente, ou a actuação externa da União. Mas não é menos verdade que este desejo é muitas vezes ensombrado pela sua desconfiança em relação ao funcionamento da “máquina” comunitária. A consequência lógica é um recrudescer de um eurocepticismo, cujo combate deve ser uma prioridade para todos os que aspiram ao sucesso da integração europeia. Ao reconhecerem que o projecto europeu só poderá avançar com o apoio dos cidadãos, os líderes europeus deram já o primeiro passo; cabe-lhes agora garantir que os verdadeiros destinatários desta grande “empreitada” possam compreender melhor e intervir activamente no desenrolar deste processo. 5 Universidade de Humboldt, 12 de Maio de 2000. 6 Ainda que a nossa “preferência” recaia numa “Federação de Estados e cidadãos”. De facto, embora a fórmula originalmente apresentada por Jacques Delors encerre uma ideia de “respeito pela diversidade” que não poderíamos deixar de sublinhar, importa igualmente chamar a atenção para o facto de o conceito de “estado-nação” poder não traduzir correctamente a realidade europeia. Na verdade, em rigor, parece-nos legítimo questionar se a Europa será constituída apenas por Estados-nação, ou mesmo se não existem na Europa mais nações que Estados?

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

caracterizada por uma governação multi-nível (supra-nacional, nacional e sub-nacional), que é

também uma comunidade de cidadãos (pelo menos em letra de tratado), que possui uma

moeda única, mas que não tem ainda uma defesa comum ou um orçamento adquirido por

meios directos (falamos evidentemente de federalismo fiscal) que lhe confira uma real

autonomia financeira.

O Conselho Europeu de Laeken7, que se esperava pudesse trazer uma contribuição

significativa para o debate em curso, foi, em nossa opinião, bastante menos inovador do que

se previa (graças, em grande medida, à não aceitação, por parte de alguns Estados, dos ideais

federalistas presentes na primeira versão do documento elaborado pela presidência belga da

UE8). Porém, se não foram ainda avançadas soluções, foi pelo menos possível “oficializar” as

inúmeras interrogações às quais urge dar resposta. O seu principal mérito residiu, sobretudo,

na convocação de uma convenção europeia9 à qual foi confiada a missão de “debater os

problemas essenciais colocados pelo futuro desenvolvimento da União e analisar as diferentes

soluções possíveis”. Espera-se que, partindo das reflexões desta convenção, a próxima

conferência intergovernamental (agendada para Outubro de 2003) possa encontrar um modelo

de evolução que permita solidificar e aprofundar o processo de integração europeia

transformando o - até agora - anão político num gigante capaz de igualar a sua, já

incontestável, grande dimensão económica.

Parece-nos, assim, que, pesem embora os actuais problemas conceptuais, e de

classificação, a especificidade desta construção europeia10 não deverá impedir-nos de reflectir

7 14 e 15 de Dezembro de 2001. 8 Nesta primeira versão do documento apresentado no Conselho Europeu de Laeken, a presidência belga da UE defendia mesmo a necessidade de “reinventar a Europa”. 9 Método já anteriormente adoptado com sucesso para a redacção da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 10 Especificidade que, aliás, cumpre preservar já que ela explica, em nossa opinião, boa parte do sucesso da integração europeia. Como se pode ler na comunicação da Comissão “Um Projecto para a União Europeia” (COM (2002) 247 final, 4), “[S]erá necessário preservar esta singularidade onde cabe à União colocar em prática as políticas comuns mais concretas e realizar, em simultâneo, algumas das missões fundamentais dos Estados sem se tornar um Estado. Porque a construção europeia não obedece a nenhum modelo preexistente. Porque estas especificidades explicam e condicionam o seu sucesso” [ênfase nossa].

- 17 -

Introdução

sobre o seu futuro, devendo antes impelir-nos para uma tentativa de reconceptualização e

reorganização que se nos afigura indispensável na presença desta nova realidade, que continua

a apresentar-se, hoje, como a melhor solução para garantir a paz e a prosperidade do velho

continente11. Este é, na realidade, o objectivo que preside à elaboração da presente

dissertação. Estabelecendo como hipótese central de trabalho a proposição que a União

Europeia caminha para um modelo político de recorte neofederal, procuraremos analisar o

desenvolvimento da vertente política da União no pós-Maastricht (conferindo particular

destaque às alterações introduzidas pelo Tratado de Nice) e traçar um cenário de evolução

europeia, adequado a uma Europa cuja unificação se afigura, hoje, uma possibilidade real.

Estamos conscientes que, pela sua originalidade, o processo de integração europeia

suscita inevitavelmente um grande número de dúvidas metódicas e interrogações (e a

edificação de uma união política, até pela ambiguidade construtiva a que temos assistido, não

é disto excepção). O leque de questões que permanecem em aberto é alargado, bastando

lembrar que está em jogo encontrar um modelo que permita a uma União alargada manter a

capacidade de decisão e a coesão necessárias ao cumprimento das suas missões

fundamentais12, e que, consequentemente, torne possível prosseguir o aprofundamento da

construção comunitária. Não obstante, optamos por formular três interrogações que,

reportando à proposição mais geral do modelo político comunitário acima enunciada, nos

parecem poder melhor sistematizar a ampla problemática que envolve o tema em análise.

11 Como sublinham Jean-Michel Gaillard e Anthony Rowley (1998, 528) “[S]i l’Europe, aujourd’hui réunifiée, cherche la voie d’une nouvelle combinatoire pour assurer la paix entre ses peuples, retrouver une prospérité et une solidarité entamées par un quart de siècle de crise économique, renouer avec la puissance dans um monde d’États-continents où chacune de ces nations n’a pas à l’évidence les moyens de tirer son épingle du jeu, c’est sans doute parce qu’elle sent confusément qu’un retour à l’Europe des nations et à ses concerts et partitions déjà jouées est plus dangereux pour son avenir que l’édification d’un espace solidaire qui pourrait prendre la forme des ‘Etats-Unis d’Europe’”. 12 Num documento apresentado à Convenção sobre o futuro da Europa intitulado “Para a União Europeia, Paz, Liberdade, Solidariedade – Comunicação da Comissão sobre a arquitectura institucional” (CONV 448/02, 3), a Comissão identifica três missões fundamentais para a União do futuro: “a consolidação do seu modelo de desenvolvimento económico e social que garante aos cidadãos prosperidade e solidariedade; o desenvolvimento do seu espaço de liberdade, de segurança e de justiça que conferirá todo o seu significado à noção de cidadania europeia e o exercício pela União das responsabilidades de uma potência mundial”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Assim, permitirão as modificações introduzidas pelos três últimos Tratados (Maastricht,

Amesterdão e Nice) antever a opção pela via neofederal? Qual a estrutura política adequada a

uma União que ambiciona ser um factor de estabilização e uma referência no novo sistema

internacional, mas que poderá ver, em apenas alguns anos, duplicar o seu número de

membros? Qual o papel atribuído aos cidadãos no avanço do projecto europeu?

Encontradas as interrogações que servirão de guia à nossa investigação, procuraremos

de seguida fazer uma breve exposição da estrutura deste trabalho e da metodologia adoptada.

Por uma questão de clareza e simplicidade optamos por dividir este estudo em duas partes.

Assim, começaremos, num primeiro momento, por fazer uma análise das repercussões dos

três últimos tratados (Maastricht, Amesterdão e Nice) na evolução do modelo político

comunitário, a que se seguirá, uma segunda parte dedicada ao debate político em curso (com

particular destaque para os trabalhos da Convenção sobre o futuro da Europa), e aos possíveis

cenários para a nova Europa.

Antes de prosseguir importa, porém, fazer uma breve referência à metodologia a

seguir. Em primeiro lugar, e no que às fontes diz respeito, utilizaremos fontes primárias e

secundárias. Assim, analisar-se-ão quer documentos emanados das instituições e órgãos da

Comunidade (tratados, acordos, protocolos, relatórios, etc) quer obras de conceituados

especialistas, recorrendo-se para tal aos métodos tradicionais de análise de documentos

(análise interna e externa). Já no que concerne à perspectiva de investigação e análise

recorrer-se-á, preferencialmente, à perspectiva sistémica13, que nos parece a mais adequada,

por ser aquela que consagra a importância das estruturas políticas, económicas, sociais e 13 A perspectiva sistémica teve a sua origem na biologia com os trabalhos de Bertalanffy sobre a célula, tendo sido posteriormente introduzida nas ciências sociais por Talcott Parsons. A sua aplicação ao estudo dos fenómenos políticos ficou a dever-se, sobretudo, a David Easton, cuja obra influenciou os trabalhos de Karl Deutsch e de Jean-William Lapierre, que viriam a contribuir notavelmente para o desenvolvimento desta perspectiva. Sendo uma espécie de síntese das outras perspectivas de investigação (tendências individuais, racionalista, funcionalista) a perspectiva sistémica é o resultado de um esforço para construir “um método acima dos estudos fragmentários, dotado de um conjunto de conceitos operacionais aptos a orientar a investigação de qualquer modelo, com validade teórica geral” (Fernandes 1995, 154). Para uma exposição detalhada das diversas perspectivas de investigação e análise ver António José Fernandes. 1995. Métodos e Regras para a Elaboração de Trabalhos Académicos e Científicos. 2ª ed. Porto: Porto Editora.

- 19 -

Introdução

culturais na produção dos fenómenos. Finalmente, uma última nota respeitante à visão

orientadora do discurso. Tendo baseado a nossa hipótese de trabalho na existência de um novo

federalismo europeu, tornar-se-á inevitável a procura de uma perspectiva (neo)federalista da

União, ainda que temperada por um neo-realismo explicativo da sua, também, vertente

intergovernamental.

- 20 -

PRIMEIRA PARTE

DE MAASTRICHT A NICE: RUMO A UMA UNIÃO DE ESTADOS OU ENTRE

ESTADOS?

“(…) se não ultrapassarem o quadro estreito dos Estados-nações,

para progredirem na via de uma Europa não só comercial,

económica ou monetária, mas também social, cultural e política, os

Estados-nações europeus não conseguirão evitar o declínio que os

espreita. Mas o naufrágio da Europa política seria também o

naufrágio dos Estados-nações europeus. Sabê-lo e dá-lo a conhecer

não é já evitá-lo?” (Richonnier 1986, 225).

Durante os últimos anos do Século XX o mundo assistiu algo surpreso a uma profunda

transformação da ordem internacional, galvanizada por uma acelerada globalização

económica e financeira e pelo desmoronamento da ordem estratégica da Guerra Fria. As

mudanças no jogo das relações internacionais obrigaram os seus principais actores a envidar

esforços de adaptação à nova realidade e a Comunidade Europeia não constituiu excepção. De

facto, a conjuntura que marcou a última década da integração europeia é radicalmente

diferente da vivida aquando da assinatura do Tratado de Paris. Nascido no rescaldo da

Segunda Guerra Mundial, com o objectivo de reerguer das cinzas um continente mergulhado

numa profunda desarticulação económica e numa crise de valores, através da unificação

gradual dos países europeus, o projecto europeu avançou dinamizado por um conjunto de

forças externas (o apoio dos EUA, a ameaça militar representada pela União Soviética e uma

crise económica cíclica); pela convergência de posições nacionais; e, ainda, pela emergência

- 21 -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

de uma espécie de identidade comum que aproximou as elites europeias levando-as a partilhar

códigos socioculturais de normas e valores14. Gradualmente, foi, pois, ganhando forma um

modelo institucional tendencialmente centralizado, que misturava ambições federalistas com

pragmatismo político, e era caracterizado por uma dinâmica própria, assente num alternar

entre soluções nacionais e europeias e na tensão permanente entre aprofundamento e

alargamento.

Quase meio século mais tarde, a filosofia da construção europeia sofreu uma

significativa mutação. As transformações económicas e geopolíticas determinaram uma

redefinição das funções da União, quer para os Estados-membros, quer para os cidadãos, e a

consequente alteração do modelo institucional europeu:

“[A] une intégration visant essentiellement à la suppression de barrières et de normes

nationales, c’est-à-dire une ‘intégration négative’ (Scharpf), se substitue un projet à

connotation politique extrêmement forte, dont les traités de Maastricht et Amsterdam

ont constitué le tournant (Telò et Magnette), et que l’on peut qualifier de ‘intégration

positive’” (Magnette et Remacle 2000, 8) [sublinhado nosso].

O mesmo será dizer, como Sidjanski (1996, 220) que “[Q]uarenta anos de integração

económica abriram a via à integração política”. De facto, as sucessivas etapas da integração

económica, iniciada com a gestão comum do carvão e do aço, passando pela criação de uma

união aduaneira, seguida do mercado comum e, mais tarde, do mercado único e coroada pela

união económica e monetária, transformaram a União num verdadeiro “gigante económico”.

Mas foi precisamente a consciência da grandeza da União neste domínio que, em nossa

opinião, tornou incomportável o seu “nanismo político”. Não será, portanto, de estranhar que,

nos últimos anos, a inscrição na agenda europeia de questões como a moeda única, a

cidadania da União, os direitos sociais, a segurança e a defesa ou a justiça sejam apenas

14 Cf. Paul Magnette et Eric Remacle, ed. 2000. Le Nouveau Modèle Européen. Vol. 1. Bruxelles: Editions de l’Université de Bruxelles.

- 22 -

Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

exemplos da assinalável “politização” da União, secundada, curiosamente, por um crescente

descontentamento dos cidadãos face à tecnicidade e “opacidade” do processo comunitário. O

tempo de uma construção europeia empreendida e, diríamos mesmo, compreendida, apenas

pelas elites parece ter chegado ao fim. Como sublinhou enfaticamente Francisco Lucas Pires

(1992, 117-118):

“[F]altaria talvez um maior nível de legitimação democrática, capaz de alargar o

consenso que, além de baseado no ‘interesse comum’, terá de se fundar cada vez mais,

também, na ‘vontade comum’. Na verdade, além da crise do determinismo histórico,

começa igualmente a estar em causa um certo determinismo tecnocrático da

construção, a que já é preciso, pois, abrir vias de justificação e consentimento pelos

cidadãos” [ênfase nossa].

O grande sinal do redimensionamento dos objectivos da Comunidade é-nos dado, primeiro

pela assinatura do Acto Único Europeu (AUE) - que marca, no entender de muitos

especialistas da temática comunitária, o início de uma nova fase no processo de integração

europeia - e depois confirmado pelo Tratado de Maastricht, que “deixando cair” o

qualificativo “Económica” da Comunidade Europeia e criando as bases de uma União, que se

ambiciona política, simboliza uma mudança fundamental nas aspirações da construção

europeia15. Embora as interpretações sobre a importância deste último Tratado se dividam

entre os que o consideram um verdadeiro salto qualitativo e os que o vêem apenas como uma

simples etapa para a união política, parece inegável o seu papel de motor da integração

política: “[E]n les rapatriant dans une structure générale, le traité de Maastricht donnait le

signal d’un élargissement des objectifs de la construction européenne, qui n’était plus

seulement un projet économique limite mais, au moins en puissance, une Union politique”

(Magnette et Remacle 2000, 11). Por outro lado, como sublinham ainda os mesmos autores

15 Cf. Magnette et Remacle, obra citada, 10.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

(2000, 12), o período que se abriu com o Tratado de Maastricht transformou a própria

dinâmica da integração, ao introduzir um novo ritmo no processo de reforma dos tratados. As

conferências intergovernamentais (CIG’s) sucederam-se a um ritmo nunca antes visto16,

concentrando-se cada vez menos nos “grandes compromissos” e cada vez mais nos “pequenos

detalhes”. Disso mesmo são prova os tratados que se seguiriam: Amesterdão e Nice. Face aos

resultados desta “febre revisionista”, afigura-se-nos, contudo, legítimo perguntar se não seria

mais útil olhar menos para os pequenos pormenores e mais para as grandes orientações de

fundo que deveriam conduzir a União17. Até porque, se o Tratado de Amesterdão ainda é

considerado na generalidade “a bigger step in the development of the Union” o seu sucessor é

visto, mesmo entre os mais optimistas, como “a smaller one” (Monar 2001, 333). Com mais

uma CIG à vista - agendada para Outubro de 2003 - não admira, por conseguinte, que na

ordem do dia estejam questões de fundo tais como os objectivos e a forma finais daquela que

no Preâmbulo do TUE é definida como “uma união cada vez mais estreita entre os povos da

Europa”. O debate está lançado e são muitas e variadas as propostas já avançadas. Por agora,

tentaremos localizar qual o significado das alterações introduzidas pelos três tratados aqui

mencionados (Maastricht, Amesterdão e Nice) e qual a tendência (ou tendências) de evolução

que tais modificações deixam antever. Por não caber nos nossos propósitos uma enumeração

exaustiva de todas as inovações que foram sendo institucionalizadas pelos referidos tratados

procuraremos centrar a nossa atenção em dois vectores de análise: a eficiência interna da

União (reforma institucional, processo de tomada de decisão e proximidade do cidadão); e a

sua capacidade de actuação externa.

16 No espaço de apenas dez anos foram realizadas três conferências intergovernamentais, estando já prevista a próxima para Outubro de 2003. 17 Numa altura em que se debate a necessidade de uma constituição europeia, este assunto ganha especial relevo, já que de um tratado constitucional se espera uma definição das grandes orientações e objectivos, deixando a descrição detalhada para o direito derivado. Nesta medida, ao contrário dos textos comunitários, os textos constitucionais são relativamente curtos e não contemplam uma descrição exaustiva dos aspectos particularmente técnicos ou específicos. A este propósito veja-se, por exemplo, Paulo Vila Maior. 1997. A Europa e os Desafios do Século XXI: Visão Crítica dos Tratados de Maastricht e de Amesterdão. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 48-57.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Antes de avançarmos, não poderíamos, contudo, deixar de dedicar algumas linhas à

primeira grande reforma dos tratados comunitários operada pelo Acto Único Europeu18.

Surgindo como uma tentativa de inverter o período de crise vivido pela Comunidade desde

finais da década de 70, mas também como resposta aos novos desafios externos, o AUE

representou a abertura de uma nova fase na construção europeia: “[A] emergência do Acto

Único apagaria de resto tais quezílias, imprimindo um espírito de novo arranque e maior

celeridade de acordo” (Lucas Pires 1992, 112). Entre os seus principais objectivos contou-se o

aperfeiçoamento do mercado comum, através de provisões que permitiriam realizar um

verdadeiro mercado interno sem obstáculos, nem fronteiras. Todavia, longe de se esgotar

nestas disposições, o novo Tratado introduziu também outras importantes modificações, com

particular destaque para a codificação da cooperação política externa (realizada à margem dos

tratados desde 1969) e para a alteração do processo de decisão19.

Não podendo ser apelidado de “un texte majeur” (Jacques Leprete 1996, 138) o Acto

Único é indubitavelmente um marco na história da construção europeia20, até porque, não

tendo sido propriamente “revolucionário”, representou um novo comprometimento por parte

dos Estados-membros com os ideais comunitários, após um período de alguma letargia.

Dusan Sidjanski21 vai, no entanto, mais longe, ao considerar que este tratado marca uma

viragem federalista, confirmada pela substituição gradual da inicial visão uniformizadora, por

uma nova concepção que procura uma gestão em comum da diversidade dos Estados e das

regiões da Comunidade. Quer isto dizer que a ambição inicial de criar um conjunto de normas

18 A designação de Acto Único Europeu resulta do facto de o Conselho Europeu ter decidido reunir num acto único as duas vertentes das negociações que antecederam a elaboração do tratado – cooperação política e alterações aos tratados de Roma. Para uma exposição mais detalhada sobre as implicações deste Tratado ver, por exemplo, Manuel Carlos Lopes Porto. 1988. Do Acto Único à “Nova Fronteira” para a Europa. Coimbra: Almedina. 19 Nomeadamente através generalização da maioria qualificada no quadro das Comunidades Europeias e da introdução do procedimento de cooperação que reforçou, ainda que limitadamente, os poderes do PE. 20 “(...) pese embora a insatisfação de quem desejaria que se tivesse ido mais longe, veio a constituir por seu turno um marco institucional na história da Comunidade a aprovação do Acto Único Europeu (...)” (Porto 1988, 4) [sublinhado nosso]. 21 Cf. Dusan Sidjanski. 1996. O Futuro Federalista da Europa: a Comunidade Europeia das Origens ao Tratado de Maastricht. Lisboa: Gradiva, 136-140.

- 25 -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

comuns, se possível uniformes, foi substituída pela ênfase na coordenação e numa maior

descentralização: “[A] rigidez inicial da regulamentação e da intervenção comunitárias é

substituída por uma política e uma acção mais flexíveis, melhor adaptadas e com mais

respeito pelas diversidades e riquezas da Europa” (Sidjanski 1996, 137).

Em jeito de conclusão, diríamos, com Jean-Louis Quermonne (1998, 28) que “vu

rétrospectivement, l’Acte Unique européen appairaîtra-t-il, comme le point de passage obligé

vers le Traité de Maastricht”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Capítulo I

O Tratado de Maastricht: a Conclusão da Integração Económica como Trampolim para

a Integração Política

A nova ordem mundial22, ditada pela queda dos regimes comunistas do centro e leste

da Europa e pela unificação alemã que se seguiu, levou os líderes europeus a acelerar o ritmo

das reformas já ponderadas. Confrontada simultaneamente com uma responsabilidade que lhe

era exigida na cena internacional e com a possibilidade de alargamento das suas fronteiras, a

Comunidade compreendeu que não poderia continuar a reagir em termos puramente

económicos. A sua resposta apareceu sob a forma de um novo tratado, assinado em

Maastricht a 7 de Fevereiro de 1992, que, ao mesmo tempo que operava a segunda revisão

dos tratados institutivos das comunidades, introduzia uma nova arquitectura na construção

europeia23.

Longe de ser consensual24, o Tratado de Maastricht foi o resultado de acalorados

22 Na opinião de Roy Pryce (1994, 4) trata-se mesmo de um período de “(...) continuing, if not greater, disorder [já que] the relative stability of détente has been followed by disintegration, a revival of nationalism, and near anarchy in many parts of the failed empire and its appendages”. 23 Ao instituir uma nova arquitectura na construção europeia, o TUE tornou necessário distinguir a aplicação dos tratados nos dois âmbitos que passam a coexistir: Comunidade Europeia e União Europeia. Assim, “[A] União tem por missão organizar de forma coerente e solidária as relações entre os Estados-Membros e entre os respectivos povos” (artigo A TUE); “[A] União atribui-se os seguintes objectivos: a progressão de um progresso económico e social equilibrado e sustentável (...); a afirmação da sua identidade na cena internacional (...); o desenvolvimento de uma estreita cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos; a manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu desenvolvimento (...). Os objectivos da União serão alcançados de acordo com as disposições do presente Tratado (...)” (artigo B TUE). Já a Comunidade Europeia “tem como missão, através da criação de um mercado comum e de uma União Económica e Monetária e da aplicação das políticas ou acções comuns a que se referem os artigos 3º a 3ºA, promover, em toda a Comunidade, o desenvolvimento harmonioso e equilibrado das actividades económicas, um crescimento sustentável e não inflacionista que respeite o ambiente, um alto grau de convergência dos comportamentos das economias, um elevado nível de emprego e de protecção social, o aumento do nível e da qualidade de vida, a coesão económica e social e a solidariedade entre os Estados-Membros” (artigo 2º TCE, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo g.2 TUE). Em suma, cabem à Comunidade Europeia as actividades no âmbito do primeiro pilar, e à União Europeia as actividades no quadro dos segundo e terceiro pilares, ainda que deva notar-se que, ao contrário daquela, a UE não tem (ainda) personalidade jurídica, pelo que não pode ser sujeito de direito internacional (esta é, aliás, uma das questões em debate na Convenção sobre o futuro da Europa, apontando as conclusões do Grupo de Trabalho sobre o tema para a necessidade de atribuir uma personalidade jurídica única à União como um todo). 24 Prova disto foi também o surpreendentemente difícil processo de ratificação deste Tratado (atrasado por uma rejeição por referendo na Dinamarca e pelas dúvidas quanto à sua compatibilidade com a Constituição alemã).

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

debates que uma vez mais puseram em evidência a permanente tensão entre aqueles que

ambicionam um maior desenvolvimento dos elementos federalistas da união e os que estão

determinados a contrariar tal tendência. O acordo possível foi uma espécie de “meio termo”

entre as duas visões, que assumiu a forma de uma estrutura de três pilares, onde um pilar

comunitário coexiste com dois intergovernamentais (Política Externa e de Segurança Comum,

e Justiça e Assuntos Internos)25. Revelando uma clara clivagem entre a dimensão económica,

com uma dominante comunitária, e a dimensão política, com predominância

intergovernamental, este modelo é nas palavras de Roy Pryce “a curious hybrid, which is even

more sui generis than the Community itself”26.

Ainda assim, e apesar dos pontos fracos e lacunas deste Tratado, somos tentados a

convergir com Sidjanski (1996, 224) quando afirma que “[A]o mesmo tempo que mantém a

distinção entre os domínios comunitários e os domínios da cooperação política, o Tratado de

Maastricht confirma na essência a ‘vocação federal’ da União [já que esta embora] sacrificada

na forma, afirma-se no fundo e no espírito do Tratado”. Também Lucas Pires (1992, 115)

sugere claramente que, com Maastricht, a Comunidade “rompe o tabu da política” e anuncia a

criação de uma União Europeia: “estádio superior mas não ainda último da almejada unidade,

cujo desígnio final nunca é, aliás, designado e subsiste não se sabe se como um happy-end,

mas seguramente, como um open-end” [ênfase no original].

Cf. Andrew Duff. 1994. “Ratification”. In Maastricht and Beyond, ed. Andrew Duff, John Pinder and Roy Pryce. London: Routledge, 53-68. 25 Como sublinha Philip Ruttley (2002, 247) “[T]he history of European integration since 1945 has been dominated (...) by two currents: a strong vision of European federalism relying on supranational institutions, and a determination to preserve national identity and sovereignty expressing itself in a preference for intergovernamentalism. These conflicting tensions were not buried at Maastricht. Instead, they were enshrined and institutionalized, creating rather confusing mixture of supranationalism and intergovernamentalism” [sublinhado nosso]. 26 Cf. Pryce in Duff, Pinder and Pryce, eds. 1994, 10-11.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

A) O aprofundamento da integração económica: na senda do federalismo monetário

A maior conquista do Tratado de Maastricht no domínio económico foi, a fortiori,

definir como objectivo a criação de uma União Económica e Monetária (UEM), estabelecendo

para tal um calendário e um conjunto de regras precisos. Tratava-se, poder-se-á argumentar,

do seguimento lógico da concretização do mercado único, prevista pelo AUE, o que não

constituía na essência uma aspiração nova27. Não obstante, o Tratado previa também,

expressamente, a substituição das moedas nacionais por uma moeda única, objectivo nunca

antes consagrado claramente nos tratados. A importância deste facto cresce com a consciência

de que, concomitantemente, ao definir tal objectivo, Maastricht desencadeou um processo

irreversível da partilha de um dos atributos essenciais da soberania nacional, dando um passo,

sem retorno, na direcção de um federalismo monetário.

Com as inúmeras alterações, ao Título II do Tratado de Roma sucede o Título VI “A

Política Económica e Monetária” que define com precisão os objectivos, as fases e as

disposições institucionais que, de 1992 a 1997, ou até 1999 (como de facto veio a acontecer),

deveriam conduzir à adopção de uma moeda única28. À Comunidade é, pois, outorgada

autoridade exclusiva sobre a moeda, o que representa, necessariamente, uma transferência da

soberania monetária dos Estados-membros. Igualmente digno de nota é o facto de o Tratado

organizar a união monetária no quadro de um Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC)

construído, no seio da Comunidade, sobre uma base federal [sublinhado nosso].

Efectivamente, compõem esse sistema os bancos centrais nacionais e uma nova entidade 27 Como nos relata Sidjanski (1996, 234-235) o percurso que conduziu à UEM é longo e recheado de percalços: primeiramente esboçada em 1968 no Memorando Barre que previa uma coordenação das políticas económicas, geminada com uma cooperação monetária, a união económica e monetária foi, apenas dois anos mais tarde, o tema do Relatório Werner. Embora prevista pelo Conselho, a sua realização viria, todavia, a ser adiada devido à grave crise monetária internacional. Em 1972, com o objectivo de evitar uma paralisia da integração económica, foi instituído um sistema reduzido de by pass sob a forma de “serpente monetária” e cerca de sete anos mais tarde nasce o Sistema Monetário Europeu (SME), que preparou o terreno para a união económica e monetária. A este propósito ver também Rogelio Perez-Bustamante. 1997. Historia de la Unión Europea. Madrid: Editorial Dykinson, 247. 28 Artigos 102ºA a 109ºM TCE.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

supranacional - o Banco Central Europeu – criada propositadamente para gerir a UEM e que

se pretende totalmente independente dos Estados-membros.

Conquanto o objectivo do Tratado fosse uma moeda única em toda a Comunidade, foram

fixados critérios rigorosos (os chamados “critérios de convergência) a cumprir pelos Estados-

membros antes da adesão à nova moeda: estabilidade de preços; situação das finanças

públicas (défice orçamental e dívida pública); participação de pelo menos dois anos no SME

em bandas estreitas; e taxas de juro a longo prazo. A esta espécie de “discriminação” imposta

pela Comunidade - considerada indispensável para garantir o sucesso da nova moeda - juntou-

se a “auto-discriminação” do Reino Unido que conseguiu ver previsto num protocolo anexo

ao Tratado a possibilidade do parlamento de Westminster decidir a não participação da libra

esterlina na terceira e última fase da União Económica e Monetária (o que viria a acontecer).

Ora, para além de tornar improvável o objectivo do Tratado - uma Comunidade, uma moeda -

tal protocolo teve, em nossa opinião, uma consequência ainda mais grave, na medida em que

ao abrir um precedente (aproveitado ulteriormente pela Dinamarca) facilitou o caminho para

uma mais complicada, ainda que potencialmente útil, Europa “à la carte”29. De facto, mais do

que uma Europa “a várias velocidades” (multi-speed Europe) poderá estar aqui em causa uma

Europa “a vários níveis” (multi-tier Europe), que deverá ser objecto de profunda reflexão,

porquanto se deixar de constituir a excepção para passar a ser a regra, poderá colocar em risco

o resultado de meio século de integração europeia. Sem embargo, somos tentados a concordar

com Elfriede Regelsberger (1993, 82) quando nota que “[T]he history of the European

Community suggests that this differentiation of approaches is transitory in nature. It helps EC

member states reduce initial opposition to specific policies or institutional arrangements and

29 Se dúvidas houvesse quanto a esta possibilidade, bastaria lembrar, por exemplo, a mais uma vez auto-exclusão do Reino Unido em relação às disposições da política social prevista pelo Protocolo nº 14 relativo à política social (anexo ao TCE) e a introdução do ainda controverso mecanismo das cooperações reforçadas previsto pelo Tratado de Amesterdão.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

to accumulate gradual support”30 [ênfase nossa].

Apesar de alguns perigos inerentes a uma integração diferenciada, o caminho para a

moeda única, oficialmente iniciado em Maastricht, representou um verdadeiro salto

qualitativo, não apenas para uma integração económica real, mas, diríamos mesmo,

sobretudo, para a integração política. De facto, parece-nos evidente que a opção da grande

maioria dos Estados-membros pelo federalismo monetário (com toda a coordenação que tal

implica ao nível de outras políticas) resulta num reforço crescente da construção política. Até

porque, como sugeriu, em 1995, o então chanceler alemão Helmut Kohl31, a moeda única

exige um “tecto político” que seja o garante do seu equilíbrio. Quanto a nós, consideramos

que a opção pela moeda única, constitui já, em si mesma, um significativo impulso para a

ambicionada união política: por um lado, e se outra razão não houvesse, porque, como nota

Vila Maior (1997, 75), “esgotado o ideal da integração económica, resta à Europa comunitária

avançar no sentido da integração política”; por outro, e principalmente, porque nos parece que

- tal como no início do projecto europeu - o federalismo económico não será mais do que a

primeira etapa de um “federalismo político”. A este propósito, muito adequadas nos parecem

aqui as palavras de T. S. Eliot32: “atingir um fim é chegar a um início; esse fim é o ponto de

partida para algo de novo”.

B) A génese de uma união política: rumo a uma construção de tipo federal?

Entre as várias inovações introduzidas pelo Tratado de Maastricht33 merece especial

destaque a criação (pelo menos numa equação semântica) de uma União Europeia, verdadeiro

marco na construção de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa. A nova

30 Ideia que parece encontrar também fundamento na gradual mudança da atitude do Reino Unido face ao euro. 31 Referido por Sidjanski, op. cit., 334. 32 Citado em Vila Maior, op. cit., 76. 33 Também conhecido como Tratado da União Europeia (TUE), em virtude da união que institui oficialmente.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

arquitectura europeia, evocativa de um templo grego34, coloca a recém-nascida União

Europeia no topo de uma complexa estrutura assente em três pilares: um pilar central,

comunitário, dedicado aos tratados institutivos das três Comunidades (agora designadas

formalmente Comunidade Europeia) e suas reformas; e dois pilares laterais, relativos às

matérias sob a alçada da cooperação intergovernamental - Política Externa e de Segurança

Comum e Justiça e Assuntos Internos. Esta estrutura de pilares é uma estrutura talvez

complexa em demasia, dificilmente compatível com o desejo, também presente no Tratado, de

tornar o projecto comunitário mais compreensível para, e, consequentemente, mais próximo

dos cidadãos. Conscientes da diversidade de procedimentos e de instituições que tal fórmula

acarretaria, os mentores do Tratado tentaram conferir à União a indispensável coerência ao

preverem que fosse servida por um “quadro institucional único” encabeçado pelo Conselho

Europeu. A opção por esta instituição, que saiu claramente reforçada de Maastricht, é mais

um sinal de que os líderes europeus estiveram longe de renunciar ao que consideram ser os

“benefícios” da acção intergovernamental35. Neste sentido vai, também, a rejeição da

expressão “com vocação federal” que figurava no projecto do tratado, mas que graças à

vigorosa oposição britânica, foi banida do texto final. Contudo, é inegável a introdução de

elementos de índole claramente federalista (como, por exemplo, o princípio da

subsidiariedade) acompanhada por uma extensão das competências comunitárias em áreas

como a educação, a cultura ou a política social. Permanece, pois, ambígua a natureza da nova

união política anunciada por Maastricht, apesar das disposições do Tratado deixarem antever

objectivos qualitativamente ambiciosos. Para talvez melhor podermos aferir a sua importância

procuraremos, em seguida, analisar sucintamente os principais indicadores do avanço no

domínio da integração política, quer no domínio interno (eficácia interna da União e

34 Esta imagem de um “templo grego” foi preferida em detrimento de “uma árvore de múltiplos ramos” sugerida por Jacques Delors em 1992. 35 Embora, no caso concreto em apreço, nos seja difícil apontar uma outra instituição para estas funções, dada a “gritante” intergovernamentalidade do segundo e terceiro pilares.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

legitimidade do projecto comunitário) quer no domínio da identidade externa da União.

1.1 A Eficácia Interna da União e a Questão da Legitimidade do Projecto Comunitário

Inserindo-se no prolongamento da primeira grande reforma dos tratados, operada pelo

Acto Único Europeu de 1987, o Tratado da União Europeia introduziu um conjunto

considerável de medidas tendentes a tornar o funcionamento da Comunidade simultaneamente

mais democrático e mais eficaz.

1.1.1 As principais reformas institucionais

A expansão das responsabilidades confiadas às instituições comunitárias, corolário

natural da evolução do processo de integração, tornou inevitável uma reforma que lhes

permitisse dar resposta às novas solicitações com maior operacionalidade e eficácia.

Numa tentativa de contrariar a acusação de falta de democraticidade do modelo

comunitário36, Maastricht avança um pouco mais no caminho do reforço dos poderes do

Parlamento Europeu, ao introduzir o procedimento de co-decisão (artigo 189ºB TCE) que

abordaremos mais à frente. Apesar de ser um procedimento, inicialmente, bastante limitado e

complexo abriu a porta a uma progressiva co-legislação (PE e Conselho)37, constituindo,

deste modo, um passo importante na solução de um problema que ganhou uma dimensão

36 Acusação em parte justificada pelo facto de o PE (única instituição directamente eleita, pelo menos a partir de 1979) ter sido dotada, pelo Tratado de Roma, de meros poderes consultivos, sendo a função legislativa atribuída ao Conselho composto por representantes dos executivos nacionais. Como sublinha Sidjanski (1996, 246) “o modelo democrático sofreu uma malformação à nascença. As diferentes disposições do Tratado de Maastricht esforçam-se, ainda que timidamente, por libertar a Comunidade das suas doenças infantis e por lhe dar uma verdadeira dimensão política”. 37 Como refere Caporaso (2000, 66) “(...) the deeper importance of the extension of EP power may lie in professionalization of the EP that it demands and in the symbolism of having the EP and the Council meet as equal co-legislators, mutually agreeing to the acts that affect the people of Europe” [sublinhado nosso].

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

nova nos últimos anos – o chamado défice democrático da UE38. De facto, como refere

Caporaso (2000, 42) “[A]s the European Union creates it own rules and institutions, as it

becames more important in everyday policymaking, in short, as it becomes more like a

domestic polity than a traditional international organization the issue of democracy becomes

more central”. Porque associa a decisão ao parecer favorável do Parlamento, este

procedimento veio garantir uma participação mais efectiva e mais ampla da Câmara

representativa dos cidadãos europeus no processo legislativo comunitário, ainda que, como

referimos, num número limitado de matérias. Não colocando ainda o PE em verdadeiro pé de

igualdade com o Conselho, as novas disposições de Maastricht nesta matéria marcam assim

uma nova fase no desenvolvimento da Comunidade, na qual o PE se torna na “primeira”

Câmara de uma verdadeira legislatura e o Conselho se vê obrigado, de tempos a tempos, a

desempenhar o papel de uma “segunda” Câmara39. Paralelamente, o mesmo Tratado procedeu

ainda ao alargamento do procedimento de cooperação, tal como havia sido instituído pelo

AUE, e ao reforço das funções consultivas e de controlo orçamental desta instituição

comunitária. Digno de registo é também a referência do Tratado (artigo 138ºA TCE) à

importância dos partidos políticos, enquanto representantes da vontade política dos cidadãos,

que pode ser lida como um sinal de encorajamento à criação de partidos políticos agregados a

nível europeu40. Esta questão reveste-se, em nossa opinião, da maior pertinência, pois como

enfatiza Sidjanski (1996, 252) “[O] desenvolvimento e a consolidação das federações de

partidos deveriam contribuir para reequilibrar, na Comunidade, a influência dos grupos de

interesses e para formar progressivamente uma consciência política europeia”. Todavia, e

voltando à instituição comunitária em apreço, será ainda necessário percorrer um longo

caminho na reforma do PE para que os partidos políticos (num futuro, mais transnacionais)

38 Caporaso (2000, 49) define o défice democrático que alegadamente existe na UE como sendo “most acutely a deficit between the powers of national and EU executives and parliamentary institutions at both levels (...) This gap is fundamentally about the relation between executive power and representative legislatures”. 39 Cf. Andrew Duff, John Pinder and Roy Pryce, eds., op.cit., 31. 40 Esta questão foi retomada durante a CIG 2000 que antecedeu a assinatura do Tratado de Nice.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

possam desempenhar com eficácia o seu papel. Uma das lacunas mais evidentes continua a

ser a sua função meramente consultiva no domínio da revisão dos tratados. Muito embora o

PE tenha conseguido, na prática, ser parte mais activa neste domínio do que o Tratado previa,

a realidade é que continuou longe de ter o papel que cabe aos seus congéneres nacionais nas

reformas constitucionais.

No seguimento das sugestões avançadas pelo Relatório Tindemans e pelo Projecto

Spinelli, o Tratado de Maastricht determina um novo procedimento de investidura da

Comissão cuja principal novidade reside na associação do Parlamento Europeu ao processo41.

Por forma a tornar esta associação bem clara, o Tratado prolonga ainda a duração do mandato

da Comissão, de modo a que o mesmo possa alinhar-se com a duração das legislaturas

parlamentares, que é de cinco anos. Com este novo procedimento pretendeu-se, para além de

reforçar o papel do PE, aumentar a autoridade da Comissão e do seu presidente, conferindo-

lhes maior legitimidade democrática. Não obstante, a Comissão saída de Maastricht está ainda

longe de ser um verdadeiro executivo europeu, situação agravada pela sua quase total

“exclusão” das matérias do segundo e terceiro pilares. Como sublinhou John Fitzmaurice

(1994, 187):

“[T]he Commission is the nearest that there is to an executive, but it is far from being

the government of the Union. [Mas, como nota algumas linhas à frente] the

Commission must be able to provide the element of stability, coordination and

coherence that an otherwise unstable system requires [para tal] It must be involved at

all levels [incluindo a PESC e a JAI]”.

Assim, pese embora o reconhecimento do papel crucial da Comissão, as disposições do TUE

deixavam já antever uma periferização desta instituição, tendência que foi agravada

41 De acordo com as novas disposições, os governos dos Estados-membros, após consulta ao PE, escolhem o presidente da Comissão, ao que se segue uma segunda fase para escolha dos comissários em que intervirá o Conselho e o presidente designado. O PE volta a intervir na terceira e última fase, já que a Comissão designada é submetida a um voto de aprovação por parte do PE, que se pronuncia sobre a sua composição e programa, só depois sendo designada de comum acordo pelos governos dos Estados-membros (artigo 158º, nº 2 TCE).

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

dramaticamente pelo Tratado de Nice.

Por oposição à Comissão, o Conselho de Ministros sai de Maastricht como uma das

instituições mais importantes, tendo a seu cargo a PESC e a coordenação da JAI. Igualmente

reforçado ficou o Conselho Europeu que, na sequência da sua anterior “institucionalização”

pelo Acto Único, viu confirmado, pelo novo Tratado, o seu papel de impulsionador da

integração europeia42 e alargado o seu campo de acção. Assim, cabe-lhe, por exemplo, definir

os princípios e orientações gerais da Política Externa e de Segurança Comum que o Conselho

de Ministros executa, bem como decidir a passagem à segunda e terceira fases da UEM.

No que diz respeito às modalidades de votação, assiste-se com o Tratado de Maastricht

a uma clara extensão da votação por maioria qualificada (vmq), conquanto não tenha sido

ainda possível quebrar a habitual clivagem entre a dimensão comunitária (onde este tipo de

votação é a regra) e a dimensão intergovernamental (onde continua a ser a excepção).

Com o objectivo de reforçar a democratização do sistema comunitário o Tribunal de

Contas é elevado a instituição comunitária, passando a figurar na União Europeia ao mesmo

nível que o PE, o Conselho, a Comissão e o Tribunal de Justiça, ou seja, ao nível das

instituições que têm a seu cargo “as tarefas confiadas à Comunidade” (artigo 4º TCE). A

consagração explícita deste tribunal como instituição comunitária é acompanhada de uma

descrição pormenorizada das suas atribuições, organização e funcionamento (artigos 188ºA,

188ºB e 188ºC TCE). Entre as inúmeras competências confiadas à nova instituição conta-se a

de assistir o Conselho e o PE na função de controlo da execução do orçamento comunitário.

Mais uma vez se percebe nas disposições do Tratado uma espécie de analogia com o sistema

estatal, já que também nos Estados-membros a fiscalização orçamental é exercida pelos

parlamentares e pelos tribunais de contas nacionais. Parece-nos, porém, oportuno sublinhar a

natureza diminuta do orçamento comunitário, sobretudo quando comparado com os

42 O artigo D do Título I do TUE dispõe que “o Conselho Europeu dá à União os impulsos necessários ao seu desenvolvimento e define as orientações políticas gerais”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

orçamentos dos Estados-membros. Partilho, neste ponto, da interrogação formulada por

muitos quando perguntam: “[C]omo pode a União Europeia ambicionar tornar-se uma

unidade politicamente forte se não existe ainda um elemento de federalismo fiscal?”. Eis,

portanto, um importante tema de discussão, que nos levaria, entre outras, à questão da

necessidade de receitas directas da Comunidade, nomeadamente através da criação de um

imposto europeu (matéria que abordarei mais à frente neste trabalho).

Parece claro, pois, que sem avanços consideráveis no caminho do federalismo fiscal e

financeiro, terá pouca validade a analogia entre o Tribunal de Contas e os seus congéneres

nacionais. Na verdade, pensamos estar aqui patente mais uma tentativa de reforçar a

transparência do processo comunitário, por forma a conquistar a confiança dos cidadãos. Não

obstante, embora compreendendo a intenção dos legisladores, parece-nos também que, dado o

distanciamento entre os cidadãos e as instituições comunitárias, principalmente as mais

técnicas, poucos efeitos práticos resultarão de tal medida, pelo menos no curto prazo.

Igualmente com o objectivo de aproximar os cidadãos da União, o Tratado estabelece

a criação de um novo órgão comunitário – o Comité das Regiões – que tem como principal

função dar voz à dimensão regional da Comunidade (artigo 198ºA TCE)43. Decalcado do

modelo do Comité Económico e Social44, com o qual, aliás, partilha a estrutura de

43 A este propósito é de referir que, desde os anos 70, a Comunidade tem vindo a apostar nas regiões. De facto, a política regional comunitária tornou-se uma realidade, antes mesmo de ser ratificada pelo Acto Único Europeu em 1987, nomeadamente através dos fundos estruturais. Na mesma linha, o Tratado de Maastricht define uma série de políticas comuns orientadas para um melhor equilíbrio regional e desenvolvimento das regiões mais pobres, ao mesmo tempo que cria um novo instrumento de apoio aos países mais desfavorecidos – o Fundo de Coesão. Se não podemos falar da existência de uma “Europa das Regiões”, tal como foi idealizada por Denis de Rougemont nos anos 60, podemos sem dúvida destacar um esforço assinalável da Comunidade no sentido de criar melhores condições de equilíbrio entre os diversos níveis de autoridade, o que deixa subjacente o respeito pelos princípios básicos do federalismo europeu que é, na sua essência, descentralizador. 44 Instituído pelo Tratado de Roma (artigos 257º a 262º), o Comité Ecomómico e Social (CES) é uma das instituições (em rigor deveríamos dizer órgãos) auxiliares da UE. Tendo por missão assegurar a representação institucional na Comunidade das diferentes componentes de carácter económico e social da sociedade civil organizada (produtores, agricultores, transportadores, comerciantes, consumidores, etc) é composto por 222 membros (que, concluido o alargamento, não deverão exceder 350) nomeados, por proposta dos Estados-membros, pelo Conselho, após consulta à Comissão (de acordo com as alterações introduzidas pelo Tratado de Nice). Embora tenha competências meramente consultivas, o CES deve ser obrigatoriamente consultado pelo Conselho ou pela Comissão nos casos em que o Tratado assim o exija, ficando a consulta, nos restantes casos, à

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

organização, o novo organismo dispõe de competências meramente consultivas, estando, por

via disso, longe de ser o “Senado das Regiões” defendido por Denis de Rougemont. Todavia,

apesar das suas funções limitadas, não parece haver dúvida que a sua criação institucionaliza a

consulta das regiões na União, o que poderá ajudar a estimular e a melhor direccionar a

política regional da Comunidade. Paralelamente, sendo composto por representantes das

entidades regionais e locais, a sua actuação, principalmente se bem sucedida, poderá ajudar na

construção da tão desejada “Europa dos cidadãos”.

1.1.2 O processo de co-decisão

Numa tentativa de melhorar a legitimidade democrática da Comunidade através do

reforço do poder do Parlamento Europeu no processo legislativo, o Tratado de Maastricht

soma ao procedimento de cooperação (introduzido pelo Acto Único) um novo mecanismo – o

processo de co-decisão (artigo 189ºB). Enquanto que naquele está subjacente a elaboração de

uma proposta não vinculativa, neste está patente uma maior co-responsabilização das três

instituições envolvidas no processo legislativo (Comissão, Conselho e PE). Embora os pratos

da balança continuem a inclinar-se para as duas primeiras, diríamos que o novo procedimento

contribui para diminuir a “desproporcionalidade”, até aí existente, na importância de cada

uma das instituições no processo legislativo. De facto, através deste novo mecanismo o PE “é

dotado de um poder de rejeição temível que, mesmo que não seja utilizado, aumenta a sua

capacidade de influência, ao exercer uma pressão tendo em vista um acordo” (Sidjanski 1996,

257).

Em termos genéricos, o processo de co-decisão funciona da seguinte forma45: a

consideração das instituições. O Comité pode ainda ser consultado pelo PE e emitir pareceres por sua própria iniciativa. 45 Para uma explicação pormenorizada deste procedimento ver, por exemplo, Sidkanski, op. cit., 255-265; ver também Vila Maior, op. cit., 78-99.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Comissão elabora uma proposta de decisão que é previamente submetida ao PE, para que este

formule um parecer, após o qual a proposta será submetida ao Conselho que, por maioria

qualificada, adoptará uma posição comum. Por sua vez, esta posição comum é submetida à

consideração do PE que, num prazo de três meses, poderá: a) não se manifestar, implicando a

aprovação implícita da posição comum; b) aprovar expressamente a posição comum; c)

introduzir alterações na posição comum; d) declarar a sua intenção de rejeitar a posição

comum, o que obrigará de imediato à convocação do Comité de Conciliação46, que procurará

que as duas partes cheguem a acordo. Nos dois primeiros casos a proposta é adoptada,

enquanto que no terceiro terá lugar uma de duas soluções: i) o Conselho aprova as alterações

introduzidas pelo PE; ii) o Conselho rejeita as alterações. Esta última hipótese exige também

a reunião do Comité de Conciliação para tentar o entendimento.

O procedimento relativo à reunião do Comité de Conciliação varia também consoante

este Comité seja convocado na sequência da rejeição por parte do Conselho das alterações

introduzidas pelo PE, ou como resultado da declaração de intenções do PE em rejeitar

liminarmente a posição comum. No primeiro caso, existem duas possibilidades: a) a reunião

resulta num projecto comum, que consoante seja aprovado ou recusado pelo Conselho e pelo

PE conduzirá, respectivamente, à adopção ou não adopção do acto legislativo; b) o Comité

não consegue alcançar um projecto comum, pelo que o acto legislativo não pode ser adoptado.

Também no segundo caso, são duas as alternativas possíveis: ou o PE recua na sua posição

inicial e permite a adopção do acto; ou, pelo contrário, permanece inflexível na sua posição,

inviabilizando tal adopção.

Como se pode constatar, trata-se de um processo extremamente complexo. Por outro

46 Criado no âmbito do processo de co-decisão, o Comité de Conciliação é composto por 15 representantes do Conselho e por 15 representantes do Parlamento Europeu, em plano de igualdade, e tem como função, partindo da posição comum do Conselho, tal como alterada pelo PE, chegar a um compromisso viável, isto é, apto a recolher as necessárias maiorias no Conselho e no Parlamento Europeu (maioria qualificada e maioria absoluta, respectivamente). Compete à Comissão participar nas sessões do Comité de Conciliação e tomar todas as medidas necessárias à reconciliação de posições entre o PE e o Conselho (artigo 251º, nº 4 TEC).

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

lado, não obstante a aparente alteração no equilíbrio inter-institucional, o seu real significado

dependerá em última instância da forma como o PE utilizará os novos instrumentos postos à

sua disposição pelo Tratado de Maastricht; bastará, por exemplo, colocar a hipótese de uma

cedência sempre por parte desta instituição ou de uma constante falta de acordo com o

Conselho, para percebermos quão distante dos objectivos do Tratado pode vir a revelar-se, na

prática, este mecanismo. Em todo caso, parece-nos que, juntamente com outros elementos

visando o reforço da instituição parlamentar, a sua consagração foi já a confirmação de um

desejo, senão explícito, pelo menos latente, de fazer avançar a união também no caminho de

uma democracia de maior incidência parlamentar.

1.1.3 O princípio da subsidiariedade

Muito embora tenha estado presente em etapas anteriores da construção europeia47, o

princípio da subsidiariedade deve a sua consagração explícita ao Tratado de Maastricht (artigo

3ºB)48. Sendo tradicionalmente um preceito federalista, pode também ser encontrado na

doutrina católica, como forma de aumentar o papel das ordens mais “baixas” e dos indivíduos

47 De facto, embora só tenha sido consagrado explicitamente pelo TUE, este princípio esteve subjacente, ainda que implicitamente, à criação da Comunidade desde os seus primórdios. O Tratado CECA estabelecia no seu artigo 5º a ideia de “intervenções limitadas” em estreita cooperação com os interessados. Por sua vez, o próprio Tratado de Roma previa a possibilidade de os Estados tomarem as medidas capazes de assegurar o cumprimento das obrigações resultantes do Tratado, não cabendo, portanto, nesse caso, às instituições comunitárias substituirem-se-lhes. Ainda assim, a menção expressa a este princípio só aparece consideravelmente mais tarde, no projecto de tratado elaborado por Altiero Spinelli e apresentado em 1984 pelo PE. Com o Acto Único o princípio é novamente recuperado, ainda que implicitamente, no domínio do ambiente, já que o novo Tratado faz depender a intervenção comunitária, nesta área, da condição de os objectivos poderem ser melhor realizados ao nível da Comunidade. 48 De acordo com este artigo: “[A] Comunidade actuará nos limites das atribuições que lhe são conferidas e dos objectivos que lhe são cometidos pelo presente Tratado. Nos domínios que não sejam das suas atribuições exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objectivos da acção encarada não possam ser suficientemente realizados pelos Estados membros, e possam, pois, devido à dimensão à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário. A acção da Comunidade não deve exceder o necessário para atingir os objectivos do presente Tratado” [sublinhado nosso].

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

na sociedade49. Tratando-se de um conceito mais político do que jurídico, este princípio visa

em termos gerais prevenir, quer uma excessiva centralização da governação, quer a sua

exagerada dispersão. Aplicado no âmbito da Comunidade, e de acordo com uma definição do

próprio Parlamento Europeu (PE 1997, 17): “o princípio da subsidiariedade implica que os

Estados-Membros mantêm as competências que sejam capazes de gerir de forma mais eficaz

ao seu nível, transferindo para a Comunidade os poderes que não se encontrem aptos a

exercer convenientemente”. Apesar da aparente coerência desta definição “oficial”,

abundantemente veiculada na vulgata informativa sobre a Comunidade, a aplicação deste

princípio não tem sido consensual. Um primeiro problema reside na ambiguidade patente na

redacção do artigo, tentativa por certo de, uma vez mais, conciliar as duas visões antagónicas

que dominam o debate comunitário. Não admira, assim, que o princípio seja definido de

forma ambivalente, permitindo duas interpretações diametralmente opostas. Como nota

Philippe de Schoutheete (1999, 67): “[P]ara uns, trata-se de limitar a acção da União ao

estritamente necessário: é o dever de não ingerência. Para outros, trata-se de obrigar a União a

agir em caso de carência dos estados membros: é o dever de supletividade”. Uma segunda

dificuldade prende-se com a subjectivade subjacente à aplicação deste princípio. Sendo um

conceito mais político do que jurídico, baseado numa apreciação subjectiva, tem

inevitavelmente dado azo a abordagens equívocas. Na verdade, a sua observância pressupõe

determinar quais os objectivos que podem ou não ser suficientemente realizados pelos

Estados-membros, ou os que poderão ser melhor alcançados pela Comunidade. Ora, uma vez

que o enunciado do princípio não especifica os seus critérios de aplicação, corre-se o risco de

que este seja efectivado “ao sabor das conveniências que coabitarem com a

contemporaneidade” (Vila Maior 1997, 164). Tendo em vista corrigir esta arbitrariedade

49 Como nota Andreas Føllesdal (1998, 231) o princípio da subsidiariedade “(...) regulates authority within a political order, directing that powers or tasks should rest with the lower-level sub-units of that order unless allocating them to a higher-level central unit would ensure higher comparative efficiency or effectiveness in achieving them”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

remeteu-se para o Tribunal de Justiça o poder de apreciação da eficácia relativa das acções

empreendidas, quer ao nível nacional, quer ao nível comunitário. Por outro lado, é de realçar o

esforço despendido tendo em vista uma clarificação dos critérios de aplicação deste princípio,

que foi tema central de três conselhos europeus em 1992 - Lisboa, Birmingham e Edimburgo.

Deste último, saíram os três critérios que poderão justificar a acção da Comunidade, fora da

sua competência exclusiva50: primeiro, o facto de a questão em apreço se revestir de aspectos

transnacionais; depois, o facto de a ausência de acção por parte da Comunidade contrariar as

exigências do tratado; e finalmente, o facto de a acção comunitária apresentar vantagens

evidentes, devido à sua dimensão ou aos seus efeitos. Tal implica que o respeito pela

subsidiariedade será analisado juntamente com o conteúdo de cada proposta da Comissão.

Assim, consagrada oficialmente como um princípio fundamental da União Europeia, a

subsidiariedade está presente, implícita ou explicitamente, nas múltiplas dimensões do

projecto comunitário e tem dado já os seus frutos51. O seu principal mérito reside, em nossa

opinião, na definição de uma orientação geral no que respeita às competências partilhadas

entre a Comunidade e os Estados-membros. A sua principal falha parece-nos continuar a ser,

pese embora as tentativas de clarificação já realizadas, a sua ainda grande indefinição. Não

defendemos, todavia, a elaboração de um “catálogo de competências”, medida que

consideramos extremamente perniciosa, já que serviria apenas para condicionar a evolução

natural do processo de integração. Até porque consideramos que a subsidiariedade só fará

50 Como teremos oportunidade de ver no capítulo seguinte, estes critérios serão mais tarde enunciados no Protocolo relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, anexo ao Tratado de Amesterdão, o que veio reforçar a sua validade jurídica. 51 Na observância do estipulado pelo artigo 3ºB TCE a Comissão comprometeu-se, antes mesmo da ratificação do TUE, a empreender três tipos de medidas: fundamentar todas as novas propostas legislativas; retirar ou rever certas propostas legislativas; e reapreciar a legislação em vigor. Quando a acção da Comunidade se afigura indispensável tem sido, sempre que possível, dada preferência às directivas (principalmente às directivas-quadro) em detrimento dos regulamentos, já que aquelas estabelecem os objectivos gerais, mas remetem para os Estados-membros a definição dos meios para a sua execução. É ainda de registar a procura de soluções alternativas para a legislação, ou até para a acção comunitária, nomeadamente através da aplicação descentralizada do direito comunitário pelas autoridades competentes dos Estados-membros, ou através da cooperação com organismos de normalização.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

sentido no seio de uma união em construção se for entendida como um conceito dinâmico52 e

não como uma espécie de travão à transferência de novas competências para a Comunidade.

Como se pode ler num Relatório da Comissão Europeia (1998, 4): “[N]ão se trata de fixar de

uma vez por todas as competências da União. Pelo contrário, trata-se de as dinamizar,

devendo a União intervir ou abster-se de intervir, apresentando mais e melhores justificações

e actuando mais circunstanciadamente no que respeita aos termos e à dimensão da sua acção”.

Em suma, diríamos que no espírito do federalismo europeu, o princípio da

subsidiariedade é uma ferramenta privilegiada para evitar um excessivo centralismo, sendo,

todavia, essencial, contrariar a sua instrumentalização por aqueles que vêem neste princípio

apenas uma forma de travar a evolução do projecto europeu. Aqui, como noutras áreas, o

Tribunal de Justiça poderá desempenhar um papel crucial: “[B]y using its discretion about

states’ rights, the Court of Justice will be acting more and more in the role of a federal

supreme court” (Duff 1994, 29) [ênfase nossa].

1.1.4 A cidadania da União

Com o Tratado de Maastricht ganha forma jurídica a ideia de uma cidadania europeia.

Na verdade, como nota Sidjanski (1996, 232) “[A] cidadania europeia não deixa de se afirmar

desde a criação da Comunidade [na medida em que] [A]o instituir a ordem jurídica

comunitária, a Comunidade contribuiu para fazer do cidadão europeu um beneficiário e um

sujeito de jurisdição dos direitos comuns”.

Assim, antes mesmo da sua consagração expressa, muitas foram as iniciativas tomadas

52 O carácter dinâmico da subsidiariedade é referido em diversos textos comunitários. Destacaremos aqui a abordagem global sobre a aplicação da subsidiariedade definida pelo Conselho Europeu de Edimburgo, de 11 e 12 de Dezembro de 1992, onde se pode ler: “la subsidiarité est un concept dynamique qui doit être appliqué à la lumière des objectifs énoncés dans le traité. Elle permet d’élargir l’action de la Communauté lorsque les circonstances l’exigent et, inversement, de la restreindre ou de l’interrompe lorsqu’elle n’est plus justifiée” [ênfase nossa].

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

no sentido da sua concretização. Desde logo, destaca-se o papel decisivo do Tribunal de

Justiça53 que, através da sua jurisprudência, procurou estender ao máximo a protecção dos

direitos dos cidadãos comunitários. Actuando sempre com base numa interpretação extensiva

das disposições dos tratados comunitários e do direito comunitário derivado, esta instituição

conseguiu alargar o âmbito pessoal da aplicação da livre circulação de pessoas, ao mesmo

tempo que possibilitou que o direito de permanência deixasse de depender, quase totalmente,

de fins económicos.

Igualmente importante foi o contributo político-institucional. Neste plano, a ideia de

uma “cidadania europeia” ganha força, sobretudo, a partir da cimeira de Paris, de Dezembro

de 197454. Será todavia a concretização da eleição do Parlamento Europeu por sufrágio

universal e directo (a partir de 1979) aquele que constituirá: “o primeiro sinal tangível de uma

cidadania europeia, não obstante a ausência de um processo eleitoral uniforme” (Maria Luísa

Duarte 1994, 23). Ainda assim, apesar de ter contribuído para envolver os cidadãos no

processo de construção comunitária, esta inovação55 foi insuficiente para estimular a criação

de uma identidade europeia. Numa tentativa de contrariar a pouca identificação do cidadão

com o projecto europeu, foram acordadas, na década seguinte, medidas como a uniformização

dos passaportes e das placas de matrícula automóvel, a carta de condução comunitária, a

criação de corredores para cidadãos comunitários nos aeroportos, que, contudo, não

ultrapassaram um carácter essencialmente simbólico.

Compreende-se, deste modo, que o novo estatuto introduzido por Maastricht seja mais

um alargar da esfera da cidadania europeia do que propriamente uma inovação. Ainda assim,

53 A expressão “cidadão comunitário” pode ser encontrada na terminologia do Tribunal de Justiça pelo menos desde 1980. 54 Durante esta cimeira os, então, nove membros da Comunidade encarregaram um grupo de trabalho de estudar as condições e prazos de atribuição de direitos especiais aos seus nacionais. Na sequência deste desafio é apresentado o Relatório Tindemans que propõe direitos de participação política e a possibilidade de um nacional de um Estado-membro ocupar um cargo na função pública de outro Estado-membro. Através deste relatório os direitos especiais adquirem um carácter político e cívico, cuja titularidade, não só não está consagrada nos tratados, como também não resulta do adquirido comunitário. 55 Já prevista pelo texto original do Tratado de Roma, no seu artigo 138º, nº 3.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

parece evidente que a sua consagração expressa no Tratado (artigos 8º a 8ºE) representou uma

mudança qualitativa assinalável: a partir desse momento o nacional de cada Estado-membro

deixa de ser beneficiário indirecto da integração económica, para passar a ser encarado como

um elemento essencial da construção europeia. De facto, a “constitucionalização” de um

estatuto que traz consigo um conjunto de direitos cujo exercício já não depende da verificação

de requisitos de natureza económica, permite-nos concluir que “o agente económico cedeu

lugar ao cidadão” (Duarte, 2000, 247). Ora, este é um passo que consideramos decisivo na

construção de uma união verdadeiramente política e resulta de um claro esforço para diminuir

a distância que separa os cidadãos das instituições comunitárias.

Por outro lado, a criação de um estatuto que confere direitos iguais a cidadãos de

diferentes nacionalidades deixava antever a possibilidade de formação uma soberania popular

comum como complemento da soberania estatal. Sem embargo, como sublinha Duff (1994,

29): “the Maastricht Treaty takes no risks”. A cidadania da União é limitada aos nacionais dos

Estados-membros, não prevendo qualquer protecção especial para os cidadãos de países

terceiros a residir legalmente em países da Comunidade. Trata-se, portanto, de um estatuto

reconhecido de forma indirecta, o que significa que os acontecimentos passíveis de afectar a

cidadania nacional repercutem-se necessariamente na qualidade de “cidadão da União”.

Compreende-se, assim, que a cidadania da União tenha um estatuto de sobreposição56 e nunca

de substituição, pelo que os direitos e deveres atribuídos aos cidadãos da União não podem

prejudicar ou contrariar a titularidade dos direitos e a vinculação aos deveres que cada Estado

define na esfera jurídica dos seus cidadãos.

Com o intuito de reforçar a identidade política da Comunidade, o novo Tratado

procurou dotar de eficácia a cidadania europeia munindo-a, para tal, de um conjunto de

direitos (artigos 8ºA a 8ºD TCE). Para além do direito de livre circulação e de permanência

56 Esta ideia de complementaridade foi claramente explicitada pelo Tratado de Amesterdão (artigo 17º, nº 1 TCE).

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

nos Estados-membros (artigo 8ºA TCE), o tratado reconhece, ademais, a qualquer cidadão da

União o direito de eleger e ser eleito para o PE e também em eleições municipais no país de

residência, nas mesmas condições que os nacionais desse país (artigo 8ºB TCE)57. Segue-se o

direito dos cidadãos da União à protecção diplomática nos Estados terceiros onde o Estado de

que são nacionais não possui representação diplomática nem consular, situação em que

beneficiarão da protecção de qualquer Estado-membro nas mesmas condições que os seus

nacionais (artigo 8ºC TCE). Finalmente, o Tratado concede também o direito de petição ao

PE (artigo 8ºD TCE) e o direito de queixa perante o Provedor de Justiça (artigo 8ºE TCE)58.

Ao contrário do que acontece com os direitos, não se encontra no Tratado um conjunto

específico de deveres do cidadão europeu, para além de uma vaga referência à obrigação de

respeitar o Tratado: “[O]s cidadão da União (...) estão sujeitos aos deveres previstos no

presente Tratado” (artigo 8º, nº 2 TCE). Na verdade, como sublinha Maria Elisabete Ramos

(1996, 11) tal obrigação “assume escasso relevo (...) pois acaba por reconduzir ao dever

[geral] de observar a lei”. Esta é, aliás, uma das fragilidades apontada ao estatuto da cidadania

europeia na medida em que parece esquecer que a condição de cidadão é o reflexo da

concessão de direitos, mas também, e merecendo igual importância, da atribuição de deveres.

Em síntese, não parece constituir dúvida que o novo estatuto introduzido pelo TUE

constituiu um passo em frente na integração política. Com o objectivo claro de reforçar a

identificação dos cidadãos com a realidade europeia, a cidadania da União é um sinal claro

dado pelos líderes europeus da importância atribuída aos cidadãos como legitimadores do

projecto europeu. Aliás, como nota Lobo-Fernandes num artigo de opinião publicado no

semanário Expresso, de 07 de Junho de 2003, “a UE é simultaneamente uma união de Estados

e uma união de cidadãos (...) Ora, a reforma institucional (...) terá por um lado de reflectir este

57 Direitos políticos stricto sensu que surgem como complemento à liberdade de circulação e traduzem a existência de uma relação política do cidadão com a União. 58 A este conjunto de direitos o Tratado de Amesterdão aditaria ainda o direito de se dirigir por escrito a qualquer das instituições ou órgãos da Comunidade e delas obter resposta numa das doze línguas oficiais da Comunidade (artigo 21º, ¶ 3 TCE).

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

dualismo estrutural e por outro implica a procura de um modelo que traga maior legitimidade

às instituições”. Uma solução possível para apreender esta dupla legitimade é a opção por um

sistema de duas câmaras (a câmara dos cidadãos de base proporcional e uma segunda câmara

paritária dos Estados) para o qual o autor encontra pelo menos três vantagens:

“dá uma moldura institucional mais realista à condição dualista da Comunidade (...),

responde melhor à procura de uma maior legitimação e retém o princípio da igualdade

jurídica dos Estados. Maior legitimidade das instituições resolve-se com mais

participação política, e participação resolve-se por sua vez com maior

representatividade institucional”.

Embora partilhemos da opinião de Lobo-Fernandes, parece-nos, não obstante, que em face

dos últimos desenvolvimentos em matéria de reforma institucional59 será ainda longo o

caminho a percorrer para que à Europa das Elites suceda a Europa dos Cidadãos plena.

Sendo uma questão que entrou definitivamente na agenda europeia muitas são as

propostas visando o reforço e aprofundamento da cidadania da União, ainda que, na sua

maioria, consistam num reafirmar de “velhas” ambições. É assim que volta à ordem do dia a

necessidade de reforço dos poderes do PE; a defesa de uma aplicação mais ambiciosa do

princípio da subsidiariedade (na sua vertente descentralizadora); a importância do

desenvolvimento de verdadeiros partidos políticos e de fortes movimentos sociais a nível

europeu; ou, ainda, a conveniência da personalização das eleições europeias (através da

escolha de personalidades com real peso político para os principais cargos institucionais).

Particularmente interessante parece-nos a ideia da criação de um imposto europeu, ainda que

deva ser objecto de cuidadosa reflexão. Tratar-se-ia de um imposto directo sobre o

rendimento das pessoas ou das sociedades, o que permitiria ao contribuinte europeu ter uma

percepção mais aproximada de quanto “custa” a Comunidade e, por outro lado, reforçaria o

59 Referimo-nos em particular ao texto final do projecto de constituição apresentado em Junho de 2003 pela Convenção europeia.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

seu sentimento de pertença à mesma60. Tal imposto deveria reunir pelo menos três

caracteríticas: “una base amplia, una contribución de todos os Estados basada en el principio

de proporcionalidad, y un sistema de gestión sencillo” (Luis Jimena Quesada 2001, 66). É

indiscutível a dificuldade de tal tarefa, até pela incontornável questão de que a cobrança de

impostos é uma das prerrogativas da soberania dos Estados e, não menos importante, constitui

uma das suas maiores fontes de rendimentos. Não obstante, o advento do euro, cuja criação

implicou a abdicação por parte dos Estados-membros de uma premissa importantíssima da

sua soberania (o direito de imprimir moeda), leva-nos, pelo menos, a admitir que este imposto

europeu possa, um dia, tornar-se realidade61. A acontecer, estaria dado o passo decisivo para o

federalismo fiscal.

1.1.5 O Acordo sobre a Política social

Apesar de ser cada vez mais evidente a importância da dimensão social numa

Comunidade que ambicionava a integração política, o Tratado de Maastricht deixou quase

inalteradas as disposições da política social introduzida pelo Acto Único Europeu. Tal

situação deveu-se, em grande medida, à posição do governo do Reino Unido, liderado por

Margaret Thatcher; ao opor-se com veemência à Carta dos Direitos Sociais Fundamentais, de

Dezembro de 1989, (que viria a ser adoptada por todos os Estados-membros à excepção do

Reino Unido) inviabilizou a sua aplicação por falta de unanimidade no Conselho. Contudo,

insatisfeitos com os parcos progressos num domínio de importância vital para a tão desejada

Europa dos cidadãos, os então restantes onze Estados-membros conseguiram persuadir o

Reino Unido a permitir-lhes avançar neste domínio. Assim, para evitar os previsíveis

60 Obviamente, o contribuinte não poderia ver a sua carga fiscal agravada, tendo que haver uma reponderação nos impostos nacionais, até porque os Estados deixariam de contribuir directamente para o orçamento comunitário. 61 Depois de alguns anos de esquecimento, a ideia de um imposto europeu voltou a ser relançada pela Bélgica, país que presidiu à UE no segundo semestre de 2001.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

bloqueios institucionais, os negociadores do Tratado da União Europeia elaboram dois textos

relativos à política social62: o primeiro deles, aprovado pelo conjunto dos Doze, autoriza os

Onze a prosseguir na via da Carta Social e a recorrer, para esse efeito, às instituições,

procedimentos e mecanismos da Comunidade Europeia (sem que os actos decretados se

apliquem ao Reino Unido); o segundo, assinado pelos Onze, modifica os artigos do Tratado

atribuindo-lhes objectivos mais amplos, embora ressalvando que para a sua realização é

necessário ter em consideração a diversidade das práticas nacionais, sobretudo no domínio das

relações contratuais e a necessidade de manter a capacidade concorrencial63.

Para além do avanço que representam na vertente social da União, a maior inovação

destes textos é, por maioria de razão, o novo método por eles inaugurado. Como sublinha

Duff (1994, 33): “[I]t is the first serious example in the history of the Community of a Treaty

derogation from one of the objectives of the Treaty”. Isto significa, na prática, que foi aberto o

precedente para que um Estado-membro possa, se for esse o seu desejo, ficar de fora da

integração num determinado domínio64. Percebe-se facilmente a intenção que está subjacente

à ideia de uma “integração a duas velocidades”: não excluindo a possibilidade de os

retardatários se juntarem aos outros, esta nova fórmula impedirá que as reservas dos mais

reticentes em relação ao projecto europeu travem aqueles que desejam avançar mais

rapidamente. Porém, é importante não esquecer os desfazamentos que uma “Europa multi-

nível” pode acarretar, sobretudo quando nos parece que coerência e coesão são qualidades

indispensáveis a um projecto que visa unir um continente. Embora não acreditemos

verdadeiramente na possibilidade de desintegração, será sensato ter em mente que este é um

fenómeno possível: “[T]he complexities of living in a world which is at the same time many

worlds has given rise to conceptualizations not only of coming together, but also of coming

62 O Protocolo relativo à política social (protocolo nº 14 anexo ao TCE) e o Acordo relativo à política social celebrado entre os Estados-membros da Comunidade Europeia com excepção do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte. 63 Cf. Sidjanski, op. cit., 254. 64 Com idêntico objectivo, foi previsto pelo Tratado de Amesterdão o mecanismo de “cooperação reforçada”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

apart” (Groom and Heraclides 1985, 183) [sublinhado nosso].

1.1.6 Justiça e Assuntos Internos

O terceiro pilar do Tratado de Maastricht é dedicado à dimensão da justiça e dos

assuntos internos. Durante décadas, a Comunidade trabalhou para edificar um espaço sem

fronteiras caracterizado por uma plena liberdade de circulação de pessoas. Ora, apesar do

inegável avanço que tal empresa representa na integração europeia, são também muitos os

problemas que acarreta, nomeadamente no que respeita à segurança dos cidadãos. Por esta

razão, se por um lado se assistiu à supressão de uma série de controlos que eram exercidos na

passagem de um Estado para o outro, assistiu-se também, como consequência, à necessidade

de reforçar o controlo das fronteiras externas da Comunidade, bem como no interior do

espaço comunitário.

Ao longo dos anos, os Estados-membros da Comunidade criaram uma série de

mecanismos ad hoc com vista a facilitar uma intervenção concertada neste domínio. Entre as

matérias abrangidas contam-se a cooperação policial e alfandegária, o asilo, a extradição, a

deportação, as políticas de vistos e a muito controversa questão da imigração. Com a

perspectiva da conclusão do mercado interno, esta actividade marcadamente

intergovernamental foi sendo “coordenada” cada vez mais com a actividade da Comunidade,

assistindo-se ao aumento gradual do envolvimento da Comissão no processo. A assinatura do

Acordo de Schengen por alguns dos Estados-membros65, com o objectivo de criar um espaço

totalmente sem fronteiras entre os signatários, foi mais um passo no sentido de acabar com as

barreiras internas à livre circulação de pessoas. Mas implicou também, como contrapartida,

um sistema de segurança comum aos Estados-membros signatários com o objectivo de 65 A Convenção foi assinada, fora do quadro comunitário, em Junho de 1990, pela França, Alemanha, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. A estes países juntar-se-iam, mais tarde, os restantes Estados-membros, com excepção da Irlanda e do Reino Unido.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

aumentar a vigilância nas regiões transfronteiriças66.

Mais do que inovações, as disposições do Tratado de Maastricht relativas ao terceiro

pilar representam, pois, uma tentativa de introduzir alguma coerência no aglomerado de

actividades diplomáticas nesta matéria, associando-as mais estreitamente à Comunidade

(ainda que sem lhes retirar o carácter intergovernamental). Assim, de acordo com o Título VI

do Tratado, no processo de decisão respeitante aos assuntos internos e de justiça, o Conselho,

assistido pelo Comité de Coordenação67, passa a desempenhar o papel central, enquanto que a

Comissão, embora relegada para um papel mais modesto, vê garantida a sua associação aos

trabalhos. Já o Parlamento Europeu não consegue mais do que um papel marginal, ainda

assim mais importante que o do Tribunal de Justiça que continua largamente excluído deste

domínio. No que respeita ao Conselho Europeu, embora os seus poderes não sejam definidos,

a autoridade que lhe é conferida pelo Tratado permite-lhe intervir quando considerar

necessário promover novas actividades ou orientar as decisões mais importantes. Percebe-se,

deste modo, que neste sistema a repartição de poderes e os papéis atribuídos às diversas

instituições divirjam consideravelmente do modelo comunitário, pendendo o prato da balança

claramente para o lado dos governos nacionais.

De facto, tal como foi definido por Maastricht, pensamos não existir dúvidas quanto

ao carácter intergovernamental da cooperação no domínio dos assuntos internos e da justiça68.

Ao contrário do que acontece a nível interno dos Estados-membros - em que esta é uma área

regida pela lei que o executivo está encarregue de aplicar sob o controlo do Parlamento - no

âmbito das disposições do Tratado, o papel do Conselho e, consequentemente, dos governos

66 No âmbito do Acordo de Schengen foi criado o Sistema de Informação e Segurança tendo por objectivo aumentar a eficácia na luta contra o crime através da troca de dados entre as polícias dos Estados-membros signatários do acordo. 67 Instituido pelo artigo K4 do TUE, o Comité de Coordenação é composto por Altos Funcionários e tem, actualmente (depois de Amesterdão), como missão formular pareceres destinados ao Conselho (a pedido deste ou por sua própria iniciativa), bem como contribuir para a preparação dos trabalhos do Conselho nos domínios a que se refere o artigo 29º TUE (cooperação policial e judiciária em matéria penal). 68 Prova disto mesmo é o facto deste pilar se servir expressamente da palavra cooperação.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

nacionais, aumenta fortemente em detrimento da função parlamentar69. Não obstante, o

próprio Tratado admite a possibilidade de uma posterior transferência de alguns das matérias

deste terceiro pilar para os auspícios da Comunidade, ficando tal decisão dependente de uma

análise casuística e sujeita a uma votação por unanimidade do Conselho70. Aliás, existe quase

que uma espécie, diríamos, de “inevitabilidade” nesta provável comunitarização no domínio

da justiça e dos assuntos internos, já que a nova exigência de uma maior coordenação nesta

área resultou da própria evolução da integração europeia. Ainda que consideremos que a via

da comunitarização do terceiro pilar seja o passo desejável, não poderíamos deixar de

considerar o argumento avançado por Vila Maior (1997, 156) para justificar uma primeira

fase de cooperação intergovernamental:

“[A]o colocar o acento tónico no vector intergovernamental, a C.E. quis reconhecer a

sua impotência momentânea em cumprir os objectivos de manutenção da segurança à

escala comunitária. Simultaneamente, aceitou que o desiderato só poderia ser

eficazmente atingido se o papel principal fosse atribuído aos Estados-membros,

habituados que estão a combater (...) os problemas que resultam dos fenómenos

expostos. Eis como a cooperação nos assuntos internos e na justiça teve que ser

contemplada numa vertente intergovernamental, em homenagem à eficácia no

cumprimento dos objectivos propostos” [ênfase nossa].

1.2 O Embrião de uma Identidade Externa da União no Domínio Político

As preocupações com a dimensão externa da Comunidade não são recentes. De facto,

à medida que as suas funções se foram desenvolvendo, a Comunidade foi alargando o seu

domínio de acção ao campo externo. Basta lembrar o importante papel desempenhado 69 Cf. Sidjanski, op. cit., 270. 70 A “comunitarização” de parte do terceiro pilar veio de facto a acontecer com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

aquando do Kennedy Round (no âmbito das negociações do GATT), a sua política de ajuda ao

desenvolvimento (de países terceiros) ou a vasta rede de acordos de associação e assistência

estabelecida entre a Comunidade e um elevado número de países de todo o mundo71.

Contudo, se é evidente o desenvolvimento de algumas acções externas comuns da

Comunidade, não é menos evidente que o seu conteúdo foi, até há uma década atrás,

predominantemente económico. Depois do fracasso da Comunidade Europeia da Defesa72, a

prioridade dada à integração económica, como um meio para atingir a integração política,

acabaria por relegar para segundo plano esta última dimensão. É verdade que, a partir da

década de 1970, os Estados-membros começaram a praticar uma discreta cooperação política

intergovernamental, que gradualmente foi deixando de ser uma mera “consulta recíproca

sobre as questões importantes”, para dar lugar à Cooperação Política Europeia (CPE). Mas

não é menos verdade que matérias como a segurança e defesa passaram a constituir uma

espécie de “tabu” da integração, situação explicável pelo desaire de tentativas anteriores73,

mas também, e principalmente, pela recusa dos governos em abdicarem, ou mesmo em

partilharem, o exercício de competências em domínios que constituem atributos, por

excelência, da soberania nacional. O resultado foi a emergência de um gigante económico,

mas que se manteve um anão político. À medida que se agravavam as distâncias entre as duas

vertentes, aumentavam as vozes dos que defendiam a necessidade de um desenvolvimento

paralelo entre integração económica e integração política. De facto, era por demais evidente 71 Como refere Lobo-Fernandes (2001, 8) “os anos setenta foram decisivos para formatar o papel dos Europeus a nível internacional (...) Por um lado, fez-se uso dos tratados – de algum modo não previsto inicialmente – para realizar uma política de cooperação para o desenvolvimento e, por outro, foi lançada a cooperação política europeia (cpe), um mecanismo inter-governamental que tinha por objectivo harmonizar tanto quanto possível as políticas exteriores dos Estados-membros e, com isso, tentar uma maior influência internacional no apertado quadro bipolar”. 72 A ideia de uma Comunidade de Defesa surge, logo em finais de 1950, para completar o Plano Schuman e responder a uma necessidade premente de defender a Europa ocidental. Menos de dois anos mais tarde, é assinado em Paris o Tratado da CED pelos seis membros fundadores da CECA. Numa demonstração clara de um desejo de progredir rapidamente para a união, este Tratado esboça já no seu artigo 38º as estruturas essenciais de uma futura Comunidade federal ou confederal. Apesar dos esforços dos líderes europeus, o Tratado da CED e o seu natural prolongamento político (uma comunidade política europeia) seriam travados, ironicamente, pela Assembleia do país que havia liderado o movimento em prol da união, a França. 73 Relembre-se, a título de exemplo, a tentativa falhada de criar uma Comunidade de Defesa Europeia, logo em 1952, ou, alguns anos mais tarde, o igualmente mal sucedido Plano Fouchet que visava uma União de Estados.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

que a continuação de tal handicap político incapacitaria a Comunidade no pós-Guerra Fria de

assumir as tarefas que lhe eram impostas na cena internacional pela sua própria condição de

potência económica.

As mudanças ciclópicas que tiveram lugar na Europa Central e de Leste tornaram

ainda mais inequívoca, pois, para dirigentes e cidadãos, a necessidade de acelerar a união

política. Para que a Comunidade pudesse aceitar a responsabilidade que lhe era atribuída na

procura da estabilização dos países do centro e leste europeu e na edificação de uma nova

ordem internacional, havia que somar ao poder económico uma capacidade política. Ora, tal

não seria possível sem recompor o figurino da segurança e defesa europeias, até aí a cargo de

cada Estado-membro, considerado individualmente e, sobretudo, do velho aliado do outro

lado do Atlântico – os EUA .

Impelidos pelos perigos latentes resultantes da redefinição do mapa do Leste europeu e

pela lição da crise do Golfo que, sem contemplações, havia posto a nu a fraca capacidade de

influência e os limitados meios de acção da Comunidade74, os líderes europeus decidiram

somar à já então convocada conferência intergovernamental - destinada à criação de uma

União Económica e Monetária - uma segunda CIG dedicada à união política, que contava

entre os seus objectivos a conclusão de um acordo relativo a uma política externa e de

segurança comum (PESC).

As negociações para a instituição de uma Política Externa e de Segurança Comum

pelo TUE tiveram subjacente objectivos precisos: por um lado, a Europa procurava com a

PESC dotar-se de um instrumento adequado a potenciar a segurança do continente, num

período de profundas incertezas, marcado por uma nova conjuntura geopolítica unipolar e

com tendências fragmentárias75, que faziam recear pela integridade do território; por outro

74 O papel relativamente modesto desempenhado pela Comunidade, como um todo, neste conflito levaria mesmo Jacques Delors a afirmar: “[A] guerra do Golfo demonstrou, se era necessário, os limites da influência e da acção da Comunidade Europeia” (citado em Sidjanski 1996, 297). 75 Como o demonstra, por exemplo, o grave conflito que assolou a zona dos Balcãs.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

lado, podendo constituir uma garantia complementar de segurança, a PESC contribuiria

também para criar um cenário de estabilidade política na Europa comunitária e, por

alastramento, para a estabilidade política e económica de todo o continente europeu; por

último, figuravam ainda entre as ambições da nova política comum a consolidação das

democracias e economias de mercado que emergiam nos países da Europa Central e Oriental,

por forma a que, a prazo, fosse possível tornar realidade o velho sonho de uma Europa unida.

O acordo alcançado pelos Estados nesta matéria ficou plasmado no segundo pilar do

Tratado de Maastricht. Ao reunir numa única política duas dimensões que há muito andavam

separadas, a política externa comunitária e a segurança, os dirigentes europeus deram um

passo importantíssimo na via da união política76. Não obstante, ficou adiada, sine die, a

inclusão de uma terceira dimensão de uma importância vital para a sobrevivência do projecto

europeu: a defesa. Embora o Tratado preveja a definição de uma política de defesa comum

como uma espécie de corolário da PESC77, não é fornecida qualquer indicação no que respeita

ao prazo para a sua concretização78. Esta foi sem dúvida uma oportunidade perdida, embora

se perceba que dada a urgência em apresentar uma solução, imposta pela própria conjuntura

internacional, os negociadores do Tratado teriam tido “pouco tempo” para aflorar uma

questão que, por interferir tão directamente com a soberania e os interesses de cada Estado-

membro, se reveste de extrema delicadeza.

Também reflexo da dificuldade que os Estados têm em abdicar das suas prerrogativas 76 De notar, porém, que em termos “institucionais” a separação prevaleceu, e, ainda hoje (dois tratados depois), existem responsáveis diferentes para a PESC (o Alto-representante para a PESC) e para as relações comerciais (o comissário das relações externas). Esta é, aliás, uma das questões que fazem parte da agenda da Convenção sobre o futuro da União Europeia, afigurando-se previsível uma fusão dos dois cargos. Como sublinhou Lobo-Fernandes “[I]n theory, the current division of labor is clear: Solana does the diplomacy, while Patten implements the EU’s aid programmes and manages political instruments. However, in practice it is hard for them to join up resources”. Cf. Lobo-Fernandes. 2002. “The European Project and Its Future”. University of Cincinnati, 15 de Outubro. 77 No artigo B das disposições comuns do TUE pode ler-se: “[A] União atribui-se como objectivo afirmar a sua identidade na cena internacional, nomeadamente através da execução de uma política externa e de segurança comum, que inclua a definição, a prazo, de uma política de defesa comum” [ênfase nossa]. 78 Apesar desta ausência de prazos, as medidas previstas pelo artigo J4 do TUE (nomeadamente as que se referem ao papel a desempenhar pela União da Europa Ocidental) podem, como sublinha Sidjanski (1996, 287-288), ser entendidas como uma manifestação de vontade por parte dos Estados-membros de forjarem progressivamente uma identidade europeia de defesa.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

em matérias que constituem historicamente o núcleo crítico da soberania nacional foi, à

semelhança do que havia acontecido com o terceiro pilar, a adopção de um mecanismo de

tomada de decisão marcadamente intergovernamental para a PESC. De facto, em todos os

domínios de incidência desta política as decisões serão tomadas no seio do Conselho e ficarão

sujeitas à regra da unanimidade, estando prevista a maioria qualificada unicamente para as

modalidades de estabelecimento prático das acções comuns79. Consequentemente, é vedado à

Comissão o papel de motor da integração neste domínio, ainda que tenha sido plenamente

associada aos trabalhos do Conselho Europeu (em virtude da presença do seu presidente) e do

comité político. Daqui se conclui, que as disposições do Tratado mantêm uma clara distinção

entre a repartição dos poderes e das responsabilidades nas matérias da competência da

Comunidade e da União Europeia: enquanto no pilar comunitário, Comissão e Conselho estão

no centro do processo de decisão, já na união política esta posição é ocupada apenas pelo

Conselho (seguindo as orientações gerais do Conselho Europeu)80. Assim, embora evolua no

interior do sistema comunitário e faça uso da rede institucional e administrativa comunitária, a

natureza do processo de decisão, no domínio da PESC, é nitidamente mais próxima da

cooperação política intergovernamental do que do modelo comunitário, embora partilhe com

este a elevada complexidade.

Para a definição e execução da política externa e de segurança comum, o Tratado

coloca à disposição da União dois instrumentos: as posições comuns e as acções comuns. De

uma maneira geral, o primeiro destes instrumentos, as posições comuns, correspondem ao que

era já praticado no âmbito da CPE. Trata-se, na verdade, de uma espécie de “nível superior”

da já praticada cooperação sistemática que leva os Estados a informarem-se e a consultarem- 79 Ao contrário do que acontece nas restantes políticas comuns, na PESC existe uma rede dupla de decisão: em primeiro lugar o Conselho de Ministros é chamado a decidir, por unanimidade, sobre a possibilidade de submissão de certo domínio para a PESC. Caso seja possível a unanimidade, passar-se-á então ao momento da tomada de decisão, em que será suficiente a maioria qualificada dos membros do Conselho. Este segundo momento de decisão versará unicamente sobre a forma de pôr em prática as acções necessárias para cumprir os objectivos propostos para o domínio de actuação concreto que havia sido, no primeiro momento, submetido à alçada da PESC (Vila Maior, op. cit., 111). 80 Cf. Sidjanski, op. cit., 280.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

se mutuamente no Conselho sobre uma questão de política externa que consideram ter

interesse geral. O objectivo é a adopção de acções convergentes, ainda que não

necessariamente comuns, que lhes permitam reforçar a sua capacidade de influência na cena

internacional. Sempre que o Conselho considere adequado um nível de coesão mais elevado

definirá uma posição comum. Talvez como uma tentativa de contrabalançar a flexibilidade da

cooperação sistemática o Tratado introduz um novo instrumento mais preciso e mais restritivo

- as acções comuns - que obrigam os Estados-membros quer nas suas tomadas de posição,

quer na condução da acção. Efectivamente, ao adoptar uma acção comum o Conselho fixa o

alcance, os objectivos e os meios da mesma, ficando o seu controlo a cargo da presidência que

segundo o artigo J5, ¶ 2 “é responsável pela execução de acções comuns”. Sem prejuízo do

exposto, a Comissão está também plenamente associada às tarefas, nas quais participa

também o comité político, composto por directores políticos dos ministérios dos Negócios

Estrangeiros. Apesar de complexo, este sistema reflecte já, como sublinha Sidjanski (1996,

281) “a intenção dos Estados-membros de se dotarem de uma política externa comum mais

eficaz do que a simples cooperação política. Com efeito, a acção comum anuncia um grau

superior de coerência, de unidade e de eficácia da União”.

Outro elemento de significativa importância é a questão da representação da União

pela presidência. De facto, ao atribuir-lhe a responsabilidade pela execução das acções

comuns, o Tratado de Maastricht faz da presidência a “porta-voz” da posição assumida por

todos os Estados-membros, no seu conjunto, cabendo-lhe portanto representá-los nos assuntos

da PESC e nas organizações e conferências internacionais. Esta medida foi uma espécie de

“passo atrás” para a Comissão que viu, deste modo, frustrada a perspectiva de alargamento do

seu papel representativo, para além dos assuntos externos de cariz económico81. Na linha do

que aconteceu em relação ao processo de tomada de decisão, Maastricht introduziu também

81 Facto de alguma forma compensado por um direito de iniciativa (ainda que não exclusivo, porque partilhado com os Estados-membros) nas matérias da PESC.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

uma clara distinção entre a representação da Comunidade e da União, o mesmo será dizer

entre a integração económica e a integração política. Apesar desta espécie de “dupla

representatividade”82, é visível o esforço dos negociadores do Tratado no sentido de reforçar a

presença e coerência da União nas diferentes instituições e organismos internacionais83.

Em suma, tendo por objectivo colmatar a evidente insuficiência de poderes e de meios

da Comunidade em matéria de política externa e de segurança, a nova política comum

condensada no segundo pilar de Maastricht denuncia uma vontade clara de aprofundamento

dos objectivos políticos da Europa comunitária. Na medida em que “retira” aos Estados-

membros a condução exclusiva de uma das mais importantes prerrogativas da soberania - a

política externa e de segurança – a consagração da PESC parece deste modo o cumprir de

mais uma etapa na longa jornada que culminará numa união de cariz federal. É, porém,

indispensável refrear o entusiasmo dos defensores deste futuro - grupo em que nos

incluiríamos - pois, na prática, a PESC permanece ainda, em grande medida, nas mãos dos

Estados. É disso prova o papel marginal atribuído, neste domínio, à Comissão e ao

Parlamento Europeu. Na verdade, como regista Vila Maior (1997, 112) “as matérias relativas

a esta política comum nascem, são discutidas e decididas pelo Conselho, a instituição que por

excelência representa os Estados membros (...). No fundo, trata-se de uma espécie de acordo

entre as autoridades governamentais dos Estados-membros que têm assento no Conselho”

[nossa ênfase]. Contudo, apesar do seu carácter indiscutivelmente intergovernamental, a 82 De referir, todavia, que, com a criação do Alto-representante para a PESC, pelo Tratado de Amesterdão, este “dualismo” se traduz, na prática, numa “tripla representação” (presidência, Comissão e Alto-representante para a PESC), que compromete seriamente a coerência indispensável a um desempenho eficaz da União na cena internacional. Como referiu Lobo-Fernandes, numa intervenção proferida na Universidade de Cincinnati, “[I]n terms of ambitions, the enlarged Union should become a more important actor on the world stage because, I think, of its greater size and because of United States’s need for a strong ally” (15 de Outubro de 2002). Ora, tal não parece possível, como o autor, aliás, salienta, sem uma readaptação da actual estrutura de representação da UE no domínio externo. 83 A este propósito, não poderíamos deixar de destacar a importante inovação que representam as disposições do artigo J5, nº 4, ¶ 2 do TUE de acordo com as quais os Estados-membros da União, que sejam também membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, têm o dever de concertar as suas posições e de manter os outros Estados-membros da União informados. Ainda segundo as indicações do mesmo parágrafo, os Estados-membros que sejam membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas têm o dever de defender, no exercício das suas funções, as posições e os interesses da União, sem prejuízo das suas responsabilidades para com a Carta da ONU.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Política Externa e de Segurança Comum não deixa de ser um salto qualitativo de importância

assinalável, na medida em que institucionaliza uma “exigência” de concertação da actuação

dos Estados-membros neste domínio. Como resultado, aumenta, ainda que com limitações, a

coerência e eficácia da intervenção da União. Persuadimo-nos que “só falando em uníssono” a

Comunidade poderá afirmar a sua influência enquanto actor de primeira linha nas relações

internacionais e, assim, contrariar a lógica unipolar decorrente do fim da Guerra Fria. Parece-

nos, portanto, que mesmo sendo uma política comum “atípica”84, a PESC poderá tornar-se

num instrumento privilegiado na edificação de uma identidade própria da União em termos

externos.

1.3 Conclusão: Maastricht ou a Revelação de um Federalismo Aberto

Negociado num período de profunda mutação e incerteza na ordem internacional, o

Tratado de Maastricht pretendeu impulsionar a indispensável mudança na Comunidade. Como

o demonstra o simbólico abandono do termo “Económica” na designação da Comunidade85, o

processo de integração europeia entrava numa nova fase86 que tem como ambição proclamada

a edificação de uma verdadeira união política; sem que tenha posto de parte a componente

intergovernamental da construção comunitária87, que de resto reforçou em algumas vertentes,

o novo Tratado contribuiu igualmente para um avanço em direcção a um modelo neofederal,

não só pelo que consagrou de facto, mas, sobretudo, pelas possibilidades que abriu88. A

conclusão da integração económica abriu a porta para a integração política; a criação da PESC 84 O seu processo de decisão predominantemente intergovernamental retira-a da alçada da Comunidade. 85 O artigo G, alínea, nº 1 dispõe que “a expressão Comunidade Económica Europeia é substituída pela expressão Comunidade Europeia”. 86 Esta ideia é explicitamente declarada no Preâmbulo do Tratado onde pode ler-se: “[R]esolvidos a assinalar uma nova fase no processo de integração europeia iniciado com a instituição das Comunidades Europeias” [sublinhado nosso]. 87 A este propósito parece-nos reveladora a expressão “a union with several rooms” usada pelo Financial Times para descrever a nova União Europeia criada por Maastricht (Cf. Burgess 2000, 210). 88 Vila Maior (1997, 186) considera mesmo que “o T.U.E. corresponde a meio caminho andado para o federalismo”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

possibilita a criação de uma identidade externa da União; o pilar da Justiça e Assuntos

Internos é gerador de um real espaço de liberdade, segurança e justiça89; a nova cidadania

europeia cria uma União mais próxima do cidadão; a adopção do princípio da subsidiariedade

introduz uma governação descentralizada; por último, o processo de co-decisão consagra uma

maior participação do parlamento. É verdade que os opositores do federalismo conseguiram

retirar do texto do Tratado a “vocação federal” da nova união, mas não puderam evitar, como

parecem demonstrar alguns dos exemplos acima mencionados, que o Tratado compreendesse

um conjunto de disposições que podem ser entendidas como um prenúncio, para médio ou

longo prazo, de um modelo federal para a Europa90.

Aquando da sua conclusão houve quem chamasse ao Tratado de Maastricht “a driving-

mirror Treaty”91, ou seja, um Tratado que se limitava a consagrar de jure o que já havia sido

conseguido anteriormente de facto, pelos doze Estados-membros e pelas instituições

comunitárias. Não negando, até, o que teria sido a importância de tal tarefa (já que é

indispensável conferir força jurídica aos avanços que se vão registando fora do âmbito dos

tratados) parece-nos evidente que seria desajustado atribuir a Maastricht apenas esta

vantagem. É certo que em parte as suas disposições são um reflexo do estado da integração

europeia, à data, mas parece-nos também que, como já referimos, o Tratado é fonte de

inovação, não só pelos novos procedimentos e competências que introduziu, mas, sobretudo,

pelas potencialidades que encerra. Com Maastricht, o projecto comunitário enveredou

iniludivelmente pelo caminho de uma união política, que faz lembrar em alguns aspectos

aquela que inspirou o Plano Fouchet92. É-nos, contudo, difícil apontar o modelo que

89 Cuja criação viria a ser prevista pelo Tratado de Amesterdão (artigo 61º do Tratado de Roma). 90 Cf. Vila Maior, op. cit., 182. 91 Cf. Duff in Duff, Pinder and Pryce, op. cit., 26. 92 O Plano Fouchet foi o resultado de um desejo de dar à integração europeia um suporte político. De facto, entusiasmados com os êxitos das comunidades europeias os, então, Seis resolvem avançar na via da integração política. As várias propostas em debate tinham em comum o facto de rejeitar quer a criação de um Estado federal, quer uma estrutura demasiadamente frágil e com poderes muito limitados. Em Setembro de 1960, a França, liderada por De Gaulle, propôs uma “confederação de estados europeus”. Após um longo período de discussão, os Seis encarregaram uma comissão presidida pelo embaixador Fouchet de elaborar um projecto de

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

caracteriza a fase aberta por este Tratado pois, como em etapas anteriores, a construção

europeia seguiu criando o seu próprio modelo, deixando-nos a braços com velhos rótulos que

não servem para a tipificar convenientemente. Trata-se de uma espécie de “unidade aberta”93

inspirada num tipo novo de federalismo respeitador da diversidade, e para a qual o Tratado de

Maastricht, ao introduzir, por exemplo, a lógica da subsidiariedade, trouxe um contributo que

não pode ser negado.

Ainda assim, devemos reconhecer que o desejo de conciliar a posição dos que

ambicionam ver a União progredir na via federal e os que estão determinados a evitar que tal

aconteça, fez de Maastricht “a strange heterogeneous creature”94 que não poderia ser mais do

que uma etapa transitória no processo de construção de uma verdadeira união política95. Em

jeito de conclusão, parece-nos adequado lembrar aqui uma parábola mencionada por Burgess,

a propósito deste Tratado: um jovem e nervoso padre sentado à mesa do pequeno almoço com

o seu bispo comia um ovo que, sem que o bispo soubesse, não estava bom. Quando o bispo

lhe perguntou se o ovo esteve a seu gosto, o padre foi demasiadamente tímido para lhe dizer a

verdade, tendo respondido que “partes dele eram excelentes”96 [nossa tradução]. Esta é uma

afirmação que poderia caracterizar o Tratado que saiu do Conselho Europeu de Maastricht.

união. O resultado seria o conhecido Plano Fouchet que propunha a criação de uma “União de Estados” indissolúvel e assente na cooperação. De acordo com o documento, esta união tinha como objectivos a adopção de uma política externa comum e de uma política de defesa comum, garantir uma cooperação estreita no domínio da ciência e da cultura e contribuir para a defesa dos direitos do Homem e da democracia. Para tal a União disporia de três instituições: o Conselho, o Parlamento e a Comissão Política Europeia. O texto preparado pela comissão Fouchet seria posteriormente “retocado” por De Gaulle que, entre outras modificações, renunciava à pretensão de criar instituições supranacionais e introduzia a possibilidade de dissolução da União. Como resposta, as delegações dos restantes cinco países elaboraram um contraprojecto que previa, entre outras inovações, a adjunção de um tribunal de justiça e de um secretário geral, a eleição e reforço do PE, a votação por maioria no Conselho, a criação de um executivo independente e o alargamento das competências do Tribunal de Justiça. A impossibilidade de um acordo entre a França e os seus cinco parceiros nas comunidades levaria o próprio De Gaulle a por termo às negociações do projecto Fouchet a 15 de Maio de 1962. Para uma descrição pormenorizada do Plano Fouchet ver, por exemplo, Sidjanski, obra citada, 51 – 61; Perez-Bustamante, op. cit., 128 – 133. 93 Esta ideia de “unidade aberta” está presente numa das obras de Lucas Pires como sendo o modelo desejável e viável para a Europa do futuro. Cf. Lucas Pires. 1992. O que é a Europa. Lisboa: Difusão Cultural, 131. 94 Cf. Burgess, op. cit., 215. 95 Os próprios negociadores expressaram um desejo de transitoriedade ao preverem no artigo N do Tratado de Maastricht uma nova conferência intergovernamental para 1996. 96 Cf. Burgess, op. cit., 207.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Capítulo II

O Tratado de Amesterdão: do Mercado Interno à Europa Social

Conscientes da necessidade de progredir na via da união política, e no sentido de dar

resposta aos desafios resultantes do fim da Guerra Fria e da transformação no Leste europeu,

os negociadores do Tratado de Maastricht deixaram patente o carácter transitório de algumas

das suas disposições ao preverem expressamente a data de convocação de uma nova

conferência intergovernamental “para analisar (...) as disposições do Tratado em relação às

quais está prevista a revisão”97. Pretendia-se que o tratado subsequente pudesse avançar na via

da integração política ao suprir algumas das conhecidas limitações do TUE. Eram, portanto,

grandes as expectativas em relação à nova reforma dos tratados, essencialmente devido a três

factores: primeiro, a fraca eficácia da nova política externa e de segurança comum

(especialmente visível durante a guerra civil da Bósnia) tornava clara a necessidade de rever o

segundo pilar saído de Maastricht; depois, a perspectiva de um grande alargamento da UE no

médio prazo (aberta pelo Conselho Europeu de Copenhaga, de 21 e 22 de Junho de 1993)

conferia um carácter de urgência à execução de uma reforma institucional que permitisse o

funcionamento de uma Comunidade com mais do dobro dos Estados de então; finalmente, o

turbulento processo de ratificação do Tratado de Maastricht e os acalorados debates que

mobilizaram a opinião pública de alguns dos Estados-membros (cada vez mais descontente

com alguns dos aspectos do projecto comunitário) contribuíram para aumentar o entusiasmo

dos líderes europeus em relação a uma nova ronda de reformas que permitisse reforçar a

União e torná-la mais próxima dos seus cidadãos98.

O elevado optimismo que rodeou a perspectiva de uma nova CIG foi, todavia, com o

passar do tempo, dando lugar a alguma apreensão, em face da sucessão de acontecimentos

97 Artigo N, nº 2 do TUE. 98 Cf. Monar and Wessels. 2001. The European Union after the Treaty of Amsterdam. London: Continuum.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

claramente desfavoráveis ao grande desígnio que se pretendia atribuir à terceira reforma dos

tratados. De facto, entre a turbulenta ratificação de Maastricht e a abertura da nova CIG muito

havia mudado: a Comunidade tinha concluído a terceira ronda de alargamentos com a entrada

da Áustria, Finlândia e Suécia99, países que, pela recente adesão, pouca experiência tinham

dos assuntos comunitários; por sua vez, a economia europeia e mundial havia mergulhado

numa crise séria que se prolongou por vários anos e que, para além de adiar a conclusão da

UEM (condição essencial para os avanços da integração política), teve como corolário um

grave problema social, visível nas elevadíssimas taxas de desemprego. Como consequência, e

a exemplo do que frequentemente se verifica em situações de crise, os líderes nacionais,

menos preocupados com a imagem do projecto europeu do que com a captação de votos,

optaram pela solução mais fácil responsabilizando a Comunidade e a disciplina decorrente das

metas da UEM pelas dificuldades vividas. Crescia, assim, o sentimento de desconfiança em

relação à Europa comunitária, já sentido aquando da ratificação de Maastricht. Tudo indicava,

portanto, um regresso ao europessimismo, responsável senão pela estagnação, pelo menos por

um abrandamento da integração europeia na década de 1970.

Em face da nova conjuntura, alguns países - com o Reino Unido à cabeça -

questionaram fortemente a oportunidade de realização de uma nova conferência

intergovernamental no prazo previsto, utilizando como principal argumento o facto de ser

ainda demasiadamente cedo para fazer uma correcta avaliação do anterior Tratado e de haver

por parte dos europeus alguma resistência em relação ao avanço da integração. Ainda assim,

depois de alguma discussão, a CIG prosseguiria conforme fora planeado.

99 Os tratados de adesão foram assinados com a Áustria, a Suécia, a Noruega e a Finlândia em 30 de Março de 1994, tendo sido posteriormente submetidos a referendo nesses países. À semelhança do que já havia acontecido, o povo norueguês voltou a rejeitar a entrada da Noruega na Comunidade. Os restantes três países tornaram-se membros a 1 de Janeiro de 1995.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Inicialmente limitada às questões definidas por Maastricht100, a agenda da conferência

intergovernamental foi - na sequência da possibilidade apresentada pelo próprio Tratado101 -

sendo sucessivamente alargada nas várias reuniões do Conselho Europeu, estendendo-se a

quase todas as actividades da União. A grande excepção foi a UEM, deixada deliberadamente

de fora por ser considerada matéria demasiadamente sensível para ser abordada num período

de crise, para o qual era apontada como bode expiatório.

No final, com um mandato que continha um número impressionante de medidas a ser

implementadas, a CIG parecia indicar que “la grande réforme instituttionelle allait enfin

s’accomplir” (Paul Sabourin 1999, 62). A realidade revelou-se, porém, bem diferente do

esperado. As discussões foram divididas em três grandes áreas - cidadania, reforma

institucional e acção externa - mas a frequente falta de consenso entre os Estados-membros

dificultou grandemente o progresso das negociações. Apesar dos esforços para ultrapassar as

divergências, depois de três presidências102 e vários conselhos europeus, as dificuldades

mantinham-se. O projecto final de tratado103 foi apresentado pela presidência dinamarquesa, a

4 de Junho de 1997, mas a fase crucial da negociação ficaria adiada até ao Conselho Europeu

de Amesterdão, que decorreu cerca de duas semanas mais tarde104.

Depois de mais de um ano de conversações, nos últimos dois dias de encerramento da

CIG não tinha ainda sido possível chegar a acordo em matérias tão importantes como a

relação entre a UE e a União da Europa Ocidental (UEO); as relações económicas externas; a

criação de um mecanismo para pôr em prática a flexibilidade; ou, a reforma das instituições.

100 Entre as quais se contavam uma possível extensão do procedimento de co-decisão; as disposições relativas à PESC e às matérias de defesa e a possibilidade de estender as competências explícitas da União às áreas da energia, turismo, e protecção civil. Cf. Monar and Wessels, op. cit., 10. 101 O artigo N, nº 1 do TUE conferia aos governos dos Estados-membros e à Comissão a possibilidade de apresentarem, ao Conselho Europeu, propostas de revisão do Tratado. 102 A CIG 96/97 teve o seu início em Turim, a 29 de Março de 1996, sob os auspícios da presidência italiana, prosseguiu durante a presidência irlandesa e terminou no mandato da presidência dinamarquesa. 103 O processo de dar forma a um projecto de tratado vinha sendo desenvolvido desde junho de 1995, tendo já sido anteriormente apresentado um outro projecto de tratado pela presidência irlandesa, aquando da Cimeira de Dublin de 13 e 14 de Dezembro de 1996. 104 Mais precisamente a 16 e 17 de Junho de 1997.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Como realça Jan Grünhage (2001, 21): “[O]verall, the European Council would have to revisit

every significant area of the work of the conference”. A última parte das negociações

revestiu-se de extrema dificuldade, com um grande número de assuntos a ser decidido nas

últimas horas da cimeira. Nenhum acordo foi possível, todavia, em relação àquela que era

considerada uma das grandes “razões de ser” desta conferência – a reforma institucional.

Neste domínio, o máximo alcançado (que foi na verdade um mínimo) limitou-se, quase

exclusivamente, a um protocolo sobre a reforma institucional, que aventava possíveis opções

para uma futura reforma, face à perspectiva de um novo alargamento.

Depois de tão grandes expectativas, alimentadas por uma agenda ambiciosa, o

resultado de Amesterdão105 parecia poder ser resumido pela crua expressão “a montanha pariu

um rato”. As críticas, algumas de extrema dureza, não se fizeram tardar e entre as mais

ouvidas sobressaía a palavra “fracasso”. Embora compreendendo as razões de tão grande

desapontamento, não nos parece justificado este “epitáfio”. É verdade que o novo Tratado

ficou aquém das expectativas, ao falhar, por exemplo, nas reformas institucionais

indispensáveis ao alargamento, mas não podemos, nem devemos, esquecer que, em alguns

domínios (com destaque para as dimensões sociais da integração), Amesterdão impulsionou

um avanço significativo revelando-se “(...) qual ‘primeira pedra’ de uma sociedade civil

europeia, capaz de ‘civilizar’ o mercado, mas ao mesmo tempo, sustentar o consenso popular

a respeito da moeda única” (Lucas Pires 1998, 7).

À semelhança do que tentámos fazer em relação ao Tratado de Maastricht,

procuraremos de seguida fundamentar esta nossa opinião através da análise das principais

contribuições de Amesterdão para o avanço da integração política. Para tal, recorremos uma

105 O Tratado de Amesterdão foi concluído a 17 de Junho de 1997 e assinado pelos chefes de Estado e de governo em 02 de Outubro do mesmo ano. Todavia, um longo e penoso processo de ratificação adiaria a sua entrada em vigor até 01 de Maio de 1999.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

vez mais à separação que, embora algo artificial106, nos parece facilitadora da análise, entre

domínio interno e domínio externo da União.

2.1 A Eficácia Interna da União e a Questão da Legitimidade do Projecto Comunitário

Apesar das muitas querelas entre os Estados-membros terem impossibilitado uma

reforma de fundo indispensável ao futuro alargamento da Europa comunitária, Amesterdão

tentou, ainda assim, melhorar o funcionamento interno da Comunidade e diminuir o evidente

défice de democraticidade que durante muitos anos contribuiu para um assinalável

desinteresse dos cidadãos em relação ao projecto comunitário.

2.1.1 As principais reformas institucionais: as novas disposições e a reestruturação adiada

Embora não tenham conseguido chegar a acordo quanto a uma reforma de fundo das

instituições, os negociadores de Amesterdão não deixaram, porém, de proceder a certas

modificações no plano institucional, com o objectivo de aumentar a eficácia da actividade

comunitária. Entre essas alterações, merecem-nos especial destaque a extensão do

procedimento de co-decisão (e o consequente reafirmar da importância do PE); o reforço da

regra da maioria qualificada; e, o novo papel reservado aos parlamentos nacionais no sistema

institucional comunitário.

Com o intuito de reforçar a actuação do Parlamento Europeu como verdadeiro co-

legislador, o novo Tratado alargou consideravelmente os domínios de utilização do

procedimento de co-decisão introduzido por Maastricht, fazendo dele a regra que passa a

106 De facto, parece-nos difícil, senão impossível, estabelecer uma linha divisória clara entre a dimensão interna e externa da União, na medida em que, por exemplo, um melhor funcionamento institucional (que se situará, aparentemente, no domínio da eficácia interna) terá necessariamente reflexos na capacidade de actuação externa da União.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

funcionar entre os mecanismos de decisão da UE. Tratou-se de uma tentativa clara de

progredir nas soluções do défice democrático, privilegiando um mecanismo que melhora

significativamente a posição do PE (única instituição directamente eleita) nas relações inter-

institucionais. Por outro lado, conscientes da complexidade deste procedimento, os

legisladores encetaram uma tentativa para a sua simplificação ao suprimirem a “terceira

leitura”. Ainda assim, apesar do aparente salto qualitativo que tal representa, mantêm-se aqui

as reservas que já tivemos oportunidade de enunciar no capítulo relativo ao Tratado de

Maastricht. O verdadeiro alcance desta medida dependerá da capacidade do Parlamento

Europeu para fazer valer as suas posições enquanto verdadeiro representante dos cidadãos

europeus. Contudo, o reforço dos poderes da assembleia europeia é confirmado por outras

medidas. Em vez da mera consulta estipulada por Maastricht, Amesterdão faz depender a

efectividade da indigitação do presidente da Comissão da aprovação do PE (artigo 214º, nº 2

TCE). No mesmo sentido, serão também sujeitas a parecer favorável do Parlamento Europeu

as novas sanções criadas para punir a violação grave e persistente dos direitos fundamentais

por parte de um Estado-membro. Além disto, Amesterdão alarga também consideravelmente

os casos de consulta prévia ao Parlamento, destacando-se o caso respeitante às decisões em

matérias de “flexibilidade” ou “cooperação reforçada” no primeiro pilar (artigo 11º, nº 2

TCE), ao mesmo tempo que lhe outorga a possibilidade de estabelecer o estatuto e as

condições gerais de exercício das funções dos seus membros (embora sujeito a parecer da

Comissão e aprovação unânime do Conselho - artigo 190º, nº 5 TCE). Finalmente,

antecipando o próximo alargamento, o Tratado fixa em setecentos o número limite de

parlamentares107 (artigo 189º, ¶ 2 TCE).

Na linha do que também já vinha sendo regra nas anteriores revisões dos tratados,

Amesterdão procedeu a uma considerável extensão da votação por maioria qualificada,

107 Número que, curiosamente, viria a ser alterado pelo Tratado de Nice.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

deixando adivinhar um passo em frente na via da supranacionalidade. Falhou, porém, na

tarefa de tornar este tipo de votação na regra geral, uma vez que da unanimidade continuaram

a depender as matérias mais sensíveis, como as questões de índole constitucional ou as

relativas à tributação. Às vantagens de um mecanismo que facilitaria indubitavelmente o

avanço do processo de integração, sobrepôs-se, uma vez mais, o velho espírito do

Compromisso de Luxemburgo, o mesmo é dizer, a lei de ferro dos interesses nacionais.

Visando conferir maior democraticidade ao projecto comunitário, o novo Tratado

procurou incrementar o envolvimento dos parlamentos nacionais na tomada de decisões

comunitárias. Com esta finalidade, foi elaborado um Protocolo relativo ao papel dos

parlamentos nacionais na União Europeia que formaliza o envio sistemático de informação

sobre a actividade da União, por forma a que estes possam discutir as propostas de legislação

comunitária e, deste modo, dar a conhecer aos cidadãos (naturalmente mais atentos aos

debates no seio dos respectivos parlamentos nacionais do que nas instituições europeias) a

actividade da Comunidade. Para tornar exequível este objectivo, o referido protocolo

determina que as propostas de iniciativa legislativa com origem na Comissão só poderão ser

colocadas na agenda do Conselho seis semanas depois de terem saído dos serviços daquela

instituição. Por outro lado, no mesmo texto, reconhece-se também à Conferência dos Órgãos

dos Parlamentos Nacionais Especializados em Assuntos Europeus (COSAC) a possibilidade

de submeter às instituições comunitárias as contribuições que considere oportunas sobre as

actividades legislativas da União.

Para além destas inovações, o Tratado de Amesterdão procurou ainda introduzir

algumas modificações no âmbito de actuação das próprias instituições. Neste sentido,

procedeu à separação do Comité Económico e Social e do recém criado Comité das Regiões,

permitindo-lhes responder mais eficazmente ao alargamento dos respectivos campos de acção.

Por outro lado, consolidou o papel do Tribunal de Justiça que viu as suas competências

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

reforçadas e alargadas às novas áreas que passaram a fazer parte do domínio comunitário. Por

sua vez, uma Declaração anexa ao Tratado prevê um aumento da importância do papel de

presidente da Comissão ao estabelecer que este “(...) deverá gozar de um amplo poder

discricionário em matéria de atribuição das funções no seio do colégio, bem como no que

respeita a qualquer redefinição delas durante um mandato da Comissão”108. Tomando em

consideração a perspectiva da entrada em funções de uma nova Comissão no ano 2000, foi

também prevista uma reorganização das tarefas do colégio para assegurar uma melhor

repartição entre as pastas convencionais e as atribuições específicas, ao mesmo tempo que se

considerou “desejável” atribuir a responsabilidade pela área das relações externas a um único

vice-presidente109.

Sem negar a importância destas medidas, percebe-se, todavia, que elas estão longe de

cumprir os ambiciosos objectivos fixados pela agenda da conferência intergovernamental. De

facto, quase dois anos de negociações (se tivermos em conta os trabalhos preparatórios da

CIG que se iniciaram ainda em 1995) não foram suficientes para que os líderes europeus

pudessem chegar a acordo no que respeita a uma reforma de fundo que permitisse às

instituições funcionar eficazmente numa Europa alargada. Questões de importância crucial

como as regras de voto no Conselho ou a composição da Comissão foram adiadas, ainda que

os Estados tenham, através de um Protocolo completado por uma Declaração110, estabelecido

alguns compromissos.

No que respeita à Comissão, os textos supramencionados estabelecem que, à data de

realização do próximo alargamento, esta instituição passará a contar apenas um comissário

por Estado-membro111, fazendo, contudo, depender tal medida de uma nova ponderação de

108 Ver Declaração relativa à organização e ao funcionamento da Comissão. 109 Ibidem. 110 Ver Protocolo relativo às instituições na perspectiva do alargamento da União Europeia e Declaração relativa à organização e ao funcionamento da Comissão. 111 Significa isto que, aquando da primeira ronda de novas adesões à Comunidade, os cinco “grandes” se verão privados do seu segundo comissário.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

votos no Conselho que permita compensar “os Estados-membros que prescindam da

possibilidade de designar um segundo membro da Comissão”. Para esta revisão

compensatória são apontadas duas possibilidades: ou uma reponderação dos votos ou a

introdução de uma dupla maioria112. O Protocolo fixa ainda o prazo máximo para a

convocação de uma nova CIG (no mínimo um ano antes de a União ultrapassar os vinte

Estados-membros), que terá como objectivo proceder a uma revisão global das disposições

dos tratados relativas à composição e funcionamento das instituições. Assim sendo, até à

concretização do próximo alargamento manter-se-ão em vigor as disposições do

Compromisso de Ioannina113, ficando, no entanto, previsto que, até essa data, deverá ser

encontrada uma solução para o “caso especial da Espanha”114, país que nas negociações de

adesão viu compensado com um segundo comissário, o facto de, a despeito da sua dimensão,

lhe ter sido atribuído um número de votos no Conselho inferior aos dos quatro grandes

Estados. O acordo final contido no Protocolo relativo às instituições na perspectiva do

alargamento da UE deixava, pois, antever uma tentativa de correcção da “sobre-

representação” dos pequenos e médios países, que tinha vigorado até então, através da

introdução de um maior equilíbrio de posições relativas entre grandes e pequenos. À aparente

justeza de tal medida pode contrapor-se, todavia, a possibilidade de uma alteração deste tipo

poder comportar, na prática, o perigo de um desequilíbrio ainda mais acentuado. Na verdade,

qualquer tentativa de modificar o equilíbrio vigente deveria ser criteriosamente ponderada,

sob pena de fazer pender a balança para o lado dos que, pela sua dimensão e peso político e

económico, são já naturalmente mais fortes115. Igualmente preocupante, parece-nos ser o

acentuar de uma tendência já perceptível em Maastricht, sendo evidente que a Comissão sai 112 Como explicaremos mais à frente, a solução encontrada em Nice foi, na verdade, uma “tripla maioria”. 113 Decisão do Conselho de 29 de Março de 1994 cujo intuito era o de evitar que com a entrada da Áustria, Suécia e Finlândia, a anterior posição relativa dos maiores Estados-membros no voto ficasse prejudicada em relação aos pequenos e médios Estados. 114 Ver Declaração respeitante ao Protocolo relativo às instituições na perspectiva do alargamento da União Europeia. 115 Malogradamente, como teremos oportunidade de constatar no capítulo que lhe é dedicado, Nice demonstrou, na prática, os perigos que apontamos aqui em teoria.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

de Amesterdão notoriamente enfraquecida, sobretudo no que respeita à noção de

colegiatura116. Os comissários são cada vez mais associados ao seu país de origem, colocando

deste modo em causa a máxima de independência117 apresentada nos tratados como

característica principal desta instituição, que para além de lhe conferir um carácter especial de

supranacionalidade, parecia ser a sua fórmula de sucesso (estribada no seu carácter mais

tecnocrático).

2.1.2 A União e o cidadão

Ao longo dos vários debates tornou-se evidente para os intervenientes na conferência

intergovernamental a urgência de motivar mais os cidadãos para o projecto comunitário.

Conscientes de que tal tarefa só terá êxito quando a União fôr capaz de responder eficazmente

aos problemas que mais preocupam os europeus, os negociadores do Tratado procuraram

definir um conjunto de medidas que permitam à Comunidade ir de encontro às necessidades

dos seus cidadãos.

Reconhecendo a necessidade de combater os significativos índices de desemprego na

Europa comunitária, o Tratado de Amesterdão introduz um novo título dedicado ao emprego

(Título VIII TCE) que procura dotar a Comunidade das competências e instrumentos que lhe

permitam tornar efectivo o objectivo de “um elevado nível de emprego” já inscrito no TCE.

Neste sentido, o Tratado define um processo para a coordenação das políticas de emprego;

prevê nomeadamente acções de incentivo à cooperação entre os Estados-membros e cria um

Comité de Emprego, com carácter consultivo, para promover a coordenação das políticas em

matéria de emprego e de mercado de trabalho, e fazer a ligação com os parceiros sociais.

116 Tendência que o Tratado de Nice, longe de contrariar, veio, de facto, acentuar. 117 De acordo com o artigo 213º nº 1 TCE “[A] Comissão é composta por vinte membros, escolhidos em função da sua competência geral e que ofereçam todas as garantias de independência”. Ainda segundo o nº 2 do mesmo artigo “[O]s membros da Comissão exercerão as suas funções com total independência, no interesse geral da Comunidade” [sublinhado nosso].

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Ainda assim, o novo título ficou aquém das expectativas. Como assinala José Barros Moura118

o objectivo de atingir um elevado nível de emprego não é integrado entre os princípios

directores da política económica ao nível da estabilidade monetária, do combate à inflação ou

da redução dos défices públicos; por outro lado, a exigência de adaptabilidade da mão de obra

presente neste Tratado, aponta para uma “flexibilização” do mercado de trabalho, que pode ter

efeitos perversos no que respeita à defesa do “modelo social europeu”; finalmente, o Tratado

deixa perceber uma espécie de condicionamento da política de emprego à política económica,

o que poderá fazer oscilar a importância daquela ao sabor das conveniências desta. Para além

disto, Amesterdão não criou verdadeiramente uma política comum de emprego (como havia

sido proposto pela França)119, limitando-se, na verdade, a confirmar que a responsabilidade

primeira pelo emprego incumbe aos Estados. É, contudo, de louvar a defesa de uma

intervenção conjugada dos Estados-membros, assente numa “estratégia de coordenação”120

para fazer face aos problemas do desemprego. Por outro lado, talvez esta aparentemente

contraditória “abstenção” da Comunidade se possa justificar à luz da lógica da

subsidiariedade121, passando assim de atitude criticável a postura meritória.

Empenhados em reafirmar o papel central do cidadão no projecto comunitário, os

legisladores procuraram acentuar a intervenção da Comunidade no domínio da política social.

As reservas britânicas em relação ao Acordo relativo à política social foram finalmente

ultrapassadas, o que permitiu à Europa “falar a uma só voz” neste domínio. O tratado passou

assim a incorporar, com pequenas alterações, o supra-referido Acordo. Às disposições sociais

já previstas em Maastricht somam-se agora novos mecanismos (em sectores tão diversos

como a política social, a educação, a formação profissional e a juventude) visando 118 Cf. José Barros Moura. 1997. “O Tratado de Amesterdão: Conteúdo, Problemas e Perspectivas”. Europa Novas Fronteiras, Novembro, 77. 119 Proposta que, aliás, nos levanta algumas dúvidas, dadas as disparidades económicas e sociais ainda existentes entre os países da União. 120 Que implicará o alinhamento das respectivas políticas de emprego dos Estados-membros com a condução da política económica, de forma a eliminar eventuais desfasamentos geradores de desemprego e a promoção de um mercado de trabalho suficientemente “flexível” para responder a eventuais alterações económicas. 121 Cf. Vila Maior, op. cit., 199.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

nitidamente o alargamento do catálogo dos direitos sociais. No Tratado ficaram, deste modo,

reflectidas, entre outras, as preocupações com a melhoria das condições de vida e de trabalho;

a adequada protecção social dos trabalhadores; e, o desenvolvimento dos recursos humanos

ou a luta contra a exclusão social122.

Paralelamente, Amesterdão procurou também consolidar o algo frágil estatuto de

cidadão da União introduzido por Maastricht. Começando por afirmar o carácter de

complementaridade da nova cidadania123 em relação à cidadania nacional, o Tratado

acrescenta ao seu catálogo específico de direitos124 a possibilidade de um cidadão se dirigir

por escrito a qualquer uma das instituições da União numa das doze línguas oficiais da

Comunidade e obter resposta redigida na mesma língua. Para além disto, Amesterdão procura

também reforçar o carácter político do novo estatuto ao somar aos direitos já consagrados

anteriormente, a obrigatoriedade de respeito pelos direitos do Homem e da Mulher e pelas

liberdades fundamentais. Ficaram ainda contemplados os direitos dos consumidores e um

direito genérico à informação.

Com as alterações introduzidas por Amesterdão no artigo 6º do TUE pode ler-se: “a

União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do

Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito (...)”. Trata-se,

portanto, de uma importantíssima declaração de princípio que pressupõe uma vontade clara de

avançar na via da união política, patente na cada vez maior politização dos direitos

assegurados aos cidadãos. Como sublinha Vila Maior (1997, 204) “a relevância desta

disposição encontra-se na vontade da C.E. em afirmar-se inequivocamente nos trilhos da

integração política, pois incorpora no tratado um conjunto de princípios (...) que estruturam

qualquer ordem político-constitucional dos Estados modernos” [ênfase nossa]. Para dotar de

122 Ver Título XI “A política social, a educação, a formação profissional e a juventude” do TCE. 123 No artigo 17º do TCE pode ler-se: “(...) A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui” [sublinhado nosso]. 124 Artigos 18º a 21º do TCE.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

eficácia esta declaração de vontades, o Tratado estabelece também mecanismos de garantia

que assegurem a punição no caso da sua violação. Assim, sempre que os direitos

fundamentais do cidadão comunitário forem ameaçados ou postos em causa pela actuação de

uma instituição comunitária, pode o lesado interpor recurso para o Tribunal de Justiça. Mas,

se tal violação dos direitos fundamentais dos cidadãos resultar do comportamento de um

Estado-membro, o Tratado cria um mecanismo próprio de apreciação do comportamento

faltoso125 que, ficando comprovado, resultará na suspensão de certos direitos decorrentes

deste Tratado ao Estado que incorreu no incumprimento.

Seguindo esta orientação de defesa dos cidadãos, o Tratado incorpora também alguns

direitos fundamentais específicos, como é o caso da protecção da saúde pública (artigo 152º

TCE) e da defesa dos consumidores (artigo 153º TCE), demonstrando que os legisladores

estão atentos às novas necessidades dos cidadãos. Para além destes, foi ainda aprovado um

direito genérico à informação, que ao garantir o acesso dos cidadãos aos documentos que

tenham origem numa das três instituições do triângulo institucional, procura fomentar uma

maior interacção entre a Comunidade e os cidadãos. Ainda que tenha ficado genericamente

consagrado, a regulamentação deste direito foi, no entanto, remetida para o campo do direito

derivado, o que, na prática, impediu a sua invocação imediata pelos cidadãos.

Apesar de alguma timidez, patente, sobretudo, numa certa ambiguidade na definição

dos princípios orientadores da acção dos Estados126, ressalta, ainda assim, destas disposições

uma preocupação evidente com o cidadão, enquanto ente fundamental do processo de

125 De acordo com o artigo 7º do TUE, o Conselho Europeu é chamado a apreciar a conduta do Estado-membro alegadamente desrespeitador dos direitos fundamentais. Verificada a existência da violação, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos do Estado-membro faltoso, nomeadamente o direito de voto do representante desse Estado no Conselho. À primeira vista este mecanismo inovador parece não deixar dúvidas quanto à subordinação dos Estados-membros à autoridade comunitária, num domínio claramente político. Existem, contudo, como sublinha Vila Maior (1997, 207), algumas reservas a apontar, nomeadamente o facto de o alegado incumprimento de um Estado ser analisado no Conselho Europeu, situação que não parece a mais correcta, não só por se tratar de uma espécie de julgamento inter pares, que dificultará a imparcialidade da votação, mas também porque atribui ao Conselho uma espécie de função jurisdicional que deveria pertencer exclusivamente ao Tribunal de Justiça. 126 Referimo-nos, por exemplo, à política de emprego que começou por ser entendida como uma prioridade para se reduzir, no final, a uma espécie de “declaração de intenções” por parte dos Quinze.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

construção europeia. Se a Europa comunitária começara por ser um projecto de elites, parece

chegado o momento de envolver os cidadãos na empresa europeia, sob pena de, sem o apoio

destes, o sonho perder o significado127.

2.1.3 A clarificação do princípio da subsidiariedade

Tendo presente a ambiguidade que marcou a redacção do princípio da subsidiariedade

consagrado por Maastricht, os negociadores de Amesterdão esforçaram-se por codificar os

avanços já alcançados nos vários conselhos europeus que procuraram clarificar o seu âmbito

de aplicação. O resultado foi a adopção de um Protocolo relativo à aplicação dos princípios

da subsidiariedade e da proporcionalidade128 que, baseado nas conclusões do Conselho

Europeu de Birmingham de 16 de Outubro de 1992, nas decisões do Conselho Europeu de

Edimburgo de 11 e 12 de Dezembro do mesmo ano, e no Acordo Interinstitucional de 28 de

Outubro de 1993129, procurava torná-los mais precisos e juridicamente vinculativos. Para além

de enunciar os três critérios pelos quais se deve reger a aplicação do princípio da

subsidiariedade130, o Protocolo confirmava também o carácter dinâmico deste princípio, que

respeitando a evolução da integração europeia servirá para “alargar a acção da Comunidade,

dentro dos limites das suas competências, se as circunstâncias o exigirem e, inversamente,

127 Percebe-se, portanto, que esta preocupação de fomentar o envolvimento do cidadão no processo de integração europeia tenha ganho, sobretudo nos últimos anos, uma visibilidade surpreendente no seio da Comunidade. A título de exemplo, veja-se o Preâmbulo de um Guia do Cidadão, da responsabilidade da Comissão, intitulado Amsterdão: Um novo Tratado para a Europa. 1997. 2ª ed., onde pode ler-se: “[E]ste Tratado é de todos os europeus” e mais à frente “Este Tratado diz respeito a todos”, numa tentativa clara de captar o interesse daqueles que são os verdadeiros beneficiários da edificação comunitária. 128 Embora formalmente se distingam os dois princípios, a sua regulamentação conjunta num mesmo Protocolo justifica-se pela sua estreita relação. Consagrado no último parágrafo do artigo 3ºB do TUE, o princípio da proporcionalidade aplica-se a todas as acções da Comunidade, abrangidas, ou não, pelas competências exclusivas. Significa isto que a sua aplicação implica que deve ser deixada aos Estados-membros a maior “autonomia” possível, limitando-se a intervenção do legislador comunitário ao essencial. Assim, destinando-se a subsidiariedade a responder à questão de “onde poderão os objectivos ser melhor concretizados”, e a proporcionalidade à questão dos “meios a utilizar”, os dois princípios complementam-se. 129 Acordo celebrado entre o PE, a Comissão e o Conselho sobre a aplicação do princípio da subsidiariedade. 130 Ver Primeira Parte, Capítulo I, B) A génese de uma união política: rumo a uma construção de tipo federal?, deste trabalho.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

limitar ou pôr termo a essa acção quando esta deixe de se justificar”. Conquanto se mantenha

a dupla faceta do princípio, uma análise rigorosa das disposições do supracitado Protocolo

evidencia, em nossa opinião, uma orientação clara para uma descentralização da acção. Nesta

medida, o reforço e a clarificação deste princípio deve ser encarado como uma medida basilar

na construção da desejável Europa dos Homens, onde só será aceitável a decisão que seja

tomada o mais perto possível dos cidadãos, máxima que nos parece ser afinal a raison d’être

deste princípio, fazendo dele um elemento intrínseco ao espírito federal: “L’Union

européenne repose sur le principe de subsidiarité (...) Ce principe contribue au respect de

l’identité nationale des États membres et préserve leurs compétences. Il vise à ce que les

décisions soient prises au sein de l’Union européenne aussi prés que possible du citoyen”

(Conselho Europeu de Edimburgo, Conclusões da Presidência, 11 e 12 de Dezembro de 1992)

[sublinhado nosso]. Sem pretender negar a importância do protocolo em análise, sobretudo na

medida em que “constitucionaliza”131 as regras de aplicação da subsidiariedade, não podemos

também deixar de fazer um apontamento crítico. Representando inequivocamente um esforço

de clarificação do âmbito de aplicação da subsidiariedade, este protocolo ficou todavia longe

de compensar a ambiguidade de que enferma a redacção do artigo 3ºB (que passa a artigo 5º

com Amesterdão) do TCE. Na verdade, parece evidente que aos negociadores de Amesterdão

faltou vontade política para operar uma verdadeira revisão do artigo, talvez porque tal revisão

implicasse o fim de uma interpretação ambivalente, que vai servindo os interesses quer dos

defensores, quer dos opositores, de mais integração. Ainda assim, afigura-se urgente uma

clarificação deste princípio132, sobretudo no que respeita aos meios de controlo da sua

131 Em rigor, não poderemos falar de constitucionalização, dado que não existe (ainda) de facto uma constituição europeia. 132 Clarificação que continua, aliás, na ordem do dia, sendo um dos pontos essenciais do debate sobre o futuro da Europa, iniciado no pós-Nice e que culminará com uma nova conferência intergovernamental em Outubro de 2003.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

correcta aplicação à disposição das instituições e dos Estados-membros133.

Devidamente clarificado, o princípio da subsidiariedade poderá ser um dos princípios

basilares da nova união política em construção. Marcadamente descentralizador, não deve

constituir, no entanto, entrave à acção da União Europeia. Para resolver o paradoxo bastará

porventura:

“(...) definir, sem equívocos, que os objectivos comunitários e os que resultam de

competências concorrentes entre a C.E. e os Estados membros são prosseguidos em

primeira estância pela esfera supranacional e só o serão pelos Estados membros em

delegação de competências [delegação essa que, acrescentamos, teria inevitavelmente

que ser a regra]” (Vila Maior 1997, 170) (ênfase nossa).

Isto denota, no nosso entender, que as posições da Comunidade e dos Estados-membros se

inverteriam, garantindo-se o aumento de competências da União, mas também que a decisão

fosse tomada o mais perto possível dos cidadãos. O aparentemente intricado problema não

deixa de ter, portanto, uma resolução simples, haja vontade política.

2.1.4 A comunitarização de parte do terceiro pilar: o espaço de segurança, liberdade e justiça

Os “grandes vencedores da CIG 1996/97 e do Tratado de Amesterdão”; é assim que

Jörg Monar (2001, 267) classifica a Justiça e Assuntos Internos, em virtude das significativas

133 Note-se que o único meio de controlo expressamente enunciado no Protocolo é o relatório que a Comissão deverá apresentar anualmente ao Conselho Europeu, ao PE e ao Conselho, sobre a aplicação do artigo em análise, o qual deverá ser ainda enviado ao Comité das Regiões e ao Comité Económico e Social. É certo que, ao ser expressamente incluído no Tratado, o princípio da subsidiariedade aparece-nos como uma regra de direito, logo ficando a sua observância sujeita ao controlo do Tribunal de Justiça. Este será, todavia, um controlo a posteriori quando, dada a subjectividade dos critérios em que se baseia (necessidade e eficácia), seria essencial existir uma fiscalização prévia da subsidiariedade. A este propósito, refira-se muito sucintamente que têm vindo a ser discutidas duas hipóteses: a primeira passaria pela atribuição ao TJCE de competência para emitir um parecer prévio (como acontece em relação aos projectos de acordos internacionais – artigo 228º, nº 6 TCE), o qual incidiria, neste caso, sobre uma proposta da Comissão e visaria avaliar o respeito pelo princípio da subsidiariedade; a segunda hipótese, sugerida pelo PE, consistiria na incorporação de um artigo no Tratado que permitisse a interposição de recurso junto do Tribunal de Justiça, após a aprovação de uma norma ou acto pela Comunidade, mas antes da respectiva aplicação, sendo acessível quer aos Estados-membros, quer às instituições.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

transformações que revolucionaram o terceiro pilar saído de Maastricht. Se antes estávamos

no domínio de intervenção tipicamente intergovernamental, com Amesterdão assistiu-se a

uma comunitarização de várias matérias deste pilar. Questões tão importantes como a

concessão de vistos, as políticas de asilo e de imigração, as regras respeitantes à cooperação

judicial em matéria civil passaram a estar sob a alçada da Comunidade, constando do novo

Título do TCE “Vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de

pessoas”. Quer isto dizer que, nestas matérias, Amesterdão implica a adopção de um novo

método que, à simples cooperação intergovernamental, opõe uma participação alargada das

instituições comunitárias, o controlo por parte do Tribunal de Justiça e a obrigação da União

actuar pela via legislativa (regulamentos e directivas em vez de convenções)134. De referir que

é dado à Comissão o monopólio da iniciativa nos domínios acima mencionados, muito

embora os legisladores tenham optado por estabelecer um período de transição de cinco anos,

durante o qual o Conselho delibera por unanimidade, sob proposta da Comissão, ou por

iniciativa de um Estado-membro e mediante consulta ao Parlamento Europeu.

Outro avanço significativo foi a incorporação do Acordo de Schengen na ordem

jurídica comunitária, resultando na unificação dos dois sistemas jurídicos paralelos. Na

realidade, Schengen converte-se assim na primeira das “cooperações reforçadas”135,

mecanismo introduzido também pelo próprio Tratado de Amesterdão. Por outro lado, ao

contrário do TUE, que não havia definido objectivos precisos para a cooperação em matérias

do terceiro pilar, Amesterdão define claramente um conjunto de novos objectivos para a

justiça e assuntos internos. O mais importante destes é, na nossa perspectiva, o que foi

consagrado no reformulado artigo 2º do TUE que prevê “a manutenção e o desenvolvimento

da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. Com a criação desta área

pretende-se assegurar a conjugação da livre circulação de pessoas com as “medidas 134 Nas restantes matérias, nomeadamente na cooperação entre as polícias e outras autoridades responsáveis por assuntos criminais, mantém-se a cooperação intergovernamental. 135 Cf. Perez-Bustamante, op. cit., 298.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

adequadas” em matéria de controlos de fronteira externa, asilo, imigração e de prevenção e

combate à criminalidade. Trata-se, aparentemente, de um objectivo muito ambicioso e de

grande alcance, conquanto, as medidas previstas no Tratado (artigo 61º TCE) tenham sido

explicitamente ligadas à questão da livre circulação de pessoas, o que, de certo modo, acaba

por limitar o âmbito da acção. Há, de facto, nesta relação como que uma espécie de

reminiscência do Acordo de Schengen na medida em que, como sublinha Monar (2001, 270):

“[T]he primary emphasis here is clearly on garanteeing the free movement of persons

– the central objective of Schengen. The “appropriate measures” to be taken in the

other areas mentioned (external border controls, immigration, asylum and crime

prevention) are explicitly related to this objective, and this in a way which is strongly

reminiscent of the old ‘compensatory measures’ in the Schengen context”.

Não obstante, se é certo que as áreas referidas mereciam já uma atenção individual que

as libertasse de uma espécie de subordinação à liberdade de circulação, também é verdade que

a sua comunitarização foi, ainda assim, um passo assinalável, sobretudo se pensarmos que tais

domínios só recentemente passaram a fazer parte da agenda europeia. Igualmente importante

é o facto de, pela primeira vez, o Tratado de Amesterdão estabelecer um prazo claro para a

adopção das medidas nas áreas da justiça e assuntos internos136. Pese embora a limitação

resultante da persistência na associação entre tais medidas e a liberdade de circulação de

pessoas, garante-se com esta delimitação no tempo uma maior probabilidade de sucesso,

como o comprova, aliás, a concretização de outros objectivos igualmente sujeitos a prazo de

conclusão137.

O Tratado de Amesterdão colocou, por conseguinte, sob a alçada da actuação

136 No artigo 61º do TCE pode ler-se: “[A] fim de criar progressivamente um espaço de liberdade, segurança e justiça, o Conselho adoptará: a) no prazo de cinco anos a contar da data da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, medidas destinadas a assegurar a livre circulação de pessoas nos termos do artigo 14º, em conjugação com medidas de acompanhamento, com ela directamente relacionadas, em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração (...)”. 137 A título de exemplo lembramos o estabelecimento da Política Comercial Comum ou a, mais recente, conclusão da União Económica e Monetária.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

comunitária um número considerável de matérias relativas à justiça e assuntos internos. Em

consequência desta comunitarização parcial do terceiro pilar, o Título VI do TUE foi

profundamente reformulado, tendo-lhe sido aditadas várias disposições inovadoras. Deste

modo, às matérias não comunitarizadas138, isto é, que continuam reservadas à cooperação

intergovernamental, passam a aplicar-se processos de decisão mais eficazes, permitindo-se

também a uma maioria qualificada de Estados autorizar a utilização do novo mecanismo da

“cooperação reforçada” nestes domínios. Para além disto, passa a existir, ainda que com

limitações, um controlo de legalidade perante o Tribunal de Justiça que decidirá “a título

prejudicial sobre a validade e a interpretação das decisões-quadro e das decisões, sobre a

interpretação das convenções estabelecidas ao abrigo do presente Título e sobre a validade e a

interpretação das respectivas medidas de aplicação” (artigo 35º TUE). Merecedor de nota é

também o facto de, pela primeira vez, se prever a possibilidade de a União estabelecer

relações de cooperação com países terceiros no domínio da justiça e assuntos internos. Esta

inovação é tanto mais importante por se aplicar não apenas às novas áreas comunitarizadas,

mas também às áreas que permanecem intergovernamentais139 (artigos 37º e 38º TUE).

O balanço final no que respeita às modificações operadas por Amesterdão no domínio

da justiça e assuntos internos é, deste modo, claramente positivo, muito embora, à semelhança

do que aconteceu noutros domínios, os resultados tivessem ficado porventura aquém das

expectativas. O avanço na comunitarização de algumas matérias relacionadas com a

segurança interna demonstra uma intenção clara de introduzir uma vertente mais política na

integração. Como nota Monar o objectivo de construir uma área de liberdade, segurança e

justiça é inquestionavelmente “a major political innovation and marks a new extension of the

integration process” (2001, 293). Trata-se, na verdade, de uma resposta da Comunidade às

138 Cooperação policial e judiciária no combate à criminalidade transnacional, incluindo, entre outros, o combate ao racismo e xenofobia, ao tráfico de droga e de seres humanos e aos crimes contra crianças. 139 Neste último caso, o compromisso pode ser acordado pelos Estados-membros, em nome da União, embora esta não seja, de facto, parte contratante.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

necessidades e aos novos desafios dos povos europeus, sinal inequívoco de uma aposta forte

na nova Europa da cidadania.

Todavia, não deixam de ser várias as falhas perceptíveis na reforma do terceiro pilar.

Por um lado, a excessiva “compartimentação” em sectores, em vez da adopção de uma

estratégia global e a delimitação algo artificial entre os domínios que prevalecem

intergovernamentais e as matérias comunitarizadas. Por outro, alguma timidez na

transferência de competências para a Comunidade, ao ser estabelecido um período de

transição que, embora compreensível, não deixa de demonstrar uma certa hesitação, e de adiar

medidas que poderiam, e deveriam, ser tomadas com a maior urgência. Igualmente

controversa é a ênfase colocada na “flexibilidade” que, como se sabe, sem prejuizo da

vantagem que representa ao permitir o avanço dos que estão dispostos a ir mais longe (a

chamada “fuga para a frente”), comporta também o perigo de uma fragmentação que pode pôr

em risco a coesão indispensável a qualquer projecto conjunto. Como faz notar Monar (2001,

293): “the enormous upsurge of flexibility means that there will be a major risk of legal

fragmentation and political tensions between the “ins” and “outs” of Schengen and other

frameworks of closer cooperation”.

Parece, portanto, que o que se ganhou em desejáveis e ambiciosos objectivos e em

novas competências, ficou de alguma forma “ensombrado” pelo risco de fragmentação e pelo

adiamento, ainda que temporário, de uma verdadeira reforma estrutural140. Não obstante, as

novas disposições introduzidas por Amesterdão encerram um potencial muito significativo,

sobretudo, no que respeita à preocupação de acautelar a segurança numa Europa sem

fronteiras. Adoptando “conceitos generalistas” como o de “espaço de liberdade, segurança e

justiça”, o Tratado de Amesterdão deixou abertas as portas para posteriores

desenvolvimentos. A este propósito, não poderíamos deixar de lembrar aqui as palavras de 140 Como sublinha Monar (2001, 293) “the decision-making procedures retain much of the weakening features of the ‘old’ Third Pillar and, at least for the transitional period of five years, the areas ‘communitarized’ under Title IV TEC appear almost like an intergovernmental pillar within the EC frameworks”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Lucas Pires que, referindo-se a este novo “espaço”, escrevia: “[U]m ‘espaço público’ é uma

espécie de novo estaleiro de trabalho político e jurídico e esse, agora integrando Schengen,

pode ser especialmente fértil (...)” [sublinhado no original].

2.1.5 A “cooperação reforçada”: uma Europa de geometria variável?

Ao contrário do que poderia fazer supor a algo rígida estrutura institucional e jurídica

da Comunidade, a ideia de “flexibilidade” tem acompanhado a evolução da integração

europeia ao longo dos anos. Na verdade, a consciência de que uma abordagem “flexível” é

por vezes a única forma de conseguir a desejada mudança, tem porventura sido a chave do

sucesso da empresa comunitária. Mas, tal como o próprio processo global de integração, o

conceito de flexibilidade tem evoluído, abrindo as portas a novas possibilidades, mas também

a novos perigos141.

Com as excepções permitidas por Maastricht assistimos, como já tivemos ensejo de

referir, ao desabrochar de uma Europa “a vários níveis”. De facto, a possibilidade concedida à

Dinamarca e ao Reino Unido de ficar de fora da UEM, mesmo cumpridos os critérios de

convergência, e a recusa deste último país em participar na política social, acordada assim a

Onze (Protocolo 14), são dois exemplos que apontam para uma integração onde, não só a

“velocidade”, mas também os objectivos dos vários intervenientes começam a ser diferentes.

Na verdade, como sublinha Schoutheete (2001, 151): “[I]n both cases we are beyond the

(orthodox) framework of the two-speed concept: the ultimate objective is no longer common.

We are in the (unorthodox) field of variable geometry: two member states choose not to

participate in a common policy” [ênfase nossa].

141 Como enfatiza Ruttley (2002, 246) “[P]olitical realism has demanded the signatories to the Maastricht and Amsterdam Treaties accept fundamental political differences and adopt a variegated approach (...) This is the price being paid for keeping the Union together. It does, however, lead to incoherence and to a slowing (...) of the process of unification”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Com Amesterdão, a ideia de flexibilidade conhece novos desenvolvimentos.

Ocupando um papel de destaque nos debates que antecederam a assinatura do Tratado, esta

questão foi, contudo, abordada de forma inovadora. Se antes tinha surgido como resposta para

um dado problema (caso da União Económica e Monetária ou da política social), durante a

CIG a “flexibilidade” foi discutida como conceito geral, a ser introduzido como tal no

Tratado, e cuja aplicação é transversal - salvo as excepções previstas - aos vários pilares da

União142. O resultado foi a inclusão de um novo título no TUE que consagra expressamente

uma inovadora forma de flexibilidade - a cooperação reforçada.

O objectivo principal do novo mecanismo era permitir que os Estados-membros que

pretendiam instaurar entre si uma cooperação mais estreita o pudessem fazer sem o veto dos

restantes e utilizando para tal o quadro institucional da União. Desta forma, evitava-se

também a proliferação de subsistemas paralelos - caso de Schengen - fora do sistema

comunitário. Por outro lado, esta nova abordagem procurava igualmente antecipar uma

resposta aos inevitáveis problemas que um alargamento maciço provocaria ao nível das

tomadas de decisão. Se o consenso já é difícil, e muitas vezes impossível a Quinze, será

certamente bastante mais complicado numa Europa de 25 ou 30 Estados.

Procurando salvaguardar a indispensável coesão do projecto europeu os negociadores

do Tratado fizeram depender a instauração da “cooperação reforçada” de um conjunto

rigoroso de pré-condições, de entre as quais se destacam: a obrigatoriedade de favorecer a

realização dos objectivos da União; o respeito pelos princípios dos tratados e do quadro

institucional único da União; a sua utilização como último recurso; o envolvimento de pelo

menos a maioria dos Estados-membros; a proibição de pôr em causa o acervo comunitário e a

igualdade entre os Estados-membros; e, a não exclusão definitiva dos não-participantes.

Dada a diversidade de motivos que a justificam, e a existência de diferentes pilares da

142 Cf. Schoutheet. 2001. “Closer cooperation: political background and issues in the negotiation”. In The European Union after the Treaty of Amsterdam, Jörg Monar and Wolfgang Wessels, eds. London: Continuum.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

União (sujeitos a procedimentos distintos), procedeu-se igualmente a uma diferenciação do

âmbito e da forma de aplicação da “cooperação reforçada”. Foi assim estabelecida uma

cláusula geral aplicável ao TCE e aos sectores do terceiro pilar (artigos 43º a 45º TUE),

fixando as condições gerais e as regras institucionais, e duas cláusulas particulares aplicáveis,

respectivamente, ao primeiro pilar (artigo 11º TCE) e ao terceiro pilar (artigo 40º TUE),

explicitando as condições específicas para cada domínio143. Já no que respeita ao segundo

pilar, não foi explicitamente prevista a “cooperação reforçada”, muito embora tenha ficado

consagrada uma cláusula de “abstenção construtiva” que - se correctamente aplicada - poderá

também facilitar os avanços da integração neste domínio. De facto, nos termos do artigo 23º,

nº 1 do TUE embora não seja obrigado a aplicar a decisão, o Estado que se abstiver “deve

reconhecer que ela vincula a União (...) [e] abster-se de qualquer actuação susceptível de

colidir com a acção da União baseada na referida decisão ou de a dificultar”. Ao excluir a

PESC da “cooperação reforçada” procurou-se, sobretudo, evitar que o seu uso neste campo

(com impacto externo por excelência) pudesse pôr em risco a ainda muito frágil, se existente,

imagem de uma Europa unida. No entanto, ao estabelecerem a possibilidade de uma

abstenção que não põe em causa a tomada de decisão, os negociadores do Tratado

esforçaram-se por ultrapassar as, de outro modo inevitáveis, limitações impostas pela

exigência de unanimidade no domínio da segurança e política externa. Em suma, sem negar a

importância da consagração de um mecanismo que encerra potencialidades tão profícuas

quanto problemáticas, Amesterdão não deu neste campo um passo tão ambicioso como uma

primeira análise poderia fazer supor. De facto, numa tentativa de evitar uma possível

143 A autorização para a instauração de uma “cooperação reforçada” é concedida pelo Conselho deliberando por maioria qualificada, com a salvaguarda de que “se um membro do Conselho declarar que, por importantes e expressas razões de política nacional, tenciona opor-se à concessão de uma autorização por maioria qualificada, não se procede a qualquer votação” (artigo 11º, nº 2 TCE). Neste caso, o Conselho deliberando por maioria qualificada poderá submeter a questão ao Conselho Europeu que tomará uma decisão por unanimidade. À Comissão é confiada a tarefa de verificar a compatibilidade entre os pedidos de “cooperação reforçada” e as condições requeridas pelo Tratado, muito embora, se no âmbito do primeiro pilar lhe compete a apresentação da proposta, no terceiro pilar lhe caiba apenas pronunciar-se sobre esta. Por sua vez, o PE é consultado, no primeiro pilar, e somente informado, no terceiro pilar.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

fragmentação da União em “núcleo da frente”, por um lado, e “pelotão da retaguarda”, por

outro, os líderes europeus acabaram por manietar o novo instrumento de integração:

“In Maastricht they [os chefes de Estado e de governo] had accepted, at the last

minute, to go beyond the two-speed approach on differentiation and to accept a form

of variable geometry. At Amsterdam they accepted, also at the last minute, something

very similar to the Luxembourg compromise, which many of their countries had

systematically rejected over the years, and which is an even greater departure from the

norm” (Monar and Wessels 2001, 165).

Justifica-se, portanto, a afirmação de Geoffrey Edwards e Eric Philippart144 que, referindo-se

à cooperação reforçada, consideram que esta, e citamos, “remains a subject on which doubts

and uncertainties are such that the issue is unlikely to be ignored”. Compreendendo as críticas

não podemos, todavia, esquecer que a Amesterdão se fica a dever um novo conceito de

“flexibilidade” que apesar dos condicionamentos “rasga a possibilidade de novas formas de

tracção dianteira da construção europeia” (Lucas Pires 1998, 25), e que, em nossa opinião,

não poderia deixar de ser apresentado com alguma prudência, sob pena de os riscos que

encerra se sobreporem aos seus inegáveis benefícios.

2.2 O Reforço da Capacidade de Actuação Externa da União

Os conflitos vários que emergiram após o desmembramento da União Soviética e do

fraccionamento da Jugoslávia145 tornaram ainda mais evidente a urgência de conferir à União

Europeia uma maior capacidade de gestão e solução de crises. De facto, o balanço do

desempenho europeu na cena internacional, mesmo depois da entrada em vigor do segundo

pilar de Maastricht, foi, no mínimo, modesto, sobretudo se tivermos em conta que se trata de

144 Cf. Monar and Wessels, op. cit., 165. 145 Actualmente “Estado da Sérvia-Montenegro”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

uma das maiores entidades comerciais do mundo. Parece indubitável que a PESC contribuiu

para o acertar de posições entre os Estados-membros, conferindo-lhes, através de uma

actuação mais concertada, um peso político que certamente não obteriam individualmente. De

facto, num sistema multi-nível, o nível supra-nacional parece apresentar-se,

incontestavelmente, como o mais adequado para lidar com as ameaças e os desafios

internacionais que ultrapassam cada vez mais a capacidade individual de resposta dos

Estados. Não obstante, a impossibilidade de solucionar as crises no terreno sem recorrer à

ajuda externa146, tornou premente a necessidade de uma reforma da política externa e de

segurança comum introduzida por Maastricht. De facto, apesar de alguns progressos, a PESC

não chegou para afirmar a identidade internacional da União no domínio político, revelando,

na prática, inúmeras incoerências conceptuais e fragilidades institucionais e legais:

“[T]hey include an insufficient forward planning and analysis capacity, an

unsatisfying vertical and horizontal coherence, the incapability for speedy reactions,

the declaratory character of CFSP decisions often lacking real substance, the highly

disputed financing of joint actions, the low-profile external representation, the lack of

legal personality and of a genuine treaty-making capacity, the inadequate cooperation

in security and defence policy as well as the incapacity for military action”

(Regelsberger and Schmalz 2001, 250).

Aproveitando a oportunidade que lhes era conferida pela conferência intergovernamental de

1996/97 os líderes europeus procuraram reformular alguns dos aspectos menos bem

conseguidos desta política, por forma a conferir-lhe maior coerência e eficácia. Partindo das

considerações anteriormente elaboradas pelo Grupo de Reflexão147, teve lugar um árduo

146 Referimo-nos, como é compreensível, ao principal aliado do outro lado do Atlântico – os EUA. 147 Numa tentativa de evitar os erros cometidos durante as negociações que antecederam o Tratado de Maastricht, nomeadamente a falta de uma preparação adequada da CIG sobre a união política, os chefes de Estado e de governo, reunidos em Corfu (24 e 25 de Junho de 1994), tomaram várias decisões com o intuito de tornar mais eficaz a próxima CIG já prevista pelo Tratado. De entre as várias medidas acordadas, merece especial destaque a criação de um Grupo de Reflexão (composto por representantes dos ministros dos Negócios

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

processo de negociações cujo objectivo final passava por reforçar o compromisso político de

formação de uma política externa verdadeiramente comum, dotar a União de melhores e mais

eficazes meios operacionais e ultrapassar os obstáculos resultantes da complexa estrutura de

pilares da União. O resultado está visível nas modificações introduzidas no Título V do TUE

(artigos 11º a 28º), no acordo interinstitucional entre o PE, o Conselho e Comissão sobre as

disposições relativas ao financiamento da PESC, em quatro declarações, e no protocolo sobre

a UEO.

Com o Tratado de Amesterdão, assiste-se a um salto qualitativo no segundo pilar de

Maastricht, que vê o seu carácter operacional reforçado, conquanto continue dependente da

vontade expressa dos Estados. As novas disposições reforçam o papel do Conselho Europeu

como entidade que define os princípios e orientações gerais da PESC, incluindo em matérias

com implicação no domínio da defesa (artigo 13º TUE). Por outro lado, são especificados os

objectivos desta política (artigo 11º, nº 1 TUE), nomeadamente no que respeita à salvaguarda

dos valores comuns e da independência e integridade da União. É também estabelecida uma

cláusula de solidariedade política (artigo 11º, nº 2 TUE) que obriga os Estados-membros a

agir concertadamente. Este compromisso fundamental pode ser entendido já como uma

resposta aos conflitos emergentes entre grandes e pequenos. Numa tentativa de lhe conferir

maior eficiência, dotou-se a PESC de instrumentos mais coerentes (artigo 12º TUE) e de uma

forma de decisão aparentemente mais eficaz. Merecem particular destaque as novas

“estratégias comuns” decididas pelo Conselho Europeu e executadas pelo Conselho de

Ministros através da adopção de acções ou posições comuns (artigo 13º TUE). Ainda assim,

não é muito clara a distinção entre as várias modalidades de decisão, pelo menos no que

respeita aos objectivos definidos para a PESC. Já no que concerne à votação, o Tratado

estabelece a regra da unanimidade para as decisões neste domínio, com excepção para os

Estrangeiros dos Quinze, por um membro da Comissão e por dois membros do PE), ao qual foi confiada a preparação da nova conferência intergovernamental.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

casos em que se “adopte acções comuns ou posições comuns com base numa estratégia

comum [ou] qualquer decisão que dê execução a uma acção comum ou a uma posição

comum”, em que será aplicada a regra da maioria qualificada (artigo 23º TUE). Sem

surpresas, nas decisões com implicações em matéria de defesa foi mantida a unanimidade.

Como tivemos já oportunidade de referir, embora não preveja a instituição de uma

“cooperação reforçada” no domínio do segundo pilar, o Tratado introduz um outro tipo de

“flexibilidade” sob a forma de uma “abstenção construtiva” (artigo 23º, nº 1 TUE), que

permite aos Estados-membros abster-se sem que, com isso, impeçam a aprovação das

decisões148. Desta forma, os Estados-membros que optarem pela abstenção ficam dispensados

de aplicar a decisão, embora aceitem que esta vincula a União. Como que para “temperar”

este avanço é, todavia, prevista no ponto 2 do mesmo artigo a possibilidade de um Estado

bloquear uma decisão (entretanto tomada por maioria qualificada) invocando “importantes e

expressas razões de política nacional”. Neste caso, o Conselho de Ministros, deliberando por

maioria qualificada, pode solicitar que a questão seja submetida ao Conselho Europeu, a fim

de ser tomada uma decisão por unanimidade. Daqui se depreende que é difícil avaliar o real

aumento de eficácia do processo decisório saído de Amesterdão, ainda que se possa concluir

pela positiva, sobretudo, se “não houver uma interpretação extensiva da noção de Estratégia

Comum para forçar a unanimidade”149. Aliás, como notam Regelsberger e Schamalz (2001,

258):

“[T]he extent to which qualified majority voting will be applied to the implementation

of common strategies, joint actions and common positions, will largely depend on the

skills of the respective Presidency in a given situation and on the behaviour of those

among the Fifteen which insist traditionally on a strict application of the unanimity

148 A decisão não será aprovada se as abstenções excederem 1/3 dos votos ponderados nos termos do artigo 205º TCE. 149 Cf. Barros Moura. 1997. “O Tratado de Amesterdão: Conteúdo, Problemas e Perspectivas”. Europa Novas Fronteiras, Novembro, 79.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

rule”.

Apesar das inquestionáveis vantagens que tal passo acarretaria, a União Europeia continuou

sem personalidade jurídica, embora o artigo 24º preveja que sempre que seja necessário

celebrar um acordo com Estados ou organizações internacionais, o Conselho possa,

deliberando por unanimidade, autorizar a Comissão a encetar negociações para esse efeito.

Tal disposição não implica, todavia, qualquer transferência de competências dos Estados-

membros para a UE. De resto, no que respeita à representação externa da União, poucos

progressos foram conseguidos, tendo o Tratado confirmado, como era previsível, o anterior

modelo da presidência rotativa (artigo 18º TUE). Não obstante, naquilo que pode ser encarado

como uma tentativa de dotar esta representação de maior visibilidade e continuidade,

Amesterdão substitui o anterior modelo de troika por um novo modelo composto pelo

Conselho da presidência, pela Comissão e pelo secretário geral do Conselho que exercerá as

funções de Alto-representante para a PESC (outra das inovações deste Tratado). As partes

envolvidas estão, porém, longe de terem igual importância. De facto, entre as três, é possível

estabelecer uma hierarquia que reserva claramente à presidência o lugar cimeiro. Quanto à

Comissão, o Tratado prevê que esta seja “plenamente associada”, o que lhe garante uma certa

independência nesta parceria. Por último, ao secretário geral do Conselho compete assistir a

presidência, daqui decorrendo que o seu lugar na estrutura decisional da PESC dependerá, em

grande medida, da sua relação com a presidência em funções.

Com a nomeação de um Alto-representante para a política externa e de segurança

comum, procurou-se, sobretudo, personalizar a imagem da União neste domínio. Reconhecida

a ineficaz intervenção da Comunidade na vertente externa, resultado, em grande medida, de

uma descoordenação da actuação dos Estados-membros e da descontinuidade das formações

do Conselho150, optou-se por “profissionalizar” a PESC. Apesar das evidentes vantagens em

150 Subdividido, como se sabe, em inúmeros conselhos especializados.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

termos de “continuidade”, a instituição deste cargo não deixa de se apresentar como uma

“faca de dois gumes”. A existência de um “senhor PESC” (como é vulgarmente conhecido),

embora confira uma maior “visibilidade” à União, não deixa de ser mais uma “acha na

fogueira” da confusão sobre o seu verdadeiro representante. Parece-nos, na verdade, que, sem

uma coordenação interna realmente eficaz, as demasiadas “caras” que agem em nome da

União acabarão por se tornar um entrave à edificação de uma imagem internacional forte e

coesa151. A lógica subjacente à instituição deste cargo percebe-se, todavia, melhor se

relacionada com a nova Unidade de Planeamento de Política e de Alerta Precoce prevista

numa Declaração do Tratado de Amesterdão. Procurando contrariar a falta de um

planeamento antecipado no domínio da PESC, a nova estrutura, colocada precisamente sob a

responsabilidade do Alto-representante para a PESC, visa propiciar uma análise mais

profunda e sistemática das percepções europeias acerca dos desenvolvimentos internacionais,

bem como formular opções de política que contribuam para um aumento da capacidade da UE

na prevenção de conflitos. Enquadrada no secretariado geral do Conselho, será composta por

pessoal proveniente deste órgão, dos Estados-membros, da Comissão e da UEO (entretanto

fundida na PESC após Nice). Assim, a sua eficácia dependerá, não só do pessoal escolhido,

mas também do acesso à informação, nomeadamente a fornecida pelos serviços diplomáticos

nacionais e pelas delegações da Comissão no exterior (Monar and Wessels 2001, 257). Sendo

uma espécie de observatório da política internacional, esta unidade, se bem sucedida, poderá

ter um papel crucial na definição de uma resposta adequada e, sobretudo, atempada, aos

acontecimentos internacionais, por parte da União.

Compreendendo que seria impossível falar de segurança externa sem ponderar a

151 O excesso de “caras” da União serviu, aliás, de mote a algumas das propostas apresentadas à Convenção sobre o futuro da Europa, a propósito da reforma institucional. Entre as soluções é apontada a fusão do cargo de Alto-representante para a PESC com o do comissário para as relações externas, e a possibilidade de eleição de um Presidente da União, numa tentativa clara de contrariar aquela que é uma das maiores fraquezas da UE a nível externo – a falta de um representante que lhe permita “falar a uma só voz” e que seja capaz, simultaneamente, de “ombrear” em termos de prestígio com o chefe de Estado de qualquer país.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

questão da defesa, os líderes europeus tentaram com Amesterdão avançar um pouco mais na

embrionária Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD). Desta forma, o

compromisso entre as duas áreas, inevitavelmente interligadas, aparece plasmado no artigo

17º TUE de acordo com o qual “[A] política externa e de segurança comum abrange todas as

questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradual de uma política de

defesa comum (...)” [sublinhado nosso]. Simultaneamente, é reafirmado o papel da UEO como

parte integrante do desenvolvimento da União, prevendo-se mesmo a possibilidade da sua

integração na União Europeia. Face à nova conjuntura internacional, caracterizada sobretudo

por conflitos à escala regional, a União deverá intervir com o intuito, não de fazer a guerra,

mas de garantir a paz, inserindo-se neste espírito as chamadas Missões de Petersberg, que

incluem missões humanitárias e de evacuação, missões de manutenção da paz e missões de

forças de combate para a gestão de crises. À UEO caberá preparar e executar as decisões e

acções da União com repercussões em matéria de defesa. Percebe-se assim nestes “pequenos

passos” um esforço dos responsáveis europeus para acrescentar à União a indispensável

dimensão de segurança e defesa, já que a classificação de “potência civil” (notavelmente

antecipada por François Duchêne, em 1972), se torna mais dilemática perante as ambições de

um maior aprofundamento político. Como sublinha Lobo-Fernandes (2001, 8): “[C]hegados

ao século XXI, os actuais Quinze estados da União Europeia vivem, assim, num dilema

assente no referido modelo de potência civil caracterizado pelo uso de instrumentos não-

militares e as exigências doravante mais ambíguas do sistema internacional pós-guerra fria”

[ênfase nossa]. Não se trata, como temeram alguns, de rejeitar a tradicional aliança com os

EUA152 ou de questionar a importância da Aliança Atlântica153, mas apenas de afirmar a

152 Aliás, como nota William Wallace (1997, 227), “[M]ost would (at least tacitly) prefer the Americans to continue to provide leadership and see this as preferable either to the inherent tensions contained within the Franco-German relationship, or an attempt to create a larger ‘concert’ of core countries, or to the eventual emergence, faute de mieux, of German leadership. (...) It is easier to build and maintain regional order within a stable global order; and easier, perhaps, to build a regional order under the impetus of external pressures and

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

credibilidade da União Europeia como actor internacional, dotando-a dos intrumentos

necessários a uma actuação externa eficaz. Dada a importância de tal tarefa prevê-se desde

logo a eventual convocação de uma CIG para rever as disposições sobre a defesa (artigo 17º,

nº 5 TUE).

Em suma, qualquer avanço na dimensão da segurança e defesa deve ser entendido

como um meio privilegiado de aprofundamento político, ao contribuir para a edificação de

uma União capaz de exercer convenientemente as suas responsabilidades e de fazer valer os

seus interesses, ainda que preservando a fundamental relação transatlântica154. Sem pretender

desenvolver esta questão, parece-nos, todavia, evidente que as dramáticas transformações da

cena internacional tornaram imperativo o avanço da Europa neste domínio, tendo em vista

não o fim da parceria EUA - UE, mas a progressiva “equiparação” das partes. Uma União

dotada de maior autonomia em matéria de segurança e defesa, longe de se tornar um

concorrente, poderá ser, em nossa opinião, um aliado precioso para os EUA, ao mesmo tempo

que será capaz de tomar em mãos a protecção dos seus cidadãos155.

external leadership than through agreement among the major regional powers, let alone through following the guidance of a (potentially hegemonic) power within the region itself” [ênfase no original]. 153 Como se sabe, no período da Guerra Fria as questões de defesa e segurança eram definidas, em termos da Europa Ocidental, pelos EUA. Esta é, aliás, uma das explicações para que não tenha havido um real avanço nestas matérias na Europa comunitária. É certo que coexistiram sempre duas dinâmicas: uma mais europeísta, liderada pela França (há mesmo quem considere que o debate sobre a defesa europeia é especificamente francês) e outra mais atlantista encabeçada pelo Reino Unido (e na qual se insere, por exemplo, Portugal), mas é também uma realidade que a visão europeísta nunca teve força institucional. Na verdade, os componentes da defesa europeia estavam “subsumidos” na actuação dos Estados Unidos e da NATO. A prova disto é a pouco notória intervenção da UEO, como o demonstra a classificação de “[B]ela Adormecida das organizações europeias” (Pascal Fontaine 1998, 12) ou de “peso pluma institucional” (Leandro et al. 2000, 81). Todavia, em virtude das grandes transformações ocorridas na cena internacional, parece chegado o momento de o projecto europeu evoluir de forma a que, sem pôr em causa esta parceria, possa tornar possível uma maior autonomia do continente europeu. 154 Os ulteriores desenvolvimentos neste domínio, que abordaremos mais à frente, vêm confirmar esta ideia. A título de exemplo, veja-se apenas a Declaração de Colónia que refere explicitamente que “a Aliança continua a ser a base da defesa colectiva dos seus Estados-membros”. 155 A ideia de dotar a UE de uma real autonomia no âmbito da segurança e defesa ganha uma importância acrescida se tomarmos em consideração os receios manifestados por alguns de que os EUA venham, gradualmente, a “desresponsabilizarem-se” da gestão de conflitos no continente europeu. Como nota Wallace (1997, 227) “[M]ost (…) fear that American leadership will be more uncertain and intermittent, and American demands for others to carry the burden more insistent”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

2.3 Conclusão: Amesterdão, um Tratado de Transição

Se tivermos em consideração as expectativas que rodearam a conferência

intergovernamental de 1996/97, compreendemos facilmente os motivos que levaram muitos a

considerar o Tratado de Amesterdão “um perfeito fracasso”. Ainda assim, parece-nos evidente

que, malgrado algumas claras limitações, este Tratado representa um esforço considerável no

caminho da integração política.

Com disposições importantes na área da política social, a comunitarização de parte do

terceiro pilar e alguns “pequenos passos” na segurança e defesa, Amesterdão avançou na

construção de uma união que procura ir de encontro às preocupações dos seus cidadãos.

Faltou, no entanto, a vontade política e o consenso necessários para proceder a uma reforma

de fundo das instituições, capaz de preparar a UE para os desafios que advirão do próximo

alargamento. Sendo esta uma reforma percebida como indispensável, não admira que o seu

adiamento tenha ditado a “crucificação” deste Tratado. Perdeu-se, efectivamente, uma

oportunidade-chave para, atempadamente, se levar a cabo uma reflexão cuidada sobre esta

matéria, proceder às indispensáveis modificações e remeter para uma CIG posterior somente

os pequenos acertos que, após um período de transição, se revelassem necessários.

O relativo (in)sucesso de Amesterdão veio mesmo colocar em questão o próprio

método de revisão dos tratados, que tendo sido concebido para uma Comunidade de seis

Estados, parece aproximar-se do esgotamento numa União cada vez mais heterogénea e cuja

decisão se estende a matérias cada vez mais sensíveis156. Como resultado, quase se pode dizer

que o número de CIG’s aumenta proporcionalmente à diminuição do número de decisões

tomadas. De facto, o adiamento das questões mais importantes para a conferência

intergovernamental seguinte (muitas vezes já prevista no novo tratado), longe de constituir a 156 Como sublinham Monar e Wessels (2001, 1) “[W]ith the Treaty of Amsterdam the EU has now arrived at a political agenda which is in all but name similar to that of a state: there is now no major area of policy-making left outside of the scope of actual or potential action by the EU institutions”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

excepção, parece, curiosamente, ter-se tornado a regra. Deixar apenas na mão dos Estados a

decisão sobre matérias que cada vez mais entram na esfera da soberania nacional aparenta ser,

portanto, um método ultrapassado, não só por não se coadunar com a delicadeza das questões

abordadas, mas também porque se mostra totalmente inadequado à construção de uma União

que se deseja mais transparente, mais democrática e mais próxima dos seus cidadãos. Não

admira, portanto, os cada vez mais modestos resultados, que levam mesmo alguns a

considerar que, em vez de avançar, a Europa se limita a “marcar passo”. Como referia Lucas

Pires (Novas Fronteiras 1997, 117): “o paradoxo ou círculo vicioso consiste também nisto: os

Estados emparedados entre a globalização, a europeização e o crescente pluralismo interno

(territorial e cooperativo) necessitam cada vez mais de delegar poderes, mas quanto menos

fortes se sentem mais resistem em delegar”.

Em suma, olhado através da “lente das expectativas” Amesterdão conduziu a

resultados modestos e, em alguns campos, mesmo decepcionantes. Todavia, não podemos,

nem devemos, esquecer que tais resultados são também um reflexo da crescente inadequação

da metodologia utilizada para as reformas dos tratados e de uma conjuntura pouco favorável

ao avanço do projecto europeu157. Ainda assim, pelo potencial que encerram algumas das

medidas adoptadas (sobretudo se sujeitas a uma certa clarificação), o Tratado de Amesterdão

não deixa de merecer pelo menos um “suficiente”. Como notava ainda Lucas Pires (Novas

Fronteiras 1997, 123): “[N]o início prometera-se, pelo menos, um Maastricht 2. Talvez seja só

um Maastricht 1,5”. Parece-nos, sobretudo, que o seu saldo só poderá ser correctamente

avaliado se o entendermos como uma espécie de “precursor do futuro” que marca “the

beginning of a new phase of flexible, pragmatic constitution-building in order to

accommodate the diversity of a continent-wide polity” (Moravcsik and Nicolaidis 2000,

157 Como é demonstrado pelo moroso processo de ratificação do Tratado, que só viria a entrar em vigor a 01 de Maio de 1999 (quase dois anos depois da sua elaboração).

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

248)158. Curiosamente, embora provenha de dois “intergovernamentalistas”, esta análise não

deixa de ir ao encontro de uma das características básicas de um “federalismo” europeu: a da

construção de uma união alicerçada no respeito pela diversidade. Se entendida como

instrumento de progressão e não de bloqueio, a “flexibilidade” poderá revelar-se uma

ferramenta eficaz para o progresso do empreendimento comunitário.

158 Citados em Burgess 2000, 248.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Capítulo III

O Tratado de Nice: um Passo em Frente, Dois Atrás?

Conscientes de que as reformas operadas por Amesterdão seriam, por si só,

insuficientes para garantir o eficaz funcionamento das instituições europeias numa

Comunidade alargada, os líderes europeus deixaram plasmada no Protocolo relativo às

Instituições na Perspectiva do Alargamento da UE, a obrigatoriedade de se proceder à

necessária reforma institucional159. É assim que a 14 de Fevereiro de 2000, menos de um ano

depois da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, a União Europeia inicia nova ronda de

negociações, desta feita para tentar encontrar uma solução para os chamados left-overs de

Amesterdão.

A nova conferência intergovernamental, que decorreu em 2000 sobre a égide das

presidências portuguesa e francesa da União, tinha, por conseguinte, um mandato muito

preciso, que consistia em preparar a UE para a adesão iminente160 de um número significativo

de novos Estados. Versando inicialmente sobre a dimensão e composição da Comissão e a

ponderação dos votos no Conselho, a agenda da CIG acabou por se alargar a diversos

domínios, como a extensão da votação por maioria qualificada e a “cooperação reforçada”.

Para além destes, foram ainda incluídos na discussão um conjunto de outras matérias161,

destacando-se o aumento dos poderes do PE, a reforma do sistema jurisdicional, o avanço na

política europeia de segurança e defesa, e a adopção de uma Carta dos Direitos

Fundamentais.

159 A reforma institucional realizar-se-ia, de acordo com este documento, em duas fases: uma anterior à data da entrada em vigor do primeiro alargamento (a respeitante ao número de comissários) e outra um ano antes da data em que a União Europeia passasse a ser constituída por mais de 20 Estados-membros. Todavia, a aceleração das negociações de adesão, acabaria por determinar a junção das duas etapas, ambas “resolvidas” pelo Tratado de Nice. 160 O Conselho Europeu de Helsínquia definiu como objectivo que a primeira ronda de novas adesões à UE se concretizasse até ao final de 2002, de forma a que os novos membros possam já participar nas eleições para o PE, que terão lugar em 2004. 161 Algumas das quais não cabem na classificação de left-overs de Amesterdão.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Depois de um primeiro semestre dedicado sobretudo a negociações preparatórias162, e

de os trabalhos da presidência francesa não terem evoluído ao ritmo esperado, ficou claro que

as reformas mais importantes apenas seriam decididas na cimeira de Nice. Sem surpresa, esta

foi, de facto, a cimeira de “todas as maratonas”. Quatro dias e uma noite de intensas e

acaloradas reuniões conferiram-lhe a marca de uma das mais longas da história comunitária,

com as decisões mais prementes suspensas até aos últimos minutos das negociações. O acordo

final foi alcançado na Acrópolis de Nice, às primeira horas da madrugada de 11 de Dezembro

de 2000, dando origem a um novo texto que opera a terceira reforma dos tratados

comunitários em menos de uma década.

À semelhança do que já se havia passado com o seu antecessor, mal viu a luz do dia, o

Tratado de Nice foi alvo de críticas contundentes, que reflectiam a desilusão face aos

resultados obtidos. Longe da prometida reforma de fundo, este Tratado limitava-se à reforma

mínima indispensável ao alargamento, frustrando, assim, as expectativas existentes. Por outro

lado, e com consequências certamente mais preocupantes, as intermináveis discussões que

marcaram a cimeira de Nice tornaram evidente uma luta pelo poder que, embora previsível e

possivelmente inevitável, há muito vinha sendo adiada163. Em vez de uma reponderação

cuidada do peso dos Estados-membros, que permitisse conservar o princípio fundamental da

igualdade entre Estados numa Europa alargada, Nice revelou-se uma oportunidade para os

países de maior dimensão recuperarem o poder que consideravam ter vindo a perder nos

anteriores tratados. Como sublinha Lobo-Fernandes, num artigo publicado no Expresso de 07

de Junho de 2003, “a maioria qualificada requerida nas votações no Conselho de Ministros da

UE subiu de 71% para 74%. Isto quer dizer que os quatro grandes (...) detêm uma minoria de

bloqueio que corresponde na prática a dizer que determinarão em todas as circunstâncias o

162 A presidência portuguesa ficou marcada pelo facto, no mínimo insólito, da apresentação precoce do programa da presidência francesa, o que acabaria por condicionar os seus trabalhos. 163 Como sublinha Pierre Vimont (2001, 163) “[W]hat Amsterdam let us see dimly, Nice confirmed in detail: this IGC was essentially a power struggle among Member States and was bound to lead to laborious and laboured conclusions in an atmosphere of tension over the last four days of negotiation”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

futuro da União”. O resultado foi, por conseguinte, uma “pouco recomendável” supremacia

dos “grandes” sobre os “pequenos”, através de um novo desequilíbrio de poderes tão

complexo e confuso (não apenas para o cidadão, mas para os próprios legisladores) que se

arrisca a tornar-se paralisante164.

Não admira, portanto, a emergência de vozes particularmente críticas que se fizeram

ouvir no período que se seguiu, sendo que, mesmo as reacções favoráveis, resultavam mais do

alívio de se ter conseguido um tratado e menos da satisfação pelo seu conteúdo. Entre as

opiniões mais duras conta-se a de Jacques Delors (ex-presidente da Comissão Europeia), que

segundo o jornal El País de 06 de Junho de 2001 se referiu ao Tratado de Nice como “um

fracasso completo [que] não poderá aplicar-se nunca” (nossa tradução)!

Como se vinha, de certo modo, tornando hábito, a onda de contestação que se seguiu

à assinatura do Tratado deixava adivinhar um difícil e moroso processo de ratificação. Às

inúmeras críticas, somou-se a rejeição do Tratado num primeiro referendo realizado na

República da Irlanda. Apesar dos potenciais efeitos perversos o não irlandês acabou,

curiosamente, por ter um efeito aglutinador, unindo grande parte dos europeus em torno da

necessidade de ratificar Nice. Compreendeu-se que, se é verdade que o novo Tratado havia

gorado as esperanças dos que ambicionavam um avanço mais determinado no sentido de uma

Europa mais integrada, não é menos verdade que introduziu as modificações necessárias ao

164 Como notou ainda Lobo-Fernandes “[T]he inefficiencies in the Nice Treaty system stem from a combination of adding 12 new Council members and raising the majority threshold from 71 percent of Council votes to 74 percent, which makes it even more difficult for voting ministers to reach an agreement (…) In order to restore efficiency, without further weakening small member nations, the way forward could be a lowering of the majority thresolds” (cf. Lobo-Fernandes. 2002. “The European Project and Its Future”, Universidade de Cincinnati, 15 de Outubro). De notar que este problema continua a existir, apesar dos novos critérios de votação acordados pelos membros da Convenção Europeia. Segundo o artigo 24º do projecto de constituição, a partir de 01 de Novembro de 2009, a vmq será definida “como uma maioria de Estados-Membros que represente, no mínimo, três quintos da população da União”. Percebe-se, assim, que a solução proposta pelo autor em relação à vmq aprovada em Nice vá de encontro à posição a adoptar pelo governo português nesta matéria, nas negociações da próxima CIG: “[O] novo sistema de votação levanta dúvidas. Lisboa preferia decisões aprovadas por maioria de países que representam 50 por cento da população, em vez de 60 por cento. Parece uma diferença mínima, mas deixa ‘respirar’ os países pequenos” (cf. “Portugal não assina de Cruz”. Independente, 12 de Setembro de 2003). Também Paulo de Pitta e Cunha considera que o “(...) sistema de ponderação [consagrado no projecto de constituição europeia] deveria ser restabelecido e rediscutido” sob pena de, se tal não vier a acontecer, os Estados médios e pequenos sofrerem um “intolerável esmagamento sob o peso demográfico dos Estados grandes” (cf. “O Projecto da Convenção Europeia e a Próxima CIG”. Público, 06 de Setembro de 2003).

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

alargamento, pelo que a sua não ratificação teria consequências notoriamente mais graves do

que a sua adopção. Efectivamente, o efeito de um sinal negativo dessa natureza em países

que, há uma década, aguardam pacientemente para integrar a família comunitária, seria

devastador165. Se existe mérito em Nice é precisamente o de representar a ansiada luz verde

para uma “adesão em massa” à União Europeia, e, deste ponto de vista, não pode deixar de

ser considerado um tratado histórico.

Com uma votação positiva num segundo referendo na República da Irlanda166, e

cumprido o necessário processo de ratificação, as disposições do Tratado de Nice entraram

em força a 01 de Fevereiro de 2003. Tentaremos, de seguida, fazer uma análise das principais

reformas introduzidas por este Tratado e das suas consequências para a integração política.

Recorreremos para o efeito à divisão que temos seguido entre dimensão interna e externa da

União, destacando, todavia, aquilo que designaremos por “processo de constitucionalização”

que, embora enquadrável na primeira dimensão, nos parece, pelo salto em frente que pode

representar, merecer ser tratado autonomamente.

3.1 A Eficácia Interna da União e a Questão da Legitimidade do Projecto Comunitário

Por muitos apelidado de “Tratado pequeno”, Nice não deixou de cumprir os objectivos

mínimos que lhe eram exigidos, ao introduzir um conjunto de reformas destinadas, na sua

165 A este propósito é de referir a “campanha” levada a cabo pelos principais candidatos à adesão, aquando do segundo referendo irlandês. De acordo com o Jornal de Notícias, de 20 de Outubro de 2002, os presidentes da República Checa, da Polónia, da Hungria e da Eslováquia redigiram um comunicado apelando aos irlandeses para que lhes dessem a “chance histórica” de poderem aderir à União. No mesmo sentido vão as palavras de Gunther Verheugen, comissário europeu para o alargamento: “[I] hope very much that Irish voters will understand that it is not only the future of Ireland that is at stake but the future of Europe and the future of countries which have suffered under decades of dictatorship and war and are trying desperately to join a union of free and democratic nations” (citado em Lobo-Fernandes 2002, 3). 166 Depois de uma rejeição a 07 de Junho de 2001, o Tratado de Nice seria finalmente aprovado com 63% dos votos, num segundo referendo realizado a 19 de Outubro de 2002. O sim irlandês veio, deste modo, colocar um ponto final em 16 meses de um preocupante “suspense” sobre o novo alargamento europeu. Para este reacertar de agulhas muito terá contribuído a grande campanha de esclarecimento sobre o novo Tratado levada a cabo pelo governo irlandês e algumas concessões conferidas à Irlanda, nomeadamente no que respeita à garantia do seu estatuto de neutralidade.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

maioria, a garantir a funcionalidade das instituições comunitárias numa União que verá, num

futuro próximo, o seu número de membros perto de duplicar. Como sublinha Pierre Vimont

(2001, 160-161): “Nice is certainly not the great reforming Treaty that many had wanted it to

be. But that was never its aim (…) The aim of the Conference was therefore unambiguous. It

was to find solutions to the Amsterdam left-overs and thus allow the Union to clear the way

of enlargement”.

3.1.1 As principais reformas institucionais

a) reformas institucionais relativas ao alargamento

O Tratado de Amesterdão havia falhado a oportunidade de levar a cabo uma reforma

de fundo do sistema institucional. Entre as muitas questões sem resposta, destacavam-se as

relativas à composição da Comissão e à reponderação de votos no Conselho de Ministros,

matérias com influência directa na delicada questão da balança de poder entre Estados-

membros e que se repercutiriam, como consequência, na distribuição de lugares nas restantes

instituições. A solução encontrada em Nice167 aparece sob a forma de um “pacote” composto

por quatro reformas interligadas: a reforma da Comissão; a reponderação dos votos; a nova

maioria qualificada; e a redistribuição de lugares nas instituições comunitárias168.

No que à Comissão diz respeito, o Protocolo relativo ao Alargamento da União

Europeia confirma no seu artigo 4º, nº 1, o que havia ficado definido em Amesterdão,

prevendo que, a partir de 01 de Janeiro de 2005, esta instituição será composta por um

comissário de cada Estado-membro. O novo Protocolo vai, todavia, mais longe ao

estabelecer, no ponto seguinte, a invalidação desta regra a partir do momento em que a União

atinja os 27 Estados-membros. Neste caso, o número de comissários deverá ser inferior ao

167 Conforme Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia. 168 Cf. Monar and Wessels, op cit., 322.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

número de países, adoptando-se para a sua designação um sistema de rotatividade baseado no

princípio da igualdade. Pela delicadeza da reforma que, pese embora a independência dos

comissários em relação ao país de origem, os Estados encaram como uma ameaça à sua

capacidade representativa, remeteu-se para o Conselho, decidindo por unanimidade, a

definição deste sistema bem como o estabelecimento do número adequado de comissários.

Permanece, portanto, pelo menos até à aplicação definitiva das alterações previstas,

um forte elemento de “nacionalidade” na composição da Comissão, contrariando a máxima de

independência que os tratados apontam como característica fundamental deste colégio e que

seria o garante da sua supranacionalidade169. Continua, deste modo, o enfraquecimento desta

instituição170, tendência já perceptível nos tratados anteriores, mas que Nice vem acentuar de

forma substancial. Ainda assim, é de realçar a tentativa de melhorar a eficácia interna da

Comissão, nomeadamente através de um reforço assinalável do papel do seu presidente. De

acordo com o artigo 217º TCE cabe ao presidente da Comissão a sua organização interna,

tendo em vista garantir uma actuação consistente, eficiente e baseada na colegiatura.

Compete-lhe ainda distribuir as responsabilidades pelos comissários, nomear o(s) vice-

presidente(s), podendo inclusive exigir a resignação de um dos membros da Comissão, depois

de obter o apoio do colégio. No mesmo sentido, estão os esforços de reforma administrativa

levados a cabo pela própria instituição, numa tentativa de recuperar a credibilidade perdida na

sequência dos mediáticos problemas que atingiram a anterior Comissão presidida por Jacques

Santer171, ditando a sua demissão em bloco. A crise da “Comissão Santer” ter-se-á, aliás,

169 De facto, as acaloradas discussões sobre o número de comissários na cimeira de Nice, demonstraram claramente que os Estados-membros vêem no seu comissário uma espécie de “embaixador”, ligação que, longe de acentuar a desejada natureza supranacional da Comissão, privilegia o carácter intergovernamental, contribuindo para o enfraquecimento e perda de eficácia desta instituição. 170 Que seria mesmo a “grande perdedora” desta cimeira, não fosse pelo considerável reforço do papel do seu presidente. 171 Tratou-se, indubitavelmente, da crise mais grave da história da Comissão Europeia. As suspeitas de má gestão e corrupção que pesavam sobre alguns dos seus membros acabariam por resultar na sua resignação colectiva (a 17 de Março de 1999), na sequência da moção de censura apresentada pelo PE. Se é certo que esta demissão veio sublinhar a eficácia do controlo parlamentar, não conseguiu evitar que a instituição considerada “guardiã

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

reflectido nas próprias reformas previstas no Tratado, já que o reforço da autoridade do

presidente da Comissão vem também clarificar a questão da atribuição de responsabilidades,

ao permitir a responsabilização individual de um dos membros pelos erros cometidos sem que

a instituição, no seu todo, seja posta em causa. Por outro lado, o novo estatuto do presidente

poderá servir de contrapeso ao notório enfraquecimento da Comissão, deixando em aberto a

possibilidade - ainda que remota - de esta instituição se poder tornar num verdadeiro

executivo europeu. No mesmo sentido afigura-se-nos, aliás, a adopção da maioria qualificada

na nomeação do presidente e, numa segunda fase, dos membros da Comissão (artigo 214º

TCE). De facto, o fim da exigência de “comum acordo” terá pelo menos a enorme vantagem

de permitir ao Conselho172 eleger, não o “mínimo denominador comum”, mas o candidato

mais forte. Tal inovação, não deixa, porém, de encerrar algumas dificuldades: por um lado, o

candidato continua a depender da aprovação do PE, o que, em caso de desacordo, poderá

resultar em complexas negociações com esta instituição; por outro, o fim da unanimidade

poderá confrontar o presidente com novos desafios, pois se até aqui era nomeado o candidato

de todos os países, com o novo sistema poderá ser indigitado um candidato considerado

indesejado por alguns.

Deste modo, ainda que possa contribuir para um aumento da eficácia interna da

Comissão, o reforço do papel do seu presidente parece não ser suficiente para um verdadeiro

fortalecimento desta instituição. A sua débil posição no domínio da PESC permaneceu quase

inalterada, enquanto que nas mais “comunitarizadas” matérias da justiça e assuntos internos

(áreas de grande dinamismo legislativo) continua obrigada a partilhar com os Estados-

membros o direito de iniciativa, pelo menos até 2004 (por força do período de transição

estabelecido pelo Tratado de Amesterdão). Igualmente fora do seu campo de actuação fica o

dos tratados” se visse a braços com a árdua tarefa de voltar a construir a imagem de credibilidade e eficácia, para a qual muito tinha contribuído o desempenho do seu anterior presidente, Jacques Delors. 172 Numa primeira fase (a da designação do presidente da Comissão) reunido a nível dos chefes de Estado e de governo.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

que restou do terceiro pilar de Maastricht, nomeadamente o funcionamento da Eurojust

(artigo 31º TUE), e alguns aspectos da política social, não lhe sendo atribuído, por exemplo,

qualquer papel no novo Comité de Protecção Social (artigo 144º TCE), para além da

nomeação de dois dos seus membros173. Por outro lado, a - para alguns - excessiva

concentração das reformas efectivas no papel do presidente da Comissão faz temer que a

influência e capacidade de decisão deste colégio passem a depender, em demasia, da

personalidade do nomeado e da sua capacidade quer para liderar, quer para desenvolver um

trabalho construtivo com as demais instituições comunitárias.

Sem surpresa, a questão da redistribuição de lugares no Conselho foi uma das mais

problemáticas do Tratado de Nice. Para além de opor grandes e pequenos Estados, as difíceis

negociações acabaram por criar divisões no seio dos grandes (opondo, por exemplo,

Alemanha e França) e dos pequenos (casos da Bélgica e da Holanda), que lutavam por uma

representação proporcional. O acordo possível ficou consagrado no artigo 3º do Protocolo

relativo ao alargamento da União Europeia de acordo com o qual, a partir de 01 de Janeiro

de 2005, o artigo 205º ¶ 2 TCE passará a contemplar a seguinte ponderação de votos nas

decisões do Conselho que exijam maioria qualificada: França, Alemanha, Itália e Reino

Unido 29; Espanha 27; Holanda 13; Portugal, Bélgica e Grécia 12; Áustria e Suécia 10;

Dinamarca, Finlândia e Irlanda 7; Luxemburgo 4. Para além da nova distribuição de votos dos

Estados-membros, os líderes europeus acordaram ainda numa atribuição de votos aos países

candidatos (com excepção da Turquia)174. Cumprindo o que já havia ficado definido em

Amesterdão175, o novo compromisso marca uma tentativa clara de anular a, até então, “sobre-

representação” dos pequenos Estados, considerada insustentável em virtude do próximo

173 Cf. Monar and Wessels, op. cit., 323. 174 Polónia 27; Roménia 14; República Checa e Hungria 12; Bulgária 10; Lituânia e Eslováquia 7; Chipre, Estónia, Letónia e Eslovénia 4; Malta 3. 175 Relembre-se, a este propósito, o artigo 1 do Protocolo relativo às instituições na perspectiva do alargamento da União Europeia, que fazia depender a perda de um dos comissários por parte dos grandes Estados da sua compensação através da alteração da ponderação de votos no Conselho.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

alargamento. Todavia, como tivemos já ocasião de referir, a questão do equilíbrio de poder

entre Estados reveste-se de extrema delicadeza, na medida em que nos pratos da balança se

confrontam normalmente o interesse nacional e o interesse da UE como um todo. Por

conseguinte, se não for baseada num sistema racional e coerente, qualquer tentativa para

corrigir um provável desequilíbrio, poderá resultar num acentuar deste. Tal parece ser, aliás, o

que aconteceu na reforma avançada por Nice. De facto, numa tentativa de satisfazer os

interesses de determinados Estados-membros em detrimento do interesse geral, a nova

ponderação de votos foi efectivada ao “sabor das conveniências”, acabando por agravar

algumas das desproporcionalidades existentes176.

Ainda assim, esta nova ponderação de votos no Conselho não poderá ser desligada do

acordo alcançado quanto à nova votação por maioria qualificada. Saído de difíceis

negociações, o compromisso obtido longe de simplificar o sistema de decisão vem torná-lo

ainda mais complexo. Com efeito a partir de Janeiro de 2005, as novas disposições do

Tratado177 estabelecem que, enquanto a União for constituída por 15 Estados-membros, para

que uma proposta da Comissão seja adoptada pelo Conselho será necessário um mínimo de

169 votos em 237, isto é, uma percentagem de 71,3% dos votos. De referir que esta

percentagem será ajustada com cada nova adesão, de modo a que não exceda a percentagem

resultante da distribuição de votos estabelecida na Declaração relativa ao Alargamento.

Todavia, a este requisito somam-se ainda mais dois: de acordo com o que ditará o

reformulado artigo 205º, nº 2 TCE, os votos desta maioria qualificada deverão ser formados

por uma maioria de Estados-membros, se o Conselho decidir com base numa proposta da

Comissão, e por, pelo menos dois terços dos Estados-membros, em todos os outros casos; por

176 Considere-se, a título de exemplo, o caso de Espanha e da Alemanha. De acordo com a ponderação de votos em vigor, embora tenha mais do dobro da população, a Alemanha tem apenas mais 25% votos que a Espanha. Todavia, a nova ponderação, longe de corrigir esta desproporcionalidade, acentua-a ainda mais ao reduzir a diferença para apenas 7,4 %, ainda que a nova maioria qualificada introduza na ponderação o elemento populacional, que pesará obviamente a favor da Alemanha. Cf. Monar and Wessels, op. cit., 324. 177 Ver Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, artigo 3º, nº 1 e nº 2.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

sua vez, o nº 4 do referido artigo estabelece que quando uma decisão deva ser adoptada pelo

Conselho por maioria qualificada, um membro do Conselho pode pedir a confirmação de que

essa maioria representa pelo menos 62% do total da população da União Europeia.

Significa isto que, cumpridos os três requisitos, estamos, na verdade, perante um

cenário de “tripla maioria” (votos ponderados, número de Estados e população) que só muito

duvidosamente poderá contribuir para aumentar a eficácia do sistema de decisão. Igualmente

preocupante é o facto de a introdução do factor demográfico, favorecer a formação de

“minorias de bloqueio”, contribuindo desse modo para um aumento significativo do peso dos

grandes países178, com particular destaque para a Alemanha179 (o Estado mais populoso da

UE), que foi a clara vencedora da cimeira de Nice. Percebe-se, assim, que este país tenha

aceite, quase sem protesto, uma “sub-representação” na atribuição de votos no Conselho, uma

vez que tal desequilíbrio será largamente compensado pela sua força populacional. De facto,

se é certo que este novo elemento permitirá a uma combinação de três dos quatro grandes

(França, Alemanha, Itália e Reino Unido) travar a adopção da decisão, à Alemanha bastará o

apoio de outro Estado grande e de um dos pequenos (com excepção do Luxemburgo) para

bloquear a decisão. Já numa Europa alargada (a 27 membros), os votos dos quatro maiores

Estados serão necessários para travar uma decisão, ainda que a Alemanha permaneça numa

posição favorável dado que, juntamente com dois outros grandes, poderá impedir a adopção

da decisão com base na percentagem da população.

O novo sistema de votação por maioria qualificada - de uma complexidade assinalável

para uma Europa a Quinze - necessitará inevitavelmente de adaptações à medida que o

178 Contrariamente ao que acontece em relação aos Estados de maior dimensão, a introdução deste critério penaliza fortemente os pequenos e médios Estados que, para travar uma decisão precisam de reunir um grupo de pelo menos oito elementos, formando portanto, numa União a 15, uma “maioria de bloqueio”. 179 Como escreve A. Mendonça Pinto num artigo de opinião publicado no semanário Expresso, de 30 de Dezembro de 2000, tratou-se de “manter uma aparência ou ficção de igualdade entre os maiores, particularmente entre a França e Alemanha, ou melhor, de disfarçar uma desigualdade a favor da Alemanha que já tinha começado a emergir (...) que agora ficou consagrada no Tratado de Nice e que se tornará mais evidente quando a Alemanha, depois do alargamento, passar a ser o eixo geográfico da UE”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

número de membros for aumentando180. Não obstante, é de salientar como positivo o facto de

as novas disposições não permitirem uma divisão entre os membros actuais e os novos

membros, uma vez que nenhum dos grupos poderia, por si só, estabelecer uma maioria

qualificada. Não ficou, todavia, acautelada uma tensão igualmente problemática, que consiste

no “confronto” entre Este e Oeste, contando cada uma das “coligações” com o necessário

número de votos para bloquear uma decisão não desejada.

Em suma, embora não altere radicalmente a percentagem de votos a considerar ou as

regras em vigor, a nova vmq não vai de encontro à necessidade de aumentar a eficácia nas

tomadas de decisão comunitária. Na verdade, a introdução dos dois novos elementos (maioria,

ou dois terços, dos membros e critério populacional) tornarão as decisões no Conselho mais

complexas e, talvez mais preocupante, menos transparentes. O que ficou plasmado no novo

compromisso foi o resultado de uma espécie de “troca de favores” onde os interesses

nacionais ocuparam sempre o primeiro lugar, relegando para segundo plano o indispensável

aumento da legitimidade, representatividade e transparência do processo de tomada de

decisão. Sem embargo, as consequências práticas de tão intricado sistema dependerão, em

larga medida, da composição das maiorias numa Europa alargada, havendo quem considere

que as preferências políticas terão maior peso na formação de alianças do que a questão do

tamanho181.

Igualmente difícil de explicar é o critério que presidiu à nova distribuição de lugares 180 As percentagens já previstas nas declarações e protocolos relativos ao alargamento revelam alguma confusão dos líderes europeus que adoptaram em cada um dos documentos valores contraditórios. Como sublinha Monar (2001, 325) na Declaração relativa ao alargamento da UE ficou estabelecido que após o alargamento aos doze países candidatos, para formar uma maioria qualificada seriam necessários 258 votos de um total de 345, correspondendo a uma percentagem de 74,78%. Esta disposição está, todavia, em contradição com a Declaração respeitante ao limiar da maioria qualificada que aponta 91 como o número mínimo de votos para formar uma minoria de bloqueio depois da adesão dos doze países candidatos. Ora tal significaria uma maioria qualificada de, no mínimo, 255 votos em vez de 258, sendo equivalente a uma percentagem de 71,26%. Para aumentar ainda mais a confusão a mesma Declaração respeitante ao limiar da maioria qualificada determina que após o alargamento a percentagem de votos que constitui uma maioria qualificada será menor do que a actual e que aumentará até atingir um máximo de 73,4%, o que significa que a percentagem da maioria qualificada terá que ser revista a cada vaga do novo alargamento. Também digno de nota é o facto de este número (73,4%) ser simultaneamente mais alto que o actual e mais baixo do que resultaria do mínimo de 258 votos em 345 exigido na Declaração relativa ao alargamento. 181 Cf. Bond and Feus, op. cit., 45.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

no Parlamento Europeu182. Começando por ignorar o número máximo de 700 parlamentares

acordado em Amesterdão183, as novas disposições de Nice (com efeito a partir de 01 de

Janeiro de 2004 - artigo 190º, nº 3 TEC) prevêem para esta instituição um número máximo de

732 membros. Ora, considerando que o anterior número havia sido fixado precisamente com o

intuito de estabelecer um limite que garantisse o eficaz funcionamento da assembleia

europeia, dificilmente se compreende como é que a sua dilatação poderá contribuir para servir

o mesmo objectivo. Por sua vez, também a atribuição de lugares, propriamente dita, suscita

muitas dúvidas. Neste campo, os vencedores indiscutíveis foram a Alemanha e o pequeno

Luxemburgo, únicos dois países que viram o seu número de lugares inalterado apesar do

alargamento. Assim, a partir de Janeiro de 2004, passará a ser a seguinte a distribuição

parlamentar (artigo 190º nº 1 TEC): Alemanha 99; França, Itália e Reino Unido 72; Espanha

50; Holanda 25; Bélgica, Grécia e Portugal 22; Suécia 18; Áustria 17; Dinamarca e Finlândia

13; Irlanda 12; Luxemburgo 6. É, contudo, de notar que nas próximas eleições parlamentares

de 2004 estes números poderão ser inflacionados, uma vez que o Tratado estabelece ainda

que, nessa altura e independentemente do número de novos Estados-membros, o número de

lugares no PE deverá ser o mais próximo possível do limite fixado de 732 lugares184.

Também algo surpreendente foi a distribuição de lugares entre os futuros membros da

União, que ficou muito aquém da pretendida proporcionalidade em função da população de

cada país, sobretudo quando comparada com o número de lugares atribuídos aos actuais

membros da UE185. Segundo o estipulado na Declaração relativa ao alargamento da União

182 A este propósito Monar (2001, 325) escreve: “[T]he changes to size and composition of the Parliament are among the most puzzling of the Nice negotiations”. 183 Com as alterações introduzidas pelo Tratado de Amesterdão no artigo 189º TCE podia ler-se: “[O] número de deputados do Parlamento Europeu não será superior a setecentos”. 184 Sublinhe-se que mesmo com a entrada dos dez novos Estados, prevista para 01 de Maio de 2004, o número de parlamentares perfará apenas 681 lugares, não atingindo portanto o limite fixado. 185 Como nota igualmente Monar (2001, 326) países como a República Checa e a Hungria, cuja população é superior à da Bélgica e de Portugal, obtiveram, todavia, um número de lugares inferior a estes Estados. Por sua vez, a Estónia, com uma população três vezes superior ao Luxemburgo, viu ser-lhe atribuído o mesmo número de lugares. Idêntica situação atinge o Chipre que, quando comparado com o Luxemburgo, aparece claramente sub-representado.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Europeia aos países candidatos serão atribuídos os seguintes lugares no PE: Polónia 50;

Roménia 33; República Checa e Hungria 20; Bulgária 17; Eslováquia 13; Lituânia 12;

Letónia 8; Eslovénia, Estónia e Chipre 6; Malta 5. Parece pois, assim, que a nova fixação de

lugares no Parlamento Europeu, longe de inverter a desproporcionalidade representativa desta

instituição, contribuiu, em alguns casos, para um acentuar significativo desta. Ora, se um

défice de representatividade é por si só suficientemente grave, parece-nos que deverá merecer

especial atenção quando verificado na instituição que é, por excelência, a representante dos

interesses dos cidadãos.

Ao que se passou com a distribuição de lugares no PE, podemos, todavia, opor o

exemplo do Comité Económico e Social. Precisamente com o intuito de garantir que os seus

membros sejam mais representativos dos vários grupos sociais e económicos que compõem a

sociedade civil, o Tratado procedeu a uma ligeira alteração das regras que regem a

composição deste órgão186. Simultaneamente, visando manter a eficácia da sua actuação, foi

estabelecido um limite máximo de 350 depois do alargamento, mantendo-se, até lá, o número

actual. Na mesma linha vão, aliás, as alterações relativas ao Comité das Regiões. Tendo em

vista aumentar a sua legitimidade democrática a nova redacção do artigo 263º TCE faz

depender a participação neste órgão de uma das duas seguintes condições: ser titular de um

mandato eleitoral a nível regional ou local; ser politicamente responsável perante uma

assembleia eleita. Também na questão do número de membros a semelhança se mantém, já

que este número deverá manter-se inalterado até ao alargamento, não podendo, depois deste

concretizado, exceder os 350 lugares.

b) reformas institucionais independentes do alargamento

Para além destas medidas, estritamente relacionadas com o alargamento, Nice 186 A qualificação dos membros que compõem o Comité Económico e Social foi modificada, determinando-se agora, nos termos do artigo 257º TCE, que este órgão “é composto por representantes das diferentes componentes de carácter económico e social da sociedade civil organizada”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

procedeu ainda a outras reformas no campo institucional, destacando-se a revisão do sistema

judicial187 e as novas disposições relativas à tomada de decisão.

Com o intuito de reformular a divisão de competências entre o Tribunal de Justiça e o

Tribunal de Primeira Instância os líderes europeus procederam a uma minuciosa e detalhada

reforma do sistema judicial188. O resultado ficou, no essencial, consagrado no Estatuto do

Tribunal de Justiça (alterável pelo Conselho), conquanto as disposições do Tratado

contenham também consideráveis alterações. Assim, de acordo com as novas regras, o

Tribunal de Justiça terá um juiz por Estado-membro e reúne em câmaras (três ou cinco juízes)

ou numa grande Câmara (onze juízes), se tal for solicitado por um Estado-membro ou por

uma instituição comunitária que seja parte na respectiva instância. As anteriores reuniões

plenárias deixam, portanto, de ser a regra, ainda que possam ter lugar nas situações em que o

Tribunal considere de excepcional importância ou sempre que para tal lhe seja apresentado

um requerimento em aplicação das disposições do Tratado relativas à intervenção do poder

judicial no afastamento de um membro das instituições comunitárias. O número de

advogados-gerais é, por sua vez, fixado em oito.

Quanto ao Tribunal de Primeira Instância será composto, no mínimo, por um juiz por

Estado-membro189, escolhidos pela sua independência e habilitações para o cargo a ocupar.

Em geral, as novas disposições aumentam a importância e a responsabilidade deste Tribunal

(artigo 225º TCE), cujas decisões só podem ser objecto de recurso para o Tribunal de Justiça

em questões de direito (incompetência ou violação do direito comunitário pelo Tribunal de

Primeira Instância e irregularidades processuais que prejudiquem os interesses do recorrente).

Uma das grandes novidades é a possibilidade conferida ao Conselho de, agindo por

187 Para uma análise detalhada desta reforma ver, por exemplo, Kim Feus. 2001. “Substantive Amendments: The Treaty of Nice explained”. In The Treaty of Nice explained, ed. Bond and Feus. London: The Federal Trust, 38-39. 188 Estas reformas, que representam as maiores alterações institucionais de Nice, foram, na sua maioria, delineadas à margem da CIG por um grupo de peritos em direito, designado “Amigos da Presidência”. 189 O Estatuto do Tribunal de Justiça (artigo 48º) fixa em 15 este número.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

unanimidade mediante proposta da Comissão e após consulta ao PE e ao Tribunal de Justiça,

ou a pedido deste último e após consulta à Comissão e ao PE, criar painéis judiciais (artigo

225ºA TCE) encarregados de ouvir e determinar em primeira instância certas categorias de

acção ou de procedimentos em matérias específicas. Por sua vez, as decisões destes painéis

podem ser objecto de recurso para o Tribunal de Primeira Instância, ainda que limitado às

questões de direito (a menos que na decisão que cria o painel esteja também previsto o

recurso nas questões de facto).

Nesta reforma do sistema judicial ressalta ainda a extensão dos direitos do PE como

litigante, que aparece agora em igualdade de circunstâncias com o Conselho, a Comissão e os

Estados-membros. Para além disto, é também alargada ao PE a possibilidade, até então

reservada ao Conselho, Comissão e Estados-membros, de obter a opinião do Tribunal de

Justiça sobre a compatibilidade com a lei comunitária de um acordo internacional a realizar

entre a Comunidade e um país terceiro.

Como se pode concluir pelas alterações aqui mencionadas esta foi, talvez, a “grande

reforma” de Nice, estendendo-se as suas repercussões para lá do sistema institucional

propriamente dito, para se reflectirem também numa transformação significativa do sistema

legal da União.

Para além da reforma judicial, Nice introduziu ainda algumas correcções nas

disposições concernentes ao Tribunal de Contas; numa tentativa de lhe conferir maior eficácia

na supervisão do orçamento comunitário, o Tratado prevê que, à habitual avaliação global,

esta instituição possa somar avaliações específicas sobre cada domínio importante da

actividade da UE (artigo 248º, nº 1 TCE). Para além disto, a Declaração respeitante ao

Tribunal de Contas convida à adopção de medidas que permitam melhorar a cooperação entre

esta instituição e as instituições nacionais de fiscalização, nomeadamente através da criação

de um comité de contacto.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Na sequência do que já vinha sendo praticado em anteriores revisões dos tratados, a

agenda da CIG 2000 contemplou a possibilidade de se avançar um pouco mais na

generalização da votação por maioria qualificada. Ainda assim, das cerca de 70 matérias

sujeitas à regra da unanimidade, somente 45 foram consideradas para alteração. O

compromisso final resultou no alargamento da vmq a 35 novas áreas, sendo que destas apenas

22 veriam a modalidade de votação alterada aquando da entrada em vigor do Tratado

(remetendo-se as restantes alterações para uma data posterior ou após uma decisão do

Conselho caso a caso).

Apesar da evidente precaução dos líderes europeus, num domínio cuja alteração é

considerada por alguns como um passo “sem retorno” no caminho da supranacionalidade,

foram acordados em Nice compromissos importantes. De facto, algumas das áreas sujeitas

(agora) à maioria qualificada revestem-se de particular importância para o progresso do

projecto comunitário. Assim, no domínio interno, a vmq passa agora a aplicar-se, entre outras,

às medidas de incentivo à não discriminação (artigo 13º, nº 2 TCE); às disposições destinadas

a facilitar o direito de liberdade de circulação e de residência (artigo 18º, nº 2 TCE); à

cooperação judicial em matérias civis (artigo 65º, nº 5 TCE); às medidas com vista à rápida

introdução do euro nos novos Estados-membros (artigo 123º, nº 4 TCE); à definição das

tarefas, objectivos e organização dos fundos estruturais (ainda que somente a partir de Janeiro

de 2007 e sujeito à aprovação das perspectivas financeiras plurianuais para 2007-2013 –

artigo 161º TCE); à nomeação da Comissão, do Tribunal de Contas, do CES e do Comité das

Regiões (artigos 214º, nº 2; 247º, nº 3; 259º, nº 1 e 263º TCE, respectivamente); à decisão

sobre o estatuto e condições gerais de exercício das funções dos membros do PE (artigo 190º,

nº 5 TCE); à adopção das regras de actuação do Tribunal de Justiça, do Tribunal de Primeira

Instância e do Tribunal de Contas (artigos 223º, 224º e 248º, nº 4 TCE, respectivamente).

Igualmente assinalável é a sua extensão a matérias do domínio externo, onde se contam, por

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

exemplo, a nomeação do secretário-geral do Conselho (artigo 207º, nº 2 TEC) e de

representantes especiais para a PESC (artigo 23º, nº 2 TUE); a celebração de acordos

internacionais para dar execução a uma acção comum ou a uma posição comum (artigo 24º, nº

3 TUE); a decisão sobre a posição da Comunidade a nível internacional no que respeita às

questões com especial interesse para a UEM (artigo 111º, nº 4 TCE); a negociação e

celebração de acordos nos domínios do comércio de serviços e dos aspectos comerciais da

propriedade intelectual, ainda que sujeito a limitações (artigo 133º, nº 5 TCE); a cooperação

económica, financeira e técnica com os países terceiros (artigo 181ºA nº 2 TEC)190.

Apesar do considerável número de matérias que coloca sobre a regra da votação por

maioria qualificada, Nice não deu todavia um salto drástico neste domínio. Na verdade, nas

áreas consideradas particularmente sensíveis191, isto é, aquelas que interferem mais

directamente com o poder individual de cada Estado-membro, a unanimidade prevaleceu, ao

mesmo tempo que, em algumas das novas matérias, a adopção da vmq ficou condicionada por

substanciais excepções192. Daqui resulta, que embora continuando a tendência iniciada pelos

seus mais recentes “predecessores”, o novo Tratado não avançou, todavia, o suficiente para

fazer da votação por maioria qualificada a regra. Ainda assim, como nota Monar (2001, 329)

há que assinalar uma mudança qualitativa, na medida em este tipo de votação tornou-se agora

o procedimento predominante no que respeita às nomeações e aprovação dos estatutos das

instituições comunitárias e conheceu uma extensão significativa em algumas das áreas da

representação externa da União (sector tradicionalmente sujeito à unanimidade).

190 Cf. Monar (2001, 327-328). 191 É o caso, por exemplo, da reforma dos tratados, da adopção de estratégias comuns no domínio da PESC, da harmonização fiscal ou da cultura. 192 Assim, por exemplo, no domínio da liberdade de movimento e de residência a vmq não se aplica às disposições sobre passaportes, bilhetes de identidade, autorização de residência e segurança ou protecção social. Também no domínio da cooperação judicial em matérias civis continuam sujeitas à regra da unanimidade as disposições relativas às leis sobre a família. Por sua vez, a maioria qualificada só se aplicará às disposições que respeitam à política de asilo se as regras comuns e os princípios básicos tiverem sido adoptados por unanimidade. Igualmente sujeita a excepções estão as medidas respeitantes à introdução do euro nos novos Estados-membros, uma vez que a unanimidade se continua a manter na fixação da taxa de conversão (Monar and Wessels 2001, 328).

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Se nas modalidades de votação a avaliação é, portanto, positiva, o mesmo não parece

poder dizer-se do procedimento de co-decisão, domínio em que as mudanças foram pouco

significativas. Depois de rejeitarem a proposta do PE, que estabelecia uma ligação automática

entre o alargamento da votação por maioria qualificada a novas matérias e a co-decisão, os

líderes europeus acordaram apenas numa limitadíssima extensão desta última, que passa

também a aplicar-se: às medidas de incentivo à não discriminação (artigo 13º, nº 2 TCE); às

medidas relativas à liberdade de circulação e de residência, salvo as excepções previstas

(artigo 18º, nº 2 TCE); à cooperação judicial em matérias civis (artigo 65º TEC); às medidas

específicas de apoio às acções no campo da política industrial (artigo 157º TEC); à adopção

de acções específicas com vista à coesão económica e social, com excepção dos fundos

estruturais (artigo 159º TCE); aos regulamentos dos partidos políticos a nível europeu e às

regras relativas ao seu funcionamento (artigo 191º TCE). O Tratado de Nice prevê ainda a

possibilidade de uma antecipação da data prevista por Amesterdão para a aplicação da co-

decisão a algumas das matérias comunitarizadas do terceiro pilar (artigo 67º TCE) e a certas

vertentes da política social (artigo 137º TCE), desde que o Conselho assim o decida por

unanimidade. Para além disto, Nice prevê igualmente um alargamento das matérias sujeitas a

parecer do Parlamento Europeu, que passa a aplicar-se à verificação da existência de um risco

manifesto de violação grave dos direitos fundamentais por parte dos Estados-membros (artigo

7º TUE); à instituição de uma “cooperação reforçada” nas áreas do primeiro pilar sujeitas à

co-decisão (artigo 11º, nº 2 TCE); e, por último, à reforma dos fundos estruturais e de coesão

(somente a partir de 01 de Janeiro de 2007 - artigo 161º TCE).

Avançou-se também no que respeita aos partidos políticos a nível europeu, uma vez

que este Tratado consagra a base jurídica necessária à definição do seu estatuto e das regras

relativas ao seu funcionamento. De acordo com as novas disposições, compete ao Conselho,

no âmbito da co-decisão, a decisão nesta matéria (artigo 191º ¶ 2, TCE). Apesar da

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

importância que medidas facilitadoras da criação de verdadeiros partidos europeus poderiam

ter para a formação de uma “consciência política europeia”, os líderes europeus mostraram

alguma relutância, deixando claro que o disposto no artigo 191º TCE “não implica nenhuma

transferência de competência para a Comunidade Europeia nem afecta a aplicação das normas

constitucionais nacionais”193.

Embora tenhamos assistido a um aumento dos poderes legislativos do Parlamento

Europeu, a sua afirmação como verdadeiro co-legislador ficou, todavia, muito aquém do

desejável, perdendo-se, uma oportunidade soberana para reafirmar a vontade, que parecia

estar latente em Maastricht e Amesterdão, de alicerçar a construção da nova União Europeia

numa verdadeira democracia parlamentar. Carecendo o projecto comunitário de legitimidade

democrática, a opção escolhida por Nice parece, pois, desviar-se do caminho acertado.

3.1.2 Um reforço tímido da Europa dos cidadãos194

No domínio da cidadania poucas foram as alterações introduzidas pelo Tratado de

Nice. É, no entanto, de destacar a nova redacção do ponto 2 do artigo 18º TCE que confere à

Comunidade maior margem de actuação no que respeita à concretização da plena liberdade de

circulação e residência dos cidadãos da União195. Se, de acordo com as anteriores disposições,

o Conselho podia apenas tomar medidas para facilitar estes direitos, a partir de agora poderá

adoptar (através da co-decisão) tais medidas, mesmo nos casos em que este Tratado não tenha

193 Declaração respeitante ao artigo 191º do Tratado que institui a Comunidade Europeia. 194 Neste domínio mereceria também destaque a elaboração da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, mas dada a importância de tal passo para o “processo de constitucionalização” em curso, abordaremos as possíveis implicações desta Carta no ponto que dedicaremos a esta temática. 195 Com as alterações introduzidas por Amesterdão no ponto 2 do artigo 18º TCE podia ler-se: “[O] Conselho pode adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício dos direitos a que se refere o número anterior; salvo disposição em contrário do presente Tratado, o Conselho delibera nos termos do artigo 251º. O Conselho delibera por unanimidade em todo o processo previsto neste artigo”. Por sua vez, com a redacção que lhe foi dada por Nice, o texto do artigo passa a ser o seguinte: “[S]e, para atingir esse objectivo, se revelar necessária uma acção da Comunidade sem que o presente Tratado tenha previsto poderes de acção para o efeito, o Conselho pode adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício dos direitos a que se refere o nº 1. O Conselho delibera nos termos do artigo 251º”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

previsto poderes de acção para o efeito. Ficam, todavia, explicitamente excluídas desta

medida as disposições relativas a passaportes, bilhetes de identidade, autorizações de

residência, segurança social e protecção social (artigo 18º, nº 3 TCE).

Por outro lado, e reagindo a um perigo de violação das liberdades fundamentais na

Áustria196, os líderes europeus aproveitaram a oportunidade para reforçar as disposições

destinadas a garantir o cumprimento dos direitos fundamentais por parte de todos os Estados-

membros. Com tal objectivo, foi introduzido um novo ponto no artigo 7º do TUE197 que

procura somar à punição, o princípio de prevenção. Tratou-se, na verdade, de “aprender com

os erros cometidos”, uma vez que a situação na Áustria pôs “a nu” o facto do referido artigo

7º não oferecer base legal para a actuação da Comunidade nas situações em que a violação

dos direitos e liberdades fundamentais fosse previsível, mas não tivesse ainda ocorrido. Por

esta razão, as medidas a adoptar no caso austríaco foram decididas pelos Estados-membros, e

não pelo Conselho enquanto instituição, facto que suscitou uma acesa controvérsia. Para

evitar idênticos constrangimentos no futuro, o Tratado de Nice atribui ao Conselho a

competência para verificar a existência de um risco manifesto de violação dos princípios

fundamentais enunciados no nº 1 do artigo 6º TUE198 e para lhe dirigir as recomendações

apropriadas. Cabe ainda ao Conselho a verificação regular da validade dos motivos que

196 Tratou-se, como é sabido, da possível participação na coligação governamental do líder do partido de extrema direita Jörg Haider que, por ser um defensor de ideias consideradas xenófobas e discriminatórias, era visto pela comunidade internacional como uma ameaça à democracia e aos direitos humanos. Como medida de precaução a presidência portuguesa da União aprovou, a 31 de Janeiro de 2000, uma declaração em nome dos 14 Estados-membros que previa o corte de relações bilaterais com a Áustria se tal situação se viesse a verificar, tendo sido acordadas também uma série de outras medidas punitivas. 197 O artigo 7º do TUE determinava o procedimento a adoptar em caso de violação dos direitos fundamentais por parte de um Estado-membro da União Europeia. Com a introdução do novo ponto este artigo passa a aplicar-se também em caso de “risco manifesto” de violação: “[S]ob proposta fundamentada de um terço dos Estados-membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave de algum dos princípios enunciados no nº 1 do artigo 6º por parte de um Estado-Membro e dirigir-lhe recomendações apropriadas. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado-Membro em questão e pode, deliberando segundo o mesmo processo, pedir a personalidades independentes que lhe apresentem num prazo razoável um relatório sobre a situação nesse Estado-Membro. O Conselho verificará regularmente se continuam válidos os motivos que conduziram a essa constatação”. 198 Princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

conduziram à constatação da violação. No caso de o Estado-membro em causa não conseguir

reparar a situação será então desencadeado o procedimento, já anteriormente previsto pelo

artigo 7º (agora ponto nº 2 e seguintes), destinado a verificar a existência de uma violação

grave e persistente dos supracitados princípios e à aplicação das respectivas sanções (este

procedimento manteve-se inalterado pelas disposições de Nice).

3.1.3 Um passo limitado para a Europa social

Para além da tentativa de simplificação de algumas das disposições sociais, visando,

sobretudo, uma melhor compreensão dos artigos do TCE, pouco se avançou neste domínio.

Apesar da posição favorável de alguns Estados à adopção da regra da maioria qualificada

neste domínio, a unanimidade acabaria por se manter nas áreas mais sensíveis199, ainda que

seja prevista a possibilidade de o Conselho decidir, por unanimidade, sujeitar algumas destas

matérias ao procedimento de co-decisão e à vmq (artigo 137º, nº 2 TCE). A porta entreaberta

por esta última possibilidade é, todavia, quase totalmente encerrada pelo nº 4 do mesmo artigo

que determina que “[A]s disposições adoptadas ao abrigo do presente artigo: não prejudicam a

faculdade de os Estados-Membros definirem os princípios fundamentais dos seus sistemas de

segurança social nem devem afectar substancialmente o equilíbrio financeiro desses sistemas

(...)”.

Assim, a única verdadeira inovação de Nice, nesta área, é a criação pelo Conselho, e

após consulta ao PE, de um Comité de Protecção Social (artigo 144º TCE) que, tendo carácter

consultivo, ficará encarregue de promover a cooperação em matéria de protecção social entre

os Estados-membros, juntamente com a Comissão. Composto por dois membros nomeados

por esta instituição e outros dois nomeados por cada um dos Estados-membros, compete-lhe 199 Segurança e protecção social, protecção dos trabalhadores, representação e defesa colectiva dos interesses dos trabalhadores e empregadores e condições de emprego para nacionais de países terceiros a residir no território da Comunidade.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

nomeadamente: acompanhar a situação social nos Estados-membros; promover a troca de

informações e experiências entre os Estados-membros e com a Comissão; e preparar

relatórios, formular pareceres e desenvolver outras actividades nos domínios da sua

competência, quer a pedido do Conselho ou da Comissão, quer por sua própria iniciativa. No

cumprimento do seu mandato, cabe-lhe também estabelecer os necessários contactos com os

parceiros sociais.

3.1.4 Uma maior operacionalização da “cooperação reforçada”

Apesar de à data da conferência intergovernamental de 2000 não ter ainda sido

oficialmente instituída uma “cooperação reforçada”200, muitas eram as dúvidas quanto à real

operacionalidade deste instrumento, sobretudo em virtude da possibilidade de veto nacional

prevista por Amesterdão201. Por esta razão, a reforma do recém-criado mecanismo foi

introduzida na agenda da CIG, ficando o acordo final plasmado no TUE e no TCE através da

introdução de um número considerável de novas regras e da reformulação de algumas das

antigas.

Sem surpresas, pode dizer-se, entre as inovações mais importantes conta-se a adopção

da votação por maioria qualificada, mesmo no caso de a decisão ter sido submetida ao

Conselho Europeu, o que se traduz, na prática, na eliminação do chamado “travão de

emergência”, isto é, da possibilidade de veto nacional (artigos 11º, nº 2 TCE e 40ºA nº 2

TUE). Igualmente digna de nota, é a extensão da “cooperação reforçada” às disposições da

PESC, ainda que limitada às acções comuns e às posições comuns que não tenham

200 Se excluirmos o Acordo de Schengen, por muitos considerado como o primeiro exemplo da instituição de uma “cooperação reforçada”. 201 Relembre-se que o artigo 11º, nº 2 do TCE previa a possibilidade de não realização da votação para a autorização de uma cooperação reforçada no caso de um Estado-membro “declarar que, por importantes e expressas razões de política nacional, tenciona opor-se à concessão de uma autorização por maioria qualificada (...)”. Igual possibilidade é conferida pelo artigo 40º, nº 1 do TUE, desta feita em relação às matérias do terceiro pilar.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

implicações em matéria militar ou de defesa (artigos 27ºA – 27ºE TUE). Foi também fixado

em oito o número mínimo de Estados necessários à instauração de uma “cooperação

reforçada” significando, portanto, que, após o alargamento, este mecanismo poderá ser

utilizado por um grupo constituído por menos de metade dos membros da União (ao contrário

do que era previsto pelo Tratado Amesterdão)202.

Conscientes de que as inovações introduzidas por Nice facilitam a utilização do

mecanismo instituído por Amesterdão, os negociadores daquele Tratado procuraram

igualmente contrariar os riscos de fragmentação política que este mecanismo encerra. Neste

sentido, sujeitam a instituição de uma “cooperação reforçada” a novas condições: reforçar o

processo de integração; permanecer nos limites das competências da União ou da

Comunidade e não incidir nos domínios que são da competência exclusiva da Comunidade;

não prejudicar o mercado interno ou a coesão económica e social; não constituir uma restrição

nem uma descriminação ao comércio entre os Estados-membros e não provocar distorções de

concorrência entre eles (artigo 43º TCE, alíneas a), d), e) e f), respectivamente). Para além

disto, é também reforçada a sua utilização como “último recurso”, ideia que aparece agora

consagrada num artigo próprio (43ºA TUE), de acordo com o qual as “cooperações

reforçadas” só poderão ser iniciadas depois de se estabelecer no Conselho que os seus

objectivos não podem ser atingidos, num prazo razoável, através da aplicação das disposições

relevantes dos tratados. Ao Conselho e à Comissão cabe cooperar, para assegurar a

consistência das actividades desenvolvidas neste domínio, e a sua coerência com as políticas

da União e da Comunidade (artigo 45º TUE).

Em síntese, fazendo um balanço das alterações introduzidas pelo Tratado de Nice no

que respeita à “cooperação reforçada” conclui-se que se tratou, como já referimos, de uma

tentativa de contrabalançar uma maior operacionalidade deste instrumento com um reforço

202 De acordo com o artigo 43º, alínea d) do TUE uma “cooperação reforçada” deveria envolver “pelo menos a maioria dos Estados-membros”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

das salvaguardas em relação aos seus riscos potenciais. Ainda assim, e malgrado a

redundância, diríamos que, no cômputo geral, o Tratado de Nice flexibilizou a “flexibilidade”.

3.1.5 Um resultado muito modesto no terceiro pilar

No domínio do terceiro pilar, o Tratado de Nice procedeu apenas a pequenos

rearranjos ou a alterações pontuais. De uma maneira geral, as emendas feitas aos artigos

obedecem ao objectivo geral de imprimir maior celeridade à criação da “área de liberdade,

segurança e justiça” prevista por Amesterdão. Assim, para facilitar os progressos neste

domínio, foi, como tivemos já ensejo de indicar, removida a possibilidade de veto nacional na

instituição de uma “cooperação reforçada” nas matérias deste pilar, que passa agora a estar

sujeita à supervisão do Tribunal de Justiça. Idêntico objectivo presidiu à instituição da

Eurojust (Unidade Europeia de Cooperação Judicial – artigos 29º e 31º TUE), que terá como

missão executar as tarefas definidas no Conselho Europeu de Tampere (Outubro de 1999).

Esta nova unidade, composta por magistrados e advogados nacionais, substituirá a Unidade

criada interinamente pelo secretariado do Conselho e dedicar-se-á a combater o crime

organizado, nomeadamente através da promoção da coordenação das autoridades judiciais

nacionais, do apoio às investigações criminais em casos de crimes internacionais e da maior

viabilização dos pedidos de extradição graças a uma cooperação reforçada entre a Eurojust e a

Rede Judicial Europeia.

Tratam-se, é imperioso reconhecê-lo, de passos modestos numa área de importância

extrema e que, como o comprovam os recentes acontecimentos na cena internacional203,

deveria receber uma atenção prioritária. A comunitarização total do que ainda resta do

terceiro pilar de Maastricht teria sido, indubitavelmente, o caminho indicado. Todavia, face à 203 Referimo-nos, obviamente, aos perigos que representa as novas formas de terrorismo internacional, e em particular o atentado terrorista que, a 11 de Setembro de 2001, fez “tremer” a América e o mundo, e pôs irremediavelmente em causa o conceito de segurança colectiva.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

evidente falta de vontade política e de consenso para tal passo, parece-nos que a via da

coordenação e da cooperação, reforçada em Nice, embora não sendo um “óptimo” poderá ser,

ainda assim, uma situação de second best.

3.2 A Identidade Externa da União: o Perpetuar do Abismo entre os Avanços de Jure e

os Avanços de Facto

Com o objectivo de conferir uma maior operacionalidade ao segundo pilar saído de

Maastricht, Nice continua a tentativa iniciada por Amesterdão para melhorar os

procedimentos e instrumentos ao serviço da Política Externa e de Segurança Comum. Não

obstante, como resultado da excessiva concentração dos negociadores do Tratado nas

reformas institucionais, o compromisso assumido neste domínio acabou por ser bastante

parco.

Uma das novidades é a possibilidade agora prevista de uma “cooperação reforçada” no

âmbito da PESC (artigo 27ºA – 27ºE TUE), sempre com a condição de salvaguardar os

valores e servir os interesses da União, como um todo. Não obstante, o tratado limita

expressamente a sua incidência à implementação de uma acção comum ou posição comum, ao

mesmo tempo que excluiu a sua aplicação às matérias com implicações militares ou de

defesa204 (artigo 27ºB TUE). Por outro lado, se no primeiro e segundo pilares o veto nacional

foi eliminado, o mesmo não aconteceu em relação à PESC onde o “travão de emergência”

continua a poder ser accionado por qualquer um dos Estados-membros (artigo 27ºC TUE). No

que respeita à celebração de acordos internacionais no domínio da PESC (artigo 24º TUE)

deixa de ser exigida a unanimidade para que o Conselho possa deliberar, a menos que tais

204 De referir que em virtude da extensão deste mecanismo ao segundo pilar e para evitar confusões quanto ao seu âmbito de aplicação (que como sabemos não inclui matérias com implicações militares ou de defesa) é substituída no nº 4 do artigo 17º TUE a anterior expressão “cooperação reforçada” por “cooperação mais estreita”, procurando-se assim distinguir o instrumento agora colocado à disposição dos Estados na área da PESC de outro tipo de cooperação que poderá estabelecida a nível bilateral entre os membros da União.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

acordos incidam sobre uma matéria em relação à qual é exigida unanimidade para a adopção

das decisões internas. São também alargadas as funções e responsabilidades do Comité

Político, agora designado Comité Político e de Segurança (CPS), que passa a exercer, sob

responsabilidade do Conselho, o controlo político e a direcção estratégica das operações de

gestão de crises, podendo mesmo, se para tal for autorizado por aquela instituição, tomar as

decisões relevantes no que respeita a uma operação específica (artigo 25º TUE). Outra

modificação importante diz respeito à figura do representante especial, com competência nas

questões políticas específicas, cuja nomeação pelo Conselho deixa de estar sujeita à regra da

unanimidade (artigo 23º, nº 2 TUE).

Finalmente, ao contrário do que acontecia com Amesterdão, assiste-se agora a uma

quase total ausência de referência à União da Europa Ocidental. De facto, a gradual

transferência das tarefas desta organização para a União Europeia, traduziu-se num “apagar”

no tratado das passagens que lhe eram dedicadas205. Por sua vez, no domínio da defesa não

foram contempladas pelos legisladores quaisquer inovações, perdendo-se assim uma

oportunidade importante para consagrar de jure os consideráveis avanços já concretizados na

prática. De facto, de acordo com as decisões do Conselho Europeu de Colónia, de 3 e 4 de

Junho de 1999, a União Europeia deveria tornar-se rapidamente apta a assumir as suas

responsabilidades no domínio da prevenção de conflitos e gestão de crises – as chamadas

missões de Petersberg (tal como previsto no artigo 17º, nº 2 TUE). Com este objectivo, foi

também acordado que a União deveria estabelecer uma capacidade autónoma para tomar

decisões e mesmo conduzir operações militares, nos conflitos em que a Organização do

Tratado do Atlântico Norte (NATO) não estivesse envolvida.

Por sua vez, no Conselho Europeu de Helsínquia, que teve lugar a 10 e 11 de

205 A única referência à União da Europa Ocidental que se mantém com Nice resulta da possibilidade contemplada neste Tratado de dois ou mais Estados-membros estabelecerem entre si uma cooperação mais estreita “a nível bilateral, no âmbito da UEO e da NATO, na medida que essa cooperação não contrarie nem dificulte a cooperação prevista no presente Título [PESC]” (artigo 17º, nº 4 TUE).

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Dezembro do mesmo ano, foi ainda decidido que a UE deveria melhorar a eficácia dos seus

recursos na gestão de crises e a rapidez da sua intervenção. Com este objectivo, foi

estabelecido o chamado headline goal de Helsínquia que consistia na criação de uma Força

Europeia de Reacção Rápida (FERR): em regime de cooperação voluntária nas operações

lideradas pela UE, os Estados-membros deveriam ser capazes de, até 2003, pôr em acção,

num prazo de 60 dias, e manter pelo menos durante um ano, um grupo de 60 000 militares

capazes de levar a cabo qualquer uma das tarefas incluídas nas missões de Petersberg. Esta

força deveria ser também totalmente auto-suficiente em termos militares (incluindo

capacidade de comando, controlo e informação, logística e outros apoios adicionais,

nomeadamente reforço aéreo e naval).

Para facilitar o cumprimento das metas traçadas, foi acordada no âmbito do Conselho

a criação de órgãos e estruturas políticas e militares permanentes que permitam à União

“assegurar a necessária orientação política e direcção estratégica a essas operações,

respeitando ao mesmo tempo o quadro institucional único”206. Dada a necessidade de uma

preparação cuidada de estruturas com tão importantes responsabilidades, ficou também

decidido - como medida provisória - criar no âmbito do Conselho, a partir de Março de 2000,

os seguintes orgãos: um comité político e de segurança provisório, a nível de altos

funcionários/embaixadores, encarregado de dar seguimento - sob a direcção do Comité

Político (previsto por Amesterdão) - às conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia,

preparando recomendações sobre o funcionamento futuro da política europeia comum de

segurança e defesa e resolvendo as questões pontuais relacionadas com a PESC, em contacto

estreito com o secretário geral/Alto-representante; um órgão provisório composto por

representantes militares dos estados-maiores dos Estados-membros aptos a fornecer os

conselhos militares solicitados pelo comité político e de segurança provisório; por último, o

206 Cf. União Europeia, Presidência. 1999. “Conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia”, 6.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

reforço do secretariado-geral do Conselho por peritos militares destacados pelos Estados-

membros para apoiar nos trabalhos relativos à Política Europeia Comum de Segurança e

Defesa (PECSD)207 e formar o núcleo do futuro Quadro de Pessoal Militar. Seria ainda

reafirmado o papel primordial do secretário-geral do Conselho, que exerce também as funções

de Alto-representante para a PESC, cabendo-lhe fornecer os necessários estímulos ao

aumento da eficácia e visibilidade da PESC e da PECSD. Neste sentido, deverá contribuir,

nos termos do Tratado da União Europeia, para a formulação, elaboração e execução das

decisões políticas.

Finalmente, os chefes de Estado e de governo debruçaram-se sobre os aspectos não

militares da gestão de crises pela UE. Assim, com o objectivo de reforçar e melhorar a

coordenação dos instrumentos não-militares, nacionais e colectivos, de resposta a crises,

decidiu-se pela oportunidade de elaborar um Plano de Acção onde fossem apresentados os

objectivos da União e detalhadas as acções específicas e os passos a dar para desenvolver uma

capacidade de reacção rápida de gestão civil de crises, nomeadamente através do

desenvolvimento de uma força de policiamento civil e da criação de mecanismos de

financiamento rápido, como, por exemplo, um Fundo de Reacção Rápida da Comissão208.

Embora algumas das inovações previstas pelos dois conselhos europeus, acima

mencionados, permanecessem ainda no papel, à data da cimeira de Nice, o Tratado de Nice

não trouxe também reais progressos nesta matéria. Já as conclusões da presidência deixam

antever um provável queimar de etapas. Começando por confirmar os compromissos

anteriores assumidos, o Conselho Europeu de Nice reafirma a vontade de tornar a UE

rapidamente operacional em matéria de segurança e defesa209. A União deverá, assim, assumir

207 A sigla adoptada em relação a esta política varia com os textos comunitários aparecendo, não raramente, como PESD. 208 Ver, por exemplo, Anexo 2 ao Anexo IV: “Relatórios da Presidência”. In União Europeia, Presidência. 1999. “Conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia”. 209 Na Declaração respeitante à Política Europeia de Segurança e Defesa, anexa ao Tratado de Nice, pode ler-se: “[D]e acordo com os textos aprovados pelo Conselho Europeu de Nice relativos à política europeia de

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

as funções de gestão de crises da UEO, tornando-se, para tal, indispensável o reforço das suas

capacidades neste sector, de forma a que esteja apta a intervir com, ou sem, recurso aos meios

da NATO.

Deste modo, como, aliás, já era previsto pelo Conselho Europeu de Helsínquia, é

acordada a substituição dos organismos militares e políticos provisórios, a funcionar desde

Março de 2000, por três novos orgãos permanentes que deverão ser criados rápida e

independentemente da ratificação do Tratado de Nice: um Comité Político e de Segurança

(CPS), um Comité Militar da União Europeia (CMUE) e o Estado-Maior da União Europeia

(EMUE)210.

O Comité Político e de Segurança Permanente, sediado em Bruxelas, será composto

por representantes nacionais, a nível de altos funcionários/embaixadores, e encarregar-se-á de

todos os aspectos da PESC, incluindo a PECSD, de acordo com as disposições do TUE e sem

prejuízo das competências da Comunidade. Na eventualidade de uma operação militar de

gestão de crises, cabe ao CPS delinear, sob a autoridade do Conselho, a direcção estratégica e

política da operação. O CPS fornecerá igualmente orientações ao CMUE.

Por sua vez, o Comité Militar da União Europeia será constituído por chefes do

Estado-Maior, na pessoa dos seus representantes militares, embora reúna ao nível dos chefes

de Estado-Maior sempre que necessário. Este Comité prestará aconselhamento militar e fará

recomendações ao CPS, exercendo também a direcção militar de todas as actividades

militares no âmbito da UE. Sempre que estejam em discussão decisões com implicações no

domínio da defesa, o presidente do CMUE participará nas reuniões do Conselho.

Finalmente, o Estado-Maior da União Europeia - incluído nas estruturas do Conselho -

desempenhará as funções de peritagem e apoio militar à PECSD, incluindo a condução de

segurança e defesa (...), o objectivo da União Europeia é que aquela se torne rapidamente operacional” [sublinhado nosso]. 210 Ver Anexo VI “Relatório da Presidência sobre a Política Europeia de Segurança e Defesa” e Anexos III, IV e VI ao Anexo VI. In União Europeia, Presidência, 2000. “Conclusões do Conselho Europeu de Nice”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

operações militares de gestão de crises lideradas pela UE. Para além destas, exercerá ainda as

funções de alerta precoce, avaliação da situação e planeamento estratégico para as missões de

Petersberg, incluindo a identificação das forças europeias nacionais e multinacionais.

Apesar da criação destas duas últimas estruturas militares, o Relatório da Presidência

sobre a Política Europeia de Segurança e Defesa deixa claro que a ambicionada capacidade

de gestão de crises e prevenção de conflitos não envolve a criação de um exército europeu211 e

que a decisão de pôr à disposição destas operações os recursos nacionais caberá sempre aos

Estados-membros. Por outro lado, é reafirmada a importância da NATO que continua a ser a

base da defesa colectiva dos seus membros. Significa isto que a criação da Força Europeia de

Reacção Rápida, longe de pôr em causa a importância daquela organização, contribuirá antes

para o estabelecimento de uma parceria estratégica entre a UE e a NATO na gestão de crises212

sempre com respeito pela autonomia da capacidade de decisão das duas organizações. Prevê-

se, assim, a consulta mútua e a cooperação nas matérias de segurança, defesa e gestão de

crises que envolvam interesses comuns, de modo a que seja posta em prática a resposta militar

mais apropriada.

Por sua vez, para além da importância em termos de parceria com a NATO, o

desenvolvimento de uma capacidade autónoma de reacção rápida, como parte integrante da

211 Ora, este parece-nos ser um aspecto que importa desmistificar, até porque julgamos que seria demasiadamente naïf pensar-se que se pode preparar uma força exclusivamente para missões de paz, conhecidos que são os inúmeros riscos inerentes a tais missões. A este propósito somos tentados a concordar com o embaixador português José Cutileiro quando diz que “não há forças armadas para missões de paz e forças armadas para a guerra: há forças armadas para a guerra que podem também ocupar-se de missões de paz” (Leandro et al. 2000, 95). 212 A este propósito parece-nos adequado trazer para o debate, ainda que superficialmente, a questão das reduzidas verbas destinadas à defesa. Como é sabido, a preparação de uma força desta envergadura implica que se gaste mais e melhor, sendo ingenuidade pensar que dotar a Europa de meios militares que lhe permita diminuir significativamente a sua dependência dos aliados americanos e trasformar-se num parceiro “mais igual” no seio da NATO, não implicará um aumento das despesas militares. A questão principal reside, portanto, em saber até que ponto as nossas populações e os nossos parlamentos estão sensibilizados para esta realidade. Parece-nos que os governos e sobretudo os seus líderes desempenharão aqui um papel crucial. Importa essencialmente que os eleitores tomem consciência de que se é verdade que a “Europa é uma ilha de estabilidade” (pelo menos no lado Ocidental) está “rodeada por um mar de instabilidade com algumas tempestades a dirigirem-se para ela” (Leandro et al. 2000, 15), bastando lembrar, a título de exemplo, que vivemos “paredes meias” com uma situação no Médio Oriente que continua a ser um “barril de pólvora” prestes a explodir.

- 125 -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

PESC, terá igualmente como objectivo permitir aos europeus dar uma resposta mais efectiva e

coerente aos pedidos das Nações Unidas ou da Organização para a Segurança e Cooperação

na Europa (OSCE). Facilitar-se-á, deste modo, uma cooperação mais estreita entre estas duas

organizações internacionais e reforçar-se-á a contribuição da União Europeia para a

manutenção da paz e segurança internacionais.

Finalmente, o Relatório da presidência faz ainda referência ao projecto de

desenvolvimento de capacidades civis nos quatro domínios prioritários identificadas na

cimeira de Santa Maria da Feira de 19 e 20 de Junho de 2000 (polícia, reforço do Estado de

Direito, reforço da administração civil e protecção civil)213. Neste domínio específico foi

acordado que os Estados-membros deverão estar aptos, até 2003, a fornecer 5000 polícias

para missões internacionais, 1000 dos quais prontos a ser mobilizados num espaço inferior a

30 dias.

Para concluir, se contabilizarmos os compromissos assumidos pelos líderes europeus,

nos diversos conselhos europeus desde Amesterdão, podemos facilmente constatar que foram

dados passos significativos no domínio da segurança e defesa. Não obstante, é verdade que a

grande maioria destes avanços é feita à margem da moldura institucional e dos procedimentos

de decisão da União, não tendo sido ainda consagrados em letra de tratado. Esta situação,

aparentemente inconciliável com o desejo expresso na Declaração relativa à política

europeia de segurança e defesa214 de tornar esta política operacional o mais rapidamente

possível, parece poder explicar-se pelas ainda grandes divergências internas na União, que

opõem Estados como a França, grande defensor de uma capacidade de defesa europeia tão

independente e autónoma quanto possível, a outros, como o Reino Unido, que continua a

defender vigorosamente o papel insubstituível da NATO e a preservação do stato quo. Uma

outra explicação residiria no facto de alguns membros da União continuarem a defender 213 Ver União Europeia, Presidência. 2000. “Conclusões do Conselho Europeu de Santa Maria da Feira”. [www.Europa.eu.int/council/off/conclu/june2000/june2000_pt.pdf] (11.11.2001). 214 Anexa ao Tratado de Nice.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

aguerridamente a manutenção do carácter intergovernamental do segundo pilar saído de

Maastricht, pelo que os avanços só foram possíveis porque acordados à margem dos tratados

sob a capa de uma “cooperação” que pouco mais implica que uma parceria estratégica

semelhante à realizada entre aliados no quadro tradicional das relações internacionais.

Ainda assim, é de referir que mesmo sem a força jurídica que só a consagração num

tratado lhe poderia conferir, os passos já dados neste domínio representam, pelo menos, um

indicador positivo da provável evolução, a prazo, para uma política de segurança e defesa

comum, alicerçada nos valores europeus de solidariedade e respeito pelos direitos

fundamentais, e dotada dos instrumentos necessários a uma actuação coordenada, coerente e

eficaz por parte dos Estados-membros da União215.

3.3 O “Processo” de Constitucionalização: a Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia

O ano de 2000 ficou marcado não só pelas árduas negociações da conferência

intergovernamental que daria origem ao Tratado de Nice, mas também por um reacender do

debate político sobre uma futura reestruturação de base constitucional da UE, catapultado, em

grande medida, pelo discurso (polémico) do ministro dos Negócios Estrangeiros alemão

Joschka Fischer (proferido, “a título pessoal”, na Universidade de Humboldt a 12 de Maio de

2000). Não obstante, apesar dos estímulos exteriores fornecidos por alguns dos líderes

europeus envolvidos nas negociações da CIG, esta, demasiadamente concentrada na herança

deixada por Amesterdão, acabaria por não se debruçar realmente sobre um possível desenho

215 Mais do que uma previsão, esta pretende ser uma nota de optimismo, até porque, como sublinha Anne-Marie Le Gloannec, “[A]t present Europe as a security and defense entity does not have any common strategies”. Uma possível explicação para esta “falta de unidade” é-nos dada pela mesma autora alguns parágrafos à frente: “(...) the EU is set up precisely to prevent hegemony and disperse rather than concentrate power. There is a disjunction between the very nature of EU and the requirement of authority in an European Security and Defense Policy”. Cf. Anne-Marie Le Gloannec. 2001. “Europe as an International Actor.” World Politics, Annual Editions 02/03. Guilford, CT: McGrow-Hill-Dushkin, 112-114.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

constitucional da União, muito embora a sua agenda contemplasse alguns pontos

potencialmente relevantes nesta matéria.

O mais importante de todos é sem dúvida a decisão de elaborar, na sequência do que

aliás tinha ficado definido no Conselho Europeu de Colónia (Junho 1999), uma Carta dos

Direitos Fundamentais da União. Inovadora por si só, marcou a diferença também no método

escolhido para lhe dar forma, tendo sido preparada, à margem da CIG, por uma convenção216

composta por representantes dos governos e parlamentos nacionais, da Comissão e do

Parlamento Europeu217. Tratou-se, na verdade, de uma espécie de fórum que permitiu um

debate alargado a grupos tradicionalmente excluídos das negociações. Pondo em prática

procedimentos únicos, a Convenção abriu as suas sessões ao público e disponibilizou na

Internet todos os documentos preparatórios. Para além disto, realizou também audiências com

representantes do Comité Económico e Social, do Comité das Regiões, da sociedade civil em

geral e dos países candidatos. O Tribunal de Justiça e o Conselho Europeu tomaram parte nos

trabalhos, como observadores.

Menos de um ano depois da sua primeira reunião, e apesar das opiniões divergentes a

propósito do conteúdo do documento, a Convenção sobre a Carta dos Direitos Fundamentais

da UE deu por concluídos os trabalhos a 02 de Outubro de 2000, tendo o projecto da Carta218

sido submetido ao Conselho Europeu de Biarritz, que o aprovou por unanimidade, a 14 de

Outubro do mesmo ano.

216 A ideia de criar um grupo ad hoc composto por representantes das várias instituições comunitárias para elaborar a Carta dos Direitos Fundamentais havia sido também decidida pelo Conselho Europeu de Colónia, de Junho de 1999. Todavia, a composição precisa deste grupo, designado “Convenção” só viria a ser determinada pelo Conselho Europeu de Tampere de Outubro do mesmo ano. 217 Método que viria a ser novamente escolhido para levar a cabo o “indispensável” debate sobre o futuro da Europa. À nova convenção - que iniciou os seus trabalhos em Fevereiro de 2002 e realizou a sessão de encerramento em 10 de Julho de 2003 - coube desta feita promover uma discussão alargada sobre a arquitectura política e institucional da União, que culminou na elaboração de um projecto (ou projectos) de tratado constitucional que servirá de base às discussões da próxima reforma dos tratados, agendada para Outubro de 2003. 218 A Carta dos Direitos Fundamentais da UE é composta por um Preâmbulo e por 54 artigos divididos em sete capítulos: dignidade (1 a 5); liberdades (6 a 19); igualdade (20 a 26); solidariedade (27 a 38), direitos dos cidadãos (39 a 46); justiça (47 a 50) e disposições gerais (51 a 54).

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

Apesar de ter merecido nota positiva por parte dos chefes de Estado e de governo, a

oposição firme de alguns países, com particular destaque para o Reino Unido, impediu a sua

integração no Tratado. O resultado foi a “proclamação solene” da Carta, na cimeira de Nice

que, longe de lhe conferir um estatuto claro, deixa em aberto uma série de interrogações

quanto aos seus verdadeiros efeitos legais. Ter-se-á perdido uma oportunidade política para

acrescentar formalmente uma dimensão constitucional aos tratados comunitários e dar um

passo decisivo no “processo de constitucionalização” da União219.

Seriam, todavia, os líderes europeus que adiaram este salto no processo de integração,

os mesmos que acabariam por reconhecer a necessidade de um debate aprofundado sobre o

futuro constitucional da União Europeia. Com este propósito, foi acrescentada à acta final da

Conferência uma Declaração respeitante ao futuro da União que “apela a um debate mais

amplo e aprofundado sobre o futuro da União Europeia”. O mesmo texto remeteria para o

Conselho Europeu de Laeken, de Dezembro de 2001, a aprovação de uma nova declaração

propondo as iniciativas apropriadas para dar seguimento ao processo de revisão de matérias

tão importantes como a delimitação de competências entre a União e os Estados-membros

(com respeito pelo princípio da subsidiariedade), o estatuto da Carta dos Direitos

Fundamentais da UE, a simplificação dos tratados, e o papel dos parlamentos nacionais na

arquitectura europeia. Ficou igualmente decidida a convocação para 2004 de uma nova

conferência intergovernamental destinada a introduzir nos tratados as alterações necessárias.

219 Importa referir que, de acordo com o texto final apresentado pela Convenção Europeia sobre o futuro da Europa ao Conselho Europeu de Salónica (19 e 20 de Junho de 2003), a Carta dos Direitos Fundamentais constituirá a parte II do futuro tratado constitucional. Está, portanto, uma vez mais nas mãos dos líderes europeus, a possibilidade de conferirem a este documento o estatuto que lhe é devido numa União que se deseja capaz de garantir com eficácia os direitos dos seus cidadãos.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

3.4 Conclusão: uma (Re)avaliação de Nice

Confinado quase exclusivamente ao mandato que havia herdado de Amesterdão, Nice

foi, em muitos aspectos, um tratado decepcionante. Mesmo no domínio da reforma

institucional, e embora tendo desbloqueado o processo de alargamento, há quem se questione

se as controvérsias e disputas que antecederam o acordo não são um sinal da falta de

“preparação mental” da União e dos Estados-membros para um alargamento da dimensão do

que se avizinha220.

De facto, mais do que a uma “preparação construtiva” para o alargamento assistimos

na cimeira de Nice a um cenário clássico de balança de poder: “[T]he enphasis at the Nice

negotiations was clearly on the protection of acquired interests against the effects of

enlargement rather than on a constructive preparation for enlargement” (Monar 2001, 333)

[ênfase no original]. O resultado culminaria num novo desequilíbrio de poderes que favorece

claramente “as grandes potências”, com particular destaque para a Alemanha. Não espanta,

pois, que a cimeira que chegou a ser apelidada de “Feira do Poder”221 tenha conferido uma

inesperada actualidade a conceitos típicos da “ordem diplomática clássica”, que já não eram

utilizados, na Europa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial222.

Apesar das suas inquestionáveis limitações, julgamos ser possível olhar o novo

Tratado através da lente da esperança. Se Nice não é o grande tratado reformador que muitos

esperavam, provavelmente não merecerá também o epitáfio de “fracasso completo” com que

alguns o brindaram. Talvez a sua “pequenez” seja um prenúncio de que as grandes reformas

220 Cf. Monar and Wessels, op. cit., 333. 221 Expressão que apareceu em vários artigos publicados na imprensa sobre a Cimeira de Nice, e que foi mesmo título de um artigo de opinião da autoria do, então secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Francisco Seixas da Costa, publicado no semanário Expresso de 16 de Dezembro de 2000. (Refira-se, todavia, que, no artigo referido, tal expressão aparece “amenizada” por um ponto de interrogação). 222 De facto, se passarmos uma breve revista pelos artigos publicados na imprensa nos dias que se seguiram à cimeira de Nice não será difícil encontrar expressões do tipo “jogo de potências”, “batalha pelo poder”, “conflitos de interesse e de influências”, ao mesmo tempo que se assiste em força à recuperação das noções de “vencedores” e “vencidos” e de “ganhadores” e “perdedores”.

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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?

exigem uma preparação cuidada e de que um “corrupio” de conferências intergovernamentais

poderá não ser o método adequado para fazer avançar o projecto europeu. A esperança surge-

nos assim das ilações que, mesmo de uma má experiência, se podem tirar para o futuro. O

grande desafio do pós-Nice não é apenas a construção de uma nova Europa, mas é também ser

capaz de utilizar, nessa construção, o que se aprendeu com os “erros” cometidos.

A Europa encontra-se numa bifurcação223, e Nice, mais do que o fim de uma etapa,

marca o início de uma nova fase de reflexão sobre o caminho a seguir. Na eminência de um

“alargamento em massa” da UE parece chegado o momento de pensar em novas formas de

governar e de gerir as mudanças. O método de Monnet, gradualista e dos pequenos passos,

serviu a empreitada comunitária durante 50 anos224. Talvez tenha chegado o tempo de, sem

esquecer uma cuidada ponderação, arriscar um salto maior. Até porque o velho dilema que

opõe o alargamento ao aprofundamento é uma falsa questão, que só continua a fazer sentido

para aqueles que vêem no primeiro uma forma de contrariar o segundo, através da diluição da

União numa mera zona de comércio livre. Compreende-se hoje que longe de constituírem

alternativas mutuamente exclusivas, estas duas vias poderão representar as duas faces de uma

mesma moeda. O debate político está lançado e espera-se que, assim, possam ser corrigidas as

falhas do passado, nomeadamente aquela que fez da Europa comunitária uma construção de

elites, que negligenciou durante anos a opinião dos seus verdadeiros destinatários. Nada se

constrói de cima para baixo e mesmo se, contrariando a mais elementar lógica, assim se fizer,

pairará sobre essa obra um risco de desabamento iminente. O Tratado de Nice tornou possível

223 A ideia de que a UE necessita de clarificar a sua opção política é hoje consensual. O próprio texto da Declaração de Laeken (que abordaremos mais à frente) situa a União numa “encruzilhada”. Apesar de concordamos com a metáfora utilizada, pela ideia de escolha que deixa adivinhar, optamos, no entanto, por seguir nesta matéria a imagem utilizada por Lobo-Fernandes num artigo intitulado “O Tratado de Nice e o Futuro da UE: A Bifurcação”. A nossa opção encontra explicação no facto de, à semelhança do autor, considerarmos que à União se apresentam, não múltiplos cenários (como a expressão “encruzilhada” poderia fazer supor), mas apenas dois: “[P]odemos talvez resumir o actual debate na bifurcação entre um caminho pragmático-evolucionista e uma via federal-constitucional” (2001, 13) [sublinhado nosso]. 224 A este propósito não poderíamos deixar de citar Duverger que, em 1997, escrevia “(...) the framework elaborated by Jean Monnet almost half a century ago has become incomprehensible and powerless” [ênfase nossa]. Maurice Duverger. 1997. ”The Political System of the European Union.” European Journal of Political Research, vol 31, Nos. 1-2, Fevereiro 1997, 141.

- 131 -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

o alargamento. Compete agora aos construtores europeus garantir que a União lhe consiga

sobreviver225.

225 Note-se, todavia, que a “sobrevivência” do projecto europeu depois do alargamento requererá mais do que uma reforma institucional. Referimo-nos, por exemplo, ao desejável – senão indispensável – redimensionamento” do orçamento comunitário pois, como enfatiza Porto, (2002, 51 e 57), “[S]ob pena de ficarem em causa princípios e objectivos que têm de permanecer, a solução não poderá deixar de passar por algum alargamento do orçamento da União (...) [que] tem, todavia, de ser feito à custa dos países mais ricos do centro da Europa, pois são os que mais beneficiarão com o alargamento”. Recuperando a afirmação proferida por Jacques Delors numa sessão plenária do PE - “um alargamento mal feito poderá ser o fim da União Europeia” - o autor lembra que tal “profecia” poderá acontecer quer por razões institucionais, quer pela quebra da coesão: “[É] pois grande e complexo o desafio de um alargamento (ou de vários alargamentos) a que não poderá fugir-se, mas que, no interesse de todos, não poderá ser feito (ou não poderão ser feitos) à custa da coesão e do reforço da União Europeia” [sublinhado nosso].

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SEGUNDA PARTE

NICE E O PÓS-NICE: QUE CENÁRIOS PARA A NOVA EUROPA?

“The sovereign nations of the past can no longer solve the problems

of the present: they cannot ensure their own progress or control their

own future (…) Yet amid this changing scenery the European idea

goes on (…) Where this necessity will lead, and toward what kind of

Europe, I cannot say (…) The essential thing is to hold fast to the

few fixed principles that have guided us since the beginning”

(Monnet 1978, 523-524).

“(…) acaba por ser secundário o qualificativo que se utilize para

concretizar o modelo europeu, com ou sem a palavra ‘federal’.

Trata-se de uma experiência única, com interesses específicos a

atender, que não é necessário enquadrar em algum arquétipo já

existente” (Porto 1999, 14-15).

O Tratado de Nice resolveu o problema institucional que impedia a conclusão das

negociações do alargamento. O pós-Nice é, portanto, a altura certa para os europeus voltarem

a centrar a sua atenção nas questões fundamentais. A Europa comunitária está, talvez, no mais

importante ponto da sua história: é imperioso repensar a sua governação, o seu método, as

suas instituições, em síntese, redefinir o projecto europeu.

Conscientes da necessidade de tão árdua empreitada, os Quinze marcaram para

Outubro de 2003 uma nova conferência intergovernamental para a revisão dos tratados, cuja

agenda, embora possa ser alargada, inclui já quatro temas de crucial importância: a

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

delimitação das competências entre os Estados-membros e a Comunidade (no respeito pelo

princípio da subsidiariedade); o estatuto da Carta dos Direitos Fundamentais; a simplificação

dos tratados; e o papel dos parlamentos nacionais na arquitectura europeia226.

Numa tentativa de ultrapassar insuficiências metodológicas do passado,

nomeadamente a notória falta de preparação de algumas das CIG’s anteriores, ficou também

decidido que a nova conferência intergovernamental seria precedida por um fórum de

discussão alargado e aberto à participação directa e indirecta dos cidadãos da União. O grande

objectivo deste espaço de reflexão é, na verdade, levar a cabo uma espécie de brainstorming

sobre o futuro da Europa, cujos resultados possam servir de base às negociações que terão

lugar em finais de 2003.

Assim, naquela que quase pode ser encarada como uma tentativa de se redimirem do

compromisso “mínimo” acordado em Nice, os líderes europeus deram sinal verde a uma

reforma profunda do projecto comunitário, ao deixarem plasmada na Declaração respeitante

ao futuro da União a vontade de continuar e de aprofundar o debate político sobre a

arquitectura constitucional da UE, lançado, à margem da CIG, por algumas personalidades

europeias de destaque.

226 Ver Declaração respeitante ao futuro da União, anexa ao Tratado de Nice.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

Capítulo IV

A Declaração de Laeken: uma Nova Oportunidade?

Na Declaração respeitante ao futuro da União, os Chefes de Estado e de governo

remetiam para o Conselho Europeu de Laeken a aprovação de uma declaração que, na

sequência do relatório apresentado pelo Conselho Europeu de Gotemburgo, previsse as

medidas adequadas para dar seguimento ao processo de reflexão em curso227. Assim, em

meados de Dezembro de 2001, cerca de nove meses depois da abertura formal do debate228, as

atenções dos europeus voltavam a centrar-se nos resultados de uma cimeira europeia. Tendo o

período que mediou as duas datas ficado marcado por um proliferar de originais e

interessantes intervenções sobre a nova Europa229, eram elevadas as expectativas em relação

ao documento a apresentar pela presidência belga da União.

4.1 O Projecto da Declaração: um Documento Ambicioso

O projecto de declaração apresentado pelo primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt,

era um texto ambicioso que defendia abertamente uma união de cariz federalista. O texto,

dividido em três partes230, começa por apresentar uma análise algo sombria do estado da

integração europeia, ao constatar a existência de uma certa incompreensão, senão mesmo mal

estar, face ao projecto europeu. Reconhecendo que os cidadãos não compreendem a ligação

227 Cf. Declaração respeitante ao futuro da União, ponto 4. 228 Lançado formalmente a 07 de Março de 2001 por Göran Persson, primeiro-ministro da Suécia (país que presidiu à União no primeiro semestre de 2001). Na mesma altura foi igualmente anunciada a abertura de um novo sítio na internet “Futurum” que disponibiliza aos cidadãos os vários contributos para a reflexão e lhes permite uma participação activa no debate. 229 Lembre-se, a título de exemplo, a proposta de uma Federação de Estados-nação apresentada por Jacques Delors e secundada, embora com algumas alterações, por Joschka Fischer, ou, no extremo oposto, a defesa da “Europa das nações livres” avançada por Tony Blair. 230 A primeira intitulada “A Europa numa encruzilhada” faz uma descrição das fraquezas e dos pontos fortes da União; a segunda enumera “Os desafios e as reformas numa União renovada” e a última descreve o funcionamento da Convenção sobre o futuro da Europa.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

entre os objectivos da União e a sua vida quotidiana, o documento aponta o dedo à rigidez e,

sobretudo, à falta de transparência das instituições europeias, que se ocupam pouco das

preocupações concretas do cidadão e em demasia de questões que, dada a sua natureza,

poderiam ser confiadas aos eleitos dos Estados-membros e das regiões. Também no plano

internacional, o texto apresentado pela presidência belga é critico. Referindo-se ao 11 de

Setembro como um acontecimento que desmistificou a existência de uma ordem mundial

estável, os belgas reconhecem que a Europa unida deverá ter um papel de primeiro plano

numa nova ordem planetária, competindo-lhe ser capaz de desempenhar um papel

estabilizador no plano mundial e de constituir uma referência para numerosos países e povos.

Face aos novos desafios, a declaração apela a uma reforma profunda da Europa que

deverá mesmo, de certo modo, “reinventar-se”. Verhofstadt reafirma, deste modo, a

necessidade de um debate alargado sobre o que se espera do projecto europeu. A reflexão será

levada a cabo por uma convenção que, durante um ano, discutirá as questões deixadas em

aberto pelo Tratado de Nice. Findo o prazo estipulado para a conclusão dos trabalhos, a

convenção emitirá “recomendações” que serão levadas em consideração pelos negociadores

da próxima reforma dos tratados agendada para Outubro de 2003.

O projecto da Declaração contém ainda algumas sugestões da presidência belga para

uma futura arquitectura institucional da UE. Entre as propostas aparece a possibilidade de

tornar a Comissão Europeia no órgão central executivo da União e de conferir o poder

legislativo ao Conselho de Ministros e ao Parlamento Europeu. A novidade está na atribuição

aos parlamentos nacionais do papel de uma espécie de “terceira” instituição legisladora. É

igualmente ponderada a possibilidade de uma eleição directa do presidente da Comissão e

mesmo de um presidente do Conselho Europeu, ao mesmo tempo que é lançada a ideia da

criação de uma circunscrição europeia para a eleição de uma parte dos deputados do PE. A

comunitarização da PESC (que passaria a ser gerida pela Comissão) é outra das hipóteses

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

considerada. O documento questiona ainda a pertinência do actual mecanismo das

presidências rotativas da União e estabelece uma ligação entre a necessidade de simplificação

dos tratados, definida em Nice, e a criação de uma constituição europeia. Sem surpresas, este

primeiro esboço da Declaração de Laeken suscitou grande controvérsia e mereceu mesmo

uma forte oposição por parte de alguns Estados-membros, encabeçados pela França e Reino

Unido, que consideraram o documento demasiadamente ambicioso nas suas ideias

integracionistas231.

4.2 A Declaração Adoptada: o Recuo na Ambição Federal

Depois de vários “retoques”, melhor apelidados de “recuos”, que visavam na medida

do possível “contentar” as duas visões distintas que continuam a prevalecer na União

Europeia, o texto final do documento foi adoptado pelo Conselho Europeu de Laeken. De

acordo com as suas Conclusões, esta Declaração e as perspectivas que abre representam para

o cidadão “uma etapa decisiva em direcção a uma União mais simples, mais forte no

perseguir dos seus objectivos essenciais e mais presente no mundo”.

Dando seguimento às instruções que haviam ficado definidas na Declaração

respeitante ao futuro da Europa, nomeadamente a de promover um amplo debate que

antecedesse os trabalhos da próxima CIG, foi também acordada pelos chefes de Estado e de

governo a convocação de uma convenção composta por representantes dos governos

nacionais, da Comissão, do PE, dos parlamentos nacionais e dos países candidatos, e

presidida pelo francês Valéry Giscard d’Estaing. Para além do antigo chefe de Estado francês

foram ainda nomeados, desta feita para vice-presidentes, o antigo primeiro-ministro italiano

Giuliano Amato e o antigo primeiro-ministro belga Jean-Luc Dehaene. Igualmente decidida,

231 A dimensão da contestação ao projecto da Declaração apresentado pela presidência belga da União é facilmente perceptível se considerarmos as 100 emendas textuais que o Reino Unido propôs.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

ficou a composição do Praesidium da convenção que, para além das três personalidades

referidas, integra também representantes da Espanha, Dinamarca e da Grécia (os três países

que ocuparão a Presidência da UE durante os trabalhos da convenção), bem como da

Comissão, do PE e dos parlamentos nacionais.

Aparecendo em anexo às conclusões do Conselho Europeu, a Declaração de Laeken

abre a porta a reformas institucionais substanciais, preparadas através de um método inovador

– a convenção – que já havia provado os seus méritos aquando da elaboração da Carta dos

Direitos Fundamentais da União. A primeira parte da Declaração, que obedece ao sugestivo

título “A Europa numa encruzilhada”, é dedicada a uma análise da situação actual da UE e

procura fazer um balanço entre as suas linhas de força e fraquezas. Antes das alterações finais,

este foi, aliás, o capítulo mais criticado no projecto inicial, em virtude do seu tom pessimista e

das suas tendências consideradas “demasiadamente” federalistas. O novo texto,

substancialmente diferente do inicialmente proposto, começa por afirmar que a União

Europeia é um êxito, embora reconheça que esta deve ser mais democrática. Se é verdade que

os cidadãos apoiam os grandes objectivos da União, nem sempre entendem a relação entre

esses objectivos e a actuação da Comunidade. Nesta medida, o desejo vai para instituições

menos pesadas e rígidas e, sobretudo, mais eficientes e transparentes. Igualmente importante é

o aumento da capacidade de controlo democrático da actuação comunitária. Por sua vez, a

União deve deixar aos Estados-membros e às regiões as questões que, pela sua natureza,

possam com vantagem ser resolvidas a esse nível.

Para além da vertente interna, a Europa deve também criar condições para intervir

eficazmente na cena internacional. Num mundo globalizado em rápida mutação, os autores do

documento questionam se “não deverá a Europa, agora que está finalmente unida,

desempenhar um papel de vanguarda numa nova ordem planetária, o de uma potência que está

em condições de desempenhar um papel estabilizador a nível mundial e de constituir uma

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

referência para inúmeros países e povos”. Este parece ser, aliás, o desejo do cidadão que para

além de solicitar a intervenção da Comunidade em áreas como a segurança e justiça, a luta

contra a criminalidade transfronteiriça, a imigração, o emprego e a protecção social,

ambiciona também um papel mais importante para a Europa ao nível dos assuntos externos,

da segurança e da defesa. Ainda assim, o documento reconhece que o mesmo cidadão que

pensa que a União poderia ir mais longe em determinadas áreas, considera que esta intervém

em demasia e é excessivamente burocrática noutros domínios. Em resumo, para ir de encontro

aos desejos do cidadão é preciso uma abordagem comunitária “clara, transparente, eficaz e

conduzida de forma democrática”.

A segunda parte da Declaração é dedicada aos desafios e às reformas numa União

renovada. Concebida com a finalidade de servir de base aos trabalhos da Convenção, esta

segunda parte agrupa em quatro sub-títulos232 mais de meia centena de questões abertas que

ultrapassam, em larga medida, os temas definidos pelo Conselho Europeu de Nice.

Subordinado ao tema geral de uma melhor repartição e definição das competências na EU, o

primeiro conjunto de interrogações prende-se, sobretudo, com a forma de tornar mais

transparente a repartição das competências e com a oportunidade de reestruturar essa

repartição, sem correr o risco de a mesma resultar numa ingerência excessiva da União nos

assuntos dos Estados-membros ou numa paragem da dinâmica europeia.

O segundo bloco de questões é dedicado à simplificação dos instrumentos da União.

As respostas visam aqui clarificar “quem faz o quê” e, talvez mais importante, perceber se os

diferentes instrumentos da União não deverão ser em menor número e melhor definidos. Por

sua vez, a terceira série de perguntas obedece a um desejo de mais democracia, transparência

e eficácia na União Europeia. Tendo como ponto de partida a necessidade de examinar o

papel dos parlamentos nacionais na construção europeia, nomeadamente no que respeita ao 232 “Uma melhor repartição e definição das competências na União Europeia”; “A simplificação dos instrumentos da União”; Mais democracia, transparência e eficácia na União Europeia” e “A caminho de uma Constituição para os cidadãos europeus”.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

seu contributo para a legitimação do projecto europeu, as questões dividem-se em três grupos:

um primeiro, que diz respeito à legitimidade das três instituições principais da União (PE,

Comissão e Conselho); um segundo, que centrado no papel dos parlamentos nacionais, coloca

a possibilidade da sua representação numa instituição nova; e, um terceiro, que é dedicado à

forma de melhorar o processo de decisão e de funcionamento das instituições numa União

alargada. Por último, no quarto sub-título da Segunda Parte - a caminho de uma constituição

para os cidadãos europeus - são contempladas as questões relativas à simplificação dos

tratados. Colocadas de forma gradual, tais questões começam por concernir à simplificação

dos tratados existentes, sem que o seu conteúdo seja alterado, centrando-se depois na

possibilidade de uma reestruturação desses tratados e passam, em seguida, pela reflexão sobre

a conveniência de incluir a Carta dos Direitos Fundamentais no tratado de base. Este sub-

título é finalizado com uma interrogação fulcral que consiste em saber se esta simplificação e

reestruturação poderá conduzir, a prazo, à aprovação, na União, de um texto constitucional.

A Terceira e última parte da Declaração de Laeken reporta à convocação de uma

Convenção sobre o futuro da Europa. Esta é uma parte central da Declaração dado que do

sucesso desta convenção (encarregada de debater os problemas essenciais colocados pelo

futuro desenvolvimento da União e de analisar as diferentes soluções possíveis) dependerá,

em larga medida, o êxito das negociações da próxima revisão dos tratados agendada para

2003. Para além da nomeação do presidente e dos dois vice-presidentes, os chefes de Estado e

de governo deixaram ainda definida a composição geral da convenção, a duração dos

trabalhos, os métodos de trabalho, a forma de participação dos cidadãos e o que se espera do

documento final elaborado pela convenção233.

233 Uma vez que dedicaremos um capítulo aos trabalhos da Convenção escusámo-nos de proceder aqui a uma exposição pormenorizada desta parte da Declaração.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

4.3 Conclusão: uma “Declaração Histórica” ou uma “Declaração Biodegradável”?

Apelidada por alguns de “histórica”234, a Declaração aprovada pelo Conselho Europeu

de Laeken não escapou também a duras críticas. Franklin Dehousse, director do Royal

Institute of International Relations, qualificou-a mesmo de “biodegradável”, considerando-a

um simples anúncio que, para além de ser insuficiente para compensar as carências dos

tratados, demonstra as reticências de muitos chefes de governos em abordar seriamente as

implicações do alargamento235. Não obstante, a imprensa internacional foi quase unânime no

aplauso à Declaração, o mesmo se passando com os membros do PE que a acolheram

positivamente numa sessão extraordinária que teve lugar em Bruxelas, dois dias após o

Conselho Europeu de Laeken.

Se é certo que, pelo fim dos tabus provocado por algumas das suas interrogações e,

sobretudo, pelo método inovador que propõe para a preparação dos trabalhos da CIG, a

Declaração de Laeken representa um marco iniludível na história da construção europeia, ela

não deixa, também, como poderemos ver pelos exemplos que se seguem, de estar eivada de

ambiguidades que justificam algumas das críticas que lhe foram apontadas.

Por um lado, algumas das interrogações colocadas são contraditórias - como é

aparente na temática da repartição de competências - onde se procura garantir que uma nova

repartição de competências não conduza a um aumento “furtivo” das competências da União

e, ao mesmo tempo, assegurar que a dinâmica da integração europeia (que pressupõe, como

sabemos, um aumento de competências da União) não enfraqueça. Por outro lado, e no que

respeita ao resultado dos trabalhos da Convenção, a Declaração fornece também indicações

ambivalentes. Assim, cabe ao grupo de trabalho elaborar um documento final que pode

compreender quer diferentes opções, quer recomendações, no caso de se chegar a um 234 Afirmação atribuída ao Chanceler alemão Gerhard Schröder. Cf. Cécile Barbier. 2001. “Déclaration de Laeken”. Demain l’Europe, Dezembro 2001, nº 3, 5. [http://www.ciginfo.net/demain/fr] (12.01.2002). 235 Ibidem, 4.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

consenso. O mesmo será dizer que, embora desejável, a elaboração de um único documento

merecedor do acordo de todos não faz parte das “obrigações” desta Convenção. Daqui resulta

que, no final dos trabalhos, poderão subsistir propostas contraditórias que, pese embora a

vantagem de terem sido discutidas previamente, continuarão, ainda assim, a empurrar para a

CIG seguinte o peso total da decisão. O próprio período de tempo que medeia a data de

conclusão dos trabalhos da Convenção e o início das negociações da conferência

intergovernamental esteve longe de ser consensual. Apesar de alguns defenderem que entre as

duas fases deveria decorrer o mínimo de tempo possível (isto é, apenas o tempo indispensável

para a recepção do documento final da Convenção e para a convocação da CIG), a Declaração

acabou por estabelecer entre ambas um intervalo de mais de seis meses236.

Ainda que aparentemente criticável, esta espécie de “flexibilidade” presente no texto

da Declaração de Laeken é facilmente compreensível, se entendida como a forma encontrada

para conciliar as diferentes leituras do projecto europeu que continuam a coexistir no seio da

União. Por esta razão, uma avaliação correcta da importância desta Declaração dependerá, em

grande parte, dos resultados dos trabalhos da Convenção sobre o futuro da Europa. Pensamos,

no entanto, que a Declaração de Laeken cumpriu, ainda que sem grandes ambições, o papel

que lhe estava destinado, na medida em que indica caminhos e fornece pistas para a etapa que

se segue. Compete, portanto, aos membros da Convenção, escutando os cidadãos, partir

dessas orientações para levar o mais longe possível a reflexão sobre o futuro da integração

europeia. Cabendo a última palavra aos líderes europeus que tomarão parte na CIG, não

podemos estabelecer uma relação directa entre o sucesso da Convenção e o sucesso da

próxima revisão dos tratados, mas julgamos poder dizer que o “chegar a bom porto” daquela,

será meio caminho andado para o êxito desta.

236 Refira-se, todavia, que, embora inicialmente prevista para 2004, a próxima conferência intergovernamental terá início em Outubro de 2003 (cerca de três meses depois do fim da Convenção sobre o futuro da Europa).

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

Capítulo V

A Convenção Europeia

Malgrado a árdua maratona negocial, os resultados saídos do Conselho Europeu de

Nice ficaram muito aquém das expectativas. Conscientes do amplo grupo de questões que

deixavam sem resposta, os líderes europeus agendaram para 2004 uma nova reforma dos

tratados. Se este é um procedimento a que já nos temos habituado nas CIG’s anteriores, o

mesmo não se pode dizer do amplo debate sobre o futuro da União que os chefes de Estado e

de governo decidiram que teria lugar no período de tempo que medeia as duas conferências.

Esta é, de facto, uma “novidade” que poderá marcar verdadeiramente a diferença em relação

às experiências passadas.

De acordo com as indicações da Declaração respeitante ao futuro da União, anexa ao

Tratado de Nice, foi aprovada pelo Conselho Europeu de Laeken uma nova declaração

(Declaração de Laeken237) que, para além de fazer uma breve análise da actual situação da

UE, coloca um número alargado de questões que servem de guia à reflexão em curso. O

mesmo documento contempla ainda a convocação de uma Convenção sobre o futuro da

Europa238 que, pela primeira vez na história da integração comunitária, permitirá a muitos

europeus ser parte activa da construção do seu futuro comum. Tendo por missão “debater os

problemas essenciais da União e analisar as diferentes soluções possíveis” este espaço de

discussão alargado está aberto à participação, directa e indirecta, dos cidadãos, que têm assim

uma oportunidade única para se tornarem, também eles, arquitectos deste grande projecto.

Para facilitar a troca de contributos e a audição da sociedade civil decorrerá, em paralelo com

os trabalhos da Convenção, um Fórum que se espera possa estruturar e alargar o debate

público sobre o futuro da União já em curso. 237 Ver capítulo IV da Segunda Parte desta dissertação: “A Declaração de Laeken: uma nova oportunidade?”. 238 A Convenção sobre o futuro da Europa realizou a sua sessão inaugural a 28 de Fevereiro de 2002 e encerrou os trabalhos a 10 de Julho de 2003.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

5.1 O Porquê da Convocação de uma Convenção

Até há bem pouco tempo na história da construção comunitária, falar em revisão dos

tratados era falar de uma conferência intergovernamental que, em última instância, senta à

mesa das negociações os chefes de Estado e de governo dos países membros239. Este método,

que resultou durante as primeiras décadas da integração comunitária240, tem vindo

aparentemente a perder alguma eficácia.

Embora tenha a vantagem de se alicerçar no “poder real”, isto é, na legitimidade que

uma eleição democrática confere aos que tomam as decisões, a conferência

intergovernamental padece, ainda assim, de sérias fragilidades. Por um lado, ela é

demasiadamente “elitista”, deixando de fora das negociações um grande leque de actores que

poderiam, e deveriam, ter uma palavra a dizer. Ela é, na verdade, um exemplo flagrante do

chamado défice democrático da União, justificando plenamente o epitáfio de Europa das

Elites que tantas vezes vemos mencionado nas análises sobre construção comunitária. Depois,

sendo os parceiros das negociações os representantes máximos dos Estados-membros, a

tendência é para uma defesa dos interesses nacionais em detrimento da opção pelo que seria o

interesse do todo. As preocupações eleitorais, aliadas a um receio de aceitar uma posição que

possa de alguma forma “subalternizar” o Estado que representam, levam a que as negociações

resvalem frequentemente para uma espécie de “troca de concessões recíprocas” que

prejudicam, muitas vezes, o interesse comum. Finalmente, como somatório destas duas, a

CIG torna-se demasiadamente complexa para os cidadãos, contribuindo, preocupantemente,

239 Por uma questão de rigor cabe-nos referir que houve na história da integração europeia uma tentativa de “contornar” este método clássico de revisão dos tratados. Tal tentativa foi levada a cabo pelo primeiro parlamento europeu eleito por sufrágio universal directo que apresentou, em 1984, um projecto de tratado para a União. Caso tivesse merecido um acolhimento favorável, este tratado poderia ter marcado o início de um método alternativo à conferência intergovernamental. 240 Relembre-se que as CIG’s serviram também para criar tratados, e não apenas para os rever: Tratado de Paris que fundou a CECA em 1951; Tratado de Paris que fundou a CED em 1952 (não chegou a entrar em vigor); Projecto do Tratado da Comunidade Política Europeia (Roma, Paris 1953-1954); Tratado de Roma que fundou a CEE e a EURATOM em 1957.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

para o aumento do alheamento generalizado sobre o processo de construção europeia e para o

reaparecimento de um eurocepticismo que questiona a vantagem de pertencer a uma União

que “não nos ouve” e “não se compreende”.

O método da convenção, que provou já os seus méritos241, surge assim como uma via

alternativa que, pela variedade de actores que envolve e pela abertura das negociações, poderá

evitar as principais desvantagens de uma a CIG. De facto, como sublinha Paul Magnette242, se

bem concebida, a Convenção será capaz de apresentar mesmo uma série de vantagens em

relação ao método habitualmente utililizado: primeiro, ela é convocada pelos chefes de Estado

e de governo, que fixam o seu mandato, a sua composição e as suas regras, pelo que não corre

o risco de se processar ao sabor das conveniências; em segundo lugar, tendo uma composição

mista (que mistura numerosos e diferentes actores nas negociações) evitará mais facilmente as

as “trocas de favores” (normalmente presentes nas CIG’s), estando por isso mais apta a chegar

a uma verdadeira deliberação. Por último, sujeita às obrigações de consultação e de

publicitação, a Convenção assegura uma melhor participação, directa ou indirecta, dos

cidadãos e das associações que representam os seus interesses. Aliás, sendo composta por

uma maioria de parlamentares sem responsabilidades políticas imediatas, a Convenção está de

certa forma melhor colocada que as conferências diplomáticas tradicionais para iniciar o

debate sobre o futuro da União. Em nossa opinião, este é, talvez, o maior mérito deste

método. Efectivamente, numa Europa que se quer mais transparente, mais democrática e mais

próxima dos cidadãos, é difícil aceitar que as decisões de fundo, que implicam, muitas vezes,

uma viragem no rumo da empreitada comunitária, possam ficar exclusivamente nas mãos de

um punhado de governantes que, sem embargo das suas qualidades e da sua legitimidade

democrática, colocarão sempre os interesses nacionais acima dos interesses do todo.

241 Método utilizado para elaborar, à margem da CIG 2000, a Carta dos Direitos Fundamentais da União. 242 Cf. Paul Magnette. 2001. “Quo vadis Europe”. In Europe 2004 – Le Grande Debat: Setting the Agenda and Outlining the Options. Jean Monnet Groupe on the Future of Europe, Brussels, 15 e 16 de Outubro de 2001. [http://www.consuniv.org/post_nice/contributions.html].

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Em síntese, a convenção aparece, deste modo, como uma espécie de compromisso

entre a urgência de reformar o método até aqui utilizado (e que se tem vindo a revelar

insuficiente) e a necessidade de ter em conta o “poder real” (na figura dos representantes dos

eleitos nacionais). Poderemos talvez ir mais longe e dizer que, tal como foi definida, a sua

composição reflecte já a governação multi-nível da União ao colocar em pé de igualdade

representantes dos governos nacionais e das instituições europeias (que por sua vez devem

ouvir os cidadãos):

“[S]’inspirant de la fameuse doctrine fédérale de la ‘doublé légitimité’, elle mele élus

nationaux et européens; tenant compte des spécificités du ‘modèle communautaire’,

elle inclut les repésentants des gouvernments de la Commission, et designe des

organes consultatifs. Au total, la convention apparaît comme un précipité de

l’ensemble des éléments du système politique européen” (Magnette 2001, 4)

[sublinhado nosso].

Ao convocarem a Convenção sobre o futuro da Europa, os chefes de Estado e de

governo deram, por conseguinte, um passo decisivo naquele que parece ser o caminho

acertado, muito embora não tenham procedido a um corte radical com o passado. A

conferência intergovernamental manteve o seu papel inalterado, permanecendo o método

eleito para a revisão dos tratados. O que mudou foi, na realidade, a preparação da CIG que,

desta vez, usufruirá das conclusões de um grupo de reflexão extremamente alargado, onde os

vários pontos de vista estarão representados. Embora sem força vinculativa, esta inovação não

deixa de ter uma importância crucial se pensarmos que os assuntos que ocupam actualmente a

agenda comunitária são normalmente questões de extrema delicadeza que interferem, muitas

vezes directamente, com a soberania de cada Estado-membro. Efectivamente, uma das

explicações para os crescentes insucessos das CIG’s reside precisamente na natureza dos

assuntos abordados. Por uma questão de simplicidade recorreremos aqui à “velha” distinção

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

feita pelos cientistas políticos entre high politics e low politics243, pretendendo com ela ilustrar

que os acordos têm sido mais simples na área comercial e económica do que, por exemplo,

em áreas como a segurança e a política externa. É certo que, na prática, esta distinção se

apresenta difícil, senão mesmo impossível, bastando lembrar que a integração económica é,

por muitos, entendida como a força motora da integração política. Não obstante, se

reflectirmos sobre a história da construção comunitária veremos que, à medida que as

temáticas foram tocando mais directamente o núcleo da soberania dos Estados, foi sendo mais

difícil estabelecer compromissos e, quando conseguidos, o método intergovernamental

prevaleceu244.

Para concluir, parece-nos sobretudo importante relembrar que, embora a última

palavra permaneça nas mãos dos governos nacionais, a Convenção representa uma

oportunidade ímpar para que os restantes actores europeus possam participar na edificação de

um projecto político para a Europa. Embora sem força vinculativa, o documento saído da

Convenção terá pelo menos o mérito de ser o resultado de uma reflexão dos europeus sobre o

que querem fazer em conjunto e qual o rumo desejado para a União. Os cidadãos, verdadeiros

destinatários do projecto comunitário, têm aqui um ensejo único para encurtarem o seu

distanciamento em relação à União e para participarem activamente da construção da nova

Europa. É certo que este é apenas um pequeno passo para a Europa dos Cidadãos (até porque

o consentimento e o apoio destes implicará mais e melhores esclarecimentos, mais e melhores

oportunidades de participação), mas é um passo gigantesco para a democratização da

construção comunitária. As expectativas em relação aos resultados da Convenção são

elevadas, embora possamos dizer contraditórias. Sendo comparada por alguns à Convenção de

243 Distinção originalmente empregada por Ernest Haas para explicar o motivo pelo qual o spillover num determinado nível de decisão política poderia não influenciar outro nível. 244 Relembre-se, a título de exemplo, a PESC que, volvidas duas revisões dos tratados, mantém ainda inalterado o seu carácter intergovernamental.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Filadélfia245 (que como sabemos deu origem à Constituição dos Estados Unidos da América

de 1787) é vista, por outros, como uma oportunidade para consagrar um modelo que devolva

aos Estados algumas das competências já delegadas246. Entre as duas vias existe um mar de

alternativas que têm agora oportunidade de ser discutidas247.

5.2 Composição e Regras de Funcionamento da Convenção

Tendo como finalidade “assegurar uma preparação tão ampla e transparente quanto

possível da próxima Conferência Intergovernamental”, o Conselho Europeu de Laeken

decidiu que a Convenção seria composta por representantes dos principais participantes no

debate sobre o futuro da União. Assim, para além de um presidente e de dois vice-

presidentes248, designados pelo próprio Conselho Europeu, fazem parte desta Convenção 15

representantes dos chefes de Estado ou de governo dos Estados-membros (1 por Estado-

membro); 30 membros dos parlamentos nacionais (2 por Estado-membro); 16 membros do

Parlamento Europeu e dois representantes da Comissão. Foi também acordada a participação

plena nos debates dos países candidatos à adesão, que estarão representados nas mesmas

245 O Presidente da Convenção, Valéry Giscard d’Estaing, foi uma das personalidades europeias a estabelecer esta comparação. Cf. Daniela Spinant. 2002. “Historical Convention on EU future to kick off”. Euobserver.com, 28 de Fevereiro de 2002. [http://www.euobserver.com/index.phtml?selected_topic =9&action=view&article_id=5368] (04. 03. 2002). Não obstante, se é verdade que as palavras “convenção” e “constituição” evocam a experiência americana, muitas são as diferenças que a separam da actual realidade europeia. Como sublinha Peter Norman, num artigo de opinião publicado na edição on-line do Financial Times, de 25 de Fevereiro de 2002: “there is a world of difference between 13 lightly populated pre-industrial former colonies and 15 modern EU states with their different cultures and 50 years of gradual integration behind them” [ênfase nossa]. 246 Entre os muitos exemplos bastará lembrar a proposta do Chanceler alemão Gerhard Schröder que defendia uma “renacionalização” da PAC. Cf. Daniela Spinant. 2002. “Germany to plead for radical reform of farm policy”. Euobserver.com, 27 de Fevereiro de 2002. [http://www.euobserver.com/index. phtml?selected_topic=9&action=view&article_id=5344] (04.03.200). 247 Nesta matéria concordámos com Yves Mény que, numa análise sobre a Convenção publicada na edição on-line do Le Monde, escrevia: “[L]a question cruciale au coeur du débat (...) n’est rien d’autre que la conciliation des souverainetés contradictoires de l’ensemble et des parties”. Para ajudar na difícil tarefa Mény propunha aos convencionais uma releitura dos Federalist Papers, especialmente do nº 29 em cuja conclusão, atribuída a Madison, se pode ler: “La Constitution proposée n’est strictement ni une constitution nationale ni une constitution fédérale; c’est un composé des deux” [sublinhado nosso]. Cf. Yves Mény. 2002. “Constituer l’Europe”. Le Monde.fr, 27 de Fevereiro. 248 Lugares ocupados por Valéry Giscard d’Estaing e por Giuliano Amato e Jean-Luc Dehaene, respectivamente.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

condições dos Estados-membros (um representante do governo e dois dos parlamentos

nacionais)249. Estes países não podem, todavia, bloquear qualquer consenso que se venha a

formar entre os membros actuais da União.

A Declaração de Laeken estipula ainda que sejam convidados, na qualidade de

observadores, três representantes do Comité Económico e Social, juntamente com três

representantes dos parceiros sociais europeus; seis representantes do Comité das Regiões (a

designar por este Comité entre as cidades e as regiões com competência legislativa); e, o

Provedor de Justiça Europeu. O presidente do Tribunal de Justiça e o presidente do Tribunal

de Contas poderão igualmente intervir perante a Convenção (a convite do Praesidium).

Com o objectivo de impulsionar e fornecer uma primeira base para os trabalhos da

Convenção, os chefes de Estado e de governo acordaram na criação de um Praesidium da

Convenção do qual fazem parte o presidente, os vice-presidentes e nove membros oriundos da

Convenção (os representantes de todos os governos que durante a Convenção exerçam a

presidência do Conselho, dois representantes dos parlamentos nacionais, dois representantes

dos membros do PE e dois representantes da Comissão)250. Para um melhor desempenho das

suas funções o Praesidium poderá consultar, sempre que necessário, os serviços da Comissão

e os peritos da sua escolha sobre qualquer questão técnica que deseje aprofundar. Poderá

ainda, para o efeito, criar grupos de trabalho ad hoc. No decurso dos seus trabalhos o

Praesidium será assistido por um secretariado da Convenção (assegurado pelo Secretariado-

Geral do Conselho) que poderá integrar peritos da Comissão e do PE.

As reuniões da Convenção, que se prolongarão até Junho de 2003, terão lugar em

Bruxelas, estando todos os debates, bem como a totalidade dos documentos oficiais,

249 Para além dos 105 “convencionais”, a Declaração de Laeken prevê ainda que sejam designados membros suplentes, que tomarão parte nos trabalhos na ausência daqueles. 250 Respondendo a uma exigência dos países candidatos que entenderam como injusta a inexistência de um representante seu no Praesidium da Convenção, os inicialmente doze membros deste órgão decidiram acolher um novo elemento, que terá o estatuto de membro convidado, e deverá ser escolhido pelos países candidatos entre os seus parlamentares.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

disponíveis ao público. Os trabalhos da Convenção dividir-se-ão em três fases: uma fase de

escuta - “o que esperamos da Europa?” - que abrange os primeiros cinco meses de trabalho;

uma fase de estudo - “quais são as propostas em cima da mesa?” - que corresponderá ao

período da reflexão e estudo aprofundado251; e, finalmente, a fase da recomendação e das

propostas que, de acordo com as previsões iniciais, decorrerá entre finais de 2002 e inícios de

2003. Compete ao presidente da Convenção apresentar a cada conselho europeu um relatório

oral sobre o “andamento” dos trabalhos, o que lhe permitirá recolher o feed-back dos chefes

de Estado e de governo. Depois de estudadas as diversas temáticas, cabe aos “convencionais”

elaborar um documento final que poderá compreender quer diferentes opções (neste caso

deverá ser indicado o apoio de cada uma delas), quer recomendações (havendo consenso).

Será este documento final que, juntamente com os resultados do debates nacionais sobre o

futuro da União, servirá de ponto de partida para os trabalhos dos líderes europeus que, na

conferência intergovernamental de 2003, tomarão as decisões finais252.

Pretendendo-se com este novo método um maior envolvimento dos cidadãos, o

Conselho Europeu de Laeken acordou também na criação de um Fórum que, actuando

paralelamente aos trabalhos da Convenção, está aberto à participação das organizações

representativas da sociedade civil (parceiros sociais, meio empresarial, organizações não 251 O artigo 15 do Regulamento interno da Convenção atribuía ao Praesidium a faculdade de criar grupos de trabalho, por recomendação do presidente da Convenção ou de um número significativo de membros. Confrontados com a difícil tarefa de responder a um número muito elevado de questões, os membros da Convenção entenderam como necessária a criação inicial de seis grupos de trabalho. A evolução dos trabalhos da Convenção e o alargado número de questões decisivas para o avançar do projecto europeu acabariam, todavia, por ditar a necessidade de estabelecer uma “segunda série” responsável pelo estudo de novas temáticas. Assim, no total foram criados onze Grupos de Trabalho, cada um dos quais ficou encarregue de reflectir e apresentar soluções sobre uma das seguintes matérias: subsidiariedade; integração da Carta dos Direitos Fundamentais / adesão da Comunidade/União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; personalidade jurídica da União; papel dos parlamentos nacionais; competências complementares da União (sua legitimidade e o seu exercício); governação económica da União e da zona euro; a acção externa da União; a defesa; a simplificação dos tratados; a liberdade segurança e justiça e a Europa social. A estes somaram-se, ainda, círculos especiais de discussão, como é o caso do círculo de discussão sobre o Tribunal de Justiça, presidido pelo comissário António Vitorino. De referir que destes grupos emanaram propostas de grande importância para o avanço do projecto europeu, como sejam, por exemplo, a atribuição de personalidade jurídica à União como um todo, o reforço do papel atribuído aos parlamentos nacionais na vida comunitária (nomeadamente através do controlo da observância do princípio da subsidiariedade) ou a integração da Carta dos Direitos Fundamentais da UE no tratado constitucional. 252 Para uma exposição mais detalhada das regras de funcionamento da Convenção ver “European Convention Rules of Procedures” [http://european-convention.eu.int/].

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

governamentais, círculos académicos, entre outros). O objectivo é criar uma rede estruturada

de organizações que serão regularmente informadas sobre os trabalhos da Convenção e cujas

contribuições servirão para alimentar o debate. Sempre que se julgue necessário estas

organizações poderão mesmo ser ouvidas ou consultadas sobre assuntos específicos.

5.3 A Reforma Institucional: as Principais Propostas em Debate

O debate sobre a reforma institucional merece, sem dúvida, o título de “um dos mais

aguardados” da Convenção sobre o futuro da Europa253. O alargamento, já decidido, a dez

novos países, e a perspectiva de uma nova ronda de adesões num futuro próximo, tornam

inadiável a necessidade de operar uma reforma profunda no sistema de governação

comunitário254. Sem ela, a “Grande Europa” corre o risco de uma paralisia involuntária, cuja

consequência será um indesejável “marcar passo” do processo de integração europeia, ou,

considerando o pior dos cenários, o seu retrocesso. Por outro lado, é chegado o momento de a

Europa definir novos objectivos políticos. O avançar do processo de integração inscreveu na

agenda comunitária questões tradicionalmente da competência dos Estados-membros. Hoje

são os cidadãos que solicitam “mais Europa” em áreas tão importantes como a política

externa europeia (na sua componente comercial, diplomática e militar), a segurança e

estabilidade interna ou na afirmação de um modelo social europeu. Para garantir o apoio dos

cidadãos, os líderes europeus compreenderam a necessidade de adaptar as instituições

europeias às novas exigências. Todavia, como em todas as matérias com influência directa na

essência do projecto europeu, as diversas soluções avançadas são substancialmente

253 Num artigo publicado na edição on line da BBC News o debate sobre a reforma institucional era apelidado de debate-chave dado que “it ultimately decide who runs the European Union and where the real power lies”. Cf. “Radical Reform Plans Gets First Euro-test”. BBC News, 20 Janeiro 2003. 254 A este propósito gostaríamos de chamar a atenção para um contributo apresentado à Convenção por Alain Lamassoure, onde este faz uma análise particularmente interessante das principais instituições europeias e da sua evolução na nova Europa. Cf. Alain Lamassoure. “Novas Instituições para uma Nova Europa”, CONV 452/02, CONTRIB 166.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

heterogéneas, estando longe de merecer o apoio unânime dos Estados-membros. As

tendências dividem-se entre modelos que privilegiam o poder dos Estados, portanto, a

vertente intergovernamental e os que preconizam um reforço das instituições mais

suprancionais, nomeadamente da Comissão. Às diferenças de opinião, alicerçadas na

tradicional dicotomia intergovernamentalidade / supranacionalidade, há que somar também

uma tendência crescente para a divergência de posições entre “grandes” e “pequenos”, numa

espécie de “luta pelo poder” a que já nos vamos habituando.

Numa época em que a Europa se encontra numa bifurcação, o debate adivinha-se

difícil, mas entre as posições extremadas que defendem um “Estado federal” ou uma simples

“cooperação entre Estados-nação” cabe um leque considerável de propostas que oferecem

alternativas verdadeiramente interessantes. Preconizando uma “solução de compromisso” uma

boa parte dessas propostas deixa já antever uma aposta num modelo de tipo neofederal que,

não pretendendo criar um novo Estado, aspira antes a unir a diversidade de um continente sob

uma forma nova. Dificilmente rotulável com recurso aos “velhos” conceitos jurídicos255

porque integra (e julgamos que continuará a integrar) um misto de elementos federais e

intergovernamentais, esta entidade só poderá ser apreendida na sua essência através da lente

de um federalismo novo, que associa elementos dos diferentes modelos existentes (americano,

alemão, suíço), mas que não se confunde com nenhum deles.

5.3.1 A Comissão Europeia

Num artigo de opinião publicado na edição on-line do Financial Times, Charles

Grant256 escrevia: “[T]he European Comission is a pale shadow of its former self, lacking the

self-confidence and authority it enjoyed in the era of Jacques Delors”. Sem contemplações, o 255 No campo dos conceitos têm sido avançadas algumas fórmulas inovadoras, destacando-se a de “nova Confederação”, a de “União de Estados e de Povos”, ou a mediática “Federação de Estados-nação”. 256 Cf. Charles Grant. 2002. “The European Union Needs a New Leader”. FT.com, 07 de Outubro de 2002.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

Director do Centre for European Reform traduz de forma clara a situação actual da instituição

mais supranacional da UE. Não negando o esforço empreendido (sobretudo após a crise da

“Comissão Santer”) para dar um renovado alento ao papel da Comissão no triângulo

institucional, a verdade é que as sucessivas revisões dos tratados (com particular destaque

para Nice) têm-na penalizado notoriamente. O resultado é hoje uma instituição a braços com

um sério problema de descrédito e falta de autoridade, muito longe de ser o desejado “motor

da integração europeia”257. A necessidade de mudança no seu modus operandi foi há muito

percebida, estando já em curso algumas medidas com vista a uma maior transparência, clareza

e eficácia no desempenho das suas funções. Sem embargo, o caminho a percorrer é ainda

longo e dependerá, em larga medida, do papel que as diferentes propostas para a reforma do

sistema institucional comunitário lhe reservam.

A maioria dos contributos apresentados à Convenção no âmbito da reforma

institucional aponta para a necessidade de um reforço do papel da Comissão no actual

triângulo institucional: uma União cada vez mais heterogénea só poderá funcionar com um

poder executivo forte258. Esta ideia merece especial apoio dos pequenos e médios países que

vêem nesta instituição a garante do interesse geral da União e a consideram uma espécie de

“porta voz” daqueles que, pelo menor peso político, teriam maior dificuldade em fazer valer a

sua opinião num contexto mais intergovernamental. A estes junta-se a Alemanha, que vê no

257 Num contributo intitulado “De Nouvelles Institutions por une Novelle Europe” apresentado por Alain Lamassoure à Convenção sobre o futuro da Europa pode ler-se: “[D]epuis le traité de Maastricht et l’élargissement précédent, la Commission est ‘l’homme malade’ de l’Union. La raison en est simple: sa légitimité politique s’est affaiblie au moment même où elle aurait dû se renforcer. (...) le renforcement de la règle du partage égalitaire des Commissaires entre les Etats (Amsterdam, Nice) dans un ensemble où s’accroît spectaculairement la disparité démographique entre les pays sape la représentativité de la Commission (…) Et nous n’étions alors que quinze : à vingt-cinq, la Commission aura vécu ” (CONV 452/02, CONTRIB 166, 3) [sublinhado no original]. 258 A este propósito apraz-nos notar que a tendência é para se falar cada vez mais em poder executivo e menos em governo europeu. Ora, como sabemos a União não é um Estado, não nos parecendo, portanto, que deva seguir o tradicional modelo de soberania estatal (um Parlamento e um governo responsável apenas perante aquele). De facto, na originalidade da partilha de poderes na UE julgamos residir uma boa parte do seu sucesso, embora reconheçamos que é indispensável eliminar alguma ambiguidade que se foi instalando ao longo dos anos. Ainda assim, julgamos que a fórmula adequada para uma entidade que não é, nem pretende tornar-se, um Estado continuará a ser a divisão de poderes e não a sua separação nos termos do modelo proposto por Montesquieu (poder executivo, legislativo e judicial entendidos como três ramos autónomos).

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

reforço do poder da Comissão a possibilidade de dar um passo em frente na ambicionada

“federalização” da União. Não obstante, as formas encontradas para atingir tal objectivo

variam substancialmente.

Entre as principais inovações merece particular atenção a que envolve o presidente da

Comissão. Assim, como forma aparente de aumentar a legitimidade desta instituição uma

parte significativa dos contributos apresentados à Convenção propõe a eleição do seu

presidente pelo Parlamento Europeu, sujeito a posterior aprovação pelo Conselho Europeu

(ambos deliberando por maioria qualificada259). A Comissão passaria, deste modo, a estar

investida de uma dupla legitimidade, sendo responsável politicamente, quer perante o

Parlamento Europeu, quer perante o Conselho Europeu260. Este é um ponto fulcral dado que o

aumento da responsabilização da instituição que detém o monopólio da iniciativa261, tem

como consequência um reforço da legitimidade da própria União Europeia. Por seu turno, um

presidente eleito gozaria também de maior autoridade e legitimidade junto do colégio de

comissários.

Os críticos desta proposta consideram, no entanto, que a mesma resultaria numa

politização inaceitável desta instituição - já que tornaria inevitável o fim da sua neutralidade

política – comprometendo gravemente a sua proclamada imparcialidade. Ainda que, em

259 De referir que alguns dos contributos defendem a deliberação por maioria simples, pelo menos no PE. 260 Como se sabe, o presidente da Comissão é, actualmente, designado pelo Conselho, sendo posteriormente esta designação sujeita à aprovação pelo PE (artigo 241º TCE). O novo sistema proposto visaria, portanto, como refere Olivier Duhamel (CONV 506/03, CONTRIB 207, 2-3) inverter esta ordem, por forma a cumprir três objectivos: um presidente mais legítimo; uma Comissão mais eficaz; e, finalmente, uma UE mais democrática. 261 O Tratado de Roma atribuiu à Comissão a responsabilidade quase exclusiva do direito de iniciativa legislativa. As sucessivas revisões dos tratados vieram confirmar, no geral, esta tendência. Como resultado, o monopólio da inicitiva legislativa da Comissão cobre a quase totalidade do domínio comunitário, com excepção para o Título IV do TCE (em que, provisoriamente, a Comissão partilha a iniciativa com os Estados-membros) e para algumas disposições específicas do tratado (como por exemplo, as modificações dos estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais ou as medidas punitivas em caso de violação dos princípios fundamentais por um Estado-membro). De realçar, porém que, como é referido num contributo apresentado à Convenção intitulado “O Direito de Iniciativa da Comissão”, o monopólio de jure do direito de iniciativa atribuído à Comissão não corresponde a um monopólio de facto. Na verdade, esta instituição limita-se, na maior parte das vezes, a “transformar em acto jurídico as obrigações assumidas pela Comunidade no plano internacional, a propor ‘actos devidos’ em virtude do Tratado ou do direito derivado e a dar seguimento aos pedidos de legislação que emanam do Conselho, do Parlamento Europeu, dos Estados-membros e das partes interessadas (agentes económicos, sindicatos, ONG, etc.)” (CONV 230/02, CONTRIB 79, 4). A “pressão legislativa” a que está sujeita é, aliás, uma das dificuldades apontadas pela Comissão para uma adequada observância do princípio da subsidiariedade.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

teoria, esta reforma pareça mudar de facto a natureza da Comissão (dado que o novo processo

de escolha do seu presidente compromete de alguma forma a sua independência face aos

interesses partidários) julgamos, todavia, que tal não será uma mudança indesejável (até

porque, poder-se-á contra-argumentar, o método actual dificilmente poderá ser apontado

como garante de independência em relação aos interesses nacionais). Aliás, como sublinha

Duhamel (CONV 506/03, 3), mesmo com o modo de designação actual, a Comissão, não é

apenas um “secretariado administrativo”, mas é já um órgão político: “[E]lle a été et est

présidée par des hommes politiques, choisi par des dirigeants politiques, accepté par um

Parlement politique”. Por outro lado, não será de mais notar que as competências desta

instituição (iniciativa legislativa e controlo da sua execução) são, na sua essência,

eminentemente políticas262, tornando deste modo menos compreensível a exigência de

neutralidade política. Por último, mas não menos importante, este parece-nos ser um passo em

frente para uma União que se ambiciona mais democrática e mais próxima dos cidadãos. De

facto, para que seja possível construir uma ligação real entre os cidadãos e as instituições

europeias, afigura-se indispensável que aqueles possam sentir que “têm uma palavra a dizer”

na escolha dos “governantes” comunitários (à semelhança do que acontece, aliás, a nível

nacional263). Não obstante, actualmente as eleições europeias não têm qualquer efeito político

directo sobre o governo da União. Ora, a designação do presidente da Comissão pelo PE (em

simultâneo, na medida do possível, com a eleição desta assembleia) teria precisamente a

vantagem de corrigir, pelo menos em parte, esta lacuna, contribuindo assim para a afirmação

gradual de um sentimento de pertença à União264.

262 Como sublinha Alain Lamassoure (COV 507/03, CONTRIB 208, 3) “[D]ans une démocratie moderne, seuls les organes d’expertise et de jugement doivent être politiquement indépendants; leurs membres sont choisis en fonction de leur seule compétence professionnelle. Au contraire, l’initiative des lois et le contrôle de leur exécution sont au cœur de la fonction politique”. 263 A nível nacional, a escolha dos responsáveis pelo Executivo decorre directa (por sufrágio universal) ou indirectamente (por designação da maioria parlamentar) do voto dos cidadãos. 264 De referir que a eleição directa do presidente da Comissão pelos eleitores europeus seria, provavelmente, a solução ideal, embora reconheçamos que tal necessitaria talvez de um outro estádio de desenvolvimento da vida política europeia. Como nota Duhamel (CONV 506/03, CONTRIB 207, 3) “(...) l’élection de facto du président

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Quanto à nomeação do colégio de comissários, as propostas atribuem, no geral, esta

responsabilidade ao Conselho (de comum acordo com o presidente da Comissão),

estabelecendo ainda como condição a aprovação (prévia ou posterior) do PE. É, contudo, de

referir que, embora em número mais reduzido, alguns contributos consideram que esta tarefa

deveria ser confiada exclusivamente ao presidente eleito: “si son Président est issu d’une

élection démocratique, la meilleure solution est de lui permettre de constituer son équipe

de commissaires comme il l’entend” [ênfase no original]265. Por seu turno, no que respeita

às competências da Comissão, as propostas apontam, na sua maioria, para um reforço e

alargamento destas, ainda que domínios como a segurança, a defesa e a justiça permaneçam

fora do seu âmbito de acção. Já no que concerne ao seu funcionamento interno, é reconhecida

a necessidade de uma estruturação do colégio que possibilite manter a eficácia desta

instituição depois de consumado o alargamento. Para além da questão do número de

Comissários, cuja solução (plasmada no Protocolo relativo ao alargamento, anexo ao Tratado

de Nice) parece desagradar profundamente aos Estados de menor dimensão266, é necessário

proceder a uma reformulação do funcionamento interno da Comissão. Neste sentido, a

solução poderá passar por uma reestruturação do colégio em torno das principais funções da

União, com a ressalva de que deverão ser salvaguardados os equilíbrios políticos e

geográficos. A responsabilidade de tal tarefa deverá incumbir ao presidente eleito, para quem

são reclamados, pela própria instituição, mais poderes de direcção política (no seio da

instituição e fora dela)267.

de la Commission par les electeurs est l’objectif démocratique fondamental à l’arrière-plan de l’option en faveur de son élection par le Parlement, mais il ne s’agit que d’un objectif lointain et aléatoire, qui dépend des évolutions à venir de la vie politique européenne”. 265 Cf. Lamassoure. “O equilíbrio das Instituições”, CONV 507/03, CONTRIB 208, 4. 266 Num artigo de opinião intitulado “A Igualdade dos Estados na UE”, João Cravinho faz a defesa de uma Comissão colegial “em cujas decisões votem por igual todos os comissários, havendo sempre um comissário por Estado-membro”, considerando que tal configuração não impederia esta instituição de se organizar adequadamente, por exemplo, através da atribuição de pelouros executivos apenas a dez ou quinze dos seus membros. Diário Notícias, 22 de Fevereiro de 2003. 267 Ver, por exemplo, a comunicação da Comissão sobre a arquitectura institucional “Para a União Europeia: Paz, Liberdade, Solidariedade”. CONV 448/02, CONTRIB 165, 19.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

Em síntese, embora configurando diferentes soluções, as propostas de reforma da

Comissão apontam quase invariavelmente no sentido de um reforço da legitimidade

democrática e da eficácia da instituição encarregue de enunciar o interesse geral da União,

mas que tem visto fragilizada a sua posição no triângulo institucional pelas últimas reformas

dos tratados. Se adoptadas as novas propostas - sobretudo a eleição do seu presidente pelo PE

- a tónica parece voltar a colocar-se no seu direito de iniciativa legislativa e no seu evoluir

para uma espécie de “executivo da União” que, nas palavras de Lamassoure, “[C]’est un

exécutif, qui n’a pas une compétence générale comme un gouvernement national, mais qui

s’apparente au moins à l’exécutif d’une collectivité territoriale, gérant des compétences

propres limitées” (CONV 507/ 03, 5) [sublinhado nosso].

5.3.2 O Conselho de Ministros268

A necessidade de uma reforma no Conselho de Ministros há muito bem sendo

268 A reforma do Conselho de Ministros e do Conselho Europeu estão de alguma forma relacionadas na medida em que do ponto de vista jurídico, podemos talvez considerar o Conselho Europeu como sendo o Conselho da UE reunido com uma composição especial - chefes de Estado e de governo, mais o presidente da Comissão – e para fins claramente definidos (na verdade, as opiniões dividem-se quando se trata de atribuir a classificação de instituição ao Conselho Europeu, pelo menos no sentido jurídico, embora tal nos pareça a designação mais apropriada). Por esta razão consideramos a possibilidade de integrar neste subtítulo as propostas apresentadas à Convenção para a reforma do Conselho Europeu. Optamos, todavia, por não o fazer, por consideramos que tais propostas estão já, em grande medida, explicitadas nos vários subtítulos dedicados às três instituições do triângulo institucional e, sobretudo, no que concerne à presidência da União. Não poderíamos, no entanto, deixar de apresentar uma pequena nota relativa a esta instituição central da UE. Formalmente reconhecido pelo Acto Único Europeu, o Conselho Europeu viu a sua base legal consagrada pelo TUE, ainda que tenha sido deixado de fora da parte relativa às instituições do TCE e, consequentemente, tenha ficado livre dos seus “checks and balances”. Não obstante, as suas reuniões estão longe de ser um exemplo de mera cooperação intergovernamental, sobretudo pela importância das decisões tomadas. De facto, as sucessivas revisões dos tratados contribuiram para fazer desta instituição o verdadeiro motor da integração política. Ainda assim, a necessidade de uma reforma não passou despercebida: a sua demasiadamente sobrecarregada agenda e a falta de preparação adequada das suas reuniões tornaram o consenso cada vez mais difícil. Como nota Charles Grant, num artigo intitulado “The European Union Needs a New Leader” publicado no FT.com de 07 de Outubro de 2002, “[B]ut what of the European Council, where the heads of government and the Commission president are supposed to discuss strategy? This has became a bureaucratic circus, with many national delegations running to over a hundred officials (…) The prime ministers spend too long on technical questions that ministerial councils have failed to resolve. Their meetings often produce fine declarations (…) but there is no effective mechanism for ensuring prime ministers to fulfil their promises”. Apesar das diferentes soluções apresentadas para reforma desta instituição, sobretudo no que repeita à sua presidência, os principais contributos apresentados à Convenção convergem pelo menos na necessidade de “recentrar” o papel do Conselho Europeu na definição das grandes orientações políticas e estratégicas da União.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

percebida. Entre as principais críticas contam-se a “obscuridade” do processo deliberativo, a

ainda frequente exigência de unanimidade na tomada de decisão, e uma excessiva subdivisão

em conselhos especializados. O Conselho Europeu de Helsínquia, de Dezembro de 1999,

marcou o arranque de um processo de mudança que culminaria com a aprovação, pelo

Conselho Europeu de Sevilha, de um conjunto de medidas relativas à estrutura e ao

funcionamento do Conselho de Ministros.269 Entre as principais alterações contam-se, por

exemplo, a criação de uma nova formação “Assuntos Gerais e Relações Externas” (em

substituição da formação “Assuntos Gerais”); a abertura ao público das sessões do Conselho,

sempre que este delibere em co-decisão com o PE; a cooperação entre presidências (sempre

que seja perceptível que a discussão de um determinado dossiê, iniciada num dado semestre,

se estenderá ao semestre seguinte); e, a programação das actividades do Conselho através da

aprovação pelo Conselho Europeu, com base numa proposta conjunta das presidências

envolvidas (elaborada em consulta com a Comissão e por recomendação do conselho dos

Assuntos Gerais) de um programa estratégico plurianual270 (para os três anos seguintes).

Apesar destas e de outras medidas aprovadas, a necessidade de uma reforma mais

profunda do Conselho de Ministros continuou a impor-se, nomeadamente no que respeita ao

seu funcionamento interno e à tomada de decisão. Quanto à segunda questão, os contributos

apresentados à Convenção vão, em geral, no sentido de uma extensão da vmq que deve tornar-

se a regra (de par com uma extensão do procedimento de co-decisão). Também em discussão

está a possibilidade de tornar públicas as sessões do Conselho em que este exerça funções

legislativas. Já no que respeita ao primeiro ponto são várias as propostas em debate. Pela sua

originalidade, abordaremos aqui preferencialmente os contributos de Pierre Lequiller e de

269 De referir que a reforma iniciada em Helsínquia, e que viria a ser prosseguida em Gotemburgo, Barcelona e Sevilha, visava não apenas a organização e funcionamento do Conselho de Ministros, mas também do Conselho Europeu. Cf. “Conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia”, Anexo III “Um Conselho Eficaz para uma União alargada”; e “Conclusões do Conselho Europeu de Sevilha”, Anexos I e II. 270 À luz do qual é apresentado anualmente ao conselho dos Assuntos Gerais um programa operacional anual das actividades do Conselho, proposto conjuntamente pelas duas presidências seguintes.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

Adrian Severin.271

A solução apresentada por Lequiller sugere a divisão do Conselho em três grandes

formações: Economia e moeda (a cargo dos ministros da economia e das finanças); Política

externa e de segurança comum (composta pelos ministros dos negócios estrangeiros e,

eventualmente, pelos ministros da defesa); e Assuntos internos e Justiça (da responsabilidade

dos ministros da administração interna e da justiça), a que se somariam seis conselhos

sectoriais.272 As presidências das diferentes formações seriam asseguradas por ministros em

exercício de um grupo de países (segundo regras de rotação geográfica e por um período de,

por exemplo, dois anos e meio), com excepção da formação “Política externa e de segurança

comum” cuja presidência competiria ao, também novo, ministro dos negócios estrangeiros da

União.

A ideia de criar um cargo de ministro dos negócios estrangeiros europeu, ou, pelo

menos, de um representante europeu para as relações externas273 é, aliás, comum a várias

271 Cf. Pierre Lequiller “Um Presidente para a Europa”, CONV 320/02, CONTRIB 108, e Adrian Severin “A Reforma Institucional”, CONV 488/03, CONTRIB 191. De referir que estes contributos propõem uma reforma geral das instituições, pelo que as soluções apontadas para o Conselho, e por nós abordadas neste subponto, representam apenas uma parte de propostas globais. 272 Para além das três grandes formações gerais, Lequiller propõe seis conselhos sectoriais: emprego, política social, saúde e consumidores; competitividade (mercado interno, indústria e investigação): transportes, telecomunicações e energia; agricultura e pescas; ambiente; e educação, juventude e cultura. Estes conselhos sectoriais fazem parte de uma lista de nove formações do Conselho, previstas pelo Conselho Europeu de Sevilha, com excepção das três primeiras (assuntos gerais e relações externas; questões económicas e financeiras; e justiça e assuntos internos), que são, com pequenas alterações, apresentadas, na proposta deste membro da Convenção, como formações principais. 273 Esta é, aliás, uma das propostas apresentadas pelo Grupo de Trabalho VII encarregue de debater a acção externa da União. De acordo com as conclusões deste Grupo, plasmadas no seu “Relatório final”, para se conseguir um reforço da coerência e eficácia das decisões de política externa, bem como da utilização dos instrumentos no domínio das relações externas, há que reconsiderar os actuais papéis do Alto-representante para a PESC e do comissário das relações externas. Entre as várias soluções possíveis, mereceu uma tendência favorável o exercício de ambos os cargos por um “Representante Europeu para as Relações Externas” (importa sublinhar que o relatório do Grupo de Trabalho enuncia expressamente que, embora tenham sido considerados outros títulos - como o de “Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE” e o de “Secretário da UE para as Relações Externas” - a opinião dominante é favorável ao de “Representante Europeu para as Relações Externas” por não corresponder a nenhum título utilizado a nível nacional). Ainda segundo o mesmo relatório, esta personalidade, que combinaria as funções do Alto-representante e do comissário das relações externas, seria nomeada pelo Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada, com a aprovação do presidente da Comissão e o acordo do PE; receberia mandatos directos do Conselho e responderia perante este relativamente às questões do domínio da PESC; seria membro efectivo da Comissão (preferencialmente seu vice-presidente) e, na qualidade de comissário das relações externas, apresentaria propostas ao colégio e participaria de pleno direito nas decisões tomadas por este em relação a matérias actualmente da competência da Comunidade; e,

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

propostas apresentadas à Convenção, surgindo como uma tentativa de conferir maior

coerência e credibilidade à União na cena internacional, através da concentração - numa

mesma pessoa - das funções do Alto-representante para a PESC e do comissário das relações

externas. Ainda que a necessidade de reduzir o número de representantes externos da União

seja consensual, a proposta não deixou de suscitar divisões no seio da Convenção, sobretudo

porque, segundo as conclusões do Grupo de Trabalho VII (encarregue de apresentar soluções

para melhorar a eficácia da acção externa da UE) este representante teria assento na

Comissão, mas seria responsável perante o Conselho nas matérias da PESC (double

hatting)274. Esta dualidade que, no fundo, é resultado da própria realidade da União (cuja

política externa e de segurança apesar de comum é claramente intergovernamental) levanta de

facto algumas dúvidas em termos de eficácia e de coerência interna, ainda que, sem uma

(pouco provável) “comunitarização” da PESC, outra solução se afigure difícil.

Uma das ideias mais inovadoras da proposta de Lequiller consiste na criação

(paralelamente às formações sectoriais do Conselho de Ministros) de um “Conselho

permanente da União” que seria presidido pelo “Presidente da Europa”. Composto por

representantes permanentes dos Estados-membros, tal Conselho, deveria reunir pelo menos

uma vez por mês e teria a seu cargo a coordenação, preparação e apoio dos conselhos

europeus, das questões institucionais e administrativas e dos dossiês cujas questões são

transversais a várias políticas da União. Ainda que compreendendo a intenção por detrás de

tal solução - nomeadamente no que respeita a uma exigência de maior coerência e

continuidade nos trabalhos do Conselho (quer enquanto Conselho de Ministros, quer quando

reunido a nível de chefes de Estado e de governo) - julgamos, todavia, que a introdução de

uma nova instituição, ou pelo menos, de uma nova formação, dificilmente poderá contribuir

finalmente, asseguraria a representação externa da União, substituindo a actual troika. Cf. Relatório Final do Grupo de Trabalho sobre a Acção Externa, CONV 549/02, WG VII 17, 5. 274 De acordo com um artigo publicado no euobserver.com, Andrew Duff referiu-se mesmo a essa pessoa como sendo “a council cuckoo inside a commission nest”. Cf. Honor Mahony. 2002. “Convention Debates the Merits of ‘Double Hatting’”. Euobserver.com, 21 de Dezembro.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

para a indispensável “descomplexificação” da estrutura institucional da UE.

A proposta apresentada pelo representante da Roménia – país candidato - na

Convenção é indubitavelmente mais radical. Defendendo uma reforma institucional profunda,

alicerçada na separação de poderes à la Montesquieu (executivo, legislativo e judicial), a

adopção da solução preconizada por Severin implicaria uma “requalificação” da natureza de

todas as instituições da União, bem como a divisão do conselho em lado executivo - conselho

executivo - e lado legislativo - conselho legislativo. Do lado executivo, passariam a fazer

parte o Conselho Europeu, composto pelos chefes de Estado e de governo; o conselho de

coordenação, composto pelos ministros dos assuntos europeus; o conselho dos assuntos

externos, composto pelos ministros dos negócios estrangeiros e presidido pelo ministro dos

Negócios Estrangeiros da União; e, ainda, os conselhos especializados, num máximo de dez, e

compostos pelos ministros das respectivas áreas (o conselho de coordenação, o conselho dos

assuntos externos e os conselhos sectoriais formariam o Conselho de Ministros). Ao conselho

executivo, Severin atribui quatro grandes funções: uma função de liderança, desenvolvida

essencialmente pelo Conselho Europeu; uma função de coordenação e uma função de

implementação levadas a cabo pelo conselho de coordenação e pelos conselhos sectoriais; e,

finalmente, aquilo que ele designa como uma função, ou, mais exactamente, um direito de

“call-back”, exercido pelo conselho de coordenação.

Por sua vez, o conselho legislativo seria formado pelos representantes pessoais dos

chefes de Estado e de governo dos Estados-membros e transformar-se-ia, na realidade, numa

segunda câmara do PE, isto é, num Senado. O seu papel principal consistiria, por conseguinte,

em “moderar” as actividades e decisões do Parlamento e da Comissão, por forma a torná-las

compatíveis com as aspirações e preocupações dos Estados-membros. Para tal, ser-lhe-ía

atribuído o poder de decidir, por maioria qualificada, sobre as propostas iniciadas pela

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Comissão275; ao qual se somaria, ainda, o monopólio da ratificação dos tratados da União e o

direito de “call-back”.

Operadas as modificações acima enumeradas, seria possível proceder então a uma real

separação de poderes, sendo o ramo executivo da competência da Comissão (que passaria a

ser “the main executive body” e que se tornaria, gradualmente, no governo da União) e dos

“conselho executivo”/conselho de coordenação; cabendo o ramo legislativo ao conselho

legislativo e ao PE (num sistema bicamarário), e ficando o ramo judicial a cargo de um

sistema de tribunais europeus.

A proposta do Severin destaca-se, assim, no nosso ponto de vista, pela sua

originalidade apresentando uma solução substancialmente diferente da maioria dos

contributos, sobretudo no que respeita à separação de poderes. O seu principal mérito assenta

no pressuposto da necessidade de uma clarificação entre o exercício do poder executivo e do

poder legislativo, por forma a permitir ao cidadão identificar as responsabilidades de cada

uma das instituições no processo de decisão. Ainda assim, não estamos totalmente seguros

que a tradicional separação de poderes de Montesquieu (característica interna dos Estados

demo-liberais) seja a solução indicada para uma entidade que não é, e que não nos parece que

se venha a tornar, pelo menos num futuro próximo, um Estado. Por outro lado, com excepção

do poder judicial (cuja atribuição está claramente definida na actual estrutura institucional) a

solução apresentada por Severin, sobretudo pelo número de formações e instituições que têm

a seu cargo cada um dos restantes poderes, em pouco parece contribuir para uma

simplificação do intrincado processo de actuação comunitária.

Pelo exposto, parece-nos que, mais do que pela separação de poderes, a solução

passará por uma melhor divisão destes, por forma a que o “exercício partilhado” não sirva

apenas para camuflar “quem na realidade faz o quê”. A este propósito, não poderíamos deixar

275 Com a ressalva de que qualquer modificação a uma proposta da Comissão necessitaria da aprovação desta última, o que, não se verificando, implicaria a exigência de unanimidade na tomada de decisão.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

de referir a comunicação da Comissão intitulada “Um Projecto para a Europa” (COM (2002)

247 final) onde se pode ler:

“[V]árias vezes se sublinhou o carácter inovador e o equilíbrio específico da

construção comunitária que organiza, não a separação, mas a divisão dos poderes.

Deste modo, o poder legislativo pertence ao Parlamento Europeu, mas também ao

Conselho; por seu turno, este partilha o poder executivo com a Comissão que dispõe

do monopólio da iniciativa legislativa, enquanto que a aplicação das políticas retorna

em grande medida às administrações nacionais ou regionais” [sublinhado nosso].

Sendo de esperar que o próprio sucesso do projecto comunitário imponha a readaptação das

suas principais premissas - mesmo daquelas que foram a chave de tal sucesso - não nos

parece, todavia, que o modelo a adoptar tenha forçosamente de ser o estatal, até porque a

União Europeia apresenta, como sabemos, um modelo de governação multi-nível, que não se

enquadra totalmente em soluções decalcadas de qualquer outro modelo. Não obstante, e

voltando à proposta de Severin, parece-nos que esta representa, ainda assim, uma base

interessante de reflexão, preconizando soluções que poderão servir de mote à inevitável

reforma do triângulo institucional. Referimo-nos, por exemplo, à proposta de criação de um

parlamento bicamarário, capaz de traduzir a dupla legitimidade em que assenta a União

(povos e Estados), talvez a forma mais eficaz de tornar o PE num verdadeiro co-legislador,

catapultando-o para o papel devido numa União que se quer verdadeiramente democrática,

como tem defendido com especial ênfase Lobo-Fernandes276.

5.3.3 O Parlamento Europeu

No que respeita à instituição parlamentar, os contributos apresentados à Convenção

276 Ver, por exemplo, Lobo-Fernandes. 2003. “Por um Sistema Bicamarário na UE”. Expresso, 07 de Junho.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

convergem num grande número de matérias. Assim, a “confirmação” da função legislativa do

Parlamento Europeu - nomeadamente através da generalização do processo de co-decisão - é

uma das soluções mais defendidas, o mesmo acontecendo com o alargamento das suas

competências no domínio da aprovação e controlo do orçamento comunitário277. Igualmente

consensual parece ser a necessidade de consagrar no futuro tratado constitucional os

princípios básicos de um procedimento eleitoral uniforme. Como forma de reforçar as

medidas já adoptadas neste sentido278 é sugerida, por exemplo, a possibilidade de as eleições

se realizarem no mesmo dia em todos os Estados-membros. Especial destaque merece o

contributo da Comissão (CONV 448/02) que propõe a criação de listas europeias apresentadas

em toda a União (em simultâneo com as nacionais), a partir das quais seria eleita uma

percentagem dos deputados europeus. Esta parece-nos ser uma proposta particularmente

interessante, sobretudo se encarada como um primeiro passo para a criação de partidos a nível

europeu, medida, em nossa opinião, fundamental para a criação de uma consciência política

europeia e, para o consequente, aprofundamento da democracia a nível europeu.

Apesar desta sintonia em torno de algumas das questões-chave, não deixaram de ser

introduzidas no debate soluções menos consensuais, embora igualmente pertinentes. É o caso

da eleição, pelo PE, do presidente da Comissão, ou da criação de uma segunda câmara em

representação dos Estados. Esta última hipótese pode vir a revelar-se uma solução interessante

para corrigir o “(des)equilíbrio institucional” que, desde o Tratado de Roma, tem penalizado a

instituição que representa os cidadãos 279. Conciliando as duas legitimidades da União

277 A este propósito, é introduzida por Jan Kohout (CONV 485/03, CONTRIB 188) uma questão particularmente interessante. Kohout chama a atenção para a necessidade de se regulamentar no futuro tratado constitucional as condições de dissolução do PE que, de acordo com o representante da República Checa na Convenção, deveria ter lugar sempre que esta instituição falhasse repetidamente a aprovação do orçamento comunitário ou de uma proposta de grande importância, para a qual a Comissão tivesse o apoio do Conselho de Ministros e do Conselho Europeu. 278 Sobre esta matéria refira-se que as decisões do Conselho de 25 de Junho de 2002 e de 23 de Setembro de 2002 (2002/772/CE/EURATOM), que alteram o acto relativo à eleição dos representantes ao PE por sufrágio universal directo, permitem já um sistema eleitoral mais homogéneo. 279 Note-se que o presidente da Convenção, Valéry Giscard d’Estaing, sugeriu a criação de um “Congresso dos Povos da Europa”, uma espécie de fórum onde estariam representados os parlamentares nacionais e europeus e

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

(população e Estados), um sistema bicamarário permitiria ultrapassar a complexa “tripla

maioria” nascida em Nice que, longe de servir a igualdade dos Estados, parece antes

contribuir para um profundo desequilíbrio280. Por outro lado, parece-nos também que tal

sistema não pressuporia necessariamente a criação de uma nova intituição, embora implicasse

inevitavelmente uma “readaptação” das instituições existentes (sobretudo do Conselho)281.

5.3.4 A presidência da União

A presidência da União é porventura um dos temas que mais controvérsia tem

suscitado no debate sobre o futuro da Europa. Apesar disso, ou talvez, por causa disso, é

também uma das matérias que mais propostas tem originado. Actualmente, cada Estado-

membro exerce a presidência por seis meses, em ciclos de 7 anos e meio por ordem alfabética

(no segundo ciclo inverte-se a ordem dos pares de modo a que cada um tenha oportunidade de

exercer a presidência nos dois semestres do ano). Pensada para um grupo de seis Estados, a

“presidência rotativa” depara-se agora com um fim que vem sendo anunciado pelos

ao qual poderia, eventualmente, ser atribuída a competência de eleger um presidente da União (CONV 369/02, 13). Na mesma linha, a proposta conjunta sobre a arquitectura institucional apresentada por espanhóis e ingleses à Convenção contempla também a possibilidade de criação de um Congresso que, reunindo uma vez por ano, seria uma espécie de “reedição” da actual Convenção europeia e teria como missão debater o programa da Comissão e a agenda do Conselho. A escolha dos seus membros ficaria a cargo dos parlamentos nacionais e do PE. Sublinhe-se, todavia, que, neste caso, o documento refere explicitamente que tal Congresso seria “(...) an informal political body, not a new institution, entitled to adopt resolutions or recommendations only” (CONV 591/03, CONTRIB 264, 4), embora não possamos deixar de o considerar uma nova peça no xadrês comunitário. A estes dois exemplos soma-se, também, o contributo de József Szájer (representante do parlamento húngaro na Convenção) que propõe a criação de um “Comité das Minorias Nacionais e Étnicas” composto por representantes das minorias nacionais e étnicas e dos povos indígenas que vivem nos Estados-membros (CONV 580/03, CONTRIB 258). 280 De facto, julgamos que mesmo as reticências dos países mais pequenos - que vêem na sua reduzida população uma clara desvantagem em termos negociais – poderiam eventualmente ser ultrapassadas se fosse equacionado um método que garantisse o princípio da igualdade entre Estados. 281 Neste domínio, diversas soluções se afiguram possíveis, parecendo-nos particularmente interessante a proposta de Elena Paciotti (membro suplente da Convenção). Tomando em consideração a absoluta necessidade de separar as funções executivas e legislativas do Conselho, Paciotti sugere que o Conselho exercendo a sua função legislativa em co-decisão como PE se torne numa espécie de “Câmara dos Estados”, composta pelos ministros responsáveis pelos assuntos europeus (CONV 486/03, CONTRIB 189), 4). Ainda que qualquer solução deste tipo mereça uma cuidadosa reflexão (até porque qualquer “novo arranjo institucional” não deve servir para complicar e obscurecer ainda mais o já de si intrincado relacionamento entre as instituições), parece-nos, todavia, que fornece um exemplo claro de como o bicamaralismo poderia resultar de um “rearranjo” da actual estrutura institucional.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

sucessivos alargamentos. Não negando o sucesso desta fórmula, a maioria dos líderes

europeus parece concordar que, tal como foi idealizada há quase cinquenta anos, dificilmente

servirá com eficácia uma Europa alargada. As divergências começam, pois, nas alternativas

apontadas: enquanto que uns advogam o fim da presidência rotativa e a eleição de um

presidente do Conselho (ou mesmo da União), outros defendem uma reformulação desta que

não ponha em causa o princípio basilar da rotatividade. As propostas apresentadas à

Convenção são, portanto, o reflexo destas duas visões distintas, para as quais é possível

encontrar na argumentação de cada um dos lados as vantagens e desvantagens de uma ou de

outra opção.

Para os que apontam a necessidade de acabar com o sistema rotativo as razões

afiguram-se claras: tal sistema determina uma constante mudança na liderança do Conselho,

dificultando a continuidade dos seus trabalhos e enfraquecendo, consequentemente, a

desejada credibilidade e coerência externa da União282. De facto, seis meses parece um

período execessivamente limitado para o desenvolvimento e execução de grandes projectos,

ficando, por conseguinte, a sua continuidade comprometida pelo início de uma nova

presidência cujas prioridades poderão ser diferentes das defendidas pela sua predecessora. Por

outro lado, numa União a 25, o já longo interregno entre as presidências exercidas por um

mesmo país, aumentaria exponencialmente, fazendo perder, como consequência, o que

consideramos uma das grandes vantagens da presidência rotativa: a maior visibilidade que

confere à actuação comunitária para os nacionais do país que ocupa a presidência (e o

subsequente fortalecimento da ligação entre os cidadãos e a União).

Apesar de partilharem os argumentos contra a manutenção do actual sistema de

rotação, as alternativas encontradas pelos que advogam um corte com o passado estão longe

282 Há quem aponte razões menos “altruístas” considerando, por exemplo, que os grandes Estados-membros (leia-se com maior influência política) não quererão delegar poderes substanciais nos assuntos externos e de defesa a uma União que, a cada seis meses, é presidida por um Estado-membro diferente, independentemente do seu tamanho e da sua importância na cena internacional. Cf. Josef Zieleniec. 2003. “A Questão da Presidência da União Europeia”, CONV 492/03, CONTRIB 195, 3.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

de ser consensuais. Em termos gerais podemos, todavia, dividir os contributos apresentados à

Convenção em dois grandes grupos: os que defendem um presidente unificado para a União283

e os que preconizam uma presidência bicéfala284. No primeiro caso, a presidência rotativa

daria lugar a uma presidência permanente (por um período de, por exemplo, cinco anos)

ocupada por um “Presidente da União” (ou “Presidente da Europa”) eleito pelo Conselho

Europeu e confirmado pelo Parlamento Europeu285 (e, consequentemente, responsável perante

os dois). Exercendo a presidência quer da Comissão quer do Conselho Europeu, caber-lhe-ia

gerir os trabalhos das duas instituições, apoiando-se para tal nos serviços da Comissão e nos

serviços do secretariado do Conselho. Como resultado, o titular de tal cargo passaria a ser “a

face da União”, quer a nível externo (para os países terceiros), quer no plano interno (para os

cidadãos da União). Por outro lado, na opinião dos defensores desta proposta, este “duplo

exercício” teria a grande vantagem de conseguir transcender a abordagem tradicional que

opõe as legitimidades nacionais dos Estados (representadas pelo Conselho) à legitimidade

europeia (representada pela Comissão): “il appartient au Président de l’Europe d’assumer et

de conjuguer cette double légitimé” (CONV 320/02, 7).

Sendo uma proposta nitidamente arrojada, é talvez aquela que melhor serviria a

ambição de uma imagem forte e coesa da União na cena internacional. Não obstante, a sua

concretização implicaria um salto considerável na actual arquitectura institucional, só

exequível, em nossa opinião, numa “fase mais avançada” da construção comunitária. De

facto, a existência de um presidente europeu com real peso político (e não meramente

simbólico) pressuporia, em primeiro lugar, uma confluência de opiniões em relação ao futuro 283 Ver, por exemplo, Andrew Duff e Lamberto Dini. 2003. “Uma Proposta de Presidência Unificada”, CONV 524/03, CONTRIB 219; ver também Pierre Lequiller. 2002. “Um Presidente para a Europa”, CONV 320/02, CONTRIB 108. 284 Ver, por exemplo, “Contributo Franco-alemão para a Convenção Europeia sobre a Arquitectura institucional da União”, CONV 489/03, CONTRIB 192; ver também Henri de Bresson. 2003. “Paris et Berlin Proposent une Double Présidence de l’UE”. Le Monde.fr, 15 de Janeiro ; e “Les Principaux Points de la Contribuition Franco-allemande”. Le Monde. fr, 16 Janeiro de 2003. 285 Importa notar que uma das propostas faz depender a eleição do presidente da União, não da confirmação do PE, mas de um voto de investidura do “Congresso dos Povos da Europa” (proposto por Giscard d’Estaing). Cf. Pierre Lequiller. 2002. “Um Presidente para a Europa”, CONV 320/02, CONTRIB 108, 7.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

da integração europeia. Ora, a tradicional divisão entre a Europa intergovernamentalista (que

aposta no reforço do Conselho Europeu) e a Europa “federal” (que “joga as suas cartas” num

“ressuscitar” da Comissão), tornaria certamente árdua, senão impossível, a tarefa de exercer

imparcialmente a presidência destas duas instituições (a menos que existisse uma

transformação profunda da sua natureza). Por outro lado, mesmo considerando um cenário de

evolução de cariz neofederal - com a transformação gradual da Comissão em executivo

europeu e a limitação das actividades do Conselho Europeu à “grande” orientação política –

afigura-se-nos difícil que a mesma pessoa possa gerir, simultaneamente, a instituição

competente para traçar as linhas mestras do projecto político e a instituição responsável pela

sua execução. Às prováveis dificuldades no plano interno, há ainda que acrescentar que,

também no domínio externo, o impacto de um tal cargo na imagem e credibilidade da União

dependeria, em última instância, da força e prestígio político da personalidade eleita.

À presidência unificada opõem-se os defensores de uma presidência bicéfala,

preconizada pela França e Alemanha e apoiada por ingleses e espanhóis. Numa tentativa

evidente de pôr novamente em marcha o motor franco-alemão da Europa, o presidente francês

Jacques Chirac e o chanceler alemão Gerhard Schroeder decidiram, entre outras iniciativas,

elaborar um contributo conjunto para apresentar à Convenção no âmbito do debate sobre a

reforma institucional. Das várias medidas propostas destaca-se a opção por uma presidência

bicéfala da União que é, na realidade, uma “solução de compromisso” entre a vontade alemã

de reforçar a Comissão, e o desejo francês de conferir um papel de liderança ao Conselho

Europeu na nova Europa286. Assim, o contributo franco-alemão propõe um presidente da

Comissão eleito pelo Parlamento Europeu (por maioria qualificada dos seus membros) e 286 Como está subentendido nas próprias palavras do presidente francês, num discurso proferido no Palácio do Eliseu, em 14 de Janeiro de 2003: “(...) si nous voulions avoir, avec le moteur franco-allemand, une véritable impulsion pour l’Europe de demain, nous devions trouver de solutions simples et où chacun devait accepter de faire une concession à l’autre. Nous avons donc décidé une nouvelle fois que l’Allemagne et la France feraient chacune un pas vers l’autre. Dans cet esprit, la France a accepté que le Président de la Commission soit élu par le Parlement européen et l’Allemagne a accepté que le Conseil européen soit présidé par un Président élu par le Conseil à la majorité qualifiée pour une période de deux ans et demi renouvelables ou de cinq ans” [sublinhado nosso].

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

aprovado pelo Conselho Europeu (decidindo por maioria qualificada) de par com um

presidente do Conselho Europeu eleito, pela própria instituição (deliberando por maioria

qualificada), por um período de cinco, ou dois anos e meio, renovável. Aos dois presidentes

eleitos caberiam funções distintas, relacionadas sobretudo com a orientação e supervisão dos

trabalhos das respectivas instituições. Ao presidente do Conselho Europeu competiria ainda a

representação da União na cena internacional (aquando das reuniões de chefes de Estado e de

governo), sem prejuízo das competências atribuídas à Comissão e ao seu presidente, e

sabendo também que a condução da PESC ficaria a cargo do novo ministro europeu dos

negócios estrangeiros. De referir ainda que a personalidade escolhida para presidente do

Conselho Europeu exerceria funções a tempo inteiro durante a vigência do seu mandato,

resultando assim numa espécie de “profissionalização” deste cargo. Este é aliás, em nossa

opinião, um dos aspectos positivos desta proposta, já que a acumulação das responsabilidades

europeias com as exigências nacionais (a par com a excessiva diversificação dos assuntos

analisados pelo Conselho Europeu e o escasso número de reuniões anuais) acaba por

condicionar a preparação da agenda desta instituição e resultar, não raramente, em longas e

penosas maratonas negociais. Por outro lado, como sublinha Charles Grant287, um líder do

Conselho Europeu a tempo inteiro poderia servir de garante ao cumprimento dos

compromissos assumidos durante as reuniões da instituição, mas que são frequentemente

“esquecidos” ou adiados.

Recebida com agrado pela Espanha e pelo Reino Unido288, a proposta franco-alemã foi

287 Cf. Charles Grant. 2002. “The Twin Peaks of European Leadership”. FT. com, 16 de Janeiro. 288 Sublinhe-se que estes dois Estados-membros apresentaram igualmente uma proposta conjunta à Convenção que, apesar de preconizar também o fim da presidência rotativa, revela, não obstante, algumas diferenças em relação ao contributo franco-alemão. Assim, espanhóis e ingleses propõem um presidente da Comissão eleito pelo Conselho Europeu (deliberando por maioria qualificada) e só depois submetido à aprovação do PE (invertendo, portanto, os termos da proposta franco-alemã). Por outro lado, as reuniões sectoriais do Conselho seriam garantidas por uma presidência colectiva, com duração de dois anos, o que permitiria aos pequenos e médios países orientar algumas políticas comunitárias durante um determinado período. Novidade é também a possibilidade de criação de um Congresso, cujos membros seriam indicados pelos parlamentos nacionais e pelo PE. Reunindo uma vez por ano, o novo orgão político poderia debater o programa da Comissão e a agenda do Conselho. A finalizar a proposta aparece ainda a referência à necessidade de reforma do Tribunal de Justiça. Para

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

alvo de fortes desconfianças por parte dos Estados-membros mais pequenos (receosos de uma

concentração excessiva do poder nas mãos dos “grandes”) e de alguns membros da Comissão.

Uma das principais críticas está relacionada com o perigo de uma coabitação difícil289 entre os

dois pólos de poder. A ideia de que as competências dos dois presidentes não colidirão é

refutada por aqueles que consideram inevitável o aparecimento de tensões entre ambos:

“[S]ome supporters of the new president (...) urge us to ‘balance’ him or her with a

Commission president who would act, on the model of the French fifth republic, as a

prime minister or even chief executive. But the outcome of creating both a strog

Council and Commission president would sadly be all too predictable: the two figures

would compete with each other to speak to the EU’s allies abroad” (Peter Sutherland

2003, 2).

Este parece-nos, de facto, um risco provável, até porque o contributo franco-alemão não

apresenta regras claras para esta “coabitação”. Por outro lado, são também legítimos os

receios de uma complexificação das relações institucionais. Ainda que teoricamente os dois

presidentes actuem em esferas distintas, na prática tal delimitação poderá não ser fácil,

sobretudo se pensarmos que, pelo menos nos termos actuais, o presidente da Comissão

participa nas reuniões do Conselho Europeu. Igualmente sem resposta fica a questão do

controlo democrático, sendo, neste campo, grande a diferença que separa os dois presidentes.

De facto, se a proposta franco-alemã faz depender a eleição do presidente da Comissão do PE

e do Conselho Europeu (tornando-se assim a Comissão duplamente responsável perante estas

duas instituições), advoga a eleição do presidente do Conselho Europeu pelos seus pares, não

havendo portanto qualquer intervenção parlamentar. Ora, tal situação parece apresentar-se, o efeito, espanhóis e britânicos sugerem uma melhor divisão de funções entre este tribunal, o Tribunal de Primeira Instância e os painéis judiciais (criados por Nice), devendo o Tribunal de Justiça ocupar-se exclusivamente dos casos mais importantes (no documento é mesmo sugerida uma possível mudança de nome dos tribunais para reflectir os respectivos papéis). 289 De acordo com um artigo publicado na edição on-line do Le Monde, o presidente da Comissão Romano Prodi considerou que uma presidência bicéfala da União conduziria a uma coabitação “impossible”, invocando mesmo “le risque que l’Europe se brise, car il n’y aura pas d’unité de pouvoir”. Cf. “La Proposition Franco-allemande de Double Présidence de l’UE Ne Fait Pas l’Unanimité”. Le Monde. fr, 15 de Janeiro de 2003.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

pois, em contradição com o desejado aumento da legitimidade democrática, um dos

objectivos centrais da reforma em curso: “[M]uch of the debate in and around the Convention

is about how to make EU institutions more democratic and accountable. A permanent

president of the Council, appointed by is or her peers, unccountable to any parliament and

without any clear democratic mandate, hardly tackles this problem” (Sutherland 2003, 3).

Em síntese, embora apresente algumas vantagens indiscutíveis (nomeadamente em

termos de estabilidade e de continuidade dos trabalhos do Conselho) a solução preconizada

pela França e pela Alemanha para a presidência da União levanta também alguns problemas

pertinentes. A esta ambiguidade não é certamente alheia o facto de a proposta ser o

“compromisso possível” entre uma visão mais intergovernamental da União preconizada pela

França e a defesa de um sistema mais “federal” desejado pela Alemanha. A tentativa de

conjugação dos dois ideais que durante anos tem dividido os construtores do projecto europeu

não poderia resultar noutro senão num modelo híbrido, que dificilmente satisfará

completamente os defensores de uma e de outra corrente. Ainda assim, não podemos esquecer

que a própria União é na sua essência uma entidade híbrida, cujo sucesso parece residir

precisamente num modelo misto que conjuga elementos supranacionais e

intergovernamentais. Por outro lado, pelo menos no que respeita ao relacionamento dos dois

presidentes, é sempre possível conceder o “benefício da dúvida” pois, como sublinha

Duhamel290: “[O]n peut redouter (...) une rivalité nuisible entre les deux présidents et

l’institutionnalisation d’une sorte de cohabitation au sommet de l’Europe, mais on peut aussi

penser que le président s’européanisera inéluctablement et travaillera de concert avec le

président de la Commission”.

Embora reconhecendo a necessidade de uma readaptação do sistema rotativo das

presidências, os pequenos países (incluindo os futuros Estados-membros) têm rejeitado

290 Cf. Henri Bresson. 2003. “Britanniques et Espagnols Approuvent une Double Présidence de l’Europe”. Le Monde.fr, 16 de Janeiro.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

veementemente a sua irradicação. Defendendo que a reforma das instituições deve preservar e

não perturbar o equilíbrio institucional e a igualdade entre os Estados-membros, a solução

poderia passar por uma “presidência de equipa”. Embora esta seja uma ideia que reúne alguns

apoiantes, são muitas as divergências quanto à melhor forma de a pôr em prática. Para o

representante da República Checa na Convenção, Jan Kohout, esta equipa deveria ser

composta por três países, cada um dos quais exerceria a presidência em três conselhos

sectoriais, por um período de 18 meses. Já a presidência do Conselho Europeu e das restantes

formações do Conselho encarregadas de definir as estratégias (COREPER, conselho dos

assuntos gerais) seriam exercidas na equipa sempre pelo mesmo Estado por um período de

seis meses, sob a coordenação dos restantes membros da presidência (CONV 485/03,

CONTRIB 188). Consideravelmente diferente, embora igualmente interessante, sobretudo

pela sua originalidade, é a solução apresentada por Péter Balázs (representante do governo

húngaro na Convenção); considerando que qualquer reforma da presidência do Conselho deve

respeitar três princípios básicos – igualdade dos membros; melhoria da eficiência e da

consistência; e estabilidade do Conselho através do reforço da continuidade – Balázs propõe

uma presidência de equipa composta por quatro países (four wheels) por um período de um

ano. Durante este período aplicar-se-ia o que Balázs designa por “rolling, four wheels drive

system” ou seja, a cada seis meses, dois membros da presidência (the two front wheels)

sairiam para dar lugar a dois novos membros291. A distribuição de responsabilidades (nas

formações principais do Conselho) seria acordada pela equipa, com base na experiência e

capacidades dos seus membros (country-profiled division of labour), enquanto que a

presidência dos corpos intermédios (COREPER, etc.) e dos grupos de trabalho seguiria a

nacionalidade do presidente do Conselho relevante.

Uma terceira solução poderia passar pela manutenção da rotatividade somente em 291 De acordo com as regras deste sistema, cada Estado-membro exerceria a presidência de seis em seis anos, frequência mais favorável que os actuais sete anos e meio, sobretudo se pensarmos que, consumado o alargamento a dez novos países, este intervalo aumentará para uns excessivos 12 anos e meio.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

algumas das formações do Conselho. Esta é, aliás, a solução defendida pela Comissão que,

num contributo apresentado à Convenção no âmbito do debate sobre a reforma

institucional292, recomenda a manutenção da rotação semestral para a presidência do Conselho

Europeu, Conselho dos Assuntos Gerais e COREPER. Já para as restantes formações do

Conselho, a presidência poderia ser exercida por um membro do Conselho eleito pelos seus

pares, por um período de um ano, o que apresentaria a vantagem de conferir uma maior

continuidade aos trabalhos desta instituição. Esta solução aparece, assim, como uma espécie

de “meio termo” entre o fim da presidência rotativa e a eleição de um presidente do Conselho,

apresentando-se por isto, em nossa opinião, como um modelo a ponderar. De facto, perante

uma previsível ausência de consenso quanto ao fim do sistema rotativo, uma solução

intermédia como a proposta pela Comissão poderia permitir, pelo menos, um pequeno salto

qualitativo. A sua grande vantagem estaria em conferir a algumas formações do Conselho –

como, por exemplo, uma possível formação dedicada às relações externas e defesa293 - a

estabilidade indispensável ao sucesso. O seu maior inconveniente seria o de não contribuir

para a simplificação da arquitectura institucional, ainda assim, talvez um preço pequeno a

pagar por um consenso no seio da Convenção e, posteriormente, na CIG294.

292 CONV 448/02, CONTRIB 165, 17. 293 Como se sabe esta é uma área em que a estabilidade e continuidade dos trabalhos se apresenta como crucial. Como refere Le Gloannec (2002, 114) “(...) the EU is set up precisely to prevent hegemony and disperse rather than concentrate power. There is a disjunction between the very nature of the EU and the requirement of authority in a European Security and Defense Policy” [sublinhado nosso]. 294 A este propósito não poderíamos deixar de referir a ideia de uma presidência tricéfala considerada num artigo publicado na edição on-line do jornal francês Le Monde. De acordo com Daniel Vernet a solução para ultrapassar, quer a provável concorrência entre dois presidentes da União, quer a excessiva concentração de poderes nas mãos de um único presidente (e portanto capaz de conseguir o consenso na Convenção) poderia passar por uma presidência colegial, composta pelo presidente da União e (ao mesmo nível, ou abaixo deste) pelos presidentes da Comissão e do Conselho. Neste colégio, cujo nome permanece por definir (já que directório ou triunvirato carregam pesadas conotações negativas), os presidentes das duas instituições exerceriam, no essencial, as funções actuais, enquanto que o presidente da União teria sobretudo um papel representativo. Para Vernet, tal fórmula teria a vantagem de satisfazer os partidários da Comissão, os pequenos países (que mantêm a presidência rotativa do Conselho) e os que desejam uma representação estável da União, embora reconheça que tem a desvantagem de tornar ainda mais complexo o, já de si pouco compreensível, sistema institucional. Ainda assim, como sublinha o mesmo autor “(...) le consensus au sein de la Convention est peut-être à ce prix”. Cf. Daniel Vernet. 2003. “L’Union Européenne Pourrait Être Dotée d’une Présidence Tricéphale”. Le Monde.fr, 14 de Janeiro. Igualmente merecedora de nota nos parece ser a fórmula de Josef Zieleniec, membro do Senado da República Checa. Num contributo para o debate sobre a reforma institucional, apresentado à Convenção, Zieleniec propõe o estabelecimento de uma presidência de longo prazo da União Europeia, cujo presidente seria

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

5.4 Conclusão: o Projecto de Constituição – uma Breve Nota

A Declaração de Laeken, ao mesmo tempo que criava uma Convenção encarregue de

analisar temas cruciais à definição do projecto europeu, estabelecia como objectivo último

desta Convenção a redacção de um projecto de tratado constitucional para a UE. Após longos

meses de profunda reflexão e acalorados debates, a Convenção atingiu finalmente a sua fase

mais importante: transformar em projecto de constituição o resultado dos muitos contributos

que lhe foram sendo apresentados. Esta é, sem dúvida, a tarefa mais árdua que os seus

membros enfrentam, já que deles se espera que sejam capazes de elaborar um texto

“aceitável” para todos, o mesmo será dizer, um texto capaz de conciliar os interesses de

grandes e pequenos Estados, mas que represente um real aprofundamento da integração

europeia.

Em Fevereiro de 2003295, o Praesidium da Convenção deu luz verde à fase decisiva de

“constitucionalização” da UE, ao apresentar aos restantes convencionais os primeiros dois

conjuntos de artigos do futuro tratado constitucional – artigos 1º a 16º e 24º a 33º – bem como

eleito pelo Conselho Europeu (por maioria qualificada reforçada, ou mesmo por consenso). Por sua vez, a escolha do candidato pelo Conselho Europeu estaria limitada por um procedimento específico de designação dos candidatos que deveria envolver outros actores da vida política europeia (como por exemplo os parlamentos nacionais ou o PE). O presidente eleito desempenharia um papel preponderante nas relações externas, mas teria poderes muito limitados a nível interno, onde coexistiria com uma presidência rotativa do Conselho reformada (“a reformed rotating internal presidency”), embora gozasse do estatuto oficial do mais alto representante da União, interna e externamente. Cf. Josef Zieleniec. “A Questão da Presidência da União Europeia”, CONV 492/03, CONTRIB 195. 295 Importa sublinhar que o Praesidium havia já apresentado à Convenção, em finais de Outubro de 2002, um anteprojecto de tratado constitucional, que serviu como uma espécie de amostra da provável estrutura do futuro tratado. Ver “Anteprojecto de Tratado Constitucional”, CONV 369/02. Por outro lado, a Convenção recebeu também inúmeros contributos, individuais e colectivos, propondo soluções concretas para uma futura Constituição. Entre estes merece especial destaque o estudo solicitado pela Comissão e realizado por Marie Lagarrigue, Paolo Stancanelli, Pieter Van Nuffel, Alain Van Solinge, sob a direcção de François Lamourex (com a assistência técnica de Marguerite Gazze). Intitulado “Constituição da União Europeia” (mas conhecido como “Penelope”) este documento de trabalho é consideravelmente mais ambicioso que o documento oficial da Comissão sobre a reforma institucional. De facto, são vários os artigos francamente inovadores destacando-se, por exemplo, o estabelecimento de uma cláusula de mútua defesa (artigo 28º) ou a transformação da justiça e assuntos internos numa das políticas principais da UE (artigo 11º). Igualmente merecedora de nota é a possibilidade de um Estado se retirar da União (artigo 103º), no caso de ser acordada uma revisão da constituição europeia que não seja compatível com os requisitos constitucionais desse Estado; neste caso, o mesmo artigo prevê também a conclusão de um acordo que passará a governar as relações entre o Estado em causa e a União. Cf. “Estudo de Viabilidade: Contribuição para um Anteprojecto de Constituição da União Europeia (Documento de Trabalho)” [http://europa.eu.int/futurum/documents/offtext/const051202_pt.pdf] (11 de Fevereiro de 2003).

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

uma proposta de reformulação dos protocolos relativos à aplicação dos princípios da

subsidariedade e da proporcionalidade, e ao papel dos parlamentos nacionais296. As críticas

não se fizeram esperar, tendo a Convenção recebido um total de mais de 1000 propostas de

emenda, só para o primeiro conjunto de artigos que, segundo os críticos, não reflectem os

resultados do trabalho da Convenção297. A título de exemplo, refira-se que as divergências

começam logo no artigo primeiro que institui a União. A fonte da discórdia é, sem surpresa, a

utilização da expressão “em moldes federais”298 para definir a gestão de determinadas

competências comuns (à União e aos Estados-membros), encarada pelos defensores da via

intergovernamental (nomeadamente pelos representantes do Reino Unido) como um primeiro

passo para a edificação de um estado federal. Igualmente alvo de contestação foi o artigo

14º299 respeitante à PESC, considerado por alguns como uma verdadeira desilusão300. De

facto, numa área onde a fragilidade da União é clara301, o futuro tratado constitucional limita-

se a fazer uma “declaração de intenções” que pouco parece contribuir para dar significado ao

“epitáfio comum” presente no nome desta política. Ainda assim, talvez esta “falta de

ambição” encontre explicação precisamente na fragilidade desta política, comprovada pela

recorrente dificuldade de concertação dos Estados da UE quando confrontados com uma

situação de crise eminente na cena internacional. De facto, a divisão dos governos europeus 296 Os documentos datam respectivamente de 06, 26 e 27 de Fevereiro. Ver “Projecto de Artigos 1º a 16º do Tratado Constitucional”, CONV 528/03; “Projecto de Artigos 24º a 33º do Tratado Constitucional”, CONV 571/03; e “Projecto de Protocolos Relativos: à Aplicação dos Princípios da Subsidiariedade e da Proporcionalidade; ao Papel dos Parlamentos Nacionais na União Europeia” CONV 579/03. 297 David Heathcoat-Amory (militante do partido conservador britânico e membro do PE) acusou mesmo o presidente da Convenção e o Praesidium de fazerem um “uso selectivo” das conclusões dos grupos de trabalho: “by selectively using only the conclusions from the working groups which suit their purpose, Giscard d’Estaing and his presidium have today presented the first chapters of a fully-fledged constitution”. Cf. Honor Mahony. 2003. “Strong Reactions to First Constitutional Articles”. Euobserver.com, 07 de Fevereiro. 298 De referir que tal expressão viria a ser retirada do projecto final de constituição, em grande medida fruto das fortes pressões do primeiro-ministro britânico Tony Blair. Como consequência, na versão final do documento apresentado pela Convenção ao Conselho Europeu de Salónica (20 de Junho de 2003) a expressão “em moldes federais”, inicialmente presente no artigo 1º, nº,1 é substituída pela expressão “em moldes comunitários”. Cf. CONV 820/1/03 REV 1. 299 Na versão final do projecto de constituição é o artigo 15º. 300 De acordo com um artigo publicado no euobserver.com, o próprio presidente da Convenção, Valérie Giscard d’Estaing, considerou que este artigo causou “a mixture of scepticisme and sadness”. Cf. Honor Mahony. 2003. “First Articles of EU Constitution Produced”. Euobserver.com, 06 de Fevereiro. 301 Posta a nu em situações de tensão internacional, como foi o caso dos graves conflitos que assolaram os Balcãs, ou da crise iraquiana.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

em relação à intervenção armada no Iraque (simplisticamente reduzida, em nossa opinião, ao

pró ou anti-americanismo), ao mesmo tempo que realçou a imperatividade de uma política

externa e de segurança comum real, parece, paradoxalmente, ter tornado mais difícil, pelo

menos no curto prazo, o salto necessário para atingir tal objectivo.

Em suma, considerados demasiadamente ambiciosos por uns e decepcionantemente

modestos por outros, os artigos apresentados só parecem capazes de unir os defensores das

“duas visões da Europa” nas muitas críticas que suscitam. A discussão adivinha-se intensa e o

desejável consenso não será certamente tarefa fácil. Na “arena” gladia-se, uma vez mais, uma

Europa intergovernamental, dominada pelos Estados versus uma Europa federal. E, no

entanto, entre as duas opções existe um modelo neofederal que julgamos respeitar melhor os

interesses dos Estados e dos cidadãos europeus. Não se trata exactamente, julgamos nós, de

um ponto intermédio numa escala, até porque nos parece que o processo de integração

europeia é demasiadamente complexo para ser apreendido por uma escala linear em cujos

extremos se encontram a “associação de Estados” e o “Estado federal”. Mais do que um

“meio termo” o novo federalismo que associamos à construção comunitária afigura-se, pois,

como uma “terceira via”, entendida não como um contraponto à Europa intergovernamental,

mas como um modelo misto que, não desprezando a importância da flexibilidade e da

cooperação, aproveita da doutrina federal o que melhor poderá servir os povos e os Estados

europeus: o exercício descentralizado do poder (uma Europa mais perto dos cidadãos) e o

respeito pela diversidade (unidade na diversidade). Ainda assim, e para aqueles que o

consideram uma simples etapa na contrução de um superestado, importará chamar ao debate a

questão dos limites da integração pois, como reconheceu o próprio Haas, o spillover não é

automático, e a comprová-lo está uma história comunitária recheada de exemplos de avanços,

mas também de alguns recuos. Significa isto que, sem “automaticidade do processo”, a

escolha está em última instância nas mãos dos líderes europeus e, esperamos, dos cidadãos.

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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?

Para concluir, considerada a UE um exemplo de “federalismo às avessas”302 (se

analisada tendo em conta os parâmetros tradicionais de uma federação) parece-nos, todavia,

que tal classificação, embora rigorosa do ponto de vista jurídico, perderá sentido se

entendermos a construção comunitária como precursora de uma doutrina política própria, que

é simultaneamente causa e resultado da evolução institucional e da transferência de

competências (à medida que são percebidas pelos Estados como melhor realizadas em

conjunto). Em nossa opinião a UE será, pois, o exemplo “às direitas” de um novo modelo

político que, à falta de melhor designação, se optou catalogar como neofederalismo, mas que

apresenta em relação ao federalismo tradicional diferenças assinaláveis (desde logo, o não

visar a criação de um Estado federal). Os desafios colocados à Convenção são grandes, como

grandes são também as expectativas em relação aos seus resultados. Não obstante, mais do

que encontrar uma classificação formal303 importará, sobretudo, que a União seja percebida

pelos seus cidadãos; só assim estes serão capazes de compreender que um ocasional sacrifício

do “interesse nacional” ao interesse do todo (e, sublinhe-se, do todo) será certamente

compensado pela mais-valia que a pertença a uma entidade deste tipo poderá representar no

complexo jogo das relações internacionais304.

302 Este “federalismo invertido” é mesmo apontado por Álvaro de Vasconcelos (2003, 4) como um entrave à transformação da União Europeia num actor internacional de peso: “[P]ara que a norma e a justiça prevaleçam como elementos essenciais da ordem mundial, é necessário que a União Europeia se transforme numa parte imprescindível à resolução dos grandes problemas internacionais. Para isso a Convenção Europeia deve resolver o problema básico da União: o de ser uma federação às avessas. Ou seja, uma federação que não transferiu para o centro, ao contrário das outras, competências significativas no domínio da política externa e da defesa” [sublinhado nosso], observação esta que vai, aliás, ao encontro da imagem de confederação invertida proposta por Brandão e Lobo-Fernandes, op. cit. (ver pág. 53). 303 Como nota Porto (1999, 14-15) “(…) acaba por ser secundário o qualificativo que se utilize para concretizar o modelo europeu, com ou sem a palavra ‘federal’. Trata-se de uma experiência única, com interesses específicos a atender, que não é necessário enquadrar em algum arquétipo já existente” [ênfase nossa]. 304 Como nota Sidjanski (2001, 58) “[T]he objective of the federal European system is to allow member states to find, together, the capacity to act which, alone, they are no longer capable of doing” [ênfase nossa].

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CONCLUSÃO

A última década do Século XX ficou marcada por profundas transformações

geopolíticas e estratégicas. A queda do Muro de Berlim, a desintegração do Império Soviético

e, o consequente rearranjo do mapa europeu, aliados a uma globalização de cariz

contraditório, ditaram a necessidade de definir novas regras para o complexo jogo das

relações internacionais. Confrontados com uma metamorfose no próprio continente europeu,

os líderes comunitários compreenderam a necessidade de “dar o salto” para a integração

política, única forma de a Comunidade estar apta a responder aos desafios que lhe eram

colocados simultaneamente pela emergência de um conjunto de jovens democracias desejosas

de entrar no “clube europeu”, e por um recrudescer de tendências fragmentárias resultante do

fim da ordem rígida imposta pelo regime da “cortina de ferro”. Com esta dissertação,

procuramos compreender em que medida a evolução que marcou a última década comunitária

deixa antever a construção de um modelo novo que, faute de mieux, catalogámos de

neofederal, e que poderá resultar, pela hibridez das suas premissas, numa “superação” da

habitual dicotomia intergovernamentalismo/ supranacionalismo.

O TUE, o primeiro marco da nova fase, criou as bases de uma união política que

trouxe consigo elementos tão importantes como a cidadania europeia ou o princípio da

subsidiariedade. Embora tenha avançado menos do que faziam supor as expectativas que

rodearam a sua negociação, Maastricht foi, inquestionavelmente, um sinal claro do

redimensionamento dos objectivos da Comunidade, que de projecto essencialmente

económico passou também a político. Maastricht não conseguiu, porém, “escapar” às

questões fundamentais de poder que opõem os Estados às instituições europeias. O resultado

foi uma União alicerçada numa estranha e complexa estrutura de pilares que deixa fora da

alçada da Comunidade duas áreas de importância crucial: a política de segurança e a justiça e

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

assuntos internos. Apesar do salto qualitativo que representava, o TUE era, portanto,

demasiadamente ambivalente para delinear com clareza o caminho escolhido para a União e,

se é certo que algumas das suas disposições apontavam iniludivelmente para um modelo de

cariz neofederal, a forma final deste modelo permanecia envolta num grande ponto de

interrogação.

Do Tratado que se lhe segiu – Amesterdão - esperava-se que pudesse avançar no

ainda longo percurso da integração política, colmatando assim algumas das conhecidas

“fraquezas” do TUE. A agenda da CIG 96/97, inicialmente limitada às questões definidas por

Maastricht, acabaria por se alargar gradualmente a um número significativo de novas

matérias, fazendo prever “a grande reforma” do sistema comunitário. Não obstante, as

negociações revelaram-se difíceis, e o novo Tratado - que trouxe algumas modificações

importantes na área da política social, comunitarizou uma parte do terceiro pilar e deu alguns

pequenos passos na segurança e defesa - não se livrou do rótulo de “fracasso”. Perdera-se

aparentemente uma oportunidade para operar uma reforma de fundo do modo de governação

comunitário, essencial ao alargamento que se avizinhava e imprescindível para reequilibrar o

triângulo institucional.

O relativo insucesso de Amesterdão colocou em cheque o próprio método de revisão

dos tratados – a CIG - que se sucedia a ritmo cada vez mais acelerado e produzia cada vez

menos resultados efectivos. Não obstante, uma nova conferência intergovernamental havia

ficado agendada. Inicialmente confinada aos chamados “left overs” de Amesterdão, a agenda

da nova CIG acabaria por se estender a outros domínios. Pela natureza das temáticas, as

discussões revelaram-se infrutíferas e as decisões foram adiadas até à última cimeira. Em

Nice, a Europa assistiu a uma luta exacerbada pelo poder entre “grandes” e “pequenos” que,

apelidada de “contas de mercearia”, fez recear pelo futuro do projecto europeu.

Nice foi, assim, talvez a maior desilusão dos últimos anos da integração europeia.

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Conclusão

Sendo o “Tratado possível”, esteve longe de operar a prometida reforma de fundo, limitando-

se a “desbloquear” o alargamento. Este é, sem dúvida, um sucesso (talvez o único deste

Tratado), mas a “factura” a pagar é elevada. A “maquilhagem” institucional operada por Nice

foi feita às custas do princípio fundamental da igualdade dos Estados-membros, deixando-os a

braços com um complexo desequilíbrio de poderes que dificilmente acrescerá alguma eficácia

à tomada de decisão.

Conscientes da necessidade de debater o futuro da União, os líderes europeus

agendaram para 2004305, uma nova conferência intergovernamental. O Tratado que se

esperava pudesse marcar o culminar de uma etapa na caminhada comunitária – a integração

política - passou a ser visto, antes, como o ponto de partida para uma fase decisiva que, se

bem sucedida, marcará o salto para um novo estádio da integração europeia. Podemos talvez

destacar nesta fase quatro grandes momentos: a Declaração respeitante ao futuro da União

(anexa ao Tratado de Nice); a Declaração de Laeken (de Dezembro de 2001); a Convenção

sobre o Futuro da Europa e a próxima conferência intergovernamental (que se apoiará nos

trabalhos da Convenção). O primeiro dos quatro, a Declaração respeitante ao futuro da

União, abriu a porta a um salto qualitativo da maior importância, ao reconhecer no seu ponto

3 a necessidade de um debate amplo e alargado sobre o futuro da União “que associe todas as

partes interessadas” (incluindo a sociedade civil). Foi dado, assim, um passo determinante

para evitar erros do passado, nomeadamente a notória falta de preparação das CIG’s

anteriores e, a ainda mais preocupante, ausência de envolvimento dos cidadãos nas reformas

comunitárias. A Declaração de Laeken veio, por sua vez, dar seguimento ao processo de

reflexão em curso; colocando um leque alargado de questões, dá o mote para uma reforma

profunda do sistema comunitário, preparada através de um método inovador - a convenção –

que havia já dado provas de eficácia aquando da redacção da Carta dos Direitos

305 Antecipada, posteriormente, para Outubro de 2003.

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

Fundamentais. Tendo como missão “assegurar uma preparação tão ampla e transparente

quanto possível da próxima conferência intergovernamental” coube-lhe ainda a árdua tarefa

de, decorrida a fase de estudo e debate, elaborar um projecto de tratado constitucional que,

juntamente com os resultados dos debates nacionais sobre o futuro da União, servirá de base

aos trabalhos dos líderes europeus que, na próxima CIG (Outubro de 2003), tomarão as

decisões finais. Os artigos apresentados foram objecto de inúmeras propostas de emenda,

deixando adivinhar a dificuldade de redigir um texto capaz de contentar simultaneamente

defensores e opositores de uma Europa de cariz federalizante. Esperamos, ainda assim, que a

constituição europeia possa, ao contrário do que aconteceu com o TUE, libertar-se desta

“guerra ideológica” que divide os Estados-membros e que fez daquele Tratado um exemplo

de sincretismo, mas não de uma desejável superação da tensão.

Pelo exposto é, pois, claro que a União se confronta, no pós-Nice, com a

inevitabilidade de uma escolha, como é sugerido, também, pela imagem de “encruzilhada”

usada recorrentemente em vários documentos oficiais. É chegada a hora de repensar os

objectivos da União e de racionalizar os seus meios. A dificuldade da tal tarefa é evidente,

sobretudo se pensarmos que tal implicará necessariamente um rearranjo da repartição de

poderes, não apenas entre Estados e a União, mas também no interior desta. Não partilhamos,

todavia, o pessimismo daqueles que vêem o projecto europeu como estando mergulhado numa

crise, parecendo-nos antes que, como sugeriu Lobo-Fernandes306, “os problemas da UE são,

na verdade, o resultado do seu sucesso”, diríamos mesmo, a prova dele. De facto, quanto mais

a União apresenta resultados (a concretização do euro é, apenas um exemplo possível)

maiores desafios terá que enfrentar, e maior a necessidade de adaptar o seu modo de

governação. O mesmo se passa, de resto, em relação aos sucessivos alargamentos,

simultaneamente explicados por, e explicativos de, um fenómeno de integração regional bem

306 Seminário “As Instituições da Nova Europa Democrática”, Universidade do Minho, 25 de Fevereiro de 2003.

- 181 -

Conclusão

sucedido307. O próprio défice de legitimidade308 da União (ou pelo menos a crescente

consciência dele) poderá encontrar justificação no progresso da empreitada comunitária.

Como notou Caporaso (2000, 42), quanto mais a UE se afasta da classificação de mera

organização internacional (se é que alguma vez o foi) mais central se torna a questão da

democracia. Trata-se, julgamos nós, de uma natural “transposição” das exigências de

“democraticidade” do nível nacional para o supra-nacional: o progressivo assumir pela União

de algumas das funções anteriormente da competência exclusiva dos Estados, não tendo sido

secundado por um proporcional aumento da participação política dos cidadãos na vida

comunitária, leva estes últimos a exigir das instituições comunitárias o mesmo nível de

responsabilização e controlo democrático exigido aos governos nacionais. É neste sentido,

aliás, que entendemos a crescente defesa de um governo europeu que, em nossa opinião, não

poderá ser, todavia, confundido com o de um Estado. Partilhamos, nesta matéria, da opinião

de Jean-Louis Quermonne (2002, 33) quando defende que a noção de governo não é

consubstancial à de estado soberano, depreendendo-se, portanto, que pode ser entendida fora

deste quadro309. No âmbito da Comunidade, parece-nos, que a passagem da “simples”

governação a um governo só poderá ser percepcionada como benéfica se houver uma

“comunitarização” da noção de governo, e não uma mera transposição do modelo estatal.

Como sublinha ainda Quermonne (2002, 33) “[S]i l’Union européenne n’est pas un Etat, elle

n’est pas davantage (...) une simple organisation internationale. Il convient donc de légitimer

épistémologiquement à son endroit l’usage du terme ‘gouvernement’, en surtout si l’on retient

l’acceptation de ‘gouvernement mixte’”, isto é, um governo alicerçado numa estrutura 307 Num seminário realizado na Universidade do Minho, Maria João Seabra considerou mesmo os alargamentos como sendo o exemplo flagrante do sucesso da política externa da UE. “As Instituições da Nova Europa Democrática”, Universidade do Minho, 25 de Fevereiro de 2003. 308 Como refere Stéphane Rodrigues (2001, 304), “[L]’UE est confrontée à un paradoxe grandissant: plus elle est présente dans les faits (…) moins elle semble présente dans les esprits”. 309 Como sublinha Mario Telò (2001, 13) “[T]he majority of international scientific publications has come to the conclusion that the EC and the EU are uniques cases of political systems, radically innovative in comparison to the classical institutional form of the nation State. The logical implication of this is that the government of the EU – the same remarks applies to its representation, democratic control, citizenship, and so on – cannot be analogous to the state models (…)” [ênfase nossa].

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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

institucional capaz de respeitar a dualidade das fontes de legitimidade da União. Julgamos, de

facto, que qualquer reforma do modo de actuação comunitário deverá ter como objectivo

principal o reforço da legitimidade democrática, só conseguida com um aumento da

participação (esclarecida) dos cidadãos na escolha dos seus representantes europeus310. Ora,

esta última estará, por sua vez, indissociavelmente ligada a uma “descomplexificação” do

processo de decisão e a uma clarificação do exercício de competências, não apenas entre os

Estados e a União, mas também entre as instituições comunitárias.

À medida que se esgota o tempo do debate, permanecem as dúvidas quanto ao estádio

de fusão que a União pretende atingir. Sabemos que não é ainda uma comunidade política,

pelo menos conforme caracterizada por Amitai Etzioni no seu Political Unification311. O

projecto de constituição apresentado pelo Praesidium à Convenção deixa cair a expressão

“uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa” que substitui pela afirmação

expressa de uma União alicerçada na “vontade dos povos e dos Estados da Europa de

construírem o seu futuro comum”. É, deste modo, reafirmado o carácter único da construção

comunitária - assente na dupla participação dos Estados e do povo – ao mesmo tempo que é

310 A propósito da necessidade de um maior envolvimento dos cidadãos na vida comunitária não poderíamos deixar de introduzir uma pequena nota sobre a participação indirecta. O aumento de poder da CE/UE foi secundado pelo desenvolvimento de uma vasta rede de grupos de interesse, lobbies e peritos que “gravitam” em torno das instituições comunitárias. A sociedade civil, se devidamente organizada, tem portanto nestas redes uma oportunidade privilegiada para fazer valer os seus interesses, até porque, como se sabe, a Comissão tem por hábito, enquanto desenvolve as suas propostas numa dada matéria, consultar lobbies especializados, organizados a nível europeu. A troca de informação continuada e estruturada entre estes grupos poderá, pois, constituir uma forma não negligenciável de participação (indirecta) dos cidadãos no dia-a-dia da construção europeia, sabendo-se que, como refere Sidjanski (2001, 72), parafraseando Alexis de Tocqueville, “[I]t is thus that a vast network of associations is woven which (...) forms the social infrastructure of democracy”. 311 Para Etzioni (1965, 4) uma “comunidade política” pressupõe três características: dispor de um controlo efectivo sobre o recurso aos meios de violência; possuir um centro de decisão capaz de afectar de maneira significativa a distribuição dos recursos e dos benefícios na comunidade; e, finalmente, constituir o principal centro de identificação política para a grande maioria dos cidadãos politicamente sensibilizados. Ora, como sabemos, a União Europeia apresenta um profundo desequilíbrio entre as três vertentes, estando a dimensão normativa (económica) consideravelmente mais desenvolvida que as outras duas. O grande desenvolvimento económico coroado pela criação de uma união económica e monetária é, aliás, uma realidade aparentemente paradoxal, pois, na maioria das experiências de integração a união política precedeu a criação de uma moeda única. Não admira, portanto, que H. Brugmans (citado em Sidjanski 2001, 44) considere que estamos perante “the federal process upside down”.

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Conclusão

indicado o lema que deve guiar a reconfiguração das instituições312. Em 1993, no pós-

Maastricht, Elfriede Regelsberger (1993, 87-90) apontava três possíveis cenários de evolução

da UE. O primeiro, que designava por status-quo-plus, era o pior cenário por permitir um

alargamento sem aprofundamento (teriam lugar apenas as alterações numéricas

indispensáveis). O segundo cenário - o federal/constitutional – radicalmente oposto ao

anterior, implicaria uma profunda transformação do sistema comunitário (“a profound

deepening”), para um bem sucedido alargamento. Com o aumento do número de membros

aumentaria também a necessidade de eficácia; por outro lado, a expansão das áreas de

intervenção da União ditariam a necessidade de maior controlo democrático. Esta autora

previu, na realidade, entre outras alterações, um reforço efectivo da co-decisão; a

metamorfose da Comissão num governo europeu (eleito pelo PE) e a transformação do

Conselho de Ministros numa câmara alta do Parlamento (em representação dos Estados),

evolução defendida igualmente por Robert Toulemon e Lobo-Fernandes313. Finalmente, o

terceiro e último cenário – o pragmático evolucionista – é uma espécie de “meio-termo” entre

os dois primeiros, pressupondo alargamentos selectivos (portanto, limitados), secundados por

uma estratégia de aprofundamento mais incremental (neste cenário a configuração

institucional mudaria de acordo com as necessidades de cada novo alargamento). Se até aqui 312 Qualquer que seja a reforma institucional deverá, portanto, reflectir esta condição dualista (união de Estados e de povos) reafirmada no projecto de Constituição. Neste sentido, a opção por um parlamento bicamarário parece ser aquela que melhor apreende esta dupla dimensão, embora consideremos a possibilidade de uma ponderação (por exemplo, na câmara da população) que previna as, em nossa opinião, indesejáveis “minorias de bloqueio” que perigam de “resvalar” para um directório europeu. 313 Segundo Toulemon (1998, 122) “[T]he future role of the Council must logically be to become an upper house of the Union’s Parliament (…) To those who are against any ‘reduction’ of today’s Council into a Council of States and upper chamber of the Parliament it should be pointed out that the states would retain, through the European Council – whose preeminent role nobody questions, the upper hand concerning the basic policy guidelines of the Union”. Ainda a propósito da provável evolução do projecto europeu Jacques Vandamme (1998, 151-152) escreveu: “[W]hether or not one believes that Economic and Monetary Union will necessarily lead to political Union, it is clear that monetary union will have important political and constitutional ramifications. If all of these elements are taken together (…) then in my opinion we are no longer very far from a federal model adapted to European reality. This model might be dubbed ‘federal union’ (…) The difference between the concept of a federal union and that of a federal state is that the creation of a federal state would involve the transfer of all the most important components of national sovereignty, with compulsory means of implementation at the level of the central authority (…) But it is not unthinkable. It is even, I would venture, predictable – in the longer term. We can – must - dream about future freedoms, but we most also live with the restraints of the present. We should be informed by the constitutional experiences of others but we do not need slavishly to follow them. Federal union is Europe’s own constitutional experiment” [ênfase no original].

- 184 -

A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?

temos assistido, sobretudo, a uma variação deste último cenário314, a fase actual da União

parece apontar para o segundo e mais ambicioso dos três – o federal/constitucional. De facto,

o processo de “constitucionalização” está em curso e a opção neofederal apresenta-se hoje,

pelo menos para alguns, como uma via racional para responder com eficácia aos

(imponderáveis) desafios com que os Estados europeus se confrontam actualmente315: “graças

à sua flexibilidade e adaptabilidade, o federalismo revela-se uma resposta eficaz às exigências

múltiplas da sociedade pós-industrial, do homem novo e da era pós-nacional” (Sidjanski

1996, 218). A concretizar-se, julgamos, estaria dado um passo assinalável para uma mutação

qualitativa do sistema internacional, até aqui definido pela centralidade do estado soberano.

Estarão os países membros e os cidadãos dispostos a tal?

Para concluir, apenas um última nota sobre a incerteza conceptual que rodeia o futuro

modelo político da UE. Estado federal, Federação de Estados-nação, Nova Confederação,

têm sido muitas as hipóteses de classificação aventadas para a nova Europa. Parece-nos,

todavia, que o debate semântico tem frequentemente feito perder de vista um princípio

crucial: tão importante como definir o que é a União é definir o que ela faz. Da Constituição

europeia espera-se, portanto, que explicite com clareza os princípios basilares, os objectivos e

as competências da UE, em suma, que permita aos cidadãos apreender claramente “para que

serve a União”316. Se conseguir, julgamos estar garantido o sucesso do projecto europeu, pois,

persuadimo-nos que hoje, como há meio século atrás, a União Europeia (qualquer que seja o 314 Ainda que sejamos tentados a integrar Nice, tomado isoladamente, no primeiro cenário. 315 Não poderíamos deixar de relembrar aqui a célebre profecia de Pierre-Joseph Proudhon que, em 1921, escrevia: “[O] século XX iniciará a era dos federalismos, ou a humanidade recomeçará um purgatório de mil anos” (P. J. Proudhon, citado em Sidjanski 1996, 195). Proudhon foi o primeiro a desenvolver um conceito global do federalismo, tendo a sua teoria de uma sociedade federalista servido de inspiração a um movimento desenvolvido nos anos trinta e conhecido actualmente como federalimo integral ou global. Refira-se, ainda que, como nota Ferdinand Kinski (1994, 81), a metodologia de Proudhon era identificada com uma “dialéctica aberta” que, contrariamente à síntese hegeliana (que suprime a tensão entre a tese e a antítese), mantém as polaridades: “[I]l n’est pas nécessaire de dissoudre les régions dans la nation ou les nations dans l’Europe unie. La ‘dialectique ouvert’ du fédéralisme n’est pas une philosophie du ‘ou – ou’, mais du ‘et – et’” [sublinhado nosso]. 316 Como sublinha Renaud Dehousse (2000, 200), parafraseando Joseph Weiler, “the EU cannot expect to receive the kind of emotional allegiance which derives from the sense of belonging to a community united by ethnic or linguisticties, as the later are notoriously absent at european level: it must demonstrate its usefulness day after day” [ênfase nossa].

- 185 -

Conclusão

rótulo escolhido) continua a configurar-se como a melhor forma de os Estados da Europa

alcançarem crescentes patamares de segurança e de prosperidade e, também, de alcançarem

uma democracia mais participativa.

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