Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

28
1 MEMORIAL DE MARIA MOURA: SÍMBOLO DE LIBERDADE E TRANSGRESSÃO FEMININA Keyle Sâmara Ferreira de Souza 1 RESUMO Este artigo apresenta Rachel de Queiroz como um marco na escrita feminina e mostra em seu romance Memorial de Maria Moura a representação de um mosaico de múltiplas faces da mulher sertaneja. Uma autora que atraiu a atenção dos leitores e críticos por várias décadas tanto na sua escritura jornalística quanto na literária. Em seu último romance, a protagonista Maria Moura, que vive no século XIX, é um símbolo da transgressão e da liberdade feminina. Esta personagem vem completar e afirmar as demais protagonistas rachelianas, na busca da autodescoberta de uma identidade feminina como um sujeito e não como um segundo sexo. Palavras-chave: Rachel de Queiroz, Escrita Feminina, Memorial de Maria Moura. ABSTRACT This article showing of Rachel de Queiroz what a mark in the ladylike writing and exposition in her novel Memorial de Maria Moura the representation a mosaic of multiples faces of islander woman. An author attracted the attention of the readers and critics for various decade much in the her journalistic writing how much in the literary. In her last novel the protagonist Maria Moura, what live in the 19th century, is a symbol of the ladylike of the transgression and liberality. This character goes complete and affirm the too protagonists rachelianas in the search of the self- discovery of a ladylike identity what a subject and not what a second sex/gender. 1 Graduada em Letras, Especialista em Planejamento Educacional(UNIVERSO), em Psicopedagogia Institucional(UNITINS-EADCON), em Gestão e Avaliação de Escolas Públicas (UFJF), e Literatura Portuguesa, Brasileira e Africana (URCA), Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Contato: [email protected].

Transcript of Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

Page 1: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

1

MEMORIAL DE MARIA MOURA: SÍMBOLO DE LIBERDADE E

TRANSGRESSÃO FEMININA

Keyle Sâmara Ferreira de Souza1

RESUMO

Este artigo apresenta Rachel de Queiroz como um marco na escrita feminina e mostra em seu romance Memorial de Maria Moura a representação de um mosaico de múltiplas faces da mulher sertaneja. Uma autora que atraiu a atenção dos leitores e críticos por várias décadas tanto na sua escritura jornalística quanto na literária. Em seu último romance, a protagonista Maria Moura, que vive no século XIX, é um símbolo da transgressão e da liberdade feminina. Esta personagem vem completar e afirmar as demais protagonistas rachelianas, na busca da autodescoberta de uma identidade feminina como um sujeito e não como um segundo sexo.

Palavras-chave: Rachel de Queiroz, Escrita Feminina, Memorial de Maria Moura.

ABSTRACT

This article showing of Rachel de Queiroz what a mark in the ladylike writing and exposition in her novel Memorial de Maria Moura the representation a mosaic of multiples faces of islander woman. An author attracted the attention of the readers and critics for various decade much in the her journalistic writing how much in the literary. In her last novel the protagonist Maria Moura, what live in the 19th century, is a symbol of the ladylike of the transgression and liberality. This character goes complete and affirm the too protagonists rachelianas in the search of the self-discovery of a ladylike identity what a subject and not what a second sex/gender.

Keywords: Rachel de Queiroz, ladylike writing, Memorial de Maria Moura.

INTRODUÇÃO

Rachel de Queiroz distribui seu talento por vários gêneros literários. A

escritora cearense, incentivada pelos pais Daniel de Queiroz e Clotilde Franklin de

Queiroz, era uma grande leitora o que colaborava para que ela fosse também uma

criativa escritora.

1Graduada em Letras, Especialista em Planejamento Educacional(UNIVERSO), em Psicopedagogia Institucional(UNITINS-EADCON), em Gestão e Avaliação de Escolas Públicas (UFJF), e Literatura Portuguesa, Brasileira e Africana (URCA), Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Contato: [email protected].

Page 2: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

2

Desde seus 16 anos Rachel publicava em jornais como O Ceará e O

Povo, e na revista semanal A Jandaia, crônicas e outros textos, que já evidenciavam

sua competência jornalística e literária.

A escrita enxuta, irônica diferenciava seus textos do estilo floreado e

cheio de exacerbações românticas atribuídas autoria feminina do início do século

XX, do estereótipo preconceituoso de uma escrita que atende a um “modelo-de-

comportamento que se considerava ideal à mulher” (COELHO, 1993, p. 14), ou seja,

a escrita feminina seria delicada, psicologicamente sutil, sensível, ingênua, afetiva e

frágil como se esperava que a mulher fosse.

A participação na imprensa ofereceu a mulher possibilidades de ir além

do espaço privado, partindo dele para o espaço público. A imprensa abriga grande

diversidade textual, a mulher sem abandonar as tarefas domésticas e a

maternidade, funções que lhes são impostas, pode escrever. Conforme Perrot

(1998) assinala que, embora sem poder algum, as mulheres conquistaram influência

através da palavra, expressa pela correspondência, pela literatura e pela imprensa.

Rachel em suas crônicas, como na maioria de seus romances dá

destaque ao gênero feminino, ao sertão e seus costumes, ao Ceará, à Quixadá, aos

aspectos da vida cotidiana que pelo seu olhar e escritura ganham status de obra de

arte. É interessante lembrar que a crônica é um gênero híbrido, que oscila entre o

jornalismo e a arte literária. Ela não militou nos movimentos feministas diretamente,

mas sempre expôs o universo feminino, a condição da mulher na sociedade e

reivindicou os direitos da mulher desde os primeiros textos.

Em todas as suas obras Rachel de Queiroz propõe uma busca pela

identidade feminina, mas não com base em teorias radicais e sim partindo do

universo das mulheres que querem se autodescobrir. Em Memorial de Maria Moura,

obra foco deste estudo é possível ver que Rachel ao longo de sua trajetória como

escritora procura expor o ponto de vista da mulher, e sua capacidade de se libertar,

de transgredir e de liderar numa sociedade e num tempo em que a mulher é

inferiorizada e marginalizada.

Este artigo busca fazer um estudo literário das relações de gênero para

reafirmar a qualidade e o valor da escrita feminina através da análise literária da

representação do feminino no último romance racheliano, como uma escritura de

valor que testemunha a emancipação da mulher, a construção de uma identidade

que busca não desconstruir o masculino, mas, conviver com ele de forma igualitária

Page 3: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

3

e fraterna. Assim como também, expõe o retrato da mulher sertaneja do século XIX

no romance Memorial de Maria Moura.

1MEMORIAL DE MARIA MOURA EM FOCO

Publicado em 1992, o romance Memorial de Maria Moura constrói-se

através de uma narração homodiegética. Assim, a história é contada por quem a

viveu, e o leitor se delicia com a mudança constante de ponto de vista: ora fala a

personagem Marialva, ora o Padre/Beato Romano, e, na maioria das vezes, a

própria Moura conversa com o leitor. É quase possível vê-la, na varanda da casa

forte chefiando sua cabroeira, recordando sua história.

Inicialmente, o romance tem três núcleos de ação: o de Maria Moura, dos

primos inimigos dela e o do Padre José Maria (Beato Romão). Posteriormente surge

o sub-núcleo Marialva e Valentim (e os parentes do casal). Os últimos capítulos são

narrados por Moura e pelo Beato que se joga numa aventura suicida com ela. Essa

multiplicidade de narradores, a narração em primeira pessoa, são características

que confirmam a modernidade do texto racheliano não só no plano do conteúdo,

mas também da forma, pois temos uma história contada a partir de várias

perspectivas.

Como o próprio título revela o romance em questão narra as memórias de

sua protagonista, mas não o faz somente pela voz de Maria Moura. A história da

menina, sinhazinha do século XIX, que se transforma em cangaceira, chefe de um

bando de jagunços, uma espécie de “Lampiona”, como a própria Rachel de Queiroz

afirma, é contada sobre vários pontos de vista. Com esta obra publicado pela editora

Siciliano Rachel recebeu prêmios importantes nacionais e internacionais, como o

“Prêmio Camões” e o “Prêmio Juca Pato”, ambos em 1993. O romance foi traduzido

para vários idiomas como o francês, em 1995, por Cécile Tricoire, Éditions Métailié.

Na obra Memorial de Maria Moura, Rachel de Queiroz adotou um estilo narrativo em que muitas sequências se encontram montadas à maneira de uma telenovela, cuja trama situa-se em meados de 1850, no sertão. Misturam-se na narrativa todas as forças e fraquezas, todas as virtudes e defeitos da condição humana, desde o amor ao ódio, desde o crime ao remorso, bem como do sagrado ao profano. Na obra são retomados alguns dos temas básicos de Rachel de Queiroz: o Nordeste problemático, a preocupação social, a força da autora como criadora de figuras femininas singulares e marcantes, capazes de viver além de seu tempo.

Page 4: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

4

É possível observar nas obras de Rachel de Queiroz a mistura de elementos nacionais e estrangeiros, apresentando valorosas contribuições tanto de uma cultura local, nordestina, quanto de uma externa, povoada de mitos e figuras estrangeiras.(ALMEIDA, p. 1-2)2

A obra é um compósito de individualidades que se apresentam em

quarenta e um capítulos narrados inicialmente por cinco personagens que também

nomeiam os capítulos: primeiro O Padre Zé Maria, que posteriormente aparecerá

como Beato Romano, a própria Maria Moura, a voz que predomina no romance e os

primos de Maria Moura (Tonho, Irineu e Marialva). Além da história de Maria Moura

se sobrepõe a história dos outros narradores, especialmente a de Marialva e do

Padre/Beato.

(...) Memorial de Maria Moura filia-se, sob certos aspectos, à narrativa que desenvolve um dos arquétipos mais difundidos da literatura universal: o tema da busca. Segundo Northrop Frye (1973), a forma perfeita da história romanesca é, claramente, a procura bem sucedida em seus três estádios principais: a jornada perigosa, a luta e o reconhecimento do herói. (...) O núcleo central da narrativa gira em torno de Maria Moura e de sua obstinada luta pelo poder, representado na posse da terra. A motivação conflitiva recai na disputa entre os primos pelas terras de Limoeiro. Outros conflitos são criados ao redor deste, mantendo com ele estreitas relações. (BARBOSA, 1999, p. 28)

Memorial de Maria Moura é o último romance publicado pela autora

cearense, e mesmo tendo a fábula situada em meados do século XIX, foi possível a

Rachel dar a heroína capacidade de criar estratégias de resistência diante das

desigualdades e injustiças econômicas, sociais e políticas que marcavam a vida das

mulheres da época, e assim, agir e viabilizar seu projeto de vida.

Como outras heroínas queirozianas, a Maria Moura do romance também sairá do lugar social reservado à mulher, e em especial, à moça solteira, que no final do século 19 teria como única saída o casamento. Órfã de pai e, depois, de mãe, trama o assassinato do padrasto para não lhe ceder às terras, sob a lógica “Ou ele ou eu”. Aos primos, que também querem tomar sua herança, Maria Moura lega uma casa incendiada. Nesse incêndio fica enterrada a Sinhazinha do Limoeiro, e dele nasce Maria Moura, uma espécie de donzela-guerreira (como bem a denominou Renato França), que funda uma nova sociedade em que representa a lei, que protege e que pune, no espaço da Casa Forte. (PERPÉTUA, 2008,p. 4)

2 No artigo que se encontra no endereço http://need.unemat.br/4_forum/artigos/terezinha.pdf não foi possível localizar data.

Page 5: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

5

Segundo Laile Ribeiro de Abreu (2011), em sua dissertação de Mestrado

Memorial de Maria Moura: percurso crítico e representação da memória, o último

romance racheliano foi um “texto aclamado pela crítica e um dos mais explorados

pela crítica acadêmica em dissertações e teses”. Abreu (2011, p. 24) destaca a

opinião do escritor e crítico Antônio Houaiss, que declara que Memorial de Maria

Moura é um texto que honraria a história da literatura brasileira, e ainda, evidencia a

“maestria no domínio do vocabulário e da sintaxe” em consonância com “uma

maestria psicológica que engrandece a natureza da criação”.

Houaiss chama a atenção para trabalho de Rachel na exploração da

linguagem regional, devido ao reduzido número de vocábulos regionalistas de que

dispõe para o manejo do texto, ele classifica essa habilidade da autora como

“arqueologia verbal”, afirmando que:

[...] é aí que o milagre [do] escritor se manifesta forte: Rachel consegue adequar cada situação mental de cada personagem a essa legitimação verbal arqueológica, dando, paralelamente, um viço quase inaugural não só às expressões dialogais diretas, senão que, sobretudo, às mencionadas nas passagens dos discursos indiretos aparentes (HOUAISS, 1992, p. 4-6).

Abreu (2011, p.24 - 25) também foca a crítica de Elsie Lessa, escritora e

cronista do jornal O Globo, que em 1992, ganhou da própria de Rachel a primeira

edição do Memorial. Lessa fez a leitura em uma viagem que fez a Portugal, e em

terras lusitanas escreveu e enviou ao Brasil uma crônica sobre o livro para o jornal

em que trabalhava, nesta elogoiou a linguagem, destacando a riqueza lexical e o

cuidado da autora na escolha de vocabulário tão sertanejo:

A colher-de-chá que a escritora dá aos dicionaristas [...] que o jeito era ler o Memorial de dicionário ao lado. Palavras reencontradas da minha infância paulista, mostrando que afinal tudo nos une mais que nos separa. (LESSA, 1992, p. 25).

Abreu (2011) enumera diversos críticas sobre o romance Memorial de

Maria Moura, das quais ainda será relevante destacar três: a que ocorre em Textos

e Contextos de Francisco Carvalho(1995), pois chama a atenção para dois pontos

interessantes: “a tradição resgatada pela autora na construção de Maria Moura e as

vozes discursivas que narram o texto” (CARVALHO, 1995, p. 94- 96); a de Mônica

Raissa Schpun (2002), em seu artigo Lé com lé, cré com cré? Fronteiras móveis e

Page 6: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

6

imutáveis em Memorial de Maria Moura traz uma comparação entre a Rainha

Elisabeth I, da Inglaterra (1533-1603), uma das três personalidades a quem Rachel

dedica à obra e Maria Moura; e a crítica de Lígia Chiappini (2002) em seu artigo

Rachel de Queiroz: invenção do Nordeste e muito mais, que é um dos maiores mais

importantes textos críticos para pesquisadores e pesquisadoras da obra de Rachel

de Queiroz.

Carvalho (1995) classifica a narrativa racheliana em estudo como

“engenhosa”, o crítico faz referência a técnica usada pela romancista, pois enriquece

“os conteúdos [narrados] com novas situações e novas possibilidades, dá mais

dinamismo e colorido ao romance e, ao mesmo tempo, impede que o curso da

história seja conduzido exclusivamente pela onisciência.

Para Chiappini (2002, p. 169) a personagem Maria Moura retrata

exatamente a realidade nordestina da época, meados do século XIX, por isso segue

a mesma linha das matriarcas que não assumiam uma relação amorosa, mas a

viviam clandestinamente, sempre com alguém cuja força e cujo poder fossem

inferiores aos delas. Maria Moura só não conta com o imprevisto de se apaixonar

por Cirino, tipo de homem que contraria as escolhas características das matriarcas.

Maria Moura era “Lampião de saias [...] apenas com o complicador da sua

ambiguidade masculino-feminino que vem à tona quando ela se apaixona pelo

homem que a trai e que um dia terá de matar”.

O levantamento crítico, aqui exposto, é apenas um recorte que tem o

objetivo de evidenciar a relevância de Rachel de Queiroz e da obra Memorial de

Maria Moura para a literatura e a crítica brasileira, mas é preciso ressaltar que a

obra racheliana tem grande viabilidade para pesquisa em variados níveis de

conhecimento e sob diversas óticas. Assim, o recorte da crítica aqui apresentado

prepara para discussão da questão norteadora desse trabalho que é literatura de

autoria feminina, assim como a representação do feminino no texto Memorial de

Maria Moura da escritora cearense.

2 A PRESENÇA DA MULHER NO ROMANCE MEMORIAL DE MARIA MOURA

Muitas são as personagens femininas na obra de Memorial de Maria

Moura, mulheres sertanejas com suas múltiplas faces. O texto racheliano como um

Page 7: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

7

todo é povoado pelas mulheres, especialmente as nordestinas, mulheres fortes em

luta contra a sua sina na sociedade patriarcal.

Costa (2002) inicia seu artigo Maria Moura, uma saga de poder, amor e

morte fazendo referência a outras personagens que representam a fortaleza da

mulher sertaneja em outras obras, como Luzia-Homem, Dona Guidinha do Poço,

com a protagonista do último romance de Rachel. Costa (2002, p.183) as define:

“Todas elas mulheres singulares, que ultrapassam os limites impostos à sua

condição de mulher, fortes na sua luta contra as relações de poder da ideologia

patriarcal.”

Rachel compõe um painel de diversas representações da mulher em seu

romance, a partir do título ela anuncia que o ponto de vista da obra é feminino, não

só no sentido de combate ao patriarcalismo, mas também na tentativa de construir a

identidade da mulher sujeito, que tem voz, que pensa, que decide. A autora também

apresenta outros perfis e até arquétipos femininos do sertão do século XIX.

Abreu (2011, p.18) descreve as personagens rachelianas: Suas

personagens femininas são mulheres incomuns, cujas posturas não coadunam com

a ordem patriarcal na qual estão inseridas. São avessas ao casamento e não veem

na instituição a resolução de seus problemas.

E quem é essa mulher do sertão nordestino? Falci (2000, p. 241) nos

apresenta retratos dessa mulher:

Mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres ou escravas do sertão. Não importa a categoria social: o feminino ultrapassa a barreira de classes. Ao nascerem, são chamadas “mininu fêmea”. A elas certos comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos, mas também viveram o seu tempo e o carregaram dentro delas.

As personagens de Rachel em Memorial Maria Moura partem de um

tempo e de um espaço delimitado, século XIX no sertão brasileiro, mas não estão

presas a estes, pois revivem a cada leitura e contribuem para a renovação das

relações de gênero. Operam na construção de um novo conceito de gênero, que

conforme Lauretis (1987, p. 209):

(...) a construção do gênero também se faz por meio de sua desconstrução, quer dizer em qualquer discurso, feminista ou não, que veja o gênero como uma representação ideológica falsa. O gênero, como o real, é não apenas o efeito da

Page 8: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

8

representação, mas também o seu excesso, aquilo que permanece fora do discurso como um trauma em potencial que, se /quando não contido pode romper ou desestabilizar qualquer representação.

Assim, por meio dos vários traumas que marcam as memórias de Maria

Moura desconstroem o conceito que a protagonista tem de relações de gênero, ela

não se sente mais à vontade na posição de mulher do século XIX e busca a

construção de uma nova relação em que ela não se submeta mais as vontades e

desmandos da sociedade patriarcal, em que ela realiza o sonho de ir além do

espaço privado do lar. “O mundo lá fora é grande e eu não conhecia nada para além

das extremas do nosso sítio. E tinha loucura por conhecer esse mundo.” (QUEIROZ,

2006, p. 65)

Esse fragmento não denota desapego da protagonista a sua terra, apenas

evidencia que, apesar do amor pela casa e pela terra do Limoeiro onde nasceu e se

criou, é latente o desejo e a necessidade de independência, de liberdade, o que leva

a ruptura do espaço, a partir da construção de um universo que permita o seu

crescimento, o sua satisfação e não sua submissão.

2.1 MARIA MOURA: UMA MULHER DONA DO SEU DESTINO

Maria Moura é como a maioria das protagonistas de Rachel um mosaico

de mulheres como ela própria afirma em uma entrevista concedida a Cadernos de

Literatura Brasileira publicado pelo Instituto Moreira Salles (1997, p. 22-39):

Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luíza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas era a Lampiona da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a Rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII. Li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de amiga íntima, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, pensei: ‘Essas mulheres se parecem de algum modo’. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios.

Page 9: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

9

Também é possível notar sua semelhança com a heroína Bárbara de

Alencar a célebre avó de José de Alencar, que ainda apresenta pelo lado materno

um parentesco com de Rachel. Era clara a admiração que a escritora sentia por esta

mulher que liderou junto com seu filho Tristão Gonçalves a Confederação do

Equador no Ceará. Há um poema escrito por Rachel, um dos dez da obra

Mandacaru (2010), em homenagem a Dona Bárbara Pereira de Alencar.

A vida da protagonista pode ser dividida em dois momentos: a sinhazinha,

filha de fazendeiro; e a chefe do bando de cangaceiros, Dona Moura. Maria Moura

perde o pai muito cedo e sua mãe “amiga-se”, ou seja, terá outro relacionamento

sem casar-se oficialmente, com Liberato.

A infância e a adolescência de Maria Moura são marcadas pela reclusão

no espaço privado do lar, o que é comum no século XIX:

Quando menina, ainda, saía pela mata com os moleques, matando passarinho de baladeira, pescando piaba no açudinho, usando como puçá o pano da saia. Mas, depois de moça, a gente fica presa dentro das quatro paredes de casa. O mais que saí é até o quintal para dar milho as galinhas, uma fugidinha ao roçado antes d sol quente, trazer maxixe ou melancia, umas vagens de feijão verde. O curral é proibido, vive cheio de homem. E ainda tem o touro, fazendo pouca vergonha com as vacas. Fica até feio moça ver aquilo.Restava ainda o banho de açude, tomado muito cedinho, a água ainda morna. Mas banho só naquela hora certa, que os homens respeitam. Já sabem que não podem chegar ao açude e aí de quem vai espiar. Por causa de banho de mulher já tem morrido muito rapaz adiantado, pela mão de um pai ou marido mais zeloso.Passeio na vila era ainda mais difícil, só mesmo nas festas da igreja. Mas nunca entrei numa dança – filha de fazendeiro não vai a samba de caboclo, nem mesmo baile de bodegueiro da vila. E na casa dos fazendeiros ricos, ninguém me convidava, depois que pai morreu, eu fiquei moça e Mãe caiu na boca do mundo. (QUEIROZ, 2006, p. 65)

Este fragmento retrata a condição da mulher em meados do século XIX.

Na adolescência Maria Moura também perde a mãe em suposto suicídio, pois o

padrasto insinua que matou a mãe por ela não ter assinado uma procuração para

que ele tivesse a posse das terras do Limoeiro.

O padrasto tenta se aproveitar da condição de órfã de Maria Moura,

primeiro ele a trata com carinhos paternais que aos poucos vão se transformando

em carícias ousadas até possuir sexualmente a menina. A partir dessa relação com

o padrasto percebe-se que Maria Moura começa a desconstruir o tabu em relação o

sexo.

Page 10: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

10

E eu só sei que nem cheguei bem a ter remorso, parecia tudo até natural. Durante o dia não transparecia nada, pelo menos era o que eu supunha. O que se passava durante a noite era uma espécie de mistério; como as coisas que a gente faz sonhando e não tem culpa. (QUEIROZ, 2006, p. 25)

A orfandade, característica comum das personagens femininas

rachelianas, e é marca importante nas memórias de Moura, é um fator

desencadeador da mudança de frágil sinhazinha para a cangaceira forte e temida.

A orfandade deixa marcas perceptíveis na narrativa, tornando-se, de certa forma, elemento propulsor de mudanças no desenrolar dos acontecimentos, contribuindo, assim, para uma maior autonomia das personagens, que se veem na obrigação de escolher seu próprio caminho. (BARBOSA, 1999, p. 20)

Soma-se a orfandade de Maria Moura, além do relacionamento e

ameaças do padrasto assino de sua mãe, a desavença com os “primos das Marias

Pretas”, Tonho e Irineu, por conta da herança de seus avós, a posse das terras do

Limoeiro. Esse é o grão de areia que faltava para a transformação de Moura:

Minha primeira ação tinha que ser de resistência. Eu juntava os meus cabras (...).Eu queria era assustar o Tonho. Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, pra homem como ele, só serve pra dar faniquito. Pois, comigo eles vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas NE retiro atirando. E deixo um estrago feito atrás de mim. Vou procurar as terras da Serra dos Padres – e lá pode ser pra mim outro começo de vida. Mas garantida por meus cabras. Pra ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar no armador de rede. Quem pensou nisso já morreu. (QUEIROZ, 2006, p. 45 - 46)

O assassinato de Liberato é o inicio da nova Maria Moura, ela trama e

envolve Jardilino, um caboclo da fazenda, Maria Moura nunca mata ela sempre

convence alguém à executar o crime por ela. Assim foi com Jardilino com a

promessa de casamento; com João Rufo, alegando que havia um homem tentando

invadir seu quarto pela janela à noite, para se livrar da cobrança da promessa feita a

Jardilino; e com Valentim, esposo de sua prima Marialva, persuadido pela ideia de

seu filho ser o herdeiro da fortuna de Moura mata Cirino. Em seus crimes havia

sempre uma justificativa baseada na lógica da autodefesa: “Era ou ele, ou eu”.

(QUEIROZ, 2006, p. 28)

Page 11: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

11

O rito de passagem de Maria Moura sinhazinha à Cangaceira, liberta-a do

julgo familiar, a personagem se traveste de homem, corta os cabelos – “A mulher, é

antes de tudo, uma imagem. (...) A mulher é feita de aparências.” (PERROT, 2007,

p. 49), o corpo e pilosidade marcam a diferença entre os sexos, a barba nos homens

e cabelos compridos para as mulheres era um traço do século XIX.

Eu levantei a mão avisando:- Vou prevenir a vocês: comigo é capaz de ser pior do que com cabo e sargento. Têm que me obedecer de olhos fechados. Têm que esquecer de eu sou mulher – para isso mesmo estou usando calças de homem.Bati no peito:- Aqui não tem mulher nenhuma, tem só o chefe de vocês. Se eu disse que atire, vocês atiram; se eu disser que morra é pra morrer. Quem desobedecer paga caro. Tão caro e tão depressa que não vai ter tempo nem para se arrepender.Não sei o que é que tinha na minha voz, na minha cara, mas eles concordaram, sem parar pra pensar. Aí eu me levantei do chão, pedi a faca de João Rufo, amolada feito navalha – puxei o meu cabelo que me descia pelas costas feito numa trança grossa; encostei o lado cego da faca na minha nuca e, de mecha em mecha, fui cortando o cabelo na altura do pescoço. ....................E eu desafiei:- Agora se acabou a Sinhazinha do Limoeiro. Quem está aqui é a Maria Moura, chefe de vocês, herdeira de uma data na sesmaria da Fidalga Brites, na Serra dos Padres. (QUEIROZ, 2006, p. 86 – 87)

É então possível comparar a protagonista ao molde da donzela guerreira,

porém existe um diferencial: Maria Moura não esconde sua identidade feminina

como ocorre com Diadorim, de Rosa. Ela se traveste para conquistar o poder

masculino.

Protótipo de mulher independente, destemida, dona de sua vontade, ela

representa a resistência frente as estruturas sociais, econômicas e políticas para

viabilizar seu projeto de vida, ter poder. A sua realização ocorre através do poder

econômico e social que se traduz no domínio de seus cabras, na construção do mito

da mulher temida e respeitada, e principalmente na posse de Terra e Ouro.

Segundo Langaro (2006, p. 39 -40) Maria Moura se masculiniza,

subvertendo sua feminilidade, para se autoafirmar na sociedade patriarcalista

oitocentista, ela usa o modelo masculino para transgredi-lo.

Page 12: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

12

Maria Moura resiste ao perfil de mulher do século XIX, ela opta

conscientemente pelo celibato, e afirma não ter vocação para maternidade, ou para

tarefas domésticas, o que reforça a transgressão dos códigos de comportamento do

sistema patriarcal.

“E eu, casamento, imagina, casamento, que loucura. Que casamento, e

logo com quem. Eu tinha que pensar era na minha herança;” (QUEIROZ, 2006, p.

35). Percebe-se aqui como a personagem repele enfaticamente a ideia de

casamento, acentuando que o matrimônio não fazia parte de seus propósitos.

Conforme Barbosa (1999, p. 45): “A personalidade independente da protagonista

não admite a ideia de ter que se submeter ao controle de alguém, muito menos de

um marido”.

Além do mais, eu tinha horror a casamento. Um homem mandando em mim, imagine; logo eu, acostumada desde anos a mandar em qualquer homem que me chegasse perto. Até com o Liberato, que era quem era – perigoso -, achei jeito de dar-lhe a última palavra.Um homem me governando, me dizendo - faça isso, faça aquilo, qual! Considerando também dele tudo que era meu, nem em sonho – ou pior, nem em pesadelo. E me usando na cama toda vez que lhe desse na veneta. Ah, isso também não. (QUEIROZ, 2006, p. 332)

Também é possível sentir que Moura não tinha aptidões com as tarefas

domésticas impostas a mulher: “Preciso demais de uma mulher pra botar ordem na

casa. Para isso não tenho jeito.” (QUEIROZ, 2006, p. 308). Moura entrega a Rubina,

mãe de Duarte, filho “bastardo” de seu tio Alexandre, pai de Tonho, Irineu e

Marialva.

Nesse contexto Maria Moura subverte uma das principais convenções do

século XIX: a família.

A família, no século XIX, representava a garantia da moralidade natural, fundada sob o casamento monogâmico estabelecido por acordo mútuo, onde as paixões eram contingentes e até perigosas, e o melhor casamento era o “casamento arranjado”. (MENDES, 2004, p. 21)

Dona Moura comanda com mão de ferro sua cabroeira, é um verdadeiro

regime militar, a casa forte é um quartel. Apesar dessa masculinização dessa

postura de comando a protagonista tem muito bem resolvida sua sexualidade, ela

admite sua necessidade sexual, tem um caso com Duarte, que a ama, mas não é

Page 13: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

13

correspondido. É Maria Moura que comanda a relação, é ela que “dá o sinal”, que

decide quando os dois se encontraram, sempre escondido, ou seja, ela é quem

decide quando o sexo lhe é conveniente, tem o domínio do seu corpo. Ela não

sofreu nenhum drama ao perder sua virgindade, viveu sem pudor o prazer sexual,

não admitido as mulheres de sua época, para quem o ato sexual deveria ter

somente a intenção de procriar.

Duarte entendeu logo que, comigo, tinha primeiro que tomar chegada, vir de mansinho, se sujeitando ao meu querer. Só na sombra da noite, no escuro do quarto, sem ninguém desconfiando de nós. (...) O fato é que, comigo, quando se tratasse de homem, tinha que ser sempre eu que dava o sinal. (QUEIROZ, 2006, p. 332 -333)

A chegada de Cirino na casa forte intensifica um conflito que acompanha

Maria Moura desde sua partida do Limoeiro: a conciliação de papéis diferentes, a

construção dessa do perfil da mulher transgressora, negando totalmente vinculação

de sua identidade como “mulher-macho” , ela é a mulher guerreira, que não quer se

casar, não pode e não se vê como mãe, não tem afinidade com as tarefas

domésticas. Ela se afirma como a mulher que pensa e que age livre do julgo

masculino, mas que se apaixona por Cirino. “Tudo era novidade para mim [...], eu

procurava disfarçar de todo mundo as fraquezas da Moura nova, fingindo a antiga

dureza, a da Moura de antes.” (QUEIROZ, 2006, p. 399) A paixão avassaladora por

Cirino promove o enfraquecimento temporário da heroína:

A mulher racional e dominadora de antes, aos poucos, perde o domínio de si mesma. Dá-se o enfraquecimento da heroína em função da subjetividade. Cirino todavia não demora a traí-la por dinheiro, minando a credibilidade da Casa Forte e, consequentemente pondo em risco todo o esforço de Moura. Tem início a luta da heroína consigo mesma, sob a forma de um profundo conflito entre razão e emoção, entre a “Moura objetiva” e a “Moura dominada pela paixão”, que serve de joguete nas mãos de Cirino e coloca em perigo seu meio de subsistência. (BARBOSA, 1999, p. 50)

A própria Casa Forte pode ser considerada como uma metáfora de

representação do feminino, da mulher forte que se traveste de homem para invadir

um espaço tipicamente masculino, o cangaço, em que a mulher até então era

apenas o outro. Maria Moura é o Um, ela decide, ela lidera, chefia.

Page 14: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

14

Essa transgressão e afirmação da mulher pode ser entendida a partir das

considerações de Simone Beauvoir, em sua obra O segundo sexo (1980) em que a

autora que a mulher é sempre o Outro, “o inessencial”, nunca o Um, “o essencial”.

Assim, Rachel em Memorial de Maria Moura consegue desconstruir essa

prerrogativa histórica que marca a mulher e ao mesmo tempo apresentar um novo

perfil feminino de mulher sujeito ativo e não passivo, a mulher que se constrói forte,

soberana como a Casa Forte.

Pode-se então comparar o “cubico”, quarto secreto no interior da Casa

Forte metaforicamente com o Coração de Maria Moura, pois lá ela esconde seus

maiores tesouros, lá ela prende Cirino, sua grande paixão, e a chave desse

esconderijo está sempre presa ao peito.

Desse modo, em busca de uma solução para o conflito, do equilíbrio

perdido, Moura arquiteta a morte do traidor, recupera a razão e a autoestima,

recompõe sua identidade. No final do romance a protagonista se reintegra, resolve

seus conflitos interiores, resiste a pressão social e decide viver sob suas

expectativas, não sucumbindo perante das convenções da sociedade. Comandando

seu bando em assalto arriscado - sucesso ou morte gloriosa – o que significa uma

nova Moura, uma nova vida, um reinício.

No romance Memorial de Maria Moura, Rachel de Queiroz então, transita

pelas três fases de Showalter: Maria sinhazinha, é a fase feminina, ela internaliza os

padrões vigentes; Dona Moura, chefe do bando de cangaceiros é a mulher que

protesta contra os padrões e valores dominantes em defesa, ela está na fase

feminista; e a nova Maria Moura que vive seus conflitos interiores para se

autodescobrir e definir sua verdadeira identidade, esta pode ser considerada como

exemplo da fase fêmea.

2.2 OUTROS PERFIS FEMININOS EM MEMORIAL DE MARIA MOURA

As mulheres na obra Memorial de Maria Moura são muitas. Mulheres

sertanejas de múltiplas faces. As mulheres da família Moura aparecem na obra não

só nas reminiscências da protagonista, pode-se destacar Marialva que também

participa do núcleo narrativo, a mãe de Maria Moura e a tia Lica, mãe da Marialva, a

Firma, esposa do Tonho.

Page 15: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

15

As memórias de Tonho e Irineu giram em torno da relação e do conflito

com a prima Maria Moura. As narrações dos primos ressaltam a rebeldia, a

transgressão das convenções das mulheres da família Moura: “Essas mulheres da

nossa família sempre foram escandalosas. (...) – É o mulherio da nossa raça parece

que nasceu com fogo no rabo. É mesmo raça de índia: não enjeita homem”

(QUEIROZ, 2006, p. 53).

Enquanto Maria Moura não suportou a ideia da submissão ao

autoritarismo masculino nem dos primos, nem do padrasto, nem de um suposto

marido, a Tia Lica, mãe de Tonho, Irineu e Marialva, pode ser um dos exemplos na

obra de mulher submissa. Tia Lica suportou viver ao lado da amante do Marido e do

filho dele com a negra Rubina, o Duarte.

Além de Rubina, escrava alforriada por ter engravidado do dono das

Marias Pretas, o tio Alexandre, outras negras aparecem no romance, como as

escravas de dona Bela. A mulher escrava em Memorial de Maria Moura também é

índia, como as cunhãs (Chiquinha e Zita) que serviam a Maria Moura, mesmo que

ela não gostasse de cativos, as índias eram vistas como seres inferiores, servis.

Nesse retrato há também Libânia, a escrava fugida que vai viver com Maria Moura

antes dela chegar à Serra dos Padres. Isso retrata a variedade de faces da mulher

escrava do sertão no século XIX: “E essa variedade de fisionomias se explica. As

escravas que chegarão ao sertão eram, originalmente, no início do século XIX,

provenientes de várias etnias e regiões”. (FALCI, 2000, p. 249)

Dona Bela é uma mulher que é apresentada ao leitor pelas memórias do

Padre/Beato, ela acreditando que o marido está morto apaixona-se pelo padre, o

seduz e engravida. O marido retorna, após a gravidez ser descoberta pela tia dele,

que o avisa, mata Bela e tenta matar o padre que se defende matando o marido

traído.

Dona Bela, Firma, Marialva, representam o perfil da mulher sertaneja

livre, mas é preciso ressaltar, conforme Falci (2000, p. 244) “que havia vários tipos

de mulheres não-escravas, podemos imaginar que, entre as fazendeiras ricas e as

pobres roceiras, as diferenças alimentares e de estilo de vida deixaram marcas

diferenciadas em suas fisionomias.” Roceiras pobres como Jove, a filha do homem

que havia se apossado das terras da Serra dos Padres.

Firma e Bela vivem o “casamento arranjado”, prática comum no século

XIX. Conforme Mendes (2001, p.21), acabava “levando, pela insatisfação, as

Page 16: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

16

mulheres a cometerem adultério”, como ocorre com Bela. Já Firma e Tonho vivem o

casamento infeliz em que ele, mesmo diante da do autoritarismo e ira da mulher,

também é adultero. “Com tanta rapariga que você arranja por aí, já devia ter feito um

filho, se pudesse” (QUEIROZ, 2006, p. 93). O adultério do homem é socialmente

aceito pela sociedade, enquanto a traição feminina, até 1830, podia até ser punida

com a morte tanto da mulher quanto do adultero. Apesar da amenização das

punições pelo Código Criminal de 1830, socialmente a mulher continua sendo

punida de forma desigual e violenta.

Marialva é a personagem que apresenta um perfil de mulher como

contraponto a Maria Moura. Fugiu de casa para viver seu amor com o saltimbanco

Valentim, mas casa-se antes de fugir. É submissa ao marido, pois aceita ser o alvo

no número do atirador de facas, mesmo com medo e contrariando sua verdadeira

vontade, fazendo tudo para agradar o marido. “Quando o suplício acabava, eu me

punha sempre a chorar, agarrada com o Xandó; por fortuna, Valentim não me via

assim, nem eu queria que ele visse.” (QUEIROZ, 2006, p. 354)

A Firma é o estereótipo de mulher mandona que domina o marido, sua

autoridade é confirmada por pelos no buço ou “bigode”, afinal o dito popular de que

“mulher de bigode nem o diabo pode” é muito representativo no sertão, em que se

percebe uma masculinização da mulher para justificar sua autonomia e força,

reforçada pela suposição de que ela também era estéril. A descrição de Firma sobre

os vários pontos de vista de Maria Moura e Irineu, respectivamente em (QUEIROZ,

2006):

(...) sempre ouvi dizer que a Firma o trazia de rédea curta. (p. 40)....................Aquela Firma não é mulher é uma onça. (...) ela bota aqueles olhos duro de gavião. Mulher de bigode, que é que se pode esperar? (p. 55)

No mosaico de mulheres de Memorial de Maria Moura, Dona Aldenora

mãe de Valentim é a mulher livre que trabalha, e que por conta da desilusão do

alcoolismo do marido, também começa beber e logo falece. Ainda se pode falar das

beatas, a tia e a mãe do marido de Dona Bela, a D. Lilita da loja que são

personagens tipo, vivem na igreja a falar e perturbar o padre, e rotineiramente falam

mal da vida alheia, julgam segundo “a moral e os bons costumes da época”. Estas

Page 17: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

17

personagens funcionam também como contrapontos que reforçam a atitude

transgressora de Maria Moura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rachel de Queiroz uma autora aclamada pela crítica e pelos leitores em

toda a sua obra, tanto na Literatura quanto no Jornalismo, representa um diferencial

que marca época. Ela abre caminhos para o reconhecimento da qualidade de uma

escrita feminina fora dos estereótipos até então atribuídos a literatura de autoria

feminina.

Em seus romances, crônicas, contos, textos dramáticos ela revela o

universo feminino a partir do ponto de vista de uma mulher e não sob os moldes de

uma sociedade patriarcal, ela (re)significa a capacidade e o talento das mulheres

para as letras. Nesse contexto, sua obra pode ser considerada, segundo Duarte

(2010) como marcos emblemáticos do processo de emancipação social da mulher

brasileira no século XX.

Em Memorial de Maria Moura, último romance publicado pela autora

cearense, ela retrata as múltiplas faces da mulher sertaneja do século XIX. Rachel

constrói sua protagonista como um símbolo de transgressão e liberdade feminina, de

forma que ela aparece como uma afirmação das suas demais protagonistas. A

mulher que não aceita a submissão e a inferioridade imposta a ela pela sociedade

patriarcal.

As demais mulheres que aparecem no romance compõem esse mosaico

tão complexo do mundo feminino, apresentando pontos de vista que se contradizem

e que acabam por reforçar a independência, a autonomia, a inteligência da mulher.

Mas, o discurso racheliano não apresenta esse perfil feminino de forma

ressentida ou combativa, e sim de forma natural, partindo de situações corriqueiras,

a partir do conhecimento do povo. A escrita enxuta e objetiva de Rachel é uma

característica perseguida pela autora, é parte do seu estilo único que passeia entre a

Literatura e o Jornalismo.

Rachel com Maria Moura alcança a fase fêmea, revela a identidade da

mulher capaz de viver de forma igualitária com o homem, ela apresenta uma mulher

sujeito, dona do seu destino e não um segundo sexo, vítima, ressentida, mas como

pessoa, ser capaz de construir e contar sua própria história.

Page 18: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

18

REFERÊNCIAS

ABREU, Laile Ribeiro. Memorial de Maria Moura: percurso crítico e representação de memória. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

_______. Rachel de Queiroz e sua escrita sertaneja. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

ACIOLI, Socorro. Rachel de Queiroz. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007.

ADONIAS FILHO. O romance brasileiro de 30. Rio de Janeiro: Bloch, 1969

ALMEIDA, Terezinha Ferreira de. Memorial de Maria Moura: a resistência feminina em terras de coronéis. Disponível em http://need.unemat.br/4_forum/artigos/terezinha.pdf. Acesso em 12/11/2011.

ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinho. 3. ed. São Paulo: Livraria Martins,1972.

ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. O sertão em surdina. In:________ (Org.). O guardadorde segredos. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010. p. 87-99.

BARBOSA, Maria de Lourdes Dias Leite. Protagonistas de Rachel de Queiroz: caminhos e descaminhos. São Paulo: Pontes, 1999.

BARROSO, Maria Alice. Rachel e a Linguagem. In Rachel de Queiroz: os oitenta. Homenagem à autora de O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

CADERNOS DE LITERTURA BRASILEIRA. Rachel de Queiroz. São Paulo: Instituto Moreira Salles, v.4, set. 1997

CARVALHO, Francisco. Textos e contextos. Fortaleza: Universidade Federal doCeará: Casa de José de Alencar, 1995.

CHIAPPINI, Lígia. Literatura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002.

COELHO, Nelly Novaes. A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.

COSTA, Maria Osana de Medeiros. Maria Moura, uma saga de poder, amor e morte.In: DUARTE, Constância Lima; DUARTE, Eduardo Assis; BEZERRA, Kátia da Costa(Org.). Gênero e representação na literatura brasileira. Belo Horizonte: Pós graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras/UFMG, 2002. v. 2. p.183-189.

COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Vol.6. 3ed. Rio de Janeiro: José Olympio. Niterói. UFF – Universidade Federal Fluminense, 1986.

Page 19: Artigo MEMORIAL de MM Corrigido

19

DUARTE, Eduardo de Assis. Classe e gênero no romance de Rachel de Queiroz. In: COUTINHO, Fernanda. Rachel de Queiroz: uma escrita no tempo- Ensaios. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2010. p. 123 – 132.

FALCI, Miridan Knox. Mulheres do sertão nordestino. In: PRIORI, Mary Del. Históriadas mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004. p. 241-275.

GUERELLUS, Natália de Santana. Rachel de Queiroz: Regra e Exceção (1910 a 1945). Niterói-RJ: Universidade Federal Fluminense, 2011.

HOUAISS, Antônio. Memorial de Maria Moura. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro,p. 4 - 6, 06 out. 1992.

LANGARO, Jerri Antônio. De Sinhazinha a Jagunça/ de Senhorinha a Senhora: uma leitura de Memorial de Maria Moura e Dôra, Doralina. 2006. 181 f. Dissertação(Mestrado em Letras) – Centro de Educação, Comunicação e Artes, UniversidadeEstadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2006.

LAURETIS, Teresa de. A Tecnologia do Gênero.In HOLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Tendências e impasses: O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LESSA, Elsie. Memorial de Maria Moura. O Globo, Rio de Janeiro, 16 nov. 1992.

MENDES, Algemira de Macêdo. A Imagem da Mulher na Obra de Amélia Beviláqua. Rio de Janeiro: Caetés, 2004.

PERPÉTUA, Elzira Divina. [Rachel de Queiroz]. Disponível em:<http://www.abralic.org.br/htm/congressos/anais-eventos.htm > Acesso em: 12. dez.2008.

QUEIROZ, Rachel. Mandacaru. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.

________. Memorial Maria Moura.18 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2006.

RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 8. ed. São Paulo:Record, 1980.

SCHUPUN, Mônica Raissa. Lé com lé, cré com cré? Fronteiras móveis e imutáveisem Memorial de Maria Moura. In: CHIAPPINI, Lígia. Literatura e cultura no Brasil:identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002. p.177 - 186.

ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In BONNICI, Thomas. ZOLIN, Lucia Osana (org.). Teoria Literária:Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. 3 ed. Maringá: Eduem, 2009.