Final Corrigido
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Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Geografia
Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana
Entre as runas do muro: a histria da geografia crtica sob a tica da ideia de estrutura
Verso corrigida
Breno Viotto Pedrosa
So Paulo
Julho de 2013
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Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Geografia
Programa de Ps-Graduao em Geografia Humana
Entre as runas do muro: a histria da geografia crtica sob a tica da ideia de estrutura
Verso corrigida
Breno Viotto Pedrosa
Orientador: Armen Mamigonian
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Geografia Humana do
Departamento da Faculdade de Filosofia,
L e t r a s e C i n c i a s H u m a n a s d a
Universidade de So Paulo para obteno
do ttulo de Doutor.
So Paulo
Julho de 2013
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Nome: PEDROSA, Breno Viotto
Ttulo: Entre as runas no muro: a histria da geografia crtica sob a tica da ideia de
estrutura
Tese apresentada Faculdade de Letras,
Filosofia e Cincias Humanas da Universidade
de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor
em Geografia Humana
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. __________________________Instituio: _________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________
Prof. Dr. __________________________Instituio: _________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________
Prof. Dr. __________________________Instituio: _________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________
Prof. Dr. __________________________Instituio: _________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________
Prof. Dr. __________________________Instituio: _________________________
Julgamento:_______________________ Assinatura:_________________________
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Para meus pais
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Resumo
Esta tese busca analisar a histria da geografia crtica na Frana e nos
Estados Unidos, principalmente atravs da concepo de estrutura. A partir de uma
compreenso preliminar dos gegrafos anarquistas do sculo XIX, seguimos para a
anlise do marxismo e do debate sobre o materialismo geogrfico entre geopolticos
e intrpretes do pensamento marxiano na geografia.
Aps a limitao da possibilidade histrica do desenvolvimento de uma
geografia de esquerda na Alemanha, nos voltamos para a anlise da geografia
francesa que interage com o marxismo devido resistncia ao nazismo e
necessidade de emancipar-se de algumas concepes do pensamento vidaliano.
Acompanhamos, ento, o rico desenvolvimento da geografia de esquerda
como as anlises de geografia urbana e econmica, assim como a introduo da
temtica do subdesenvolvimento.
A geografia de esquerda desacelera-se com a crise do marxismo e a
ascenso da nova geografia. Contudo, pouco tempo depois, o descrdito da
geografia quantitativa, o contexto mundial de lutas revolucionrias e os eventos de
maio de 68 fazem surgir a geografia crtica. No caso francs, exploramos as
relaes entre a geografia de esquerda e o surgimento da geografia crtica; para os
Estados Unidos, tentamos demonstrar como alguns de seus desenvolvimentos
originam-se da nova geografia quantitativa.
Atravs do estruturalismo althusseriano e os intelectuais que o atacaram,
surge o processo de transformao epistemolgica e de instituicionalizao em que
gegrafos outrora marginalizados comeam a integrar a academia e desfrutar de um
grande capital cultural. No entanto, a institucionalizao representa a normatizao e
a desradicalizao. A ascenso do ps-modernismo conjuntamente ao
esmorecimento do marxismo em mbito internacional faz com que o projeto da
geografia crtica altere-se profundamente, abrindo precedentes para a consolidao
cada vez mais intensa do ps-estruturalismo no final da dcada de 1980.
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Abstract
This thesis analyzes the history of critical geography in France and the United
States, primarily through the conception of the structure. Our approach will
preliminary understand the nineteenth-century anarchist geographers followed by the
analysis of marxisms rise and geographical materialism debate among geopoliticals
and interpreters of Marxian thought in geography.
After the impossibility to develop a left geography in Germany, we turn to the
analysis of French geography interacts with marxism tied to the resistance to nazism
and the need to emancipate itself from some conceptions of Vidal de la Blache
thought. We see the rich development of left geography in his urban and economic
analysis, as well in introducting the theme of underdevelopment.
The left geography decelerates with the crisis of marxism and the rise of new
geography. However, shortly after the discrediting of quantitative geography, the
global context of revolutionary struggles and the events of May 68 give rise to critical
geography. In the french case, we explore the relations between the left geography
and the emergence of critical geography, and explaning about United States we tried
to demonstrate how some of their new developments came from quantitative
geography.
Through the althusserian structuralism and his criticals is possible to see the
epistemological and institutional transformations in which geographers formerly
marginalized begin to integrate the university and enjoy a great cultural capital.
However, institutionalization is normalization and deradicalization. The insurgency of
postmodernism with the demise internationally marxism makes changes in critical
geography setting precedents for increasingly consolidation of post-structuralism in
the late 1980s.
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Agradecimentos
Durante os cincos anos de desenvolvimento desta tese tive a oportunidade de
conviver com muitas pessoas que enriqueceram as reflexes e permitiram um
grande crescimento pessoal. Agradeo primeiramente aos colegas e alunos da
Escola Municipal Olyntho Voltarelli e do Colgio Nossa Senhora de Sion. Lecionar
nos primeiros anos de pesquisa limitou o trabalho, em contrapartida me fez crescer
muito profissionalmente e pessoalmente. A atuao na escola aprimorou o manejo
da geografia como um todo, convocando para a responsabilidade da militncia das
ideias atravs da educao.
Agradeo tambm a todos os membros da rede Terra Brasilis de pesquisa em
histria do pensamento geogrfico, em especial pessoas que contriburam com
crticas s minhas reflexes iniciais e que oferecem um espao muito rico de debate.
Muito obrigado a Sergio Nunes, Rita de Cssia Anselmo, Letcia Parente, Rogata
Del Gaudio, Mariana Lamego, Perla Zusman, Larissa Lira, David Palcios e Paulo
Bomfim. Alm do exerccio intelectual, vocs todos ofereceram o afago terno da
amizade que espantou a solido e o isolamento nas fases mais difceis.
Existem trs professores na Universidade de So Paulo que desde o incio do
processo de pesquisa sempre me apoiaram e acolheram. lvio Martins, Manoel
Fernandes e Fbio Contel ajudaram-me muito, ensinaram coisas importantes e
sempre mostram-se dispostos a me auxiliar para enfrentar a burocracia universitria.
Eles tambm no hesitaram em declarar quando no estavam de acordo com
minhas concepes, o que me levou a fortalecer meus argumentos.
A convivncia do Laboplan foi outro elemento importante para mim. Agradeo
aos amigos Daniel Huertas, Jane Barbosa, Dhiego Medeiros, Fbio Tozzi, Paul
Clvilan, Mait Bertollo, Aline Santos, Jonatas Mendona, Villy Creuz, Fernando J.
Coscioni, Flvia Grimm e Rafael Xavier Pacchiega; e aos professores Ricardo
Mendes, Mara Monica Arroyo, Maria Adlia Aparecida de Souza, Mara Laura
Silveira e Antnio Alfredo Telles com quem pude aprender e conviver durante o
tempo de pesquisa. A ajuda de Iole Ilada Lopes tambm foi essencial para a
percepo de problemticas sobre o territrio. As conversas com Lidiane Soares
Rodrigues, mesmo quando a maior parte do trabalho j estava feita, foram
igualmente indispensveis para repensar muitos elementos que configuraram a tese.
Outro elemento fundamental foi o estgio de trs meses que realizei na cole
des Hautes tudes en Sciences Sociales, em Paris. Agradeo a recepo 7
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institucional de Marie-Vic Ozouf e pela ajuda de Marie-Claire Robic que apresentou-
me uma bibliografia que abriu novos horizontes de pesquisa. Agradeo ainda
Federico Ferretti e Joo Jeannine pela amizade e pelo companheirismo.
Desde de que comecei a trabalhar com o professor Armen tive um contato
maior com seus alunos. Apesar de todos estarem dispersos pelo Brasil, as ocasies
em que pudemos nos encontrar sempre foram importantes. Agradeo ao Lucas
Emerique, Lucas Ferreira, Melissa Giacomelli, Elias Jabbour, Carlos Espndola,
Antnio Toledo Gordo, Evandro Andaku, Marco Aurlio da Silva, Jos Messias
Bastos, Marta Luedemann, Domingos Svio Corra, Elias Jabbour e Tssia Castelli.
Agradeo ainda o sensei Morihiro Yamauchi, seu filho Jeremias S. Yamauchi e
Daniel G. Nozaki por terem me conduzido na prtica do karat. Sem a disciplina, a
determinao e o autocontrole adquiridos atravs de alguns anos de treinamento eu
certamente no conseguiria ter concludo este projeto. Agradeo ainda os amigos
Carlos Moreira Junior, Tiago F. Batista e Mauricio R. Cruz.
Finalmente existem algumas pessoas que me aconselharam, ouviram e
orientaram durante todo o percurso. Sem o apoio delas esta tese no teria se
realizado. A primeira pessoa minha me, Maria de Ftima Viotto, que passou
comigo todos momentos de dificuldade e alegria, acalmando meu esprito nos
momentos de desnimo. Ela me ensinou a viver, e mais recentemente legou-me os
segredos da profisso de professor que ela exerce h muitos anos. Agradeo ainda
meu pai, Joo B. Pedrosa que sempre estimulou minha vida intelectual e me
incentivou a seguir a carreira na universidade.
Agradeo a Ana Elisa Pereira, mais conhecida como Aninha do Laboplan.
Ela foi uma amiga muito leal que sempre esteve de braos e corao abertos para
apoiar-me diante dos mais diferentes percalos. Aninha sempre teve um bom
conselho e uma boa conversa para oferecer e sou muito grato a tudo. A ltima
pessoa meu orientador, o professor Armen Mamigonian. Basta pouco tempo de
convvio para conhecer sua generosidade, determinao, honestidade e seu esprito
aguerrido e provocador. Guardo na mente e nas anotaes boa parte de nossas
conversas que serviram-me como estmulos intensos para continuar a pesquisa e
focar-me em assuntos pouco explorados ou valorizados pelos gegrafos. Armen
mostrou-me vrios caminhos e deu liberdade para que eu fizesse minha prpria
trajetria; mas o mais importante que ele me ensinou a continuar lutando sempre.
Muito obrigado!
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Acrescento meu agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Cientfico e Tecnolgico (CNPq), que concedeu-me uma bolsa de estudos a partir de
agosto de 2011, e Bolsa de Mobilidade Internacional Santander, que possibilitou
meu estgio na Frana.
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ndice
Introduo 14
Parte I - Os antecedentes da geografia crtica 25
1.1 O anarquismo geogrfico de Reclus e Kropotkin 28
1.2 Plekhnov e a geografia 34
1.3 A relao entre marxismo, positivismo e darwinismo no incio do sculo
XX
37
1.4 Geografia, histria e marxismo: a sinergia de trs campos em busca de
uma base institucional
44
1.5 A geografia alem marxista: economia, geopoltica e materialismo
geogrfico
49
2.1 Os gegrafos de esquerda na Frana, um incio esquecido 64
2.2 A geografia no era to reacionria como dizem 70
2.3 As propostas da geografia de esquerda 77
2.4 O urbano e o rural 89
2.5 Geografia social, sociologia e populao 95
2.6 Planejamento, economia e geografia: da revoluo nacional ao
descongestionamento industrial
101
2.7 Planejamento, socialismo e geografia: apologia racionalidade
planificadora no contexto da guerra fria
108
2.8 A dialtica do relevo 112
2.9 A disseminao da geografia marxista entre os discpulos 114
3.1 1956: a crise do marxismo e seus desdobramentos 122
3.2 A nova geografia e o contexto da guerra fria nos Estados Unidos 130
3.3 Edgar Kant, Hgerstrand e a escola de Lund 136
3.4 O incio tardio da nova geografia na Frana e a reorganizao da
esquerda
140
3.5 Rochefort e a sntese ativa do planejamento 144
10
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3.6 A tentativa de neutralizao da geografia ativa 149
3.7 O subdesenvolvimento 155
3.8 Balano do perodo 157
Parte II - A inveno da geografia crtica 162
1.1 Maio de 1968 166
1.2 Maio de 1968 e a geografia 174
1.3 O surgimento da geografia crtica 178
1.4 Bunge, Harvey e a geografia do gueto 184
1.5 Da anlise urbana ao capitalismo mundial 191
2.1 O estruturalismo althusseriano 196
2.2 A crise da geografia 206
2.3 A confluncia de temas 211
2.4 Os novos peridicos e suas transformaes 217
2.5 A organizao categorial 229
2.6 A escola do regulacionismo 238
2.7 A crtica que se inicia na histria 247
2.8 A controvrsia Claval 251
3.1 A crise do pensamento marxista no incio da dcada de 1980 260
3.2 A teoria da estruturao e a volta ao regionalismo 265
3.3 O realismo filosfico 270
3.4 Os debates em meados da dcada de 1980 274
3.5 A geopoltica e o ps-modernismo 282
3.6 A consolidao da ps-modernidade 289
3.7 O ps-modernismo na geografia 297
3.8 A Escola de Los Angeles e o pensamento de Lefbvre 302
11
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3.9 Contragolpe e assimilao: reaes ps-modernidade 311
Concluso 319
Referncias bibliogrficas 330
ndice de quadros
Quadro 1 - Conjunto de artigos representativos publicados na revista La
Pense
116
Quadro 2 - Publicaes do grupo de gegrafos de esquerda no Congresso da
UGI realizado no Brasil em 1956
127
Quadro 3 - Esquema conceitual de H. Lefbvre 310
Quadro 4 - Concepes de Estrutura 319
Quadro 5 - Os gegrafos, temas e reas de pesquisa 320
Grfico 1 - Artigos de gegrafos ou temtica radial nos Anais da Associao
Americana de Gegrafos de 1970 a 1989
220
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A cincia s realiza progressos reais quando uma nova verdade j encontra um meio preparado para aceit-la
Kropotkin
13
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Introduo
A grande indagao que nos move no decorrer desta tese como se forma e
se altera a geografia crtica nos Estados Unidos e na Frana. Esse termo tem um
uso amplo que se apresenta muitas vezes de maneira ambgua, refletindo os
percalos de sua autodefinio enquanto campo de estudos e sua acepo atual
que abriga toda e qualquer geografia que realize algum tipo de crtica social. A
problemtica da definio da geografia crtica remete diretamente hiptese inicial
de nosso trabalho: remontando a um panorama inicial pouco discutido no ps-
guerra, ela tem caractersticas que se modificaram desde sua origem no incio da
dcada de 1970 tornando-se muito diferente no que diz respeito s agendas de
pesquisa, aos temas e referncias tericas mais utilizadas se compararmos com a
prtica de seus pesquisadores no final da dcada de 1980.
A dinmica de tais mudanas ser o tema central deste trabalho, entretanto
nosso fio condutor para analisar essa histria densa que envolve contextos
complexos e gegrafos de extensa produo ser a ideia de estrutura.
Queremos demonstrar que a concepo de estrutura pode ser utilizada para
compreender o desenvolvimento da geografia crtica, bem como das alteraes de
seu sentido e abrangncia. O itinerrio que seguiremos remete seguinte
periodizao: (1) o surgimento na Frana do ps-guerra de uma geografia de
esquerda, militante do partido comunista francs, que utilizou a ideia de estrutura
como ferramenta de anlise social; (2) fruto do pensamento questionador e radical
do movimento de maio de 1968 e da busca do pensamento alternativo ortodoxia,
vemos a ascenso da influncia do estruturalismo de Althusser na Frana e nos
Estados Unidos, paralelamente s tentativas de renovao da geografia baseadas
nos aportes do marxismo; (3) no incio da dcada de 1980 identificamos crticas
ideia de estrutura com grande presena e influncia do pensamento ps-
estruturalista e ps-moderno, resultando em um ecletismo metodolgico e
epistemolgico nesta cincia.
na ltima fase da periodizao que o rtulo geografia crtica abrigar uma
variedade maior de prticas e gegrafos ao contrrio do que ocorria no incio de sua
consolidao no campo das ideias, momento que o processo de renovao
ressaltava e enaltecia a ligao com o marxismo, o anarquismo e a preocupao
com a mudana social revolucionria no sentido clssico. Contudo, cabe esclarecer
que nosso referencial de geografia crtica evoca os intelectuais que tentaram renovar 14
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a disciplina a partir do marxismo; portanto, no transcurso desta tese ela se refere
ligao entre o campo disciplinar da geografia e a ampla tradio de ideias
conhecida por marxismo.
Quanto nossa abordagem metodolgica, optamos pela histria social das
ideias, ou seja, pela anlise do processo de institucionalizao da geografia crtica,
da formao das redes e grupos de pesquisa, das ideias que so transmitidas entre
as escolas nacionais, ou ainda da construo do reconhecimento e prestgio
cientfico da geografia crtica dentro da comunidade de gegrafos. Pretendemos
explorar a formao, as continuidades, descontinuidades e paralelismos do
pensamento geogrfico marxista dentro daquilo que Berdoulay (1981, p. 15-37)
chama de abordagem contextualista.
Berdoulay (1981, p. 9-16) demonstra como o contexto histrico est
relacionado com as intencionalidades dos grupos sociais e com o conhecimento que
produzido dentro das universidades. A cada poca as sucessivas geraes de
intelectuais do respostas ao contexto histrico mediante negociaes entre
sociedade e grupos de pesquisa. O resultado desse processo, a longo prazo, a
formao de coletivos cientficos hegemnicos aceitos e prestigiados socialmente,
em detrimento de outros que caem na marginalidade.
No podemos negar a forte impresso e inspirao que a obra de Franois
Dosse nos causou em todo o processo de pesquisa. Em um dos raros momentos em
que fala sobre seu mtodo diz que:
[a] histria intelectual, espremida entre as lgicas diacrnicas da histria das ideias e as lgicas sincrnicas das cartografias e recortes scio-culturais, uma rea incerta, um entroncamento entre a pluralidade das abordagens possveis e a vontade de retraar os contornos de uma histria global (DOSSE, 2004, p. 301).
Bourdieu (1984) em sua anlise sobre a sociologia da cincia ser outra
referncia fundamental, pois sua obra tenta compreender como se estabelecem e se
modificam os critrios de cientificidade, ou seja, como determinados grupos dentro
da universidade se organizam atravs das estratgias de ganho de prestgio e
15
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formam um capital cultural1, que concerne o reconhecimento social obtido por
cientistas atravs de sua prtica profissional. Bourdieu tambm nos fundamental
por tratar do processo de constituio da cincia enquanto prtica social:
A cincia nada mais pode fazer seno tentar estabelecer a verdade dessas lutas pela verdade, apreender a lgica objetiva segundo a qual se determinam as coisas em jogo e os campos, as estratgias e as vitrias, produzir representaes e instrumentos de pensamento que, com desiguais probabilidades de xito, aspiram universalizao, quer dizer, estrutura histrica do campo em que se geram e funcionam (BOURDIEU, 2010, p. 294).
A partir dessa abordagem, indagamos quais as estratgias da geografia
crtica para estabelecer-se como discurso universal no campo da geografia, quem
foram os responsveis pelo processo e ainda qual o apoio institucional que
possibilitou sua consolidao. Outro ponto importante investigar se ocorre o
surgimento de novos subcampos dentro da geografia durante esse processo. O
campo nada mais que:
(...) o universo no qual esto inseridos os agentes e as instituies que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a cincia. Esse universo um mundo social como os outros, mas obedece a leis sociais mais ou menos especficas (BOURDIEU, 2003, p. 20).
Quanto mais autnomo o campo, maior o poder de resistncia ou refrao
aos acontecimentos sociais dentro de um contexto histrico, assim como sua
capacidade de transfigurar as presses ou posies externas proporcional ao
poder de seus integrantes (BOURDIEU, 2003, p. 22-23). Isso nos encaminha para
um viso mais crtica acerca das demandas sociais, to debatidas na histria da
geografia, porque o campo pode internalizar discusses da sociedade e modificar-
se, mas ele tambm capaz de exteriorizar seus prprios debates para sociedade.
A estrutura do campo determinada pela distribuio do seu capital cientfico
em um determinado momento, porm este capital pode ser dividido em temporal e
epistemlogico ou ainda institucional e puro. O primeiro diz respeito ao poder
institucional (chefia de institutos, laboratrios, cargos de liderana nas associaes
16
1 Como nos coloca Bourdieu o capital cultural se originaria do trabalho pessoal do intelectual, como cursos, livros, manuais, dicionrios, enciclopdias. No entanto, ele permutvel entre grupos que comungam de as mesmas agendas de pesquisa ou objetos de estudo afins. O capital cultural contm uma dimenso poltica e dependeria da capacidade de divulgao das obras cientficas, de seu alcance e aceitabilidade de uma forma geral. Sinteticamente o poder dentro de uma instituio cultural implica em uma forma de autoridade propriamente cultural, um tipo de carisma de instituio (BOURDIEU, 1984, p. 128).
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de geografia) e o segundo refere-se a uma influncia cientfica per se, ou seja, o
reconhecimento social da prtica dentro do prprio campo (BOURDIEU, 2003,
24-29).
Como expe Bourdieu (2003, p. 29), a definio e a representao do campo
um assunto de eterna disputa entre a comunidade cientfica, e ns veremos que
isso se aplica muito bem para a geografia crtica. As regras do campo ou os critrios
de cientificidade consolidam-se com o prprio movimento do campo na sua prtica e
transformao histrica. As normas esto postas em um dado momento, mas esto
sempre sujeitas redefinies.
Cabe dizer ainda que no queremos fazer uma anlise individual, mas dos
grupos que se formaram e da movimentao das ideias no interior da comunidade
cientfica, mesmo que a trajetria individual seja extremamente relevante nesse
processo. O enfoque individual e isolado de cada pesquisador certamente iria nos
privar de uma viso de sntese.
Partiremos do pressuposto de que o desenvolvimento da geografia segue um
movimento anrquico, ou seja, que no se encaixa adequadamente em nenhum dos
modelos pr-estabelecidos (como os de Kuhn ou Lakatos). Isso deve-se, em parte,
pelo fato desses modelos de desenvolvimento serem pensados para cincias
naturais e fsicas. As cincias humanas seguem outras trajetrias agregando
elementos de outras cincias e ainda das artes e da filosofia. Essa postura foi
amplamente discutida por Claval (1998, p. 13) que fez uma recuperao das
abordagens para se fazer histria da cincia, e que acaba por adotar a postura
anrquica de Feyerabend mais aberta s mudanas histricas. No entanto, no
queremos que o movimento histrico anrquico caia em um vazio metodolgico e
historiogrfico, uma vez que optamos pela sociologia das ideias.
O enfoque nos paralelismos e o fato de explorarmos a geografia de esquerda
antes da geografia crtica busca desmistificar uma certa viso etapista e
evolucionista da disciplina. Na verdade, veremos que no campo geogrfico o
marxismo, a herana vidaliana, a nova geografia e o existencialismo oferecem ideias
fundamentais para o desenvolvimento ou a estagnao da disciplina.
17
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Quanto ao panorama histrico, buscamos adentrar nos meandros deste
contexto na medida em que forem relevantes para a compreenso do
desenvolvimento da geografia crtica. O risco de apoiar-se muito em contextos
histricos sem uma boa pesquisa documental pode eventualmente induzir relaes
falsas, como demonstra Claval:
O contexto no qual a pesquisa toma seu lugar indefinido: o que importante perceber so as utilizaes que os conhecimentos podero servir; existem necessidades que precisam ser satisfeitas, ou seja, uma demanda social (...) Suas preocupaes so motivadas pelas grandes questes de sua poca tanto quanto pelos problemas especificamente ligados ao espao. A curiosidade geogrfica muda segundo nossos interesses, sobretudo naquilo que pesa sobre o destino dos povos (...) (CLAVAL, 1984, p. 11)2.
No entanto, mesmo nos apoiando apenas nos contextos pertinentes ao
trabalho, ainda assim no estamos completamente livres das possibilidades de
falsas associaes:
Existe um perigo comum a toda histria das ideias: se preocupando somente da lgica profunda do pensamento, se negligncia algumas vezes os encadeamentos reais, e/ou supe as relaes onde no existe nada mais que o acaso, a justaposio ou a coincidncia (CLAVAL, 1972, p. 73)3.
Dito isso, novamente esclarecemos acerca da controvrsia ao redor da
geografia crtica: atualmente, existe uma ideia um tanto anacrnica no cenrio
internacional de que a geografia radical herdeira do marxismo engajado e que a
geografia crtica est prxima denncia e crtica social, distante da militncia
poltica, gerando, portanto, um conformismo (GINTRAC, 2012). Tal diferenciao
certamente soa estranha ao leitor brasileiro, que provavelmente toma os adjetivos
crtica e radical por sinnimos. Apontamos essa interpretao de diferena profunda
entre as duas geografias como anacrnica, porque no momento de surgimento e
ganho institucional acelerado, a geografia crtica ou radical era associada
predominantemente ao marxismo e de certa forma ao anarquismo muito distante
da crtica social pontual do ps-estruturalismo, que estava ainda em processo de
consolidao nos intercmbios entre Frana e Estados Unidos.
18
2 Traduo nossa. Apenas na primeira citao de cada texto indicaremos caso a traduo seja nossa.
3 Traduo nossa.
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Em um dicionrio de geografia encontramos a seguinte definio: Embora
no exista uma distino radical a ser elaborada entre as duas, a geografia crtica
apresenta-se atualmente mais difusa, menos institucionalizada, mais teoricamente
ecltica e, alguns argumentam, menos focada politicamente (JOHNSTON et al.,
2008, p. 127)4. O termo crtica, que pode remeter ao sentido de raiz ou origem
dentro da tradio filosfica alem a partir de Kant, tornou-se cada vez mais prximo
das ideias ps-estruturalistas, principalmente no ltimo perodo que delimitamos.
Admitir que a geografia crtica una ou idntica em todos pases no
corresponde realidade. Desejamos evidenciar que embora as chamadas escolas
nacionais no esgotam seu contedo e sua originalidade, a influncia e a
transmisso de conhecimento pelo mundo tm repercusses profundas dentro dos
contextos locais. Desejamos justamente elucidar os debates do centro do sistema
mundial (EUA e Frana) que se propagaram pelo mundo e acabaram pautando ou
influenciando as geografias nacionais. Dessa forma, cremos que a ideia de estrutura
foi um vetor importante do debate transmitido pelo mundo, como o caso do
marxismo althusseriano com fortes desdobramentos na Amrica Latina com
consequncias importantes dentro da geografia.
Poder-se-ia pensar tambm que esse trabalho busca classificar os mais e os
menos marxistas, aqueles que gozam de uma pureza terica, metodolgica e
poltica. No esse o nosso objetivo, pois queremos entender o processo de como a
geografia marxista ligada aos partidos e lutas polticas se institucionalizou, perdeu
algumas de suas antigas caractersticas e metamorfoseou-se em outras
denominaes.
Elucidamos que nosso interesse recai nas leituras que os gegrafos fizeram
de suas referncias metodolgicas de autores tais como Marx, Althusser, Lefbvre
e no um retorno aos clssicos em busca de alguma espcie de interpretao
verdadeira olvidada pelos percursores do debate marxista na geografia. Isso no
nos impedir de consultar essas referncias maiores, porm no temos o objetivo de
fazer proposies epistemolgicas profundas a partir do balano entre as
interpretaes passadas e as novas leituras possveis.
Diante do exposto, poderamos encarar as relaes entre marxismo e
geografia de duas maneiras. A primeira delas fazer como Quaini (2002), em sua
clebre obra Marxismo e Geografia que buscou a presena de um contedo
194 Traduo nossa.
-
geogrfico em algumas produes de Marx. Oliveira (1982, p. 67) criticou esse
preciosismo ou corporativismo disciplinar que muitas vezes faz cair numa iluso de
ausncia do debate geogrfico no marxismo. Adotamos a mesma posio de
Oliveira, porque Quaini tem um escopo limitado ao jargo disciplinar sem ressaltar
os processos sociais e histricos analisados em O Capital, A ideologia alem, dentre
outros trabalhos que apresentam carter eminentemente geogrfico. Portanto, para
compreender o capitalismo de sua poca, Marx e Engels tiveram que mobilizar
categorias, variveis e conceitos prprios da geografia de forma consciente ou
inconsciente. Basta lembrar a discusso sobre renda e valor da terra nos fins dO
capital, ou ento a anlise do imperialismo ingls e suas relaes coloniais.
No por acaso, um peridico especializado em artigos sobre a biografia e
produo dos gegrafos publicou um texto sobre Marx. Discute-se o papel dado ao
determinismo ambiental e o poder das tcnicas em enfraquecer o meio ambiente, o
modo de produo asitico e a eventual ausncia da anlise da questo espacial no
pensamento de Marx; este ltimo aspecto uma grande querela que molestou a
geografia durante bastante tempo (SHAW, 2000, p. 79-82). Contudo, Shaw (2000, p.
82) conclui taxativamente o impacto do mtodo marxiano, particularmente na
anlise do espao econmico urbano e na geografia do desenvolvimento desigual,
foi enorme.
O mesmo ocorre com os que do continuidade tradio marxista. A
discusso do imperialismo feita por Lnin, Bukharin e Rosa Luxemburgo, a anlise
sobre a questo agrria de Kautsky, ou mesmo Walter Benjamin em seus escritos
sobre a Paris do final do sculo XIX revelam a perspectiva geogrfica. Sendo assim,
a segunda maneira de encarar a relao entre o marxismo e a geografia
justamente alargar o escopo de anlise levando em considerao essas relaes
ora mais tnues, ora mais explcitas. Apesar do marxismo ter uma grande
pluralidade inerente ao seu desenvolvimento, importante ver sua continuidade
como tradio:
E, decerto, a extraordinria influncia de Marx sobre o conjunto da histria da humanidade no pode ser separada do fato de que ele redefiniu radicalmente a filosofia, vendo-a como o empreendimento coletivo ao qual muitas geraes trazem a sua contribuio, em correspondncia com as exigncias e as possibilidades de sua situao. Nesse sentido, em vista de uma radical reorientao de toda a estrutura do conhecimento como um grande empreendimento coletivo, pode existir apenas o marxismo e no os marxismos: esses representam especificaes scio-polticas que tm em comum a mesma orientao de base, e faz parte do esprito da nova concepo do mundo o fato de que deve encontrar sua articulao atravs
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de contnuas redefinies e inovaes, a partir do momento em que as condies do seu desenvolvimento ulterior alteram-se, de modo significativo, com a histria e com o progresso do conhecimento (MSZROS, 1983, p. 170).
Existem heterogeneidades dentro do prprio marxismo, mas fica clara a
nfase em seu carter unificador, pois independentemente das correntes
interpretativas existe um ponto de partida comum para todas as tendncias.
Devemos atentar para o fato de que Mszros no est falando dos partidos ou das
correntes polticas, mas do conhecimento como um grande empreendimento
coletivo, que constitui uma herana compartilhada por vrias geraes. De fato,
existem diversas correntes tericas dentro do prprio marxismo, e mesmo que
alguns privilegiem certas categorias em detrimento de outras, persiste um conjunto
de problemticas delimitadas tradicionalmente em vrias obras de Marx e Engels.
Esse o fio condutor que legitima a constituio dessa heterogeneidade sob apenas
uma tradio de pensamento, apesar das disputas polticas que surgiram entre as
correntes polticas do marxismo.
No entanto, as heterogeneidades sociopolticas ou mesmo interpretativas no
podem ser arrasadas pela ideia de um s marxismo e por isso admitimos
marxismos. Os vrios marxismos esto uns mais prximos, outros mais distantes,
porm com o mesmo conjunto de categorias de anlise e um contexto filosfico mais
ou menos semelhante. Contudo, nosso objeto de estudo ainda se relaciona com o
ps-marxismo, e no tocante a isto acreditamos existir uma ruptura e um
deslocamento do campo historicamente consolidado, mesmo que ele se insira na
interpretao de muitos no espectro poltico da esquerda.
Uma diviso clssica que est presente em todo trabalho o de marxismo
ocidental e oriental. Trabalharemos melhor essa diferenciao no decorrer de nosso
estudo, mas inicialmente cabe destacar que o termo marxismo ocidental pode ser
atribudo a Karl Korsch muitos anos antes da popularizao do estudo de Perry Anderson. Korsch utilizou a expresso para referir-se s correntes crticas Unio Sovitica e apesar dele no der dado muita importncia classificao, anos mais tarde, Merleau-Ponty a utiliza para separar-se do marxismo ortodoxo e ao mesmo tempo valorizar as razes weberianas do jovem Lukcs (THERBORN, 2012, p. 74).
A prxis outro problema que se impe com o fenmeno do pesquisador
militante ativamente poltico que utiliza o seu conhecimento da realidade concreta
como fora transformadora do mundo. Dessa maneira, do ponto de vista da
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classificao do conhecimento seria uma contradio separar teoria e prtica no
marxismo. No entanto, na realidade observamos com frequncia, no marxismo
ocidental, uma separao da prxis ou uma minimizao e empobrecimento da ao
poltica direta com um direcionamento para a filosofia.
Antes de falar sobre a geografia crtica, precisamos explorar o hiato na prxis
entre a investigao da realidade e a ao poltica. Basta lembrar que nem sempre
os partidos polticos ou organizaes sindicais esto diretamente ligadas ao
conhecimento marxista gerado pelos intelectuais e nem os sindicalistas esto
prximos do fazer terico. Outro elemento que indica esse fato a possibilidade de
se utilizar do marxismo sem ser politicamente marxista. Oliveira (1982, p. 70) e
Anderson (2004, p. 130-157) apontam para essa separao entre teoria social e
prtica, o que revela uma tradio das ideias cientficas e uma poltica que
inicialmente caminharam juntas, mas que atualmente esto tendencialmente
separadas, ou seja, por vezes se tocam e comumente se distanciam. Apesar desse
quadro, pensamos que apenas as posturas dos intelectuais guardam em si um
contedo poltico e podem apresentar-se como ao efetiva de luta poltica. A
poltica das ideias ou das disputas pelas vises de mundo e interpretaes
cientficas tm vrias consequncias no mbito da academia, em eventualmente, no
Estado e na sociedade.
Contudo, esse hiato no acompanhou o marxismo desde suas origens, pois
surge em um processo de transio que vai da Revoluo de 1917 at aps a
Segunda Guerra Mundial, perodo em que absorvido com fora pelas
universidades e ser institucionalizado. Ao mesmo tempo em que surgem os
intelectuais marxistas da academia, existe um intercmbio maior entre a
universidade e o pensamento marxista devido ao poder ideolgico da ascenso da
Unio Sovitica como sistema social alternativo planejado e supostamente mais
justo, baseado no socialismo cientfico. Podemos dizer que essa ciso entre teoria e
prtica tem como uma de suas consequncias a fragilizao do compromisso
poltico, como aponta Anderson (2004, p. 130-157). Assim, de um lado temos o
marxismo ocidental mais ligado filosofia, e de outro o marxismo sovitico, que
relaciona-se com a poltica em sua dimenso prtica.
Esse paradoxo acompanha-nos durante todo o percuso, pois no caso francs
uma parte importante da gerao de gegrafos ligados ao partido comunista francs
deixa de atuar aps a invaso da Hungria em 1956, enquanto nos Estados Unidos,
22
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onde no h uma grande tradio de partidos comunistas, o marxismo desenvolve-
se mais ligado filosofia do que prtica poltica.
Poder-se-ia pensar ento que houve uma grande fragmentao ou que
existiram vrias geografias crticas, entretanto, os gegrafos utilizaram muitas fontes
em comum, o que marca a formao de determinados nichos ou grupos de pesquisa
dentro do campo, influenciados pelos partidos polticos no caso francs e por ideias
esquerdistas nos Estados Unidos. Cabe refletir adiante como as referncias em
comum participam da renovao da geografia e da formao de seus subcampos.
Veremos que o movimento inicial o surgimento da geografia social, da
populao e econmica com Pierre George. Temos a institucionalizao de
subcampos que buscaram pensar o modelo sovitico de desenvolvimento e o
processo de industrializao no ps-guerra, e mais recentemente a introduo do
debate de gnero, classe social e raa alguns anos antes de 1989. Isso demonstra a
reestruturao do campo de estudos da geografia, seja atravs da criao de novos
subcampos, seja atravs de seu remodelamento.
Como nos aponta Bourdieu (1984, p. 74), cada grupo de pesquisa ligado a um
objeto de pesquisa ou campo de estudo apresenta determinados critrios de
cientificidade especficos. No entanto, os critrios de cientificidade, o vocabulrio e
at mesmo os hbitos das cincias naturais desfrutam de uma hegemonia dentro
das universidades. Ou seja, eles tentam se estabelecer como referncia nica,
homogeneizando os critrios de outros campos para assim gozar de um maior
prestgio perante a sociedade e aos grupos dentro da academia. Possuem um maior
capital cultural e uma maior capacidade de distino social, podendo portanto
afirmar-se como verdade. A geografia por ser uma cincia tanto natural, quanto
social sofre diante deste paradoxo, mas a geografia crtica tentar afirmar a
geografia como cincia exclusivamente social.
Um outro elemento importante que nosso objetivo, ao classificar os autores
ou vincul-los determinadas tradies de pensamento, no o de simplificar ou
rotular suas ideias. Ao contrrio, o que desejamos tentar discutir e apontar qual a
posio de cada autor dentro do campo, lembrando que suas escolhas refletem uma
postura poltica que permite vislumbrar sua concepo de mundo e projeto
intelectual.
Como veremos adiante, na disputa entre cincias naturais e sociais no
complexo quadro do marxismo do incio do sculo XX identifica-se um perodo em
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que as cincias naturais e o darwinismo polarizam grande parte do pensamento
social, o que cria uma relao tensa entre a viso romntica de cincia de Marx e o
positivismo naturalizante que permeia o pensamento de Engels.
Feitas essas ressalvas iniciais, seguiremos a forma de exposio sugerida
pela periodizao mencionada acima. Na primeira parte do trabalho exploraremos
minimamente o pensamento anarquista geogrfico do final do sculo XIX, a
interpretao marxista do materialismo geogrfico atravs do pensamento
ratzeliano, e o quadro universitrio francs que foi influenciado pelo marxismo e pelo
partido comunista. Veremos que essa situao, mesmo em um perodo de crise e
descrena no marxismo, forneceu subsdios para o surgimento da geografia crtica,
inserindo temas de pesquisa novos se comparados aos da agenda de pesquisa
vidaliana. Ao mesmo tempo, no mundo anglo-saxo, em meados do sculo XX, a
ascenso da nova geografia causa uma mudana na viso da organizao
disciplinar. Contudo, a quase ausncia de crtica social faz com que os gegrafos
reflitam sobre suas prticas, as contradies sociais e os efeitos de suas aes na
sociedade. Notemos que nos dois casos a presena de uma geografia aplicada aos
problemas sociais constitui uma fora motriz importante para as transformaes da
geografia.
Na segunda parte de nossa argumentao exploraremos os dois ltimos
perodos propostos: o momento de institucionalizao da geografia crtica, em que
de uma forma geral o marxismo e o estruturalismo tm grande fora nos debates; e
a crescente crtica ao estruturalismo e seus desdobramentos iniciais, como, por
exemplo, a escola da regulao, a teoria da estruturao de A. Giddens ou o
realismo filosfico de Bhaskar. Defendemos que essas crticas so parcialmente
responsveis pela hegemonia do ps-modernismo. No possvel compreender a
ascenso da geografia ps-moderna e seu impacto no pensamento marxista
resultando no ecletismo metodolgico e em novas posies acerca do mtodo e da
filosofia do conhecimento sem compreender o longo antecedente de trocas entre o
pensamento francs ps-moderno e a crtica literria norte-americana. De forma
gradativa, essa matriz filosfica migra do campo literrio para as cincias sociais e,
no que nos diz respeito, para a geografia.
Cabe esclarecer que cada captulo desta tese foi pensado para ser uma
unidade mais ou menos independente e coerente, o que pode, em certas ocasies,
causar a repetio de algumas informaes.
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Parte I - Os antecedentes da geografia crtica
No possvel ignorar que o pensamento de crtica social, oriundo do
socialismo, como o anarquismo e o marxismo no final do sculo XIX, produziram
trabalhos de temtica geogrfica que tiveram um significativo impacto social.
Kropotkin, Reclus e Plekhnov, para citar os mais clebres, influenciaram muitos
pensadores posteriores. Buscaremos analisar minimamente aspectos do
pensamento desses autores para tentar balizar sua contribuio na geografia.
Encontraremos posies muito discrepantes: enquanto Stlin, por exemplo, pauta-se
em Reclus para reivindicar uma posio oficial do partido comunista acerca do
determinismo geogrfico, Jean Dresch tem uma certa averso ao pensamento
reclusiano devido ao uso exacerbado da estatstica.
Com o objetivo de mostrar a continuidade e descontinuidade da tradio
crtica, antes de analisarmos as condies da geografia francesa, faremos uma
rpida incurso na geografia alem mais precisamente na figura de Wittfogel e o
debate do que ficou conhecido como materialismo geogrfico. Sua obra de suma
importncia para a crtica da geopoltica e para a conformao da discusso sobre o
modo de produo asitico. Com a irrupo nazista e o boicote da Unio Sovitica,
as condies concretas para o desenvolvimento de uma geografia inspirada pelo
marxismo afloram na Frana, onde a militincia poltica contra o fascismo, o nazismo
e o anticolonialimo sero fatores chave para o enlace dos intelectuais no entre
guerras e no final da Segunda Guerra Mundial. Alis, a vitria da Unio Sovitica no
conflito mundial contribuiu para que muitas pessoas ao redor do mundo
demonstrassem simpatia ao socialismo real.
Adiante veremos que a geografia francesa, gestada pelo marxismo com
origem na tradio regional vidaliana, institucionaliza-se articulando mestres e
discpulos militantes ou simpticos esquerda em grupos de pesquisa e de
solidariedade. No momento do ps-guerra, a preocupao ser com a modernizao
da disciplina frente aos temas tradicionais do aparato vidaliano.
Entretanto, paulatinamente, durante a guerra fria o socialismo real vai
perdendo o prestgio acumulado na vitria contra o nazismo, e outros focos de luta
revolucionria surgem alargando a reflexo sobre a revoluo ou sobre a construo
do socialismo. Figuras importantes da geografia francesa se afastaro gradualmente
da rbita sovitica. Como evento fundamental do processo de retrao do marxismo
ortodoxo escolhemos o surgimento da geografia ativa, pois alguns anos aps sua 25
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publicao e impulsionada pelo pensamento radical de maio de 1968 surgiria a
geografia crtica como proposta tardia de constituio do conhecimento geogrfico
sob a base marxista.
Dentro do campo da histria do pensamento geogrfico existe um consenso
de que a geografia crtica teve seu incio em fins da dcada de 1960 e comeo da
dcada de 1970 com o incio de publicaes importantes como Antipode e
Hrodote. No entanto, no podemos ignorar que durante grande parte do transcurso
da geografia moderna houve uma latncia do marxismo.
A mobilizao consciente ou inconsciente de categorias geogrficas no vasto
horizonte de temas englobados pela disciplina foi explorado na obra de Marx e
Engels. Contudo, no tocante formao de Marx, em sua juventude, no podemos
deixar de indicar que ele foi aluno do gegrafo Karl Ritter5, fato que influenciou seu
pensamento como indica Pierre Vilar:
Ser oportuno partir de Marx estudante. Numa atmosfera universitria impregnada de hegelianismo, mas onde Hegel, apesar de tudo, j pertencia ao passado, jamais foi estabelecido com exatido o que o jovem Marx acolheu ou rechaou das lies recebidas menos indiretamente: as de um Ritter, de um Savigny. Os que enxergam em Marx, antes de mais nada, um determinista, puderam sugerir que o determinismo geogrfico de Ritter no foi alheio a sua formao. Parece-me suprfulo afirmar que no existe nele um determinismo econmico; e que mais estranho a seu pensamento do que as tentativas que se realizaram hoje no sentido de reduzir, mediante um jogo matemtico, a implantao humana s condies do espao. Decerto, Marx jamais deixa de recordar a presena, na base de toda histria e de toda economia, das condies geolgicas, orogrficas, hidrogrficas, climticas, etc.; como j Hegel havia feito, precisando que toda historiografia (Geschichtsschreibung) deve partir dessas bases naturais e de sua modificao pelos homens no curso da histria (Geschichte). Antes de poder fazer a histria (...) o homem deve se confrontar com certas condies. Esse apelo evidncia ser retomado com frequncia no interior de uma teoria de conjunto, na qual a capacidade de domnio do homem sobre a natureza o critrio de fundo. A natureza no impe, j que a tcnica capaz mais dia, menos dia de venc-la. Mas, a cada nvel alcanado, a natureza dentro de certos limites a precisar pro-pe ou o-pe (VILAR, 1983, p. 92-93).
Vilar nos contempla com uma interessante reflexo sobre a relao entre o
homem e o meio no cerne do pensamento marxiano, delimitando-o fora da esfera de
um total determinismo geogrfico. O leitor atento de A ideologia alem poder
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5 Outro momento interessante foi quando em 1845 Marx encontra-se com Alexander von Humboldt. Marx publica declaraes polmicas sobre a aristocracia alem na revista Vrwarts! e o Rei Lus Felipe da Frana envia Humboldt pessoalmente para entregar a Karl Marx um vaso de porcelana e uma carta do Rei Guilherme IV protestando contra os insultos (WHEEN, 2001, p. 89-90). Um fato pouco conhecido que Humboldt foi simpatizante da revoluo de 1848 posicionando-se a favor da unificao da Alemanha, das liberdades polticas e do desmantelamento do Estado feudal. Quando suas cartas vieram a pblico causaram grande escndalo nos meios aristocrticos (RUPKE, 2005, p. 337-339).
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acompanhar a dmarche de sua postura prometica pautada na razo e na tcnica
distante do determinismo geogrfico. Contudo, poucos gegrafos buscaram explorar
o papel de Ritter na formao de Marx.
possvel ainda perceber a analogia do pensamento marxiano ao uso
tecnolgico e evoluo. A tecnologia ganha um sentido amplo envolvendo
ferramentas, diviso do trabalho, mquinas e torna-se extenso do corpo humano,
complementa a vida social, domina a natureza e produz riqueza. A natureza
humaniza-se e o homem se naturaliza, mas o aprofundamento do uso tecnolgico
aliena o trabalho. A prpria tcnica, portanto, deve ser libertada das contradies
capitalistas (GRUNDMANN, 1991, p. 139-140). A analogia da evoluo natural
comparada com a tecnolgica ou econmica, ou a da acumulao do
desenvolvimento histrico como camadas da geologia, ou ainda dos ciclos
econmicos e da queda tendencial da taxa de lucros com os movimentos mecnicos
e astrofsicos so algumas metforas naturalizantes presentes na obra de Marx
(GRUNDMANN, 1991, p. 140 e 205). Esse tipo de metfora ter vida longa na
geografia, mas enquanto no nosso campo disciplinar elas acomodam-se sem grande
polmicas, no marxismo sero alvo de frequentes debates em diversos contextos e
momentos histricos.
Os meados do sculo XIX foram bero do nascimento e consolidao do
marxismo impulsionado em parte pela experincia da Comuna de Paris e pela
organizao da Primeira Internacional. Foi nessa arena que Marx debateria com
anarquistas, entre eles Bakunin e seu colega gegrafo lise Reclus, que tambm
havia sido aluno de seu mestre Ritter.
Esse foi um perodo de franca expanso da geografia, conhecimento
direcionado para a dominao e explorao das terras distantes da Europa. A
consolidao da influncia do pensamento de Darwin representou a possibilidade de
uma gnese atia e racional do homem e do mundo, alm de fortificar os critrios
cientficos das cincias naturais (GOULD, 1997, p. 10-25), mas criou ideologias que
muitas vezes justificaram a dominao colonial. O grande sucesso e
desenvolvimento da biologia sob a gide do esprito darwiniano acaba por polarizar
as cincias do homem. Engels, Reclus, Ratzel, para citar alguns, alam o
darwinismo como um referencial cientfico de peso para suas obras.
27
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1.1 O anarquismo geogrfico de Reclus e Kropotkin
Comecemos por lise Reclus (1830-1905) gegrafo francs que utiliza o
arcabouo metodolgico do darwinismo, anarquista e militante de esquerda.
Reclus luta na Comuna de Paris e apesar de sua obra repercutir entre a classe
popular e a intelectualidade da poca obter reconhecimento institucional no campo
de forma generalizada somente no final de sua vida (CAPEL, 1988, p. 301). Um de
seus principais discpulos foi Patrick Geddes, ligado a Le Play, um importante
concorrente de Vidal de la Blache no nvel institucional e epistemolgico na Frana.
Alm de Darwin e a adoo da ideia de cooperao para o desenvolvimento
da humanidade, outro autor importante Karl Ritter. Reclus foi seu discpulo e torna-
se divulgador de suas ideias na Frana, principalmente no tocante ao mtodo
comparativo. Para Capel, a obra de Reclus claramente evolucionista devido a sua
inspirao naturalista (CAPEL, 1988, p. 300-302), porm a teleologia da evoluo
remete ideia clebre de que o homem a natureza ganhando conscincia de si, o
que ilustra claramente a busca humana da harmonia com a natureza atravs do
trabalho e da organizao social, ambos elementos primordiais para seu o
melhoramento.
Outra influncia importante na obra de Reclus o anarquista russo Mikhail
Bakunin. Eles encontram-se em 1864, o que faz com que Reclus se torne
anarquista, contra o Estado e enfatizando a libertao individual (ANDRADE, 1985,
p. 15). Alinhado com o colega russo na Primeira Internacional estabelece uma ntida
oposio a Marx. No entanto, na sua geografia vemos a utilizao de termos como
luta de classes e a busca por leis de evoluo social a partir do seu referencial
anarquista organizao social e conscientizao popular, por exemplo.
Crtico da ecologia, Reclus despreza o uso exacerbado do termo dialtica por
consider-lo inacessvel ao grande pblico, mas inaugura uma anlise da sociedade
e do meio ambiente que leva em conta as relao dos diversos elementos visveis e
invisveis da paisagem. A dialtica de Reclus se inspira em Vico, por exemplo, a
partir da concepo que um progresso significa tambm um regresso e em
Proudhon que destaca os pares em equilbrio instvel sem que necessariamente se
crie uma sntese (PELLETIER, 2009, p. 33).
Ao invs de ecologia, Reclus opta pelo uso do termo mesologia (msologie,
no original), pois a ideia de meio epistemologicamente e ontologicamente mais 28
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apropriada (...) como combinao do homem e da natureza e, como harmonia
secreta (PELLETIER, 2009, p. 112). Essa escolha no em vo, j que Haeckel e
seus discpulos eclogos valorizavam a concorrncia em detrimento da cooperao.
A obra de Reclus nos oferece uma srie de metforas naturalizantes e
organicistas, mas para Pelletier (2009, p. 42 e 116) elas servem mais como uma
figura de estilo do que uma fundamentao do processo de explicao. Nesse
sentido, existe uma ligao importante entre a esttica e a tica no seu pensamento
que busca traar a relao harmoniosa com a natureza e sua transformao ao
invs de um fetichismo conservacionista, que concebe a natureza como algo
intocvel. Assim o anarquismo engaja-se em uma viso de mundo prtica que busca
criticar, analisar e reorganizar a sociedade e a geografia apresentando uma posio
dialtica que tende a um antropocentrismo sem arrogncia, humilde mas
voluntarista (PELLETIER, 2009, p. 164).
Atravs de Rousseau, pensa o desenvolvimento desigual entre os povos ou
ainda o papel da natureza na sociedade, como demonstra Horacio Capel:
Existem tendncias naturais ao aparecimento de certas configuraes polticas, como a fragmentao da Europa ou a criao de vastas unidades na sia, e tambm o relevo que explica o fracionamento dos povos e a apario de entidades polticas peculiares, tais como a cidade grega (CAPEL, 1988, p. 303)6.
Na geografia de Reclus, ainda aparecem como temas:
(...) o problema da explorao defeituosa da terra como resultado da estrutura social da propriedade ou da explorao; o tema da colonizao e o imperialismo europeu; a incidncia do mercado mundial na atividade e vida dos produtores; a situao dos recursos terrestres, que ele considera suficientes para alimentar a populao mundial (CAPEL, 1988, p. 305).
Andrade (1985, p. 10-12) divide a obra de Reclus em dois sentidos: o da
prtica poltica anarquista, e o cientfico associado ao conhecimento geogrfico.
Contudo, devemos atentar para o fato dessa diviso no ser muito rgida, porque
Reclus ganha a vida publicando livros e materiais para a editora Hachette aps
sofrer uma srie de consequncias pessoais causadas pela sua militncia poltica -
como sua priso devido a participao da Comuna de Paris. Apesar de Andrade
apontar esse aspecto, cremos que a faceta de militante anarquista sempre
acompanhou o gegrafo e a sua viso de mundo.
296 Traduo nossa.
-
Reclus utiliza o termo geografia social, que teria similitudes ao que atualmente
se chama geografia humana, contudo, o adjetivo social remonta a necessidade de
uma organizao socialista da sociedade. Na virada o sculo o dilogo entre os
socialistas e os anarquistas era intenso (PELLETIER, 2009, p. 36).
Segundo Andrade (1985, p. 20) pode-se destacar trs fundamentos bsicos
da geografia de Reclus: (1) o desenvolvimento desigual dos indivduos resulta nas
classes sociais; (2) o sistema desigual est em equilbrio, mas pode entrar em crise
pela luta dos oprimidos; e (3) nenhuma evoluo positiva pode ocorrer sem o
esforo do indivduo. A evoluo seria a formao de uma sociedade mais livre
(ANDRADE, 1985, p. 20) atravs da conscincia individual, pois para Reclus (2002,
p. 24-27) a ideia de revoluo est relacionada de evoluo. Essa ilao remete a
Herder e influncia do pensamento alemo em sua geografia, sendo a revoluo
uma mudana qualitativa causada pela evoluo.
Ao no se considerar a postura anarquista e humanista de Reclus,
impossvel interpretar sua opinio sobre a colonizao da Arglia. A dualidade
acerca do colonialismo desaparece quando analisamos as diversas crticas que o
gegrafo fez ao colonialismo britnico e francs. O termo colonizao no sculo XIX,
como demonstra Ferretti (2013, p. 3), expressava qualquer tipo de migrao
europeia para outros continentes. Isso significava a possibilidade da colonizao
anarquista e socialista em outros pases, de forma a respeitar os nativos e em um
ambiente longe das estruturas sociais tradicionais da Europa. Reclus condena
veementemente os crimes coloniais, bem como o isolamento das novas colnias
anarquistas. Para Ferretti:
(...) a ideia de explorao de possibilidades agrcolas no Norte da frica pela colonizao de trabalhadores europeus no foi incoerente com o pensamento socialista (em um tempo em que concepes como anti-colonialismo ou a teoria do imperialismo eram desconhecidas), nem incoerente com a ideia de Reclus acerca da unidade histrica e cultural da bacia do mediterrneo (FERRETTI, 2013, p. 8).
Reclus que leu Saint-Simon na juventude acreditava nas sociedades
organizadas racionalmente pela colonizao e desprezava as fronteiras nacionais
artificiais que tolhem a liberdade dos homens de se mover e habitar.
Independentemente disso, veremos adiante que somente no ps-guerra que a
esquerda francesa toma posturas mais radicais no que diz respeito aos movimentos
de descolonizao. A mentalidade de que a colonizao traz melhorias uma
30
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espcie de fardo civilizatrio um fenmeno de longa durao da poltica
francesa. Talvez derive da a controvrsia ao redor de sua postura sobre a Arglia.
Devido sua militncia poltica e suas sucessivas viagens atravs do mundo,
Reclus consegue articular uma rede de colaboradores que enviam informaes e
materiais que contribuem para a feitura de sua Geografia universal. Alm disso, ele
contou com materiais de viagem da Sociedade Francesa de Geografia para realizar
sua obra maior sobre a geografia do mundo.
Durante seu exlio na Sua, por exemplo, poderamos elencar a ligao com
Charles Perron, parceiro de trabalhos cartogrficos e com os russos P. Kropotkin o
qual abordaremos abaixo e L. Metchnikoff, autor de A civilizao e os grande rios
histricos, de 1889, obra que influenciar o pensamento de Plekhnov e Wittfogel.
Enquanto Kropotkin escreveria os artigos sobre o Extremo Oriente e sobre a Sibria
na coleo Gographie universelle, Reclus faria o prefcio de seu livro A conquista
do po e organizaria uma coletnea com seus textos publicados na revista La
Rvolte. Entretanto, mesmo distante do mbito institucional acadmico, Reclus
consegue renome como cientista e insere-se no final de sua vida na Universidade
Livre de Bruxelas.
muito interessante a confluncia de temas entre Engels e Reclus: ambos
escrevem obras sobre a origem da famlia, o problema do xodo rural e sobre as
condies urbanas (ANDRADE, 1985, p. 32). Alm disso, Reclus no fica parte
dos debates da esquerda, pois na sua obra esto presentes reflexes sobre a
traio da Revoluo Francesa, o caso Dreyfus7, a lei de Bronze dos salrios8 e o
arcasmo da igreja (RECLUS, 2002, p. 24-27). Esses encontros de temticas
mostram que anarquistas e marxistas compartilhavam e atuavam na mesma arena
de discusso de ideias.
Se em um momento inicial de sua trajetria, devido ao contato com Bakunin,
Reclus tem uma postura mais individualista, aos poucos vai absorvendo e
agregando a cooperao como componente da organizao social. Aproxima-se do
31
7 O caso Dreyfus refere-se a um capito do exrcito francs que foi acusado de traio sem provas concretas. O que fomentou seu caso foi o fato de Dreyfus ser judeu e de supostamente ser traidor da ptria francesa, pois no teria o mesmo lao nacional dos outros franceses. O caso Dreyfus relevou o anti-semitismo que permeava a sociedade francesa e acabou por revelar a face chauvinista da direita francesa.
8 A lei de bronze do salrio foi uma teoria da economia poltica que repercutiu muito entre o movimento operrio e a burguesia, tendo influncia nas leis de diminuio das horas de trabalho. Um economista da poca afirmou que o patro s ganhava o lucro do trabalho na ltima hora de trabalho dos operrios e que se o governo ingls a diminusse da jornada, as fbricas no se sustentariam. Marx, no livro I dO Capital demonstrou o carter falacioso da lei de bronze.
-
romantismo e do bucolismo agrrio em parte devido sua relao com Kropotkin
(ANDRADE, 1985, p. 82), propondo o anarquismo como varivel universal
independente das formaes nacionais (RECLUS, 2002, p. 27). O bucolismo e
certamente este no o melhor termo para definir a viso dos anarquistas era
uma soluo para superao da dicotomia entre campo e cidade.
Piotr Kropotkin (1842-1921) , por sua vez, egresso da nobreza russa e adota
o iderio anarquista como viso de mundo. Devido atividade subversiva, Kropotkin
(2007, p. 5) exilado da Rssia em 1876 e s consegue retornar em 1917 com 75
anos de idade. Sua perspectiva dentro do anarquismo de crtica ao individualismo
de Bakunin e Proudhon, bem como de captao da ao poltica feita pelos partidos
comunistas ou social-democratas por toda Europa (KROPOTKIN, 2007, p. 6).
Foi um grande crtico do Estado, uma vez que seu poder tolheria a ao local
de auto-organizao da sociedade. Os grupos sociais viveriam sua plenitude na
comuna rural ou urbana, e o Estado significaria a dissoluo dessas escalas de
organizao mais funcionais. Sua instaurao antecede a morte da civilizao em
um movimento contraditrio que a fortalece ao mesmo tempo em que causa sua
destruio. Essa crtica encaminha para uma apologia da livre iniciativa, da liberdade
individual e da organizao poltica local, tendo sempre em vista a cooperao social
(KROPOTKIN, 2000, p. 92-93).
Embora as concepes polticas de Kropotkin dialogassem de alguma forma
com o leninismo, ele se revolta com o fechamento da DUMA, a comisso destinada
criao da constituio, e com o tratamento dado aos camponeses durante a
guerra civil. Depois de 1917, prximo do fim de sua vida, Kropotkin no assume
nenhum cargo na Unio Sovitica, mas continua dando sua contribuio para
revoluo tendo acesso a Lnin e queixando-se, por exemplo, do uso de castigos
corporais no campo (SHUB, 1953, p. 228-232).
Kropotkin (2007, p. 7) admitia que a revoluo seria feita por um pequeno
grupo de pessoas que insuflariam sua fora moral, pois no basta apenas a base
material para a revolta da populao. Contraditoriamente, a insistncia no
componente moral contrasta com a vontade imediata de tomar o poder. Todas essas
problemticas remontam claramente aos debates sobre a revoluo na Rssia e as
querelas entre os eslavfilos e os ocidentalistas, ou seja, entre aqueles que
acreditavam nos valores tradicionais russos e nos que defendiam a modernizao
nos moldes ocidentais. A insistncia de Kropoktin no aspecto moral remete a uma
eventual valorizao da tica camponesa com suas razes crists ou ainda na 32
-
exaltao natureza, o que nos leva a identifcar uma ligao com o pensamento de
Tolsti. Apesar desse dilogo, o pensamento que funda a postura de Kropotkin se
relaciona com a teoria da cooperao entre os homens, e a valorizao da natureza
e do homem moderno advm da interpretao da Naturphilosophie de Oken e
Schelling muito debatida nos crculos anarquistas9.
Vinculando crtica do Estado e da propriedade privada, Kropotkin faz
questo de denunciar a diviso entre campo e cidade, que esvazia a autonomia do
lugar como reprodutor da vida e como unidade geogrfica que permite a dissoluo
dos conflitos sociais.
Em A conquista do po, (KROPOTKIN, 2007, p. 21-22) vemos desmascarada
as teses de Malthus. Kropotkin ressalta como a distribuio dos alimentos poderia
relacionar-se com uma ideia de justia social. Indica a grande capacidade de
produtividade rural e o abastecimento desigual, alm de mostrar o processo de
explorao do trabalhador, o carter positivo do desenvolvimento tcnico e sua
capacidade de gerar mais riqueza. No entanto, as tcnicas seriam direcionadas
apenas para o beneficiamento de alguns e no de toda coletividade (KROPOTKIN,
2007, p. 23-24).
O seu grito de revolta contra a propriedade privada pauta-se na produo
como trabalho social absoluto, que por isso no poderia se constituir como
propriedade individual: Tudo de todos! E como tal o homem e a mulher
contriburam com sua cota individual de trabalho, tem direito a uma cota de tudo o
que ser produzido pelo todo10 (KROPOTKIN, 2007, p. 30).
No seu exlio em Londres, Kropotkin teve uma vida intelectual e poltica ativa,
participando na Sociedade Real de Geografia. L debate publicamente com
Mackinder acerca da funo e do objeto de estudo da geografia, atitude de grande
impacto uma vez que a Sociedade constitua uma arena de disputa intelectual onde
os interesses de dentro e fora do campo estavam envolvidos. Curiosamente
Mackinder e Kropotkin estavam inspirados pelo darwinismo, porm Mackinder
baseava-se na competio natural dentro da espcie humana (VESENTINI, 2008, p.
15).
Vale ressaltar que Kropotkin com seus escritos sobre a vida no campo, sua
tendncia contra o Estado e contra a cidade burguesa, inspirar muitas ideias na
33
9 Agradeo imensamente a Federico Ferretti por ter me indicado essa varivel no pensamento de Kropotkin e Reclus.
10 Traduo nossa.
-
arquitetura, no urbanismo e at mesmo na agronomia como o caso de Chayanov
que na Unio Sovitica defender a economia camponesa. Kropotkin e Reclus sero
uma fonte importante do pensamento anarquista mundial e no seria exagero dizer
que a fora de suas ideias chega at os dias de hoje11.
1.2 Plekhnov e a geografia
Outro pensador de renome que se dedicou aos temas da geografia, porm
um pouco mais jovem e explicitamente ligado ao marxismo, foi Plekhnov12
(1856-1918). Intelectual de com vasta cultura e campos de atuao, Plekhnov
escreve sobre geografia, teoria da histria e crtica literria.
Plekhnov inicia sua carreira estudando no Instituto de Minerao de So
Petersburgo, mas desperta para poltica ao tentar compreender os motivos da
chegada tardia do capitalismo na Rssia e opondo-se ao despotismo czarista
(GETZLER, 1989, p. 106-108).
Considerado como um dos principais introdutores do marxismo na Rssia,
Plekhnov concebe o contato dos intelectuais russos com o marxismo uma etapa do
processo de ocidentalizao (WALICKI, 1989, p. 66-67). Tradutor do Manifesto do
Partido Comunista para o russo, mesmo exilado na Sua tem um papel poltico
importante na revoluo de 1905 e posteriormente na de 1917.
Militante do partido social-democrata russo, depois de um perodo inicial de
concordncia rompe com Lnin e permanece do lado dos mencheviques, o que
acaba por engendrar algumas concepes do marxismo da Segunda Internacional e
da social-democracia alem em seu pensamento (LNIN, 1984, p. 97-104).
Dentro da ala menchevique, Plekhnov aliado da frao de Martov, que tem
uma interpretao economicista e etapista da tradio marxista. Apesar dessas
afinidades, ope-se a Bernestein, a Conrad e ao neokantinismo na poca em voga
dentro da Segunda Internacional declarando-se contra as estratgias reformistas
(GETZLER, 1989, p. 113 e 120). A sua ideia principal era que o proletariado russo
deveria levar ao fim o projeto de modernizao da Rssia iniciado pelo Czar Pedro,
o grande. A conscientizao do proletariado a pedra de toque de sua ao poltica,
34
11 Reclus, por exemplo, chegou ao Brasil com muita fora atravs dos migrantes italianos simpticos ao anarquismo.
12 Inclumos Plekhnov porque compartilhamos da viso de Santos (2002, p. 48-49) de que esse marxista possui uma obra com um contedo significativamente geogrfico.
-
com a instaurao do capitalismo atravs de uma longa fase de desenvolvimento
das foras produtivas que culminaria no socialismo.
Por conta desse raciocnio histrico e da influncia do positivismo, Plekhnov
acaba por prender-se muito ao processo de desenvolvimento dos modos de
produo como etapas da evoluo humana. O resultado a obrigatoriedade
histrica de desenvolver cada modo de produo para que se chegue ao socialismo
(WALICKI, 1989, p. 66-67).
Devido ao carter feudal e arcaico da sociedade russa, Plekhnov indaga
como seu pas poderia avanar para o socialismo se ainda no havia experienciado
plenamente a democracia. Segundo o pensador, essa drstica transio poderia
criar uma casta socialista governante, o que em parte ocorreu durante o socialismo
real.
Apesar de ter se dedicado reflexo da rica literatura russa do sculo XIX e
aos estudos sobre a teoria da histria, Plekhnov esteve imerso no pensamento
cientfico que lhe era contemporneo. Suas teorias apresentam-se de forma
harmnica com o pensamento naturalista e positivista de sua poca (GETZLER,
1989, p. 112). No entanto, Plekhnov:
(...) ao contrrio dos luminares da ortodoxia marxista, estudou Hegel e mostrou possuir um conceito de dialtica infinitamente superior ao de Kautsky, de Bernstein e de outros expoentes da social-democracia alem. J no incio dos anos [18]90, ele observava que a anttese abstrata da revoluo e evoluo superada precisamente pela dialtica, que se esfora por mostrar como - em determinadas condies a mudana gradual deve necessariamente levar a um salto (STEINBERG, 1989, p. 220).
A conservao do pensamento hegeliano, apesar da forte presena do
positivismo, seria de grande importncia na poca em que boa parte dos
revisionistas reagiam primeira crise do marxismo utilizando as formulaes de
Kant sobre a tica para pensar o devir histrico embutido na ideia de comunismo.
Ou seja, parte da Segunda Internacional liderada por Bernstein escolheu afastar-se
do pensamento hegeliano em funo do kantismo.
Cabe lembrar que o retorno ao hegelianismo ser feito tambm por Lnin
para combater as tendncias da Segunda Internacional e o marxismo austraco
direcionado ao positivismo lgico que culminaria no crculo de Viena.
Curiosamente, Plekhnov conhecia a obra de Elise Reclus e a utilizava
como fonte de alguns de seus estudos (GETZLER, 1989, p. 142), no entanto alm
35
-
do gegrafo francs, seu compatriota anarquista, Metchnikoff, tambm o influenciava
eles todos se conhecem durante o exlio na Sua (BASSIN, 1992, p. 10).
Para Ratzel e para Plekhnov, a influncia do meio medida pelas relaes
sociais. A identificao do revolucionrio russo com Ratzel tamanha que ele
defende fervorosamente as afinidades entre seu pensamento e o materialismo
histrico e dialtico (BASSIN, 1992, p. 11). Plekhnov cita Ratzel para que tais
comparaes ganhem plausibilidade.
O etapismo, que remete ao evolucionismo darwinista, acompanha um forte
determinismo geogrfico13 inspirado por Ratzel e Metchnikoff, sendo que as
peculiaridades do quadro natural influenciam no desenvolvimento das foras
produtivas e consequentemente nas relaes sociais (MATLEY, 1966, p. 99).
O meio ambiente influenciaria o desenvolvimento do modo de produo14. A
natureza determina as bases materiais da reproduo social: as condies
ambientais do origem a certos tipos de formaes econmicas e relaes, e estas
ento formam os agente ativos na determinao da organizao poltica assim como
do perfil psicolgico (BASSIN, 1992, p. 8)15.
Entretanto, seu determinismo no cai em um fatalismo, pois existe uma
valorizao do mtodo ecolgico que busca uma unidade orgnica entre natureza e
sociedade (BASSIN, 1992, p. 6)16. Com a ascenso da ecologia populariza-se a
ideia que:
(...) a natureza ambiental externa exercia uma, ou de fato, a influncia determinante na evoluo orgnica da vida. Essa perspectiva do materialismo geogrfico, como ele foi chamado, provou ser extremamente atrativa, como representao de um materialismo, como uma explicao causal e adequadamente cientfica, veracidade que foi aparentemente confirmada no reino orgnico natural e que foi eminentemente til para os propsitos antropolgicos (BASSIN, 1996, p. 318)17.
36
13Apesar de utilizarmos a expresso determinismo geogrfico no o concebemos como classicamente foi feito por L. Febvre que forjou a grande controvrsia entre determinismo e possibilismo. Estamos remetendo a uma concepo da geografia que reconhece e enfatiza a relevncia de alguns elementos naturais que podem interferir ou influenciar a organizao das sociedade a longo ou mdio prazo.
14 Segundo Matley (1966, p. 99), Bukharin e Trotsky tambm receberam essa influncia ao admitir que o quadro natural e a base tcnica seriam subsdios para o desenvolvimento do socialismo real.
15 Traduo nossa.
16 Para Bassin (1992, p. 6), Engels, Kautsky, Heinrich Cunow, G. Graf e o jovem K. Wittfogel seguem esse mesmo caminho.
17 Traduo nossa.
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Na sua viso, Darwin e Marx seriam complementares, o que permite admitir
paralelos entre a luta de classes e a sobrevivncia do mais apto ou leis e princpios
que se aplicam para sociedade e natureza (BASSIN, 1992). Entretanto, existe uma
dialtica entre a opresso e a libertao proposta pelo quadro natural, uma vez que
os elementos naturais auxiliam no desenvolvimento. Contudo, o homem nunca se
emancipar completamente da natureza.
Diferentemente de Lombroso, Plekhnov nega o racismo e atravs de uma
perspectiva ratzelina, defende que as influncias do meio no homem no so
captadas imediatamente e tm um efeito sobretudo social e no individual (BASSIN,
1992, p. 8). a inspirao ratzeliana de uma influncia geogrfica lenta que
diferencia o pensamento de Plekhnov do resto dos marxistas da Segunda
Internacional que veem essa relao de forma mais imediata (BASSIN, 1996, p.
322).
Como Bassin ressalta, existe uma ambiguidade em seu determinismo que
remete ao do prprio Ratzel, porque existe uma impreciso quantitativa e qualitativa
de quanto exatamente o meio determina a sociedade, ou seja, quais so os limites
explicativos da natureza como elemento da formao social.
Em um debate muito interessante, Plekhnov dialoga com Fredrick Jackson
Turner, um dos estudiosos da expanso da fronteira norte-americana e tambm
leitor de Ratzel. Enquanto nos Estados Unidos a fronteira movedia teria criado o
esprito democrtico e a ruptura com as tradies, na Rssia a natureza inspita
teria atrasado a chegada do capitalismo e mantido a autarquia czarista18.
1.3 A relao entre marxismo, positivismo e darwinismo no incio do
sculo XX
Independente das contribuies de Reclus, Kropotkin e Plekhnov na
passagem do sculo XIX para o XX, a presena do marxismo fazia-se muito forte
nas cincias paralelamente s propostas vindas das cincias naturais:
37
18 A Rssia para Plekhnov seria atrasada devido colonizao de terras distantes, o que impulsionou parte da populao para reas inspitas, onde o indivduo luta diariamente pela sua sobrevivncia fsica (fome, doenas, frio, etc.). A soluo seria abrir mo do expansionismo territorial e desenvolver as relaes de produo capitalistas, uma vez que o crescimento da fronteira foi uma estratgia que conservou o longo declnio da velha ordem aristocrtica russa. A migrao dificulta a articulao da luta social e a criao de uma conscincia de classe (BASSIN, 1992, p. 14).
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A influncia de Hegel pode ser reconhecida na obra de Ratzel19 e mesmo nos trabalhos de Ritter. Marx teria igualmente influenciado em muitos pontos o trabalho de Ratzel, de Vidal de La Blache, de Jean Brunhes. Todavia, e por mltiplas razes, foi a herana idealista e positivista que, afinal de contas, acabou por se impor geografia, isto , a geografia oficial: o cartesianismo, o comtismo e o kantismo eram frequentemente apoiados e misturados aos princpios de Newton e tambm ao darwinismo e ao spencerismo. (...) Que o positivismo haja contaminado at mesmo o marxismo nos d a medida da importncia que adquiriu em uma fase to importante da histria cientfica. Jean Brunhes seria um exemplo desse casamento entre marxismo e positivismo, embora nessa galeria Plekhnov talvez guarde o lugar de destaque. Uma aliana desse gnero justifica que se d lugar exagerado a conceitos originrios das cincias naturais, impostos s cincias humanas sob o pretexto de lhes oferecer aquela categoria cientfica que ento elas procuravam a todo custo (SANTOS, 2002, p. 48).
Sem compreender essa relao que Milton Santos exps no excerto acima
no possvel ver a composio do marxismo, nem a possibilidade de aproximao
entre ele e a geografia em um contexto em que os critrios das cincias naturais so
extremamente valorizados. Os autores que analisamos acima gravitam no estatuto
cientfico positivista, estando sob influncia do darwinismo ao mesmo tempo que se
vinculam viso romntica e histrica de cincia presente no pensamento marxiano.
Diante dessa problemtica, como podemos pensar a questo do estatuto cientfico
do marxismo no incio do sculo XX?
Desde o surgimento do marxismo temos sua afirmao atravs do socialismo
cientfico que se opunha ao socialismo utpico comum na Frana (Charles Fourier) e
Inglaterra (Robert Owen) contemporneos de Marx e Engels.
Contudo, no tempo da Segunda Internacional os pensadores filiados ao
marxismo apoiaram-se fortemente na prtica cientfica da poca, embasada nas
ideias de Darwin, Spencer, entre outros, e fizeram comparaes entre a luta de
classes e luta pela sobrevivncia darwiniana, o que gerou o problema da
naturalizao das relaes sociais. Concomitante a isso, temos uma simplificao e
snteses mal elaboradas das principais obras de Marx, que acabaram criando um
marxismo vulgar, deturpando e simplificando o sentido original de suas ideias
(ANDREUCCI, 1989, p. 31).
Se por um lado a vulgarizao do marxismo teve um efeito empobrecedor, por
outro atingiu uma proporo mundial e criou uma atmosfera de estimulo formao
38
19 Acrescentamos que sua Geografia poltica remete ntidamente ao projeto de construo de um Estado forte no molde hegeliano, com Ratzel refletindo sobre sua composio territorial e sua lgica de colonizao. Tal fato vem na esteira da fundao da geografia moderna que um processo complexo no qual o positivismo e o romantismo alemo travaram um dilogo nas obras de Humboldt e Ritter, por exemplo. Sobre o assunto vide Pereira (2009).
-
intelectual do proletariado ao redor do globo. No seria exagero atribuir ao
marxismo, nesse momento histrico, a promoo de uma viso de mundo cientfica
e ateia vinculada ao materialismo filosfico.
Parece-nos que o marxismo, formado distante das academias com uma
penetrao inicial nos movimentos sociais, busca o capital cultural acadmico em
determinados momentos histricos com o objetivo de ter uma maior atuao e
respeitabilidade intelectual na sociedade e at mesmo uma base institucional
paralela aos partidos na luta poltica.
Isso significou abrir mo de parte dos critrios de cientificidade mais originais
do pensamento marxiano e absorver elementos externos ligados racionalidade
hegemnica, neste caso, do positivismo e principalmente do legado das cincias
naturais. Talvez at o prprio Engels, com o objetivo de fazer progredir o
materialismo dialtico, tenha cedido a esse processo. Como demonstra Hunt (2010,
p. 143-211), Engels era um homem de seu tempo, encantado pelos avanos
cientficos e se esforou para atrelar o socialismo ao contexto do avano acadmico.
Isso pe o marxismo na trilha do apelo popular atravs de panfletos e propagandas
na dcada de 1880. Apesar do positivismo e da ligao com as cincias naturais,
Engels teve o papel de sistematizador de vrios aspectos do materialismo histrico e
das leis da dialtica (HUNT, 2006, p. 241).
No por acaso, na vspera da Primeira Guerra mundial o marxismo j havia
se espalhado pelo mundo mesmo que as pessoas no conhecessem profundamente
O capital. O que havia se difundido era um marxismo pobre, sobretudo a esquemas
t r a n s f o r m a d o s e m a r g u m e n t a o p a r a d i s c u s s e s q u e n o s e
aprofundavam (ANDREUCCI, 1989, p. 70).
Karl Korsch (1966, p. 84-85) indica que tanto o objetivo de Hegel como o de
Engels era justamente aplicar as leis da dialtica e acabar com a separao entre
cincia e filosofia. Porm, Hegel dissolve as cincias particulares na filosofia,
enquanto Engels , inversamente, absorve a f i losof ia nas c inc ias
particulares (KORSCH, 196620, p. 85). Aqui surge um elemento importante que
diferencia o marxismo do positivismo, uma vez que para o ltimo a tendncia
aprofundar cada vez mais o processo de diviso do trabalho intelectual. No entanto,
a interpretao de Korsch que o marxismo acaba por incorporar a ciso entre
filosofia e cincia:
3920 Lembrando que a edio original dessa obra do ano de 1923, ampliada e revista em 1930.
-
Neste contexto, j importante constatar que Engels, embora manifestando-se pela cincia positiva quer contudo, ao mesmo tempo, deixar substituir autonomamente um domnio preciso e limitado da filosofia anterior (a teoria do pensamento e suas leis a lgica formal e a dialtica). O problema decisivo consiste, sem dvida, na questo de saber o que que o conceito de cincia ou cincia positiva significa, na realidade para Marx-Engels (KORSCH, 1966, p. 85).
Com esse processo de absoro invertida evidenciado Korsch, Engels se
aproximaria muito do positivismo clssico. Entretanto, a ideia de positivo para Marx
e Engels nada mais seria do que a transformao social rumo a supresso dos
contextos sociais em que a filosofia e cincias foram formadas (KORSCH, 1966, p.
103). Ou seja, a supresso da cincia burguesa, que possui como uma de suas
caractersticas mais eminentes a pretenso de neutralidade, supostamente acima da
filosofia crtica e das instituies sociais. Essa problemtica que ser corrente na
geografia crtica, apresenta-se de forma semelhante na obra de Korsch e no
contexto do debate marxista do entre guerras. Sua concluso final ruma em direo
ideia de que a filosofia no poder se superar a no ser que se realize na prtica,
remetendo tese formulada por Marx.
Em seu ensaio sobre o marxismo ocidental, em uma interpretao que vai ao
encontro do pensamento de Korsch, Russell Jacoby argumenta que enquanto o
socialismo real manteve a viso cientfica positivista de Engels concomitantemente
sua implementao poltica, no ocidente o marxismo manteve-se mais distante desta
perspectiva, resguardando o modo hegeliano de ver a cincia, operando com pares
dialticos como conscincia e inconscincia, aparncia e essncia. A Wissenschaft
de Hegel est saturada de histria; ela finalmente constitui o protesto de Hegel
contra s cincias empricas e positivas (JACOBY, 1981, p. 25)21. Essa postura
reforou ainda mais o aprofundamento do marxismo ocidental no campo da
especulao filosfica.
Engels apropriado no oriente legitimou o marxismo como uma cincia
objetiva e sistemtica, enquanto na Europa marxistas como Arturo Labriola
utilizavam as teses de Feuerbach contra o seu materialismo (JACOBY, 1981, p. 53).
Dessa forma:
4021 Traduo nossa.
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O Hegel que espreitou por trs do marxismo dividiu-se em duas tradies, cientfica e histrica. As tradies hegelianas distintas no se produziram por si s no marxismo sovitico e ocidental; eles representaram e informaram o marxismo subsequente. O marxismo sovitico foi regularmente sustentado por um Hegel cientfico, e o marxismo europeu por um Hegel histrico. Cada um demarcou um terreno comum e uma linguagem: leis universais da natureza e da sociedade e processos histricos de conscincia e ao (JACOBY, 1981, p. 57).
Jacoby complementa:
De acordo com Mondolfo o problema inicial para Marx foi o conhecimento; para Engels foi o ser. Consequentemente, Marx partiu da crtica da conscincia e moveu-se para uma filosofia da prxis enquanto Engels, enraizado em uma filosofia natural, concluiu com o materialismo. Muito do dogmatismo e obscuridade de Engels resultou da falta de um conceito de prxis revolucionria (JACOBY, 1981, p. 57).
A prxis e a consequente transformao social do o tom da crtica feroz
Segunda Internacional e ao marxismo que se pauta mais no positivismo do que na
dialtica. Segundo Hobsbawn:
Na realidade, o protesto (...) no era tanto contra a anlise marxista em si mesma e sim contra o evolucionismo e as incrustaes positivistas e naturalistas com as quais segundo uma expresso do jovem Gramsci, em 1917 a social-democracia estava prejudicando o marxismo; ou ento era contra a curiosa mistura de Marx com Darwin, Spencer e outros pensadores positivistas, amlgama que frequentemente passava por ser o marxismo (HOBSBAWN, 1989, p. 83).
Como ressaltamos acima, o marxismo da Segunda Internacional estava
ligado ao positivismo e filosofia kantiana, que constituam uma alternativa
controvrsia das formulaes hegelianas e sua ambiguidade que inspirava tanto o
socialismo revolucionrio da poca (jovem Hegel), quanto dava respaldo ao Estado
forte e autoritrio da unificao bismarkiana.
Durante os anos 1890, o marxismo