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FÉLIX GARCÍA LÓPEZ O PENTATEUCO INTRODUÇÃO À LEITURA DOS CINCO PRIMEIROS LIVROS DA BÍBLIA

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FÉLIX GARCÍA LÓPEZ

O PENTATEUCOINTRODUÇÃO À LEITURA

DOS CINCO PRIMEIROS LIVROS DA BÍBLIA

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Siglas e abreviaturas

AAT Apócrifos do Antigo Testamento (Ed. A. Díez Macho)

AB Anchor Bible, New York

AnBib Analecta Biblica, Roma

ANET Ancient Near Eastern Texts, Princeton (J.B. Pritchard, ed.)

AOAT Alter Orient und Altes Testament, Kevelaer

ATD Das Alte Testament Deutsch, Göttingen

AThANT Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments, Zurich

BA The Biblical Archaeologist, New Haven

BBB Bonner Biblische Beiträge

BE Biblische Enzyklopädie, Stuttgart

BETL Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium

Bib Biblica, Roma

BI Biblical Interpretation, Leiden

BIS Biblical Interpretation Series, Leiden

BJS Brown Judaic Studies, Chico

BK Biblischer Kommentar, Neukirchen-Vluyn

BN Biblische Notizen, Bamberg

BS Bibliotheca Salmanticensis

BTB Biblical Theology Bulletin, New York

BWANT Beiträge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament, Stuttgart

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BZAW Beihefte zur Zeitschrift fur die alttestamentliche Wissenschaft, Berlin

CB Cuadernos Bíblicos, Estella

CBET Contributions to Biblical Exegesis and Theology, Kampen

CB.OTS Coniectanea Biblica – Old Testament Series, Stockholm

CBQ Catholic Biblical Quarterly, Washington, DC

CE Cahiers Evangile, Paris

CRB Cahiers de la Revue Biblique, Paris

CR:BS Currents in Research: Biblical Studies

EB Études Bibliques, Paris

EdF Erträge der Forschung, Darmstadt

EHS Europäische Hoschschulschriften, Frankfurt am Main

EstBíbl Estudios Bíblicos, Madrid

ETR Études Théologiques et Religieuses, Montpellier

FAT Forschungen zum Alten Testament, Tubingen

FRLANT Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments, Göttingen

FS Festschrift

HAT Handbuch zum Alten Testament, Tubingen

HBS Herder Biblische Studien, Freiburg im Bresgau

HK Handkommentar zum Alten Testament, Göttingen

HSM Harvard Semitic Monographs, Atlanta

HUCA Hebrew Union College Annual, Cincinnati

Id. Idem

Interp Interpretation, Richmond

IOSOT International Organization for the Study of the Old Testament

JAOS Journal of the American Oriental Society, Boston

JBL Journal of Biblical Literature, Atlanta

JBTh Jahrbuch fur Biblische Teologie

JJS Journal of Jewish Studies, Oxford

JSOT Journal for the Study of the Old Testament, Sheffield

JSOT SS Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series, Sheffield

KAI Kanaanäische und aramäische Inschriften, I, 1966 (H. Donner- W. Röllig, eds.)

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LD Lectio Divina, Paris

MB Le Monde de la Bible, Genève

NCBC New Century Bible Commentary, Grand Rapids

NEB Neue Echter Bibel, Wurzburg

OBO Orbis Biblicus et Orientalis, Fribourg

OTG Old Testament Guides, Sheffield

OTL Old Testament Library, London

OTS Oudtestamentische Studien, Leiden

PT Presencia Teológica, Santander

RB Revue Biblique, Paris

RHPhR Revue d’Histoire et de Philosophie Religieuses, Strassbourg

RHR Revue de l’Histoire des Religions, Paris

RSB Ricerche Storico Bibliche, Bologna

RSR Recherches de Sciences Religieuses, Paris

RivBibIt Rivista Biblica Italiana, Bologna

RSR Recherches de Sciences Religieuses, Paris

SBAB Stuttgarter Biblische Aufsatzbände, Stuttgart

SBL DS Society of Biblical Literature Dissertation Series, Atlanta

Salm Salmanticensis, Salamanca

SBS Stuttgarter Bibel-Studien

SCE Supplement au Cahiers Evangile, Paris

SET Semanas de Estudios Trinitarios, Salamanca

SJOT Scandinavian Journal of the Old Testament

SRivBibIt Supplementi alla Rivista Biblica Italiana, Bologna

StB Studia Biblica, Leiden

SubBib Subsidia Biblica, Roma

SVT Supplements to Vetus Testamentum, Leiden

TeD Teología en Diálogo, Salamanca

ThB Theologische Bucherei, Munchen

ThLZ Theologische Literaturzeitung, Leipzig

ThR Theologische Revue, Munster

ThRu Theologische Rundschau, Tubingen

ThW Theologische Wissenschaft, Stuttgart

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ThZ Theologische Zeitschrift, Basel

TWAT Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament, Stuttgart

UF Ugarit-Forschungen

UTB Uni-Taschenbucher, Göttingen

VF Verkundigung und Forschung, Munchen

VT Vetus Testamentum, Leiden

WBC Word Biblical Commentary, Dallas

WMANT Wissenschaftlichen Monographien zum Alten und Neuen Testament, Neukirchen-Vluyn

ZA Zeitschrift fur Assyriologie

ZAR Zeitschrift fur Altorientalische und Biblische Rechtsgeschichte, Wiesbaden

ZAW Zeitschrift fur die alttestamentliche Wissenschaft, Berlin

ZDMG Zeitschrift fur Deutschen Morgenländischen Gesellschaft

ZLTh Zeitschrift fur lutherische Theologie

ZThK Zeitschrift fur Theologie und Kirche, Tubingen

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Apresentação

Com este volume, o benévolo leitor tem em suas mãos mais um livro da série editorial intitulada “Introdução ao Estudo da Bíblia”. Esta coleção nas-ceu aproximadamente quinze anos antes da primeira publicação deste livro, no âmbito da Associação Bíblica espanhola, como contribuição de um grupo de especialistas espanhóis no campo específico da literatura introdutória da Bíblia. Nasceu em continuidade histórica com outra obra muito significativa e mais an-tiga: Comentário ao Antigo e Novo Testamento, vol. I, II e III, de La Casa de la Biblia (publicada pela Editora Ave-Maria), composta por biblistas espanhóis da geração anterior. E nasceu como oferta ao mundo universitário e ao leitor culto interessado na Bíblia. Hoje, o volume dedicado ao Pentateuco, escrito por Félix García López, catedrático do Antigo Testamento na Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia de Salamanca, completa esta série composta de onze volumes. É, sem dúvida, curioso e, talvez, significativo que o último volume publicado seja correspondente aos primeiros livros da Bíblia. Como disse al-guém, dentre os especialistas que trabalharam nesta coleção, trata-se de uma “inclusão”, isto é, de um final que inevitavelmente volta a ser o início. Porque, se é verdade que a coleção já está completa, não o é por menos que nunca estará acabada. Com efeito, iniciou-se uma revisão dos distintos volumes, que pro-curará colocar em dia cada título desta série. É este o compromisso da equipe editorial, responsável por toda a obra. Equipe que, além disso, tem outro agra-dável dever de cumprir, o do agradecimento. Primeiro à Associação Bíblica Espanhola, que acolheu o projeto hoje concluído. Em seguida, aos autores de cada um dos trabalhos, que escreveram com competência uma obra notável, um contínuo na história da produção bíblica espanhola. Depois, à Editoral Verbo

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Divino, que materializou com dignidade e beleza cada um dos exemplares da coleção. Finalmente, e sobretudo, aos leitores que – em espanhol, em italiano e em português (Editora Ave-Maria), cujas línguas a coleção fora traduzida – acolheram e continuam acolhendo com agrado e benevolência o nosso trabalho. Podem ter a certeza de que continuaremos atualizando e melhorando toda esta obra. Mas isso será nos próximos meses e anos. Agora, neste final do ano 2002, o verdadeiramente importante é, simplesmente, nos alegrar por ter nas mãos uma obra completa e expressar nossa alegria com esta bonita palavra. Obrigado.

Natividade de 2002

José Manuel Sánchez Caro

Coordenador do Conselho de Direção

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Prólogo

Os estudos sobre o Pentateuco mudaram radicalmente nos quinze anos que precederam esta publicação. Desmoronou-se o paradigma alicerçado pela teoria documentária, e ainda não veio à luz um novo paradigma. Reina a desordem, quando não a confusão. Existe quem pensa que tudo vale ou, pelo contrário, nada vale.

Durante o tempo dedicado à preparação desta obra, tive que afastar essas pequenas importunações que me acometiam, perguntando se valia a pena ou não escrever um livro sobre o Pentateuco em um mundo abarrotado de livros prescindíveis. Além disso, tive que me colocar seriamente algumas questões metodológicas fundamentais, como: devia prescindir dos estudos histórico-crí-ticos, tão desprestigiados em alguns setores? Conviria apostar exclusivamente pelos estudos literários ou teológicos, como alguns pretendiam? Qual a opção a ser feita e ser seguida neste momento?

Sempre pensei que os exclusivismos não são bons companheiros de via-gem. Melhor seria integrar do que eliminar. Depois de analisar as obras mais significativas, clássicas e recentes, fiz um balanço da história da investigação (Cap. II, § 5) e me propus quatro objetivos: 1) partir do texto final, valorizando mais o texto em si do que o que está por trás dele; 2) integrar, na medida do pos-sível, os estudos sincrônicos e diacrônicos; 3) estudar o texto a partir do ponto de vista literário e teológico, sem descuidar o seu substrato histórico; 4) nunca dar por concluídas as questões em discussão. Esses são os principais sinais da identidade desta obra.

O Pentateuco é o centro da Bíblia Hebraica e parte essencial da Bíblia Cristã. Esta simples apreciação deveria estimular a sua leitura. Não é suficiente

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ter vontade de ler o Pentateuco. Falta para esse trabalho um certo esforço. Como também, estou seguro de que aqueles que o fizerem sairão muito enriquecidos de sua leitura. Refiro-me, evidentemente, à leitura do Pentateuco. No final de tudo, a presente obra não é mais que uma Introdução a esta leitura: “Feliz aquele que se compraz no serviço do Senhor [Javé]” (Sl 1,2).

Félix García López

Festa de São Jerônimo, 2002

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CAPÍTULO I

Características do Pentateuco

O Pentateuco é uma grande composição literária, integrada por narrações e leis. Os personagens principais se desenvolvem, em geral, num marco espacial e temporal muito amplo, quando não o transcende, como no caso de Javé. Embora, em muitos aspectos, se assemelhe às obras literárias modernas, o Pentateuco apre-senta alguns problemas específicos. Dessas e de outras questões nos ocuparemos no primeiro capítulo, depois de explicar a origem e o significado do nome.

1. Nomes

São dois os nomes comumente empregados para designar os cinco primei-ros livros da Bíblia: Torá e Pentateuco.

O substantivo hebraico torá significa basicamente “instrução”, mas tem, além disso, outros significados. Na Bíblia Hebraica se refere com frequência a uma lei ou coleção de leis (cf. Lv 11,46; 26,46; Ez 43,11.12) e também a um ou mais livros (cf. Dt 31,26; Js 8,34; 2Rs 22,8.11; Ne 8,1; 2Cr 34,14). Na tradição judaica, usa-se a expressão “os cinco quintos da Torá” para referir-se aos cinco primeiros livros da Bíblia1.

A versão grega dos LXX traduz o termo Torá por nómos (lei)2. O Prólogo do tradutor grego do livro do Eclesiástico (século II a.C.) distingue a “Lei” (nómos)

1. Em Esdras, Neemias e Crônicas, a expressão “Torá de Moisés” provavelmente se refere ao Pentateuco como unidade (cf. Cap. VIII, § 2, c; GARCÍA LÓPEZ, F. Tôrah, TWAT VIII. Stuttgart, 1995, 597-637; Id. Dalla Torah al Pentateuco. RSB 3, 1991, 11-26). A divisão em cinco livros é posterior. O Talmud alude reiteradas vezes “aos cinco quintos da Torá” numa clara referência aos cinco primeiros livros da Bíblia (cf. bMegilla 15a; bNedarim 22b; bSanhedrim 44a ).

2. Muitos autores pensam que a versão dos LXX contribuiu para a concepção nominalista da Torá. No en-tanto, L. Monsengwo Pasinya (La notinon de nómos dans le Pentateuque grec [AnBib 52], Roma 1973, 88), mostrou que nómos no Pentateuco grego significa divina revelação, considerada como um todo e composta por uma parte doutrinal e outra legislativa; exatamente o mesmo que torá.

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dos “Profetas” e os “Escritos” sem nenhuma outra precisão sobre cada um dos livros.3 Por sua vez, Filón de Alexandria (na primeira metade do século I d.C.) comenta que o primeiro dos cinco livros nos quais estão escritas as santas leis se chama Gênesis, um nome dado pelo próprio Moisés.4 E Josefo (segunda metade do século I d.C.) afirma que dos 22 livros próprios dos judeus “cinco são os livros de Moisés”. Nestes, se encontram as leis e a história tradicional desde a criação do homem até a morte do legislador.5

A palavra grega pentateujos (penta: cinco e teujos: estojo, que contém os livros / rolos) aparece pela primeira vez no século II d.C. (o primeiro a usá-la foi o gnóstico Ptolemaios, morto em 180 d.C.). A forma latina pentateuchus liber se encontra a partir de Tertuliano.6

No hebraico, os livros da Torá denominam-se com a primeira palavra importante de cada livro: 1) beresit (“no princípio”), 2) semot (“nomes”), 3) wayyiqra’ (“e chamou”), 4) bemidbar (“no deserto”), 5) debarim (“palavras”).

A tradução grega dos LXX lhe deu um título referido ao conteúdo do livro: 1) Genesis (“origem”), porque trata das origens do mundo, da humanidade e de Israel; 2) Exodos (“saída”), alude à saída de Israel do Egito; 3) Leuitikon (“leví-tico”), refere-se ao núcleo central das leis e ritos levítico-sacerdotais; 4) Aritmoi (“números”), deve-se aos recenseamentos contidos no livro; 5) Deuteronomion (“segunda lei”: deuteros-nómos: cf. Dt 17,18), entendido no sentido de uma nova lei dada em Moab, que viria completar a lei do Sinai.

As versões latinas adotaram e adaptaram os nomes gregos (Genesis, Exodus, Leviticus, Numeri, Deuteronomium), em seguida passaram para as línguas vernáculas.

2. Narrativas e leis

O gênero narrativo predomina na primeira parte (Gn 1–Ex 19); a lei, na segunda parte (Ex 20–Dt). Na realidade, dos cinco livros que formam o Pentateuco, o único livro “completamente” narrativo é o do Gênesis; nos outros quatro livros, as narrativas alternam-se com as leis.

A partir de uma perspectiva canônica, a Torá é uma mescla de narrativa e lei; ambas percorrem juntas, formando uma “unidade”. A inserção das leis numa trama narrativa é o aspecto mais característico do Pentateuco.7

3. O Novo Testamento distingue “a lei de Moisés, os profetas e os Salmos” (Lc 24,44) ou “a lei e os pro-fetas”: cf. Mt 5,17; 7,12; Lc 16,16; At 13,15; 24,14; Rm 3,21.

4. FILÓN. De Aeternite Mundi, 19 (Opera VI, 78). 5. JOSEFO. Contra Apionem, I, 37-39. 6. TERTULIANO. Adversus Marcionem, 1,10. 7. Cf. SANDERS, J. A. From Sacred Story to Sacred Text. Philadelphia, 1987, 43; CAZELLES, H.

La Torah ou Pentateuque. In: Id. (ed.). Introduction à la Bible, II, Introduction critique à l’Ancien Testament. Paris, 1973, 100.

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A partir de uma perspectiva literária, a interrupção da narrativa por séries mais ou menos amplas de leis é um fenômeno que choca a sensibilidade estética do leitor atual, pois não correspondem aos cânones próprios da literatura moder-na. Compreende-se por que já o jovem Goethe mostrara sua estranheza diante desse fenômeno.8

Historicamente, o mais provável é que os códigos de leis no Pentateuco tiveram sua origem independentemente das seções narrativas.

a) A narrativa bíblica

Na opinião de Sternberg, a narrativa bíblica é regida por três princípios: o ideológico, que procura estabelecer e transmitir uma determinada concepção do mundo; o historiográfico, que insere alguns fatos com outros, e o estético, que organiza o texto a partir do ponto de vista formal.9

1o Historiografia

Por regra geral, as narrações do Pentateuco têm um caráter marcadamente histórico. Não é puramente casual que os acontecimentos se encontram dispos-tos numa sequência cronológica, mas isso não significa que seja uma crônica dos fatos (que “realmente” aconteceram); trata-se muito mais de relatos com aparência de crônica.

Influenciados pelos estudos modernos sobre a literatura de ficção, Schneideau define as narrativas bíblicas como “ficção historiada”10 e Alter como “história de ficção”11. Embora mudem os termos, a realidade não muda: as narrativas bíblicas têm um objetivo e um substrato histórico inegável, mas não são história no senti-do moderno da palavra. A “história bíblica” não pode ser interpretada no sentido ciceroniano clássico da “história” como “memória do passado”12. Recorda-se o passado tanto quanto dele se possa extrair lições para o presente e para o futuro.

A história do antigo Israel constitui o objeto de uma vasta obra narrativa que abrange desde a criação do mundo até a queda de Jerusalém e o exílio da Babilônia (Gênesis–Reis). O Pentateuco compreende a primeira parte desta nar-rativa: a partir da criação do mundo até a morte de Moisés nos umbrais da terra prometida. Embora a promessa da terra é feita a Abraão no início do livro do Gênesis, sua conquista não é narrada até o livro de Josué.

8. GOETHE, J.W. Israel in der Wuste. In: Beutler, E. (ed.). West-Östlicher Diwan, 1943, 240. 9. STERNBERG, M. The Poetics of Biblical Narrative. Ideological Literature and the Drama of Reading.

Bloomington, 1987, 41-45. 10. SCHNEIDAU, H.N. Sacred Discontent. Louisiana, 1976, 215. 11. ALTER, R. Sacred History and Prose Fiction. In: The Creation of Sacred Literature. Berkeley, 1981, 8. 12. CICERÓN. Tusculanae Disputationes, III, 33.

Características do Pentateuco

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A partir da perspectiva dos israelitas no processo de formar sua nação em Canaã, se pode dizer que o relato da conquista e do assentamento na terra é história contemporânea; a história de Israel no Egito e o êxodo é a história antiga; a narrativa dos patriarcas é a história legendária; o relato de Gn 1–11 é a história mítica.13 Essa classificação coloca em realce o caráter singular da “história” do Pentateuco.

Na consagrada obra Em busca da história: a historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica, Van Seters propõe cinco critérios para identifi-car a historiografia israelita antiga: 1o) é uma forma literária intencional e não meramente acidental; 2o) não consiste somente numa descrição objetiva do passa-do, mas compreende também a valorização e a interpretação dos acontecimentos históricos; 3o) examina as condições atuais com a sua casualidade moral; 4o) é obra de uma nação ou um grupo étnico; 5o) forma parte das tradições literárias de um povo e possui um papel importante na configuração de sua identidade na-cional.14 Para o autor, a primeira história bíblica escrita segundo esses critérios é a “Historiografia Deuteronomista” (Deuteronômio–2Reis). Nela se relata a his-tória de Israel a partir de sua fundação como nação na época de Moisés até a queda de Jerusalém. Posteriormente foram escritas a “Historiografia Javista” e a “Historiografia Sacerdotal” (Gênesis–Números), a estilo de prólogo e comple-mento da anterior, ampliando a história até o início do mundo.15

A tendência atual de concluir tardiamente os textos do Pentateuco nos con-vida a desconfiar de sua credibilidade histórica. Quanto mais tardio forem os documentos, mais se distanciam dos acontecimentos aos quais se referem, dimi-nuindo a esperança de que possam oferecer informação histórica.16 Os enfoques neo-historicistas da literatura bíblica em geral, e do Pentateuco em particular,

13. Cf. AVERBECK, R.E. The Sumerian Historiographic Tradition and Its Implications for Genesis 1–11. In: MILLARD, A.R. e outros (eds.). Faith, Tradition, and History. Old Testament Historiography in Its Near Eastern Context. Winona Lake, 1994, 79-102 (98-99). LICHT, J. (Storytelling in the Bible, Jerusalém, 1978, 14-16) distingue três classes de narrativas: fictícias, históricas e tradicionais. Estas últimas incluem mitos, lendas e poesia épica ou heroica. As narrações do Antigo Testamento pertencem à segunda e terceira categoria. As partes mais antigas (criação, paraíso e queda, dilúvio e torre de Babel) são míticas e as narrações dos patriarcas são legendárias. Por sua vez, as narrações do Êxodo e dos even-tos do Sinai constituem um tipo especial de história, distinto da história comum. Para KNAUF, E.A. (Der Exodus zwischen Mythos und Geschichte. Zur priesterschriftlichen Rezeption der Schilfmeer-Geschichte in Ex 14. In: KRATZ, R.G. e outros [eds.]. Schriftauslegung in der Schrift [BZAW 300]. Berlin, 2000, 73-84 e PROPP, W.H.C. (Exodus 1–18 [AB 2]. New York 1999, 560-561), Ex 14 se situa entre o mito e a história.

14. VAN SETERS, J. In Search of History. Historiography in the Ancient World and the Origins of Biblical History. New Haven, 1983, 4-5.

15. VAN SETERS, J. In Search of History (n. 14), 359-362. Segundo BAUKS, M. (La signification de l’espace et du temps dans “l historiographie sacerdotale”, em RÖMER, T. [ed.]. The Future of the Deuteronomistic History [BETL 147]. Leuven, 2000, 29-45), as categorias de espaço e tempo em P têm um valor cultural e, consequentemente, a “Historiografia Sacerdotal” não é uma verdadeira historiogra-fia. Sobre o significado e o alcance dos termos “Javista” e “Sacerdotal”, ver o Cap. II, § 2, a.

16. Cf. RENDTORFF, R. The Paradigm is Changing: Hopes and Fears, BI 1, 1993, 34-53 (45).

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contribuíram para um novo reajuste das dimensões históricas dos textos e para uma nova consideração da literatura como reflexo da época em que foi escrita, mais do que como prova dos fatos supostamente acontecidos.17

2o Ideologia

O interesse pela “mensagem” teológica do Pentateuco é um dos intentos mais importantes nos estudos realizados nas últimas décadas.18 A “história bí-blica” foi classificada numa pequena “história da salvação”, sublinhando, desta forma, seu aspecto teológico. Mais que uma história de Israel, as narrações do Pentateuco se assemelham a um relato das gestas de Javé.

O Pentateuco não somente apresenta Deus salvando na história, mas também abençoando. No aspecto geral, podemos distinguir duas categorias: a histórica e a da providência. Os livros do Êxodo e dos Números são orientados para os acontecimentos históricos; o Gênesis e o Deuteronômio, para a bênção.19 Criação e história estão intimamente inter-relacionadas.

Além disso, o Pentateuco é fruto de um processo espiritual e canônico. Alguns estudos recentes mostraram a importância de considerar a Torá / o Pentateuco como Escritura normativa para uma comunidade.20

3o Estética

Para a composição do Pentateuco, seguiram-se regras e cânones estéticos em parte já estabelecidos nas culturas sobre Israel. Impulsionados pela sua ca-pacidade criativa, os autores bíblicos elaboraram os seus relatos servindo-se das diversas formas literárias (diálogos, monólogos interiores, conselhos etc.) e de diferentes recursos estilísticos (simetria, repetição, jogo de palavras etc.).21 O Pentateuco é pluriforme em estilo, linguagem e voz.

Um aspecto característico dos textos bíblicos narrativos é a mudança da pro-sa à poesia para “expressar sentimentos fortes”22, para realizar algumas ideias importantes23 ou para outros fins estéticos. Os textos poéticos se encontram no fi-

17. Cf. CARROLL, R.P. Enfoques postestructuralistas. Neohistoricismo y modernismo. In: Barton, J. (ed.). La interpretación bíblica, hoy. Santander, 2001, 70-88 (76).

18. Cf. RENDTORFF, R. Directions in Pentateuchal Studies. CR:BS 5, 1997, 43-65 (57). 19. Cf. WESTERMANN, C. Blessing in the Bible and in the Life of the Church. Philadelphia, 1978, 26-59. 20. Cf. SANDERS, J.A. Torah and Canon. Philadelphia, 1972; CHILDS, B.S. Introduction to the Old

Testament as Scripture. Philadelphia, 1979, 96-99. 127-135. 21. Cf. ALTER, R. Art of Biblical Narrative. New York, 1981; BERLIN, A. Poetics and Interpretation of

Biblical Narrative. Sheffield, 1983; STERNBERG, M. The Poetics of Biblical Narrative (n. 9). 22. SKA, J.L. “Our Fathers Have Told Us”. Introduction to the Analysis of Hebrew Narratives

(SubBib 13). Roma, 1990, 91. 23. FOKKELMAN, J.P. Genesis. In: KERMODE, F. ; ALTER, R. The Literary Guide to the Bible. London,

1987, 37-44; WEITZMAN, S. Song and Story in Biblical Narrative. Bloomington, 1997.

Características do Pentateuco

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20 O Pentateuco

nal de um pequeno relato, de uma seção ou de um livro. No primeiro caso, se pode tratar de textos poéticos curtos; nos outros dois casos, se encontram poemas mais amplos. Assim, as últimas duas cenas do relato da bênção de Isaac são coroadas com alguns versos (27,27-29.39-40); a primeira parte do Êxodo (Ex 1,1–15,21) culmina com um canto de ação de graças (Ex 15,1-21) e os livros do Gênesis e do Deuteronômio terminam com textos poéticos (cf. Gn 49 e Dt 32; 33).

b) As leis

Na segunda parte do Pentateuco, são conservadas três grandes coleções de leis: o Código da Aliança (Ex 20,22–23,19), a Lei de Santidade (Lv 17–26) e o Código deuteronômico (Dt 12–26). A estas coleções é preciso somar mais ou-tras três pequenas coleções: duas versões do Decálogo (Ex 20,2-17; Dt 5,6-21), mais o “Direito de privilégio de Javé” (Ex 34,10-26). Basicamente, abarcam todos os âmbitos da vida, com especial ênfase em três áreas: a jurídica (jus), a ética (ethos) e a cultual (cultus).

As leis nascem da história e na história, sendo, por isso mesmo, temporais e caducas. No antigo Oriente Próximo, o mesmo que na Grécia ou em Roma, as leis tinham uma origem humana. Teoricamente, isso vale também para as leis do antigo Israel, mas a Bíblia as faz remontar todas a Javé. Estabelece uma distinção fundamental entre o Decálogo e as outras leis: somente o Decálogo foi transmitido diretamente por Deus (Ex 20,2; Dt 5,6); as outras leis foram trans-mitidas por Moisés (cf. Ex 20,18-21.22; Dt 5,22-31).

As leis do Pentateuco nasceram no seio da comunidade israelita. Uma co-munidade de pessoas livres que experimentaram o poder de Deus no momento da libertação do Egito e sua presença próxima na ratificação da aliança, acontecimen-tos decisivos para que o povo crescesse em Javé, o reconhecesse como seu Deus e aceitasse suas leis como norma de vida. Por isso, a legislação bíblica não somente aparece como um dom de Deus, mas também como uma tarefa para Israel.

Com frequência, as leis bíblicas se fundamentam recorrendo à história e se inculcam mediante exortações e admoestações. O tom parenético e as “cláusulas motivantes”, orientadas para convencer e persuadir os israelitas a que fossem fiéis à vontade de Deus, figuram entre as notas características da legislação bíblica.

3. Os personagens

Dos numerosos personagens do Pentateuco, aqui se centralizará a atenção unicamente em Javé, Abraão, Jacó / Israel e Moisés. Também seriam dignos de consideração Henoc, Noé, Isaac, Aarão, Fineias, José e Caleb – evocados por

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Ben Sirac em seu “Elogio dos antepassados ilustres” (44,1–46,12) – ou Adão e Eva, Sara, Rebeca, Lia, Raquel e Miriam, entre outros, mas sua relevância no conjunto da obra é muito menor, por isso, o estudo deles será relegado aos livros ou seções onde são protagonistas.

Nas narrativas bíblicas, os personagens podem estar a serviço da trama; poucas vezes são apresentados por si mesmos. Não obstante, “muitas das con-cepções se encarnam na narração por meio dos personagens; especialmente por meio de sua palavra e de seu destino final”24. Nas leis do Pentateuco, o protago-nismo corresponde a Javé, como legislador; Moisés, como mediador; e Israel, como destinatário.25

a) Javé

O Deus da Bíblia pode ser considerado como um ser real ou como um personagem literário. Em geral, as teologias bíblicas clássicas apresentam Deus como um ser real. Os novos estudos literários tratam Deus normalmente como personagem de um livro. Ambas as aproximações são legítimas e com-plementares.

Como Deus da Bíblia, é um personagem complexo, com uma gama muito vasta e variada de aspectos conflitivos e inclusive contraditórios,26 o que difi-culta sua compreensão e sistematização. Mais que “um personagem”, o Deus da Bíblia contém em si “muitos personagens”.27

No Pentateuco, sua presença é constante (somente o nome de Javé [ou no caso da Bíblia Ave-Maria: Senhor] aparece 1.820 vezes); suas palavras e ações são decisivas. Nos momentos cruciais, sempre intervém. Javé é prota-gonista por excelência do Pentateuco; todos os outros personagens dependem dele. O nome Javé aparece diretamente ligado à época de Moisés (Ex 3,13-15 relata o momento de sua revelação); indiretamente, também em épocas anteriores (cf. Gn 2,4; 4,26; 12,1...).

Javé define-se a si mesmo como “o Deus de Abraão, Isaac e Jacó” (Ex 3,6.15) e como “o que fez sair Israel do Egito” (Ex 20,2). O Deus dos

24. BAR-EFRAT, S. Narrative Art in the Bible (JSOT SS 70). Sheffield, 1989, 47. 25. Cf. WATTS, J.W. Reading Law. Rhetorical Shaping of the Pentateuch. Sheffield, 1999, 89-130. 26. Cf. BERLIN, A. Poetics (n. 21), 1983, 23-24. “O conjunto de aspectos que forma a fotografia de Deus

emerge só e gradualmente e somente através da ação mesma, começando com a criação da luz mediante um conciso fiat” (STERNBERG, M. The Poetics [n. 9], 322). Ver também CLINES, D.J.A. God in the Pentateuch: Reading against the Grain. In: Id. Interested Parties: The Ideology of Writers and Readers of the Hebrews Bible (JSOT SS 205). Sheffield, 1995, 187-211; Id. Images of Yahweh: God in the Pentateuch. In: HUBBARD, R. L. e outros (eds.). Studies in Old Testament Theology. Dallas, 1992, 79-98.

27. GUNN, D.M. ; FEWELL, D. N. Narrative in the Hebrew Bible. Oxford, 1993, 89.

Características do Pentateuco

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antepassados de Israel (Gn 12–50) possui as características de um patrão; o Deus do Êxodo-Deuteronômio, as de um guerreiro e de um legislador. A estes se somam os aspectos próprios do Deus criador (Gn 1–11), assim já ficam esbo-çadas as características mais salientes do Deus do Pentateuco.

b) Abraão

Os relatos do livro do Gênesis mostram Abraão como o pai de Isaac e o avô de Jacó, isto é, como o grande antepassado de Israel. Com Abraão começa uma nova etapa. Na perspectiva do livro do Gênesis, a história do começo da humanidade avança para Abraão, com quem Deus fará “uma grande nação” (Gn 12,2). Abraão é o pai de todo o Israel, como Adão o é de toda a humanidade.

Abrão, Nacor e Arã (Gn 11,26), tal qual os descendentes de Sem (Gn 11,10-25) ou de Adão (Gn 5), aparecem como elo de uma longa cadeia de seres humanos. O que faz de Abraão um personagem realmente distinto e singular é o chamado de Deus para romper com todo o seu passado (Gn 12,1) e a empreender uma nova aventura (Gn 12,2-3), sua fé e obediência ao mandato divino (Gn 12,4a). 28 E tudo isso aos 75 anos! (Gn 12,4).29 O texto bíblico não narra nada dos 74 anos de vida de Abraão. Ao autor do livro do Gênesis somente lhe interessa a figura de Abraão a partir do chamado divino.

As narrativas sobre Abraão não procuram oferecer uma biografia do personagem. São em grande parte legendárias e teológicas. Redigidas mui-tos séculos depois da suposta época de Abraão,30 em sua maioria durante o exílio da Babilônia ou inclusive na época pós-exílica, essas narrativas têm por objetivo oferecer um paradigma para os judeus que viviam ou haviam vivido no exílio e procuravam refazer sua vida na terra de Canaã, o que não deixava de constituir uma nova aventura equiparável de certo modo à do mesmo Abraão.

28. Cf. GARCÍA LÓPEZ, F. Abraão, amigo de Deus e pai dos crentes. In: Creyentes ayer e hoy (TeD 15). Salamanca, 1998, 53-76 (59-70).

29. Quando Abraão sai de Harã, seu pai, Taré, ainda está vivo. Com efeito, Taré tinha 70 anos quando Abraão nasceu (Gn 11,26). Se Abraão saiu de Harã aos 75 anos (Gn 12,4), Taré morreu com 205 anos (Gn 11,32), este ainda vivia quando Abraão partiu. O narrador conclui o relato de Taré (Gn 11,32), antes de iniciar o de Abraão (Gn 12,1�25,11), apesar dos dois terem vivido simultaneamente durante muitos anos. É uma técnica narrativa utilizada também com outros personagens bíblicos (cf. SKA, J.L. Essai sur la nature et la signification du cycle d�Araham (Gn 11,27�25,11). In: WÉNIN, A. [ed.]. Studies in the Book of Genesis [BETL 155]. Leuven, 2001, 153-177 [157] ).

30. Fora do Pentateuco, Abraão aparece relativamente pouco e sempre nos textos exílicos e pós-exílicos: cf. Js 24,2-4; 1Rs 18,36; 2Rs 13,23; Is 29,22; 41,8. 51,2; 63,16; Jr 33,26; Ez 33,24; Mq 7,20; Sl 47,10; 105,6-10.42; 1Cr 1,27-34; 16,16; 29,18; 2Cr 20,7; 30,6; Ne 9,7-8.

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c) Jacó/Israel

Nos textos bíblicos, o nome de Jacó aparece pouco ligado intimamente ao de Israel. Unem-se pela primeira vez em Gn 32,29 (“Teu nome não será mais Jacó, mas Israel”; cf. 35,10) e há um intercâmbio na História de José (comparar Gn 37,13 / 34; 42,5 / 1.4.29.36; 45,21.28 / 25.27; 46,1-2.5.30 / 2.5-6.8.18-19.22.25-27; 47,27 / 7-10; somente em Gn 43 se usa Israel, sem mudar ou mesclar-se com Jacó: cf. os v. 6.8.11). A partir de Gn 45,25–46,5 se usam na busca de alternância: primeiro Jacó (Gn 45,25), em seguida Israel (45,28; 46,1-2) e, finalmente, Jacó (Gn 46,5).

A série de episódios relativos ao nascimento e juventude de Jacó (Gn 25,21-34; 27,1-40), sua fuga e o encontro no poço com a que seria sua futura esposa (Gn 27,41-45; 29,1-14), o matrimônio e o nascimento de seus filhos (Gn 29,15–30,24) e o retorno e o encontro com seu irmão (Gn 31,1–32,22; 33,1-20) apresentam sua personalidade individual, que vai transformando-o num herói epônimo de Israel. Nos aspectos individuais de Jacó, se pode perceber alguns componentes essenciais do povo de Israel. A História de Jacó, situada na última parte do livro do Gênesis (25–50), conduz para a história do povo de Israel, que começa no livro do Êxodo.31

A tradição bíblica não conservou um retrato “hagiográfico” de Jacó. Pelo contrário, aparece desde o início marcado pela ambiguidade (cf. Gn 27,18-19.36). No entanto, Jacó / Israel é o escolhido por Deus, a quem deve a sua posição especial diante de seu irmão e diante das outras nações. A escolha divi-na é um sinal do caráter misterioso de Deus, de sua gratuidade.

d) Moisés

A presença e o protagonismo de Moisés no Êxodo-Deuteronômio são tão decisivos que sem eles não se entenderia os acontecimentos apresentados nesses livros.

A riqueza e a variedade de facetas da figura de Moisés32 explicam satisfa-toriamente os numerosos estudos a ele consagrados. Desde o século I d.C., em

31. Conforme PARDES, I. (Biography of Ancient Israel. National Narratives in the Bible, Berkeley, 2000, 1-11), nos textos bíblicos – especialmente do livro do Êxodo e o livro dos Números, nos quais são colocadas as questões fundamentais sobre a origem e a singulariedade de Israel, onde a nação israelita está personificada, é um personagem com voz própria. A comparação com personagens individuais paradigmáticos – especialmente com Jacó e Moisés – é apresentado assim; cf. PURY, A. As duas lendas sobre a origem de Israel (Jacó e Moisés) e a elaboração do Pentateuco, EstBibl 52, 1994, 95-131.

32. A título de exemplo, cf. VOGELS, W. Moïse aux multiples visages. De l’Exode au Deutéronome. Montréal, 1997.

Características do Pentateuco

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24 O Pentateuco

que Filón escreve De Vita Mosis, até os nossos dias, exegetas, historiadores, artistas, literatos e músicos sentiram-se atraídos por esse personagem singular, do qual fizeram as mais diversas representações: “tantas são as fotografias de Moisés quanto os autores que lhe dedicaram um estudo”33.

Para Baltzer, as narrações de Moisés constituem parte de sua “biografia”34. Segundo Knierim, o Pentateuco consta de duas grandes seções: Gênesis e Êxodo-Deuteronômio. Contrariamente ao que pensam muitos, Êxodo-Deuteronômio não seria tanto uma história narrativa de Israel quanto uma “biografia de Moisés”, introduzida pelo livro do Gênesis.35 Na opinião de Van Seters, no Êxodo-Deuteronômio, se encerra uma biografia especial de Moisés (desde o nascimento [Ex 2] até sua morte [Dt 34]). Não é a biografia de um lí-der no sentido moderno, mas uma pseudo-biografia, completamente orientada para o interesse e o destino do povo. “A vida de Moisés é a vida do primeiro e maior líder do povo.”36

Moisés aparece como um instrumento de Deus a serviço do povo. Sua vocação e missão lhe configuram como um chefe e como um profeta (cf. Ex 3,10ss; cf. Dt 34,10-12). No monte Sinai intervém como mediador entre Deus e Israel (cf. Ex 20,18-19; Dt 5,5). Cada vez que o povo se queixa e murmura no deserto, Moisés intercede diante de Javé, pedindo o perdão ou a ajuda para o povo (cf. Ex 14,31; Dt 34,5) com quem manteve uma relação singular (cf. Nm 12,6-8; Dt 34,10).

Numa palavra, a personalidade de Moisés está estreitamente unida por Javé e Israel. Continua viva e presente na Torá, da qual Javé, Jacó / Israel e o mesmo Moisés são indiscutivelmente os protagonistas.

4. Tempo e espaço

As categorias cronológicas e geográficas possuem um papel importante no Pentateuco. Algumas vezes percorrem juntas (cf. Ex 19,1-2 e Nm 10,11-12); ou-tras vezes, a maioria, separadamente. Sua função estruturante em alguns textos e seções lhes confere um valor a mais.

33. Cf. MARTÍN-ACHARD, R. Moïse, figure de médiateur selon l’Ancien Testament. In: MARTÍN-ACHARD, R. e outros (eds.). La figure de Moïse. Écriture et relectures. Genève, 1978, 13; GARCÍA LÓPEZ, F. O Moisés histórico e o Moisés da fé, Salm 36, 1989, 5-21. Entre as obras recentes, consultar KIRSCH, J. Moses. A Life. New York, 1998; OTTO, E. (ed.). Mose. Ägypten und das Alte Testament (SBS 189). Stuttgart, 2000.

34. BALTZER, R.E. Biographie der Propheten. Neukirchen-Vluyn, 1975, 38. 35. KNIERIM, R.P. The Composition of the Pentateuch. In: Id. The Task of the Old Testament Theology.

Substance, Method, and, Cases. Grand Rapids, 1995, 351-379. 36. VAN SETERS, J. The Life of Moses. The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers. Louisville, 1994, 2-3.

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a) A dimensão temporal

Um aspecto fundamental da narrativa é sua dimensão temporal. A sucessão dos elementos narrativos possuem uma íntima relação com a sequência cronológica desses elementos. Nas análises de tipo narrativo se pode distinguir entre o tempo narrado e o tempo de narrar. O primeiro é o tempo em que as ações e os aconteci-mentos relatados duram. Mede-se por minutos, dias, anos etc. O segundo se refere ao tempo material necessário para contar uma coisa. Mede-se por palavras, versícu-los, capítulos etc. A relação entre as duas determina o ritmo da narrativa.

O tempo narrado na primeira parte do Pentateuco é consideravelmente mais longo que na segunda. Desde a criação do mundo (Gn 1) até a saída do Egito (Ex 12,40-41) transcorreram 2.666 anos, isto é, dois terços exatos de um período do mundo de 4.000 anos. Por sua vez, desde a saída do Egito até a morte de Moisés (Dt 34,7) passaram-se somente 40 anos. O tempo narrado no livro do Deuteronômio se reduz a um dia: o último dia da vida de Moisés (Dt 1,3; 32,48).

A enorme extensão do tempo narrado no livro do Gênesis corresponde ao seu caráter mítico e legendário. Boa prova disso é a longevidade excepcional atribuída aos antepassados da humanidade, que vai diminuindo à medida que se aproximam à história. Antes do dilúvio, os seres humanos viviam entre 969 e 777 anos (excetua-se Henoc, do qual não se diz que morreu: cf. Gn 5). Depois do dilúvio, vivem entre 600 e 205 anos (cf. Gn 11,10-26) e, a partir de Abraão, entre 200 e 100 anos. Embora esses números distanciam muito dos oferecidos por algumas listas de reis sumérios anteriores ao dilúvio, que viveram entre 43.200 e 18.600 anos,37 ultrapassam com o crescer da idade o normal da raça humana: 70-80 anos, conforme diz o salmista (Sl 90,10), e entre 21 e 66 anos, a julgar pela idade dos reis que reinaram em Israel entre 926 e 597 a.C.38

Sobre o tempo de narrar, dão uma ideia muito aproximada os versículos de cada livro: Gênesis, 1.534; Êxodo, 1.209; Levítico, 859; Números, 1.288 e Deuteronômio, 955.39

b) A dimensão de espaço

“Meu pai era um arameu prestes a morrer, que desceu ao Egito com um pu-nhado de gente para ali viverem como forasteiros” (Dt 26,5). Essa frase sintetiza

37. Cf. BOADT, L. Reading the Old Testament. An Introduction. New York, 1984, 123. 38. HARRIS, J.G. Old Age. In: FREEDMAN, D.N. (ed.). The Anchor Bible Dictionary, V. New York,

1992, 11; cf. HUGHES, J. Secret of Times. Myth and History in Biblical Chronology (JSOT SS 66). Sheffield, 1990, 5-54.

39. Sobre o número de palavras nos livros do Pentateuco, cf. Cap. VIII, § 1.

Características do Pentateuco

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26 O Pentateuco

uma das facetas mais significativas não somente de Jacó, mas também dos pa-triarcas em geral e do povo de Israel, especialmente antes da tomada da posse da terra. Uma das notas mais características do Pentateuco é o caráter itinerante de seus personagens.

Os patriarcas (a História das Origens é um caso à parte) transcorrem gran-de parte de suas vidas errando de um lugar para outro. Seu itinerário cobre um amplo raio que vai desde Ur dos Caldeus (Gn 11,28), na Mesopotâmia, até o Egito (Gn 46,6-7), passando por Harã (Gn 11,31) e Canaã (Gn 12,5), onde residem a maior parte do tempo. Em Canaã vivem como “estrangeiros” / “residentes” e como “peregrinos” (Gn 15,13; 17,8; 23,4; 28,4). Ali se movem frequentemente de um lugar para outro (Gn 12,5.6.8.9; 13,3.17.18; 20,1; 22,2; etc.). Os itinerários patriarcais contribuem para a coesão dos textos e dos perso-nagens do livro do Gênesis.40

Os israelitas viajaram do Egito a Canaã, passando pelo deserto do Sinai. Salvo o ano aproximado que permaneceram ao pé da montanha santa, os ou-tros 39 anos transcorreram-se no deserto e se caracterizam pelas mudanças constantes de lugar. Em Nm 33,1-49 se conserva uma lista de paradas que vão do Egito – concretamente de Ramsés (Ex 12,37) – até Moab, onde Moisés morreu (Nm 22,1; Dt 34,1.8). Entre estes dois extremos, os textos vão assina-lando passo a passo, mediante uma série de “fórmulas itinerário”, as diversas etapas que – a seu modo – estruturaram o conjunto dos textos.41

O objetivo final dos itinerários dos patriarcas e de seus descendentes é a terra de Canaã. Esta aparece desde o início ligada a uma promessa divina e constitui um dos temas dominantes do Pentateuco.42 Na realidade, o Pentateuco – desde Gn 12 até Dt 34 – se encontra marcado pelas referências à terra prometi-da (cf. Gn 12,1-8; 13,14-17; Dt 34,1-4). Javé convida Abraão a dirigir seu olhar para o norte e o sul, para o leste e o oeste (Gn 13,14), e contemplar a terra com a promessa de que “toda a terra que vês eu a darei a ti e aos teus descendentes para sempre” (Gn 13,15). A expressão “toda a terra” aparece aqui pela primeira vez no Pentateuco e voltará a aparecer pela última vez em Dt 34,1, onde Javé convida Moisés a olhar para os quatro pontos cardeais da terra prometida, como um dia fizera Abraão (cf. Dt 34,1-4).

Em síntese, a terra de Canaã é a meta das grandes viagens dos patriarcas e israelitas: desde a Mesopotâmia, através de Canaã, até o Egito (patriarcas), e do

40. Cf. DEURLOO, K.A. Narrative Geography in the Abraham Cycle, OTS 26, 1990, 48-62 (48-53); COLLIN, M. Une tradition ancienne dans le cycle d’Abraham. Don de la terre et promesse en Gn 12–13. In: HAUDEBERT, P. (ed.). Le Pentateuque. Débats et recherches (LD 151). Paris, 1992, 209-228.

41. Cf. Cap. IV, § I, 3. 42. CLINES, D.J.A. The Theme of the Pentateuch (JSOT SS 10). Sheffield, 1978.

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Egito, através do deserto, até Canaã (israelitas). Dois grandes itinerários simé-tricos que abarcam praticamente todo o Pentateuco.43

5. Problemas especiais

a) Duplicações e repetições

Tanto nos textos narrativos como nos legais, aparecem duplicações e repe-tições que dão ao Pentateuco uma fisionomia peculiar.

Nas narrativas, às vezes aparecem duas ou mais versões de um mesmo acon-tecimento. Estas podem estar superpostas (Gn 1,1–2,3; 2,4–3,24: dois relatos da criação); separados por textos diferentes (Gn 12,10-20; 20,1-18; 26,1-11: três ver-sões da mulher-irmã; no Ex 16; Nm 11,4-35: episódios do maná e das codornizes; em Ex 17,1-7; Nm 20,1-13: episódios da água em Meriba) ou entremesclados (Gn 6–9: duas versões do dilúvio; em Ex 14: duas versões dos acontecimentos do mar).44

Nas leis, a duplicação mais notória é a do decálogo (Ex 20,2-17; Dt 5,6-21). Merecem ser destacadas, assim mesmo, as duplicações-repetições das leis sobre os escravos (Ex 21,2-11; Lv 25,39-55; Dt 15,12-18), as festas (Ex 23,14-17; Lv 23; Dt 16,1-17), os juízes (Ex 23,2-8; Lv 19,15-16; Dt 16,18-20) e os empréstimos por interesses (Ex 22,24; Lv 25,35-37; Dt 23,20-21).45

b) Linguagem, estilo e teologia

O livro do Deuteronômio emprega uma série de rodeios típicos, sem pa-ralelos nos outros quatro livros do Pentateuco. Assim, as expressões “amar a Javé” (Dt 6,5; 10,12; 11,1.13.22; 13,4; 19,9; 30,6.16.20), “com todo o teu coração e com toda a alma” (4,29; 6,5; 10,12; 11,13; 13,4; 26,16; 30,2.6.10), “fazer o que é reto e bom aos olhos de Javé” (6,18; 12,25.28; 13,19; 21,9), “o lugar que Javé escolhera para fazer morar/colocar ali o seu nome” (12,5.11.21; 14,23.24; 16,2.6.11; 26,1), etc. Esses e muitos outros rodeios46, juntamente com a tonalidade parenética, dão um distintivo especial ao livro, conhecido como “linguagem e estilo deuteronomistas”.

43. As categorias de “espaço” e “tempo” têm também uma dimensão cultual (cf. nota 15). 44. Para uma análise completa deste problema, cf. NAHKOLA, A. Double Narratives in the Old Testament.

The Foundations of Method in Biblical Criticism (BZAW 290). Berlin, 2001. 45. Cf. GARCÍA LÓPEZ, F. El Deuteronomio. Una ley predicada (CB 63). Estella, 1989, 30; (Tradução em

português, Paulus) LASSERRE, G. Synopse des lois du Pentateuque (SVT 59). Leiden, 1994. 46. Sobre a fraseologia deuteronômica, cf. WEINFELD, M. Deuteronomy and the Deuteronomic School.

Oxford, 1972, 320-365; Id. Deuteronomy 1-11 (AB 5). New York, 1991, 36.

Características do Pentateuco

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28 O Pentateuco

Por outro lado, os livros Gênesis-Números utilizam termos e expressões que nunca aparecem no livro do Deuteronômio. Entre os muitos exemplos, cabe mencionar o par verbal “crescer e multiplicar-se” (Gn 1,22.28; 8,17; 9,1.7; 17,20; 28,3; 35,11; 47,27; 48,4; Ex 1,7; Lv 26,9), as expressões “aliança eterna” (Gn 9,16; 17,7.13.19; Ex 31,16; Lv 24,8; cf. Nm 18,19; 25,13) e “glória de Javé” (Ex 16,7; 24,16; 40,34.35; Lv 9,6.23; Nm 14,10.21; 16,19; 17,7; 20,6) ou os ter-mos edah (“comunidade”), miskan (“santuário”), qorban (“oferenda”) etc., que são repetidos sobretudo em Ex 25–Nm 10 e em outras passagens afins.47 Esses termos possuem relação com o sacerdócio, o santuário e o culto e podem ser qualificados de “sacerdotais”.

Via de regra, os termos e expressões anteriores encerram uma concepção bem definida. Por exemplo, a frase “no lugar que Javé escolhera...” denota a centralização do culto, uma ideia tipicamente deuteronomista. Analogicamente, a expressão “aliança eterna” caracteriza os textos sacerdotais; embora o tema da aliança seja fundamental no livro do Deuteronômio, ele nunca emprega essa expressão. A aliança deuteronomista é bilateral, implica alguns compromissos e pode ser rompida; por sua vez, a aliança sacerdotal é unilateral, não implica propriamente compromissos dos quais dependa e não pode ser rompida, razão pela qual é “eterna”.

c) Tetrateuco, Pentateuco, Hexateuco e Eneateuco48

As diferenças terminológicas, estilísticas e teológicas entre o livro do Deuteronômio e os quatro primeiros livros da Bíblia (= Tetrateuco) – esbo-çadas brevemente no tratado anterior – levaram alguns autores a separar o Tetrateuco do livro do Deuteronômio e a considerá-los como dois blocos distin-tos. Neste sentido, dever-se-ia falar de Tetrateuco – deixando de lado o livro do Deuteronômio – e não de Pentateuco.

A partir de outra perspectiva, por sua vez, seria preferível falar de Hexateuco (Gênesis-Josué). Efetivamente, Deus promete primeiro aos antepas-sados de Israel (Gn 12–50) e em seguida a Moisés e aos israelitas (Ex 3 e 6) de dar-lhes a terra de Canaã. Pois bem, o Pentateuco termina com o relato da morte e o sepultamento de Moisés em Moab, diante de Jericó, fora da terra prometida

47. Cf. DRIVER, S.R. An Introduction to the Literature of the Old Testament. Edinburgh, 1961, 130-135; HURVITZ, A. A Linguistic Study of the Relationship between the Priestly Source and the Book of Ezekiel. A New Approach to an Old Problem (CRB 20). Paris, 1982.

48. Cf. MOWINCKEL, S. Tetrateuch-Pentateuch-Hexateuch. Die Berichte uber die Landnahme in den drei altisraelitischen Geschichtswerken (BZAW 90). Berlin, 1964; AULD, A.G. Joshua, Moses and the Land. Tetrateuch-Pentateuch-Hexateuch in a Generation since 1938. Edinburgh, 1980; RÖMER, T. La fin de l�historiographie deutéronomiste et le retour de lHexateuque, ThZ 57, 2001, 269-280.

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(Dt 34). A entrada em Canaã e a distribuição da terra entre as tribos é narrada no livro de Josué. Originariamente, esse livro pode ter formado parte de uma obra juntamente com os cinco primeiros livros da Bíblia.

Mas a História de Israel não termina com Josué. A partir da conquista da terra (Josué), ela se estende até sua perda, exílio (2Reis). Tal história se encontra unida à anterior (Gênesis-Deuteronômio), formando uma grande composição literária que abrange desde a criação do mundo até o exílio da Babilônia. De fato, algumas referências conectam os acontecimentos relatados no começo e no final desses livros. Assim, em 1Rs 6,1 se diz que o templo de Salomão foi construído 480 anos depois do êxodo. A partir deste ponto de vista, poder-se-ia falar de Eneateuco (Gênesis-Reis).49

Por mais razoável que fossem essas hipóteses, o certo é que com a morte de Moisés (Dt 34) termina um período da História de Israel e se estabelece um corte entre os cinco primeiros livros da Bíblia e os livros que se seguem. Surge assim o Pentateuco, uma obra com um final aberto, no qual, coexistem ao me-nos dois tipos de linguagem, estilo e teologia.

Desta série de características se deduz que o Pentateuco é uma composição literária complexa, suceptível das mais diversas interpretações. Como inter-pretar as duplicações e as repetições ou as mudanças de vocabulário, estilo e ideologia? Quais os motivos que se passaram entre os responsáveis pela obra no momento de “concluí-la” como Pentateuco e não como Tetrateuco, Hexateuco ou Eneauteuco? Essas e outras questões serão o assunto do próximo capítulo.

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49. Cf. SCHMID, K. Erzväter und Exodus. Untersuchungen zur doppelten Begrundung der Ursprunge Israels innerhalb der Geschichtsbucher des Alten Testaments (WMANT 81). Neukirchen-Vluyn, 1999, 18ss.

Características do Pentateuco

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CAPÍTULO II

A Interpretação do Pentateuco

Cada época tem a sua própria maneira de ler a Bíblia, de acordo com as correntes intelectuais do momento. Os trabalhos de Fr. Luís de León e de Arias Montano, por exemplo, refletem as correntes humanistas do renascimento. Durante o iluminismo, começaram a ser aplicados os métodos histórico-críticos. Mais tarde, a filosofia de Hegel, o positivismo e o evolucionismo e estudos antropológicos, psicológicos e sociológicos contribuíram também para o desen-volvimento da investigação bíblica.

A partir de meados do século XX, a tendência mais aguçada na interpreta-ção bíblica é a da nova crítica literária. Apresenta os estudos histórico-críticos que haviam acampado durante mais de dois séculos e, nas últimas décadas, aberto passagem para os novos métodos literários. Do mesmo modo que foram se diversificando os métodos histórico-críticos, também foram se multipli-cando os novos métodos literários. A pluralidade dos estudos é um sinal dos tempos atuais.1

Neste capítulo o que nos interessa são os métodos utilizados no estudo do Pentateuco, pelos seus principais expoentes e pelos resultados obtidos. Depois de uma breve apresentação dos estudos pré-críticos, será dedicado um espaço mais amplo aos estudos histórico-críticos e aos literários, para concluir com uma breve avaliação e assinalar as pautas a serem seguidas.

1. Clines, D.J.A.; Exum, J.C. The New Literary Criticism. In: EXUM, J.C. ; CLINES, D.J.A. (eds.). The New Literary Criticism and the Hebrew Bible (JSOT SS 143). Sheffield, 1993, 14-15. Conforme CARROLL, R.P. (enfoques pós-estruturalistas, neo-historicistas e pós-modernistas em BARTON, J. [ed.]. La interpretación bíblica, hoy [PT 113]. Santander, 1998, 86), “o futuro dos estudos bíblicos parece ser brilhante, mas bastante confuso”.

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1. Período pré-crítico

A tradição judaica e a cristã atribuíram, desde os primórdios, a Torá a Moisés; 2 conforme Filón e Josefo, Moisés escreveu inclusive o relato de sua mor-te (Dt 34,5ss)3. Essa tradição, praticamente unânime durante séculos, toma ao pé da letra algumas afirmações do Pentateuco sobre a atividade de Moisés como escritor. Afirma-se, por exemplo, que Javé encarregou a Moisés escrever num “Livro de memórias” a vitória de Israel sobre os amalecitas (Ex 17,14) e que Moisés escreveu o “Código da Aliança” (Ex 24,4) e o “Direito de privilégio de Javé” (Ex 34,27). Assim mesmo Nm 33,2 nos informa que Moisés foi registrando, numa espécie de diário ou livro de viagens, as diferentes etapas da caminhada pelo deserto. Finalmente, Dt 31,9.24 alude a Moisés como escritor da Torá.

No entanto, algumas das indicações anteriores nos convidam muito mais a pensar que Moisés não pode ser o autor de todo o Pentateuco. Já Ibn Ezra (+1167) advertiu que Dt 31,9 se refere a Moisés na terceira pessoa (“Moisés escreveu”), quando o normal seria que o fizesse em primeira pessoa se fosse o autor do livro do Deuteronômio. Cabe duvidar, assim mesmo, que se Josefo e Filón se viram na necessidade de afirmar que Moisés escreveu o relato de sua morte é porque havia boas razões para duvidar disso. Não é estranho, pois, que o Talmud o coloque em dúvida, ao mesmo tempo nos indica que o Dt 34,5-12 foi acrescentado por Josué. 4 Ibn Ezra aponta para outras possibilidades adicio-nais à Torá, posteriores a Moisés. Mas tanto ele como os demais comentaristas medievais aceitaram a tradição mosaica do Pentateuco.

A exegese pré-crítica é fundamentalmente a-histórica. Interessa-se so-bretudo pelas ideias teológicas, subjacentes nos textos. O problema do autor o admite pacificamente, sem deter-se em sua discussão.

2. Estudos histórico-críticos clássicos

A crítica histórica se caracteriza pela utilização dos métodos histórico-críti-cos. Estes têm como principal objetivo analisar o processo da formação dos textos. Para isso, servem-se de critérios “científicos”, buscando a maior objetividade possível. Trata-se, em definitivo, de analisar os textos bíblicos com os mesmos métodos empírico-racionais empregados para o estudo de outros textos antigos.

O iluminismo supôs uma mudança de orientação: os textos bíblicos co-meçaram a ser considerados como textos do passado muito mais que textos

2. Cf. Cap. I § 1. 3. FILÓN, De Vita Mosis, II, 51; Josefo, Antiquitates Iudaicae, IV, viii, 48. 4. Cf. bBathra, 14b.

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inspirados. Mas, concretamente, que tipo de textos formam o Pentateuco? Em seguida saltaram aos olhos as duplicações, as repetições, as tensões, as mudan-ças frequentes de estilo etc.5, que teriam que pensar que o Pentateuco não podia ser obra de um só autor. Ao precaver-se da complexidade dos textos, a crítica literária, primeiro, e a crítica da forma, em seguida, se perguntaram: como pode um só autor ter escrito isto? Mas a crítica literária e a da forma não são mais que as primeiras etapas de um processo que, com o passar do tempo, desembocou na crítica das tradições e na crítica da redação. Todas juntas constituem os métodos histórico-críticos.

a) Crítica literária

A primeira tarefa da crítica literária consiste em determinar se um texto é homogêneo ou não, isto é, se se deve a um ou mais autores. A literatura bí-blica não é uma literatura moderna, cuja unidade não é colocada. 6 Na Bíblia Hebraica, ao lado dos textos perfeitamente acabados e coerentes, com uma uni-dade inegável, encontram-se outros compostos. Neste caso, a crítica literária se preocupa em separar os elementos acrescentados dos originais, determinando a unidade ou heterogeneidade do texto. As análises da crítica literária conduziram para soluções muito diferentes.

1o Primeiros passos: O Tostado e Simon

Alfonso de Madrigal (ca. 1410-1455), conhecido como O Tostado, marca o final da época pré-crítica e permite prever o início do período crítico. No seu Comentário ao Deuteronômio (questão III sobre o cap. 34), se pergunta: “An Moyses potuerit scribere prophetice in verbis suis ista quae habentur hic vel scripserit literam istam Esdras et Josue”. E, em termos similares, enuncia a questão IV: “An istud capitulum Esdras tanquam historiographus scriberet sine prophetica revelatione” 7. O problema de fundo das duas questões transformar-se num dos temas centrais das discussões dos especialistas: se o Pentateuco era in-tegralmente obra de Moisés ou se se devia também a Esdras. Já ficava colocada a questão crítica do Pentateuco, que seria definida melhor nos séculos XVI e seguintes.

O Tostado se interessou pelas novas correntes humanísticas do renasci-mento, nas quais surgiu a Poliglota Complutense, qualificada de “peça mestra” e

5. Cf. Cap. I, § 5. 6. RICHTER, W. Exegese als Literaturwissenschaft. Entwurf einer alttestamentlichen Literaturtheorie und

Methodologie. Göttingen, 1971. 7. TOSTATI, A. Comentaria in Deuteronomium, III/2. Coloniae, 1613, 317-319.

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“obra monumental” da arte tipográfica e da ciência bíblica. 8 Neste marco, apa-receram Gaspar de Grajal, Luis de León, Cantalapiedra, Arias Montano e outros biblistas espanhóis de primeira linha que merecem um lugar de destaque entre os pioneiros da exegese moderna. M. Andrés, bom conhecedor da história da teologia do século XVI, não duvida em afirmar: “são os fundadores da exegese moderna, anteriores a Ricardo Simon, Juan Morin e Luis Cappel”. 9

No entanto, se pode considerar que foi Simon (1638-1712)10 o verdadeiro inaugurador da crítica bíblica moderna. Na sua obra Historie critique du Vieux Testament (1678), observa a existência de duplicações, tensões, mudanças de es-tilo e outra série de aspectos formais e temáticos, que seriam os critérios sobre os quais trabalharia normalmente a crítica literária. Essas observações vêm con-firmar as dúvidas de que Moisés não pode ter sido o autor do Pentateuco. Simon defende que no Pentateuco existem fontes, anteriores a Moisés, e acréscimos (adi-ções) posteriores a ele. Em sintonia com O Tostado e avançando sobre o que foi apontado por esse autor, reconhece a Esdras como o compilador do Pentateuco. Segundo Simon, uma verdadeira cadeia de “escritores públicos”, que trabalharam desde a época de Moisés até a de Esdras, foram registrando os principais aconte-cimentos da História de Israel assim como os textos legislativos que foram sendo transmitidos de geração para geração até a sua definitiva compilação por Esdras.

2o Hipótese documentária antiga: Witter e Astruc

Witter e Astruc, independentemente, observaram que, em algumas pas-sagens do Pentateuco, Deus se chama Elohim, enquanto que em outras é denominado Javé. Witter limita seu estudo aos primeiros capítulos do livro do Gênesis.11 Astruc, por sua vez, estende esse trabalho para todo o livro do Gênesis e aos primeiros capítulos do livro do Êxodo. Da aplicação do critério da mudança dos nomes divinos, surge a hipótese documentária: a existência de dois documentos, o elohista e o javista, ao menos nas seções analisadas.

Além das duas fontes ou documentos principais, Astruc admitia a existên-cia de outras fontes secundárias. Moisés serviu-se de outras formas para compor o Pentateuco.12

8. AVILÉS, M. A teologia espanhola no s. XV. In: ANDRÉS, M. (dir.). Historia de la teología española. I. Desde sus orígenes hasta fines del s. XVI. Madri, 1983, 495-577 (520).

9. ANDRÉS, M. A Teologia no século XVI. In: Id. (dir.). Historia de la teología española (n. 8), 579-735 (641).

10. Cf. STUMMER, F. Die Bedeutung Richard Simons fur die Pentateuchkritik. Munchen, 1912; STEINMANN, J. Richard Simon et les origines de l’exégèse biblique. Paris, 1959.

11. Cf. LODS, A. Un précurseur allemand de Jean Astruc: Henning Bernhard Witter. ZAW 43, 1925, 134-135. 12. ASTRUC, J. Conjectures sur les mémoires originaux dont il paraît que Moyse s’est servi pour compo-

ser le récit de la Genèse. Bruxelles, 1753; cf. ASTRUC, J. Conjectures sur la Genèse. Introduction et Notes de P. Gibert. Paris, 1999.

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3o Hipótese dos fragmentos: Geddes e Vater

No final do século XVIII, surge a hipótese dos fragmentos. Recebe os pri-meiros impulsos da dificuldade de encontrar fontes contínuas fora do livro do Gênesis, sobretudo nas partes legais do Pentateuco. Os seus expoentes máximos foram Geddes, em 1792, e Vater, em 1802-1805.

Segundo Geddes, o Pentateuco é uma coleção de fragmentos mais ou me-nos longos, independentes entre si e sem continuidade, cuja colocação atual se deve a dois grupos diferentes de recompiladores: o elohista e o javista.13

Vater centraliza a sua atenção na “Lei”, pois a considera o fundamento do Pentateuco. O núcleo dessa lei se encontrava no livro do Deuteronômio, composto na época davídico-salomônica e redescoberto e reeditado na época de Josias.

Embora essa hipótese esclarecesse vários problemas do Pentateuco, espe-cialmente das seções legais, deixava sem explicação muitos outros, sobretudo das seções narrativas menos fragmentadas.

4o Hipótese dos complementos: Kelle e Ewald

Kelle (1812) é o pai da hipótese dos complementos; Ewald (1823), seu principal intérprete. Ao contrário dos autores da hipótese anterior, Ewald im-punha unidade na trama narrativa do Pentateuco. Mas não escapavam de sua consideração certas divergências nos textos. Por isso pensou que a melhor forma de explicar a composição do Pentateuco era aceitar “um escrito fundamental” (elohista, que em seguida receberia o nome de sacerdotal), completado pela adição de outros textos.14

5o Datação: de Wette15

Não basta distinguir os documentos; além disso, é preciso datá-los. O gran-de mérito de de Wette (1780-1849)16 está em ter identificado o “Livro da lei”, encontrado no templo na época de Josias (2Rs 22), com o livro do Deuteronômio e em ter sabido utilizar esse livro como base para a datação do Pentateuco. Para ele, as medidas adotadas por Josias como consequência da descoberta do “Livro da lei”, em especial as da centralização do culto, se correspondem com

13. Cf. FULLER, R.C. Alexander Geddes, 1737-1802. Pioneer of Biblical Exegesis. Sheffield, 1984. 14. Cf. EWALD, H. Die Composition der Genesis kritisch untersucht. Braunschweig, 1823. 15. Cf. ROGERSON, J.W. ; DE WETTE, W.M.L. Founder of Modern Biblical Criticism An Intellectual

Biography (JSOT SS 126). Sheffield, 1992. 16. DE WETTE, W.M.L. Dissertation critica qua Deuteronomium a prioribus Pentateuchi libris diversum

alius cujusdam recentioris auctoris opus esse monstratur. Halle, 1805.

A Interpretação do Pentateuco

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as leis deuteronomistas (comparar 2Rs 23,4-20 com Dt 12–26). A centralização do culto se transforma no “ponto arquimédico” (Eissfeldt) para a datação do Pentateuco: as leis que pressupõem a centralização do culto são contemporâneas ou posteriores à reforma de Josias (622 a.C.); e não anteriores.17

6o A nova hipótese documentária: Hupfeld, Graf e Wellhausen

Em um estudo feito sobre “as fontes do livro do Gênesis” (1853), Hupfeld propõe uma nova versão da antiga hipótese documentária. Observa que a fonte Elohista não é homogênea, o que o levou a distinguir três fontes no Gênesis: E1, E2 e J. A primeira (E1, que mais tarde se identificou com P = Priesterkodex ou Código sacerdotal) é a fundamental, pois contém a essência da “Lei”. E2 (que em seguida se identificou com o Elohista) é uma fonte independente e posterior, como ocorreu também com J (Javista), a mais antiga das três.18

O desdobramento do Elohista foi um passo importante na crítica literá-ria, pois vinha reconhecer que o nome divino Elohim não bastava, por si só, para atribuir alguns textos a um documento. Uma operação desse gênero teria sido puramente mecânica. Mas a crítica literária não é somente uma técnica, mas também uma arte, que requer uma sensibilidade educada e habituada para aplicar adequadamente os critérios que permitam decidir quando uma peça é homogênea ou não. Como bom crítico, Hupfeld não se limitou a separar alguns textos dos outros, mas analisou cuidadosamente o vocabulário, o estilo, o con-teúdo etc., chegando à firme conclusão de que nem todos os textos que utilizam o nome Elohim pertencem ao mesmo autor ou documento.19

Hupfeld deu um novo passo, muito significativo, ao afirmar que a união das três fontes numa só obra se deve a um redator, cujo trabalho consistiu em ordenar e unir os textos das três fontes.

Graf aceitou a hipótese proposta por Hupfeld, mas mudou a ordem e a da-tação das fontes, apoiando-se em algumas observações de seu mestre E. Reuss. Numa obra sobre “os livros históricos do Antigo Testamento” (1886), Graf ob-serva que nem o livro do Deuteronômio, nem os livros históricos de Josué-Reis, nem os livros proféticos pré-exílicos oferecem indícios claros de haver conheci-do as leis sacerdotais do Pentateuco (argumento do silêncio). Estas, juntamente

17. Outros dados sobre este autor, consultar a Historia de la investigación do Deuteronomio (Cap. VII, § I, 1, a). 18. HUPFELD, H. Die Quellen der Genesis und die Art ihrer Zusammensetzung. Berlin, 1853. 19. A hipótese documentária, em sua forma clássica, manuseia fundamentalmente cinco critérios para dis-

tinguir fontes ou documentos: 1o) duplicações e repetições; 2o) variação (mudança) nos nomes divinos; 3o) contradições no texto; 4o) variação (mudança) na linguagem e estilo; 5o) sinais de compilação e redação de relatos paralelos (cf. CAMPBELL A.F. M.A.; O’Brien. Sources of the Pentateuch. Texts, Introductions, Annotations. Minneapolis, 1993, 6).

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com seu marco narrativo, deviam ser datadas, consequentemente, numa época exílica ou pós-exílica. Desta observação, e para estes estudos, colaboraram ou-tros contemporâneos seus, chegando à conclusão de que o documento sacerdotal (= E1/P) era o mais recente e J, o mais antigo.20

Wellhausen nasceu em Hamelin em 1844. Aos 18 anos mudou-se para Gotinga para estudar teologia. A leitura da obra de Ewald, Geschichte des Volkes Israel, suscitou nele vivo interesse pelo estudo da Bíblia. Em 1871 publicou o seu primeiro trabalho sobre os livros de Samuel. Ao inteirar-se das conclusões de Graf, imediatamente se precaveu de que este autor estava correto, pois de seu estudo sobre o livro de Samuel se deduzia que nem Samuel e nem Reis pressu-punham as leis sacerdotais do Pentateuco (= E1 ou P).

Escreveu duas obras muito influentes na investigação do Pentateuco: uma sobre a composição do Hexateuco e outra sobre a História de Israel. 21 No final da primeira, sintetiza desta forma a composição do Hexateuco:

De J e E surgiu JE (= Jeovista) e com JE se uniu D; Q (= P) é uma obra independente. Ampliada como Código Sacerdotal, Q se uniu com JE + D, de onde surgiu o Hexateuco.22

De acordo com isso, o Hexateuco consta de quatro fontes ou documentos de diversas épocas, o J (Javista/Iavista) e E (Elohista), as mais antigas, serviram de base para o Jeovista (JE), uma composição literário-redacional do século VIII. A fonte D (= Deuteronômio) corresponde à época de Josias, enquanto que a fonte sacerdotal (que, em Prolegomena, qualifica de Priestercodex [P] e, em Die Composition des hexateuchs, de Q [Quattuor, em razão das “quatro alianças”, com Adão, Noé, Abraão e Moisés, existentes, segundo ele, no Código sacerdotal]) pertence à época pós-exílica. A redação final do Pentateuco foi rea-lizada no contexto da reforma de Esdras.

Wellhausen colocou em destaque, como ninguém o teria feito até este momento, o substrato histórico dos textos do Hexateuco, com repercus-sões consideráveis para o modo de conceber a evolução da religião de Israel. Interessava-lhe em especial a evolução das instituições cultuais, refletidas nas

20. Cf. GRAF, K.H. Die geschichtlichen Bucher des Alten Testaments. Zwei historisch-kritischen Untersuchungen, Leipzig, 1866.

21. WELLHAUSEN, J. Die Composition des Hexateuchs und der historischen Bucher des Alten Testaments. Berlin, 1893 (1876-1877); Id., Prolegomena zur Geschichte Israels. Berlin, 1883. Esses dois títulos são significativos dos problemas que realmente preocupavam a Wellhausen: as fontes do Pentateuco e seu substrato histórico. As duas questões se encontravam indissoluvelmente unidas. Dividir as fontes e datá--las, isto é, relacioná-las com uma época histórica, em especial com a história de sua religião, eram duas faces da mesma moeda (cf. RENDTORFF, R. The Paradigm is Changing: Hopes and Fears, BI 1, 1993, 36.

22. Cf. WELLHAUSEN, J. Die Composition des Hexateuchs (n. 21), 207.

A Interpretação do Pentateuco

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fontes. Os textos Jeovistas admitem diferentes lugares de culto (altares, santuá-rios patriarcais, templos etc.). A reforma deuteronomista centraliza o culto no templo de Jerusalém (Dt 12). A fonte sacerdotal pressupõe a centralização como um dado adquirido, porém a situa no exílio (o santuário).23

Como se do flautista de Hamelin se tratasse, esse autor trouxe atrás de si uma multidão de exegetas. A dizer de Kraus, “com a suas investigações filológicas, históricas e da crítica literária, Wellhausen fundou uma escola que determinou durante decênios a vida da ciência veterotestamentária. Mas inclusive todo o tra-balho realizado foi desta escola e, na época mais recente, é inconcebível sem o sólido fundamento que ele colocou para a ciência bíblica do Antigo Testamento”. “Quem poderá contar” – se pergunta Kraus – “os nomes de todos os exegetas que dependem de Wellhausen nas questões decisivas de seu trabalho científico?”24

b) Crítica da forma e da tradição: Gunkel, von Rad e Noth

No estudo da forma – um aspecto fundamental da exegese crítica – não se deve identificar a forma com o gênero; a forma é individual e concreta (é o texto particular), enquanto que o gênero é abstrato (é o tipo de texto).25 Na literatura real não existem mais que as formas; o gênero é um resultado teórico da ciência, uma forma “ideal” ou “típica”. Quando duas ou mais unidades, literariamente independentes, apresentam uma forma idêntica ou similar, se pode falar de um “Gênero”. Muitos textos do Antigo Testamento foram compostos originaria-mente para uma ocasião determinada. A análise da forma procura determinar a situação e as circunstâncias vitais em que os textos nasceram. Para essa busca se pode remontar, teoricamente, ao menos à pré-história dos textos.

O estudo da tradição consiste fundamentalmente na análise da pré-his-tória dos textos. O termo tradição designa um conteúdo oral ou escrito que se

23. A contribuição decisiva de Wellhausen à composição do Pentateuco não se deve tanto às análises crítico-literárias da Composition des Hexateuch, mas ao fato de que, partindo da Dissertation exegetico--critica, segundo de Wette, proporcionou um só fundamento à análise histórico-literário do Pentateuco em seus Prolegomena zur Geschichte Israels e isso graças à reconstrução do culto. Se o calendário festivo dtr de Dt 16 tem a ver com a centralização do culto de Josias, então é preciso distinguir entre alguns estágios cultuais pré-josiano / dtr (J / E) e outros posteriores (P). Aqui está a força de convicção da hipótese documentária. Por isso, a obra de de Wette (e o Deuteronômio) era o “ponto arquimédico” para o Pentateuco (cf. OTTO, E. Do Livro da Aliança à Lei de Santidade. A reformulação do direito israelita e a formação do Pentateuco, EstBíbl 52, 1994, 195-217 [196]).

24. KRAUS, H. J. Geschichte der historisch-kritischen Erforschung des Alten Testaments. Neukirchen-Vluyn 1982, 258s.275. Num estudo recente sobre o legado de WELLHAUSEN, E. ; NICHOLSON, W. (The Pentateuch in the Twentieth Century: The Legacy of Julius Wellhausen. Oxford, 1998), o autor de-fende que a hipótese documentária, embora necessite de algumas revisões, é ainda a que melhor explica o crescimento (desenvolvimento) do Pentateuco e que está longe de seu desaparecimento.

25. RICHTER, W. Exegese als Literaturwisswnschaft (n. 6), 72-152.

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transmite de uma geração para outra, no sentido apresentado em 1Cor 15,3-4. Uma tradição pode ser narrativa, legislativa etc. A crítica das tradições deve começar pela forma dos textos; pressupõe, pois, a crítica da forma. Os dois aspectos metodológicos estão muito próximos entre si. Gunkel se interessou so-bretudo pela forma dos textos, mas os seus estudos deram as bases para a crítica das tradições. Esta adquiriu maior peso na obra de von Rad e de Noth.

Coube a Gunkel26 o mérito de ter incorporado a crítica da forma à análise do Antigo Testamento. Daí ter sido considerado o “fundador da crítica da for-ma” nos estudos bíblicos. O seu objetivo não era romper com a crítica literária nem com a teoria das fontes, mas superá-las, apesar de que “concebeu a sua obra mais como um complemento da Hipótese Documentária que como alternativa a ela”.27 Para Gunkel, não é suficiente determinar os estratos literários do texto bíblico; é preciso perguntar-se, além disso, pelos relatos que estão além das fontes e identificadas pelos críticos.

A literatura do antigo Israel, na opinião de Gunkel, forma parte da vida do povo e assim deve ser entendida. Consequentemente, se pergunta pelo “contexto vital” (Sitz im Leben), pelo ambiente de origem das pequenas uni-dades literárias. Essa questão o leva a sair dos textos escritos para considerar os estágios pré-literários (os protótipos / as tradições orais) de alguns textos bíblicos.

No seu comentário ao livro do Gênesis, formula uma pergunta capital do ponto de vista metodológico: qual é a unidade determinante pela qual a inves-tigação deve começar? Para Gunkel, a unidade não está nas “fontes”, mas nas “pequenas unidades”. No livro do Gênesis, esse tipo de unidade são as lendas: “O Gênesis é uma coleção de ‘lendas’ (Sagen)”; assim reza o frontispício de sua obra. Define a “lenda” (Sage) como “uma narração poética, popular, transmitida desde antigamente, que versa sobre pessoas ou acontecimentos do passado”.28

As lendas no livro do Gênesis, em sua forma primitiva, eram peças indi-viduais e independentes, com um começo e um final bem definidos. No curso de sua transmissão oral foram se agrupando paulatinamente em ciclos, o que se deve, talvez, aos narradores profissionais. Mais tarde foram recolhidas e colo-cadas por escrito numa obra maior. Neste estágio, Gunkel sintetiza tudo isso na sua teoria documentária. O Javista e o Elohista foram os primeiros compiladores das lendas do livro do Gênesis. As diferenças, as tensões ou as contradições

26. Cf. KLATT, W. Gunkel. Zu seiner Theologie der Religionsgeschichte und zur Entstehung der formges-chichtliche Methode (FRLANT 100), Göttingen, 1969.

27. WHYBRAY, R. N. El Pentateuco. Estudio metodológico. Bilbao, 1995, 43. 28. GUNKEL, H. Genesis. Göttingen, 1910 (1901), viii, xix-xx.

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no texto atual não se devem necessariamente à justaposição das fontes; estas podem ser explicadas também pela heterogeneidade das lendas recompiladas.

No julgamento de von Rad, a origem do Hexateuco está no “pequeno credo his-tórico” (sumário da história salvífica com o caráter de profissão de fé) de Dt 26,5b-9,29 relacionado com a festa da aliança em Siquém. As tradições germinalmente contidas neste “credo” (as dos patriarcas, do êxodo, da caminhada pelo deserto e da entrada na terra [faltam as do Sinai e da História das Origens]) foram se desenvolvendo pouco a pouco até formar diferentes complexos de tradição (peças de tipo intermediário em relação às “pequenas unidades” de Gunkel e das “fontes” de Wellhausen).

O primeiro em dar forma literária a essas tradições foi o Javista, um gran-de narrador e teólogo, que escreveu sua obra na época davídico-salomônica, considerada por von Rad como a época do iluminismo em Israel. Ao Javista se deve a incorporação da tradição do Sinai e às outras tradições mencionadas. Além disso, o Javista antepôs ao conjunto de sua grande obra uma História das Origens (Gn 2–11) e acrescentou outros elementos de seu próprio trabalho. Na realidade, foi o verdadeiro autor do Hexateuco. Ao Elohista e ao Sacerdotal, von Rad, por sua vez, concedeu-lhes um papel menos relevante.30

Para Noth, a forma atual das tradições do Pentateuco reflete uma orientação pan-israelita. Para a formulação dessas tradições, o Israel pré-monárquico serviu--se de cinco temas fundamentais (em grande parte coincidem com as afirmações de fé do “pequeno credo histórico”): a saída do Egito, a entrada na Palestina, a promessa dos patriarcas, a caminhada pelo deserto e o Sinai. Tais temas – independentes em sua origem – se uniram entre si e se foram enriquecendo e transformando progressivamente com a integração de outras tradições secundá-rias: as pragas do Egito e a páscoa, episódios da conquista, Jacó em Siquém e na Transjordânia, Isaac e Abraão, a montanha de Deus e os madianitas etc.

Tanto os temas fundamentais como os secundários remontam a tradições orais de tipo cultual e popular. A sua fixação por escrito se deve aos autores das fontes do Pentateuco, que lhes imprimiram os seus próprios aspectos literários e teológicos. As semelhanças e diferenças entre J e E o levam a pensar num “do-cumento básico” comum às duas fontes. Por sua vez, a fonte P é essencialmente narrativa; em princípio continha poucas leis. A fonte P serviu de armadura para a redação final do Pentateuco.31

29. Cf. também Dt 6,20-24; Js 24,2b-13; Sl 136. 30. Cf. VON RAD, G. O problema morfogenético do Hexateuco. In:______. Estudios sobre el Antiguo

Testamento. Salamanca, 1976 (1938), 11-80. 31. Cf. NOTH, M. Überlieferungsgeschichte des Pentateuch. Stuttgart, 1948. Retornaremos sobre este au-

tor ao apresentar a História da investigação do Deuteronômio (Cap. VII, § I, 1, c). Ali abordaremos o método da crítica da redação.

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Desde o Comentário ao livro do Gênesis de Gunkel (1901) até a obra de Noth (1948), transcorreram quase 50 anos. Foi um período fecundo para a exe-gese do Pentateuco. Gunkel, von Rad e Noth inovaram em muitos aspectos, mas sem se separar do modelo das fontes. No entanto teriam que passar vários anos para que se começassem a remover os fundamentos da teoria wellhauseniana.

3. Estudos histórico-críticos recentes

Em 1965, Winnet convidava para um “novo exame dos fundamentos” da teoria documentária.32 Dois anos mais tarde, Wagner prognosticava um “fu-turo incerto” para as teorias clássicas sobre o Pentateuco.33 E, por ocasião do V Congresso Mundial de Estudos Judaicos, realizado em Jerusalém em 1969, Rendtorff se mostrava muito crítico com a hipótese dos documentos. A partir daquela data, a aparente “imutabilidade” da teoria documentária se tornou mo-vediça, e sua fortaleza, quebradiça.34

Na realidade, nunca faltaram vozes discordantes em relação ao sistema wellhauseniano, mas ou haviam sido dispersas e raras ou facilmente localizá-veis do ponto de vista geográfico (escola nórdica de Upsala) ou confessional (tradições judaicas e católica). Mas, ainda todas somadas, nunca representaram um perigo sério para a teoria documentária. Durante as últimas décadas, pelo contrário, as vozes discordantes têm aumentado tanto que, parafraseando Kraus (§ 2, 1, 6o), caberia perguntar-se: quem pode contar nos dias de hoje os nomes daqueles que se opuseram a Wellhausen e à sua escola, ou dos que prescindem dele e de sua metodologia, ou dos que, quando menos, aplicam fortes corretivos aos resultados por ele obtidos? Essa questão nos situa diretamente diante da in-vestigação atual. Uma investigação marcada pelo distanciamento, quando não pela ruptura com a teoria das fontes e pelo retorno em parte aos antigos modelos representados pelas hipóteses fragmentária e complementária.

As opiniões que serão oferecidas a seguir vão desde uma compreensão diferente das fontes – de sua natureza, extensão, data de composição etc. – até a sua mesma negação. Aqueles que atacam os pontos frágeis das teorias clássicas propõem alternativas mais ou menos novidadeiras. Alguns autores se esforçam em afirmar os seus próprios sinais de identidade e destacar as inovações de seus trabalhos, mas nem sempre o conseguem. As rupturas com os métodos

32. WINNET, F.V. Re-examining the Foundations, JBL 84, 1965, 1-19. 33. WAGNER, N.E. Pentateuchal Criticism: No Clear Future. Canadian Journal of Theology 13, 1967,

225-232. 34. RENDTORFF, R. Tradition-historical Method and the Documentary Hypothesis. In: Proceedings of the

Fifth World Congress of Jewish Studies, I (Jerusalém, 1969), 5-11.

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histórico-críticos tradicionais alternam pouco com a sua continuidade. Seria in-justo e errôneo pensar que as novas teorias histórico-críticas sobre a composição do Pentateuco repetem simplesmente as antigas hipóteses. Mas parece oportuno observar que as novas posições estão mais ou menos assemelhadas com os ve-lhos modelos, que foram relegados pela teoria documentária.

a) Um novo modelo de hipótese fragmentária? Rendtorff e Blum

Os estudos de Rendtorff e de Blum fundamentam-se na hipótese dos frag-mentos. Esses autores defendem por um modelo explicativo, no qual é preciso contar com uma longa teoria da tradição. Partem de textos independentes e fragmentários que vão se unindo progressivamente até formar uma redação ou composição maior.

Um século depois do aparecimento da obra de Wellhausen sobre a composi-ção do Hexateuco, Rendtorff lança um ataque frontal contra a teoria documentária e contra seus grandes expoentes. Nega a existência da fonte J e, consequentemen-te, a teoria documentária. Critica Gunkel, von Rad e Noth por haverem passado injustificadamente da história da tradição para a hipótese dos documentos. Para ele, a hipótese documentária é estranha às perspectivas da história da tradição. Como programa alternativo, propõe partir das “grandes unidades”, num total de seis: História das Origens (Gn 1–11); História dos patriarcas (Gn 12–50); Moisés e o êxodo (Ex 1–15); o Sinai (Ex 19–24); a caminhada pelo deserto (Ex 16–18 + Nm 11–20), e “a conquista da terra” (Nm 20–36). Cada uma dessas unidades tem seu perfil próprio e sua história independente de transmissão.

A título de exemplo e como demonstração metodológica, examina detalha-damente a História dos patriarcas (Gn 12–50). Divide essa história em quatro grupos, começando pelo final: José, Jacó, Isaac e Abraão. As histórias de Jacó e de Abraão, por sua vez, as subdivide em outros dois grupos ou ciclos cada uma. Observa, além disso, grupos menores e peças independentes.35 Para a conexão entre tantas peças heterogêneas, recorreu às promessas dos patriarcas, em espe-cial à promessa da terra. Rendtorff realça a diferença essencial entre as tradições dos patriarcas e as do êxodo. Ex 3,8-9 aponta para uma terra desconhecida, não para a terra prometida aos patriarcas. A união das “grandes unidades” entre si deve-se a um trabalho redacional posterior.36

35. “Uma grande fragmentação do texto”, a dizer de VAN SETERS, J. Recent Studies on the Pentateuch: A Crisis in Method, JAOS 99, 1979, 667.

36. Cf. RENDTORFF, R. Das uberlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch (BZAW 147). Berlin, 1997. Sobre esta obra, cf. ZAMAN, L. R. Rendtorff en zijn “Das uberlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch”. Schets van een Maccabeër binnen de hedendaagsche Penteteuchexegese. Brussel, 1984.

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Blum, discípulo de Rendtorff, consagrou duas grandes obras ao Pentateuco. As duas obras têm no título a palavra chave komposition, com a qual Blum pretende marcar as distâncias em relação à “crítica da redação”. Entende a “composição” do Pentateuco como uma elaboração literária a partir das tradi-ções mais antigas.

Na sua primeira obra, publicada em 1984, analisa minuciosamente os capí-tulos 12–50 do livro do Gênesis. Em sintonia com seu mestre, chega à conclusão de que esses capítulos constituem uma “grande unidade”, com um longo proces-so de formação, que vai desde os relatos independentes, passando pela formação de ciclos e por sucessivas elaborações, até desembocar em duas grandes com-posições tardias: uma de tipo deuteronômico (KD), concluída aproximadamente em 530, e outra de tipo sacerdotal (KP), pós-exílica.37

Em uma segunda obra, publicada em 1990, amplia sua análise aos textos narrativos dos livros Êxodo-Números. Nestes, segundo ele, não existem fontes paralelas e independentes, no sentido da hipótese documentária, nem “grandes unidades”, no sentido de Rendtorff, mas duas “composições” tardias, que reco-lheram e elaboraram tradições mais antigas: uma “composição deuteronômica” (KD), posterior ao livro do Deuteronômio, e uma “composição sacerdotal” (KP). Assim confirma, com sua matiz, os resultados de sua primeira obra.38

A KD (composição deuteronômica) começa com a história de Abraão (Gn 12ss) e pressupõe a existência da História Deuteronomista. As duas obras, a História Deuteronomista e KD, se unem nos últimos capítulos do livro do Deuteronômio. A datação de KD corresponde à época da primeira geração do retorno da Babilônia. A KP (composição sacerdotal), que gira ao redor do tema da comunidade, pressupõe também tradições antigas e data da época persa. O Pentateuco é o resultado de um compromisso entre as duas tendências refletidas em KD e KP.39

37. Cf. BLUM, E. Die Komposition der Vätergeschichte (WMANT 57). Neukirchen-Vluyn, 1984. 38. Cf. BLUM, E. Studien zur Omposition des Pentateuch (BZAW 189). Berlin, 1990. Aproximadamente

meio século antes que Rendtorff e Blum, o sueco I Engnell defendeu a tese de uma dupla composição D e P, quase contemporâneas, que compreende desde o livro do Gênesis até 2Reis, e, ao mesmo tempo, desprezava a hipótese documentária como uma interpretatio europeica moderna (cf. OTTO, E. Kritik der Pentateuchkomposition, ThR 60, 1995, 164).

39. Numa monografia recente (The State of the Pentateuch: A Comparison of the Approaches of M. Noth and E. Blum [BZAW 249]. Berlin, 1997), WYNN-WILLIAMS, D.J. examina minuciosamente os prin-cipais problemas apresentados por Rendtorff à investigação do Pentateuco e se pergunta se é preferível a alternativa que ele propõe à teoria documentária clássica. Para responder a tal questão, compara os trabalhos de Noth e Blum, a propósito de Gn 25–33 (Jacó-Esaú), chegando à conclusão de que os dois modelos têm seus próprios supostos e seus limites. E ainda mais, para ele, a pretensão de Rendtorff não está justificada e o aproximamento de Noth é em certos aspectos superior. Enquanto que NICHOLSON, E. W. considera muito valioso este trabalho (JSOT 79, 1998, 139), CARR, D.M. o qualifica de “desfo-cado e antiquado” e “frequentemente inexato e injusto” (JBL 117, 1998, 723).

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b) Um novo modelo de hipótese complementária? Schmid, Rose e Van Seters

À diferença dos anteriores, que “fragmentam” demasiadamente os textos,40 a esses autores se lhes impõe muito mais a trama narrativa contínua do Pentateuco. Isso se deve a um processo permanente de interpretação, do qual o Javista é o grande artífice.

No título de sua obra El así llamado Yahvista, Schmid reflete tanto a con-tinuidade como o distanciamento em relação à teoria documentária. Admite a existência da fonte J, mas propõe uma datação muito tardia para ela. Longe de remontar à época salomônica, como defendia von Rad, a fonte J teria sido com-posta no exílio. Este autor discute, além disso, a natureza e a originalidade da obra javista. O J não é a obra de um grande narrador e teólogo e, sim, muito mais de uma corrente – comparável de certo modo, com a corrente deuteronomista – que depende das tradições proféticas e deuteronômico-deuteronomistas.41

Rose apresenta o testemunho de seu mestre Schmid com a intenção de responder a uma questão que este havia deixado pendente: que relação existe entre o J deuteronômico-deuteronomista e a grande História Deuteronomista? Depois de comparar os textos do início da História Deuteronomista (Dt 1–3 e Josué) com relatos javistas do Tetrateuco, Rose chega a conclusão de que estes dependem daqueles. Para ele, ao Javista se deve a composição do Tetrateuco, uma obra que nunca existiu autonomamente, mas que foi escrita como prólogo da História Deuteronomista. Nela, além disso, corrige a orientação teológica da História Deuteronomista, colocando em destaque a gratuidade divina.42

Van Seters dedicou numerosas páginas ao estudo do Pentateuco, particu-larmente ao Javista,43 ao qual atribui o papel mais importante na composição do Pentateuco, uma composição eminentemente literária. Para ele, a obra do Javista não remonta às tradições orais nem pretende ser fiel reflexo dos acontecimentos aos quais faz referência. O Javista é um grande “historiador”, comparável em seu trabalho ao Heródoto e próximo a ele no tempo. O P é um “suplemento secundário ao J e não uma composição independente”. A fonte E é uma ficção dos exegetas modernos.44

40. Ver a crítica de Van Seters a Rendtorff na nota 35. 41. Cf. SCHMID, H.H. Der sogenannte Jahwist. Beobachtungen und Fragen zur Pentateuchforschung.

Zurich, 1976. 42. Cf. ROSE, M. Deuteronomist und Jahwist. Unterschungen zu Beruhrungspunkten beider Literaturwerke

(AThANT 67). Zurich, 1981. 43. Cf. VAN SETERS, J. Abraham in History and Tradition. New Haven, 1975; ______. Prologue to

History. The Yahwist as Historian in Genesis. Louisville 1992; ______. The Life of Moses. The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers. Louisville, 1994.

44. Cf. VAN SETERS, J. Prologue to History (n. 43),7. Van Seters recomeça (reemplaza) o modelo JEDP por sua própria hipótese DJP (cf. GNUSE, R. BTB 24, 1994, 33).

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Influenciado por Rose, Van Seters defende que o Pentateuco não é o fun-damento da grande história que vai desde a criação do mundo até a queda de Jerusalém, mas a ampliação da História Deuteronomista. Quer dizer, primeiro teria composto a história que vai desde a conquista até a perda da terra e, em seguida, para chegar ao vazio histórico prévio, teria composto o Pentateuco. O autor da História Deuteronomista era um grande historiador nacional, compará-vel a Heródoto para a história da Grécia.45

c) Combinação da hipótese documentária com as hipóteses dos fragmentos e dos complementos: Zenger

Para Zenger, a partir de 900 a.C. já existiam ciclos independentes; em se-guida vieram as três fontes principais, no sentido da teoria documentária; e, finalmente, levou-se ao termo final um processo redacional para cada uma das fontes. Em síntese, uma obra vasta e complexa, realizada durante vários séculos.

O Pentateuco foi composto aproximadamente em 400 a.C., a partir de três conjuntos pré-existentes: 1o) a “história jerosolimitana” (história dos patriarcas e do êxodo), uma obra pré-sacerdotal aproximadamente em 690 a.C., coincidin-do em grande parte com o Jeovista de Wellhausen; 2o) a obra sacerdotal (estrato básico, mais as adições e a Lei de Santidade), e 3o) o Deuteronômio.

O Pentateuco surgiu do compromisso entre diversos grupos (sacerdotes e principalmente latifundiários leigos) que constituíam a comunidade judaica pós-exílica. A obra foi levada à sua conclusão com a permissão das autoridades persas, sob o impulso de Esdras para que servisse de documento oficial à comu-nidade judaica após seu retorno do exílio da Babilônia.46

d) Corpos legais e estratos narrativos: Otto

A maior parte dos estudos apresentados nos tratados anteriores centraliza--se, sobretudo, nas seções narrativas. Otto, por sua vez, consagra grande parte de seus esforços a analisar os códigos legais. Pensa que, para conseguir um avanço duradouro na análise do Pentateuco, se faz necessário esclarecer a relação exis-tente entre as coleções legais e entre as seções narrativas.

O “Código da Aliança” (Ex 20,24–23,12) é o mais antigo dos três códigos legais do Pentateuco. O livro do Deuteronômio do século VII a.C. (Dt 12–26) é

45. O argumento do siléncio empregado por Graf e Wellhausen para concluir tardiamente o documento P voltou a ser utilizado por Schmid, Rose e Van Seters contra a datação primitiva do J. Para eles, a literatura israelita pré-exílica mostra um grande desconhecimento das tradições do Pentateuco antes da emergência do Deuteronômio no século VII.

46. Cf. ZENGER, E. Die Bucher der Tora/des Pentateuch. In: ______. (ed.). Einleitung in das Alte Testament. Stuttgart, 1995, 73-75.

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o documento de uma reforma cultual e jurídica relacionada com Josias; nele se faz a reforma do direito do Código da Aliança a partir da perspectiva da centra-lização do culto. É uma nova compilação que interpreta e completa o Código da Aliança, unindo elementos contemporâneos da tradição jurídica assíria. A “Lei de Santidade” (Lv 17–26) é obra do redator do Pentateuco; possui uma relação com o livro do Deuteronômio e com o Código da Aliança, aos quais recorre.

O fato de que o redator da Lei de Santidade recorra tanto ao Deuteronômio como ao Código da Aliança se deve a uma história continuada de interpreta-ção e reformulação. Na época de Josias, o Deuteronômio substitui o Código da Aliança. Na época do exílio, o Deuteronômio continua se desenvolvendo até transformar-se no documento inaugural da História Deuteronomista e no projeto da constituição do novo Israel depois do exílio. Na história seguinte da tradição, o Código da Aliança é introduzido, junto com o Decálogo, na perícope do Sinai e, por ser revelação direta de Deus, se transforma em legislação primária, en-quanto que o Deuteronômio, por ter sido entregue por Moisés no país de Moab, passa a ser legislação secundária. O Código da Aliança adquire preeminência depois do exílio. Finalmente, por meio da Lei de Santidade, fica fixada a revela-ção acontecida no Sinai somente a Moisés e, com isso, o Deuteronômio, em seu conjunto, fica reduzido a uma mera repetição da revelação do Sinai.47

4. Estudos literáriosOs estudos bíblicos realizados com os novos métodos de análise literária se

distinguem dos anteriores pelo seu caráter a-histórico e sincrônico. À diferença da teoria das fontes ou documentária, que usa o texto bíblico como um “docu-mento” para reconstruir o passado, as novas teorias literárias percebem o texto como um “monumento” que pode ser contemplado e admirado pelo seu próprio valor estético e artístico.

Na perspectiva geral dos novos métodos de análise literária, o texto aparece como um sistema fechado que deve ser interpretado por si mesmo, independen-temente de seu autor e de suas origens, das circunstâncias e do mundo que o rodeiam. Embora diferentes entre si, em não poucos aspectos, os vários métodos literários de tipo sincrônico coincidem em atribuir toda a importância ao texto final.48 Do interesse pelo autor e pela história (métodos histórico-críticos) se passa ao interesse pelo texto e seus leitores.

47. Cf. OTTO, E. Do Livro da Aliança à Lei de Santidade (n. 23), 195-217. Para maiores dados, ver a História da investigação do livro do Deuteronômio, Cap. VII, § I, 5.

48. Os critérios literários usados pela hipótese das fontes (ver o que foi dito na nota n. 19) são valorizados de modo muito diverso pelos estudos literários. Assim, as duplicações e repetições – às quais se dedica especial atenção – são consideradas pelos estudos literários como recursos para produzir determinados efeitos morais ou estéticos no texto. Cf. NAHKOLA, A. Double Narratives in the Old Testament. The Foundations of Method in Biblical Criticism (BZAW 290). Berlin, 2001.

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Entre os fatores que contribuíram para a aceitação e desenvolvimento desses métodos, no campo bíblico, está em primeiro lugar o desencanto – in-clusive a repugnância – causado pelos métodos histórico-críticos, preocupados por aquilo que está por trás do texto mais do que o texto em si mesmo. A isso é preciso acrescentar a insatisfação produzida pelas leituras tradicionais da Bíblia, que conectam mal com o amplo mundo da leitura. Diante da melhoria pretendi-damente objetiva da História, volta-se à linguagem, à literatura.

O panorama dos novos estudos literários, em sua aplicação à Bíblia, mu-daram consideravalmente nos últimos decênios. Várias citações de um dos pioneiros neste campo nos permitem fazer uma ideia da mudança realizada. No Congresso Internacional sobre o Antigo Testamento realizado em Edimburgo em 1974, Alonso Schökel se queixava da falta de interesse e confiança neste tipo de estudo. Doze anos depois, num Congresso similar, em Jerusalém, reco-nhecia que o estudo da arte narrativa deixou de ser um campo despovoado e se transformou num campo superpovoado.49

Para não se perder nessa busca frondosa e complexa, os desenvolvimentos a seguir se limitarão em algumas informações básicas sobre os três métodos lite-rários mais significativos em sua aplicação à Bíblia, em especial ao Pentateuco: o retórico, o narrativo e o semiótico.

a) De tipo retórico

A análise retórica não é nova em si mesma, embora seja em sua aplicação metodológico-sistemática aos estudos bíblicos. Distinguem-se dois tipos de mé-todos retóricos: o primeiro, de tipo clássico, inspira-se na retórica greco-latina, e o segundo, de tipo bíblico, interessa-se muito mais pelos procedimentos semí-ticos da composição.50

A análise retórico-clássica desenvolveu-se sobretudo nos Estados Unidos. O impulso inicial foi dado pelo discurso presidencial dirigido por Muilenburg, em 1968, à Society of Biblical Literature. Nele, convidava a utilizar a crítica re-tórica para complementar os estudos veterotestamentários da crítica da forma.51 Tratava-se de aplicar as regras da retórica greco-latina clássica ao estudo dos tex-tos bíblicos. Isso contribuiria para definir de uma forma mais exata as unidades, conhecer melhor a sua estrutura e precisar a configuração de seus componentes.

49. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L. Hermeneutical Problems of a Literary Study of the Bible. In: Congress Volume. Edinburg 1974 (SVT 28). Leiden, 1975, 14; ______. Trends: Plurality of Methods, Priority of Issues. In: EMERTON, J.A. (ed.). Congress Volume. Jerusalem 1986 (SVT 40). Leiden, 1988, 286.

50. Cf. MEYNET, R. Lire la Bible. Un exposé pour compreendre. Un essai pour réfléchir. Paris, 1996, 69. 51. Cf. MUILENBURG, J. Form Criticism and Beyond, JBL 88, 1969, 1-18.

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A retórica é a arte de compreender discursos persuasivos. A crítica retórica procura descobrir como se constrói um discurso dessa natureza e por que conse-gue estes efeitos. Aristóteles – o primeiro em formular uma teoria a esse respeito – distinguiu três classes de discursos: o judicial, aquele que acusa ou defende nos tribunais; o deliberativo, aquele que assessora em questões políticas, e o de tipo demonstrativo, aquele que elogia ou repreende nas celebrações.

Os discursos variam ao mudar a situação (auditório e as circunstâncias) do discurso. Em virtude do interesse pela situação dos discursos, a crítica retórica co-necta facilmente com os estudos de crítica da forma, interessados em determinar o ambiente de origem dos textos. É daqui que o convite de Muilenburg fora aco-lhido favoravelmente pelos numerosos exegetas e produziram frutos abundantes.

A análise retórico-bíblica nasce no seio da exegese bíblica. A diferença fundamental entre esta retórica e a greco-latina está em que “o grego demonstra, o judeu mostra”: o grego quer convencer por meio de um raciocínio irrefutável, enquanto que o judeu indica o caminho que o leitor pode seguir se deseja com-preender ou abarcar em seu conjunto.52

Entre as características peculiares da retórica bíblica é preciso destacar o gosto pelas composições simétricas. Já Lowth, em 1753, observou que a poesia hebraica não segue as regras da poesia grega ou latina. O fundamento da poesia hebraica está no “paralelismo dos membros”. Um paralelismo que se expressa de três formas: sinonímica, antitética e sintética. J. Jebb (1820) e T. Boys (1824) chamaram a atenção para o interesse da Bíblia pelas estruturas concêntricas. Essas observações constituem o fundamento da retórica bíblica.

O desenvolvimento mais importante da retórica bíblica nas últimas déca-das está em ter identificado amplas seções da Bíblia compostas de acordo com as leis do paralelismo e das estruturas concêntricas. Isso permitiu conhecer me-lhor os limites das unidades e sua coerência interna, de onde surge uma melhor “compreensão” do conjunto do texto.

Entre os numerosos estudos de tipo retórico produzidos nas últimas déca-das, cabe destacar os seguintes:

• PERELMAN, C.; OLBRECHT-TYTECA, L. The New Rhetoric: A Treatise on Argumentation. Notre Dame, 1969. Define a retórica e as suas estratégias de persuasão como argumentação mais do que como estilo. É um redescobrimento da teoria clássica de Aristóteles.

• CLINES, D. J. A.; GRUNN, D. M.; HAUSER, A. J. (eds.) Art and Meaning: Rhetoric in Biblical Literature (JSOT SS 19). Sheffield, 1982. Coleção de

52. MEYNET, R. Lire la Bible (n. 50), 80.

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ensaios, nos quais se coloca em realce a arte retórica de vários textos do Antigo Testamento, particularmente de Gn 1–11; Ex 1–14 e Nm 12.

• PATRICK, D.; SCULT, A. Rhetoric and Biblical Interpretation (JSOT SS 82). Sheffield 1990. Integra a concepção de Muilenburg sobre a crí-tica retórica com os elementos da retórica clássica e da hermenêutica contemporânea. Dedica especial atenção aos relatos da criação (Gn 1–3) e do êxodo, assim como as “narrações históricas”, exemplificadas me-diante a análise de Dt 6,20-25 e 26,5-10 (sumários da história salvífica).

• DOZEMAN, T. B. OT Rhetorical Criticism. In: D.N. Fredman (ed.). The Anchor Bible Dictonnary 5. New York, 1992, 712-715 (com bibliografia).

• LENCHAK, T. A. Choose Life! A Rhetorical-Critical Investigation of Deuteronomy 28,69 – 30,20 (AnBib 129). Rome 1993 (cf. a História da investigação do livro do Deuteronômio: Cap. VII, § I, 2).

• WATTS, J. W. Rhetorical Strategy in the Composition of the Pentateuch. JSOT 68, 1995, 3-22; Id. Reading Law. The Rhetorical Shaping of the Pentateuch. Sheffield 1999. Entende a retórica no sentido clássico de “persuasão”. Para ele, a forma global do Pentateuco – narrações (Gn–Ex 19), listas de leis (Ex 20–Nm) e sanções divinas (Dt) – denota uma es-tratégia retórica orientada a persuadir seus ouvintes e leitores. O uso do discurso direto, das motivações históricas e das repetições nas leis perse-gue fins retóricos. O Pentateuco foi desenhado para persuadir os judeus da época persa de que a Torá devia definir a sua identidade como Israel.

• MEYNET, R. Rhetorical Analysis (JSOT SS 256). Sheffield, 1998 (Estudo metodológico bem documentado e com numerosos exemplos).

• WARNING, W. Literary Artistry in Leviticus (BIS 35). Leiden, 1999.

b) De tipo narrativo

O método narrativo se aplica exclusivamente às narrações. O seu objeti-vo primário consiste em analisar as narrações como peças literárias, não como documentos históricos. Consequentemente se dá muita atenção, de preferência às técnicas narrativas. Enquadrando-as no marco da “Nova crítica literária”. Alguns críticos, em especial do campo da literatura geral, consideram o método narrativo como uma subespécie de nova crítica retórica; mas outros, sobretudo do campo bíblico, o valorizam como um movimento paralelo e independente.53

Nas últimas décadas, o método narrativo ganhou muitos adeptos. Pode ser considerado como o método literário mais popular para a análise dos textos

53. Cf. POWELL, M.A. What is Narrative Criticism? A New Approach to the Bible. London, 1993, 19.

A Interpretação do Pentateuco

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narrativos da Bíblia. Destes, lhe interessam especialmente a trama, os personagens e o ponto de vista do narrador. A análise narrativa estuda o modo de contar uma história para implicar o leitor no “mundo do relato” e em seu sistema de valores.

Um dos aspectos mais significativos do método é concernente ao autor e ao leitor. Além do autor real (quem realmente escreveu o relato) e do leitor real (cada leitor de fato do relato), o método narrativo distingue um autor implícito e um leitor implícito. O autor implícito é o que se reflete no relato mesmo: nas opções pelas quais se decanta, nos julgamentos que emite, na ordem de suas preferências, na visão do mundo próprio do relato. O leitor implícito é o leitor potencial ou destinatário ideal do relato, capaz de penetrar na mensagem do autor implícito e de compreendê-lo.

Enquanto que o autor e o leitor real são externos ao texto, o autor e o leitor im-plícito formam parte do mesmo texto; são o autor e o leitor que o texto pressupõe e produz. Embora o autor real seja anônimo e não se possa conhecer, o autor implícito sempre pode ser descoberto no texto. O seu conhecimento é, pois, mais importante para compreender a narrativa que o conhecimento do autor real. Assim mesmo, o leitor real de uma narrativa não é qualquer leitor real, mas o leitor implícito.

Entre os numerosos estudos de narratologia aplicada ao Antigo Testamento, cabe destacar aqui alguns de tipo geral, com exemplos do Pentateuco, e outros mais específicos, reinteradamente consagrados ao Pentateuco:

• ALTER, R. The Art of Biblical Narrative. New York 1981. Expõe os princípios da arte narrativa bíblica, com exemplos eloquentes do Antigo Testamento; no Pentateuco, se detém sobretudo no livro do Gênesis.

• BERLIN, A. Poetics and Interpretation of Biblical Narrative. Sheffield, 1983. Centraliza-se nos personagens e no ponto de vista, tal como são usadas na narrativa veterotestamentária.

• STERNBERG, M. The Poetics of Biblical Narrative: Ideological Literature and the Drama of Reading. Bloomington 1985. Valiosa con-tribuição à narratologia, com especial referência ao Antigo Testamento, no qual se aprecia características peculiares em relação a outras obras.

• FUNK, R. W. The Poetics of Biblical Narrative. Sonoma, 1988. Introdução narratológica aplicada ao estudo bíblico.

• MANN, T. W. The Book of the Torah: The Narrative Integrity of the Pentateuch. Atlanta, 1988. Dos pressupostos narratológicos, oferece uma visão global do Pentateuco.

• BAR-EFRAT, S. Narrative Art in the Bible (JSOT SS 70). Sheffield, 1989. Analisa as formas e técnicas narrativas do Antigo Testamento, dando uma atenção particular aos personagens, ao narrador onisciente, à trama etc.

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• SKA, J. L. Our Fathers Have Told Us. Introduction to the Analysis of Hebrew Narrative (SubBib 13). Roma, 1990. Magnífica introdução, clara e concisa, com muitos exemplos esclarecedores do Pentateuco.

• ALETTI, J. N. L’approccio narrativo applicato alla Bibbia: stato della ques-tione e proposte. RivBivIt 39, 1991, 257-276. Apresentação boa e sintética.

• FOKKELMAN, J.P. Narrative Art in Genesis. Sheffield, 1991. 2. • SAILHAMER, J. H. The Pentateuch as Narrative: A Biblical-

Theological Commentary. Grand Rapids, 1992. • GUNN, D. M.; FEWELL, D. N. Narrative in the Hebrew Bible. Oxford, 1993. • SKA, J. L.; SONNET, J. P.; WÉNIN, A. L’analyse narrative des récits

de l’Ancien Testament (CE 107). Paris 1999 (tradução em espanhol: El análisis narrativo de los relatos del antiguo Testamento [CB 107]. Estella, 2001).

• MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Cómo leer los relatos bíblicos. Iniciación al análisis narrativo (PT 106). Santander, 2000. Acessível e interessante.

c) De tipo semiótico

Enraizado no formalismo russo de V. Propp, o método semiótico ou estru-turalista tem como fundador o linguista suíço F. de Saussure. O método evoluiu para diversas direções. As mais seguidas, no campo bíblico, são as que foram elaboradas por A.J. Greimas e sua escola e por R. Barthes.

A semiótica estuda os sistemas de significação nos níveis narrativo, discur-sivo e lógico-semântico. Interessa-se em especial pelas estruturas profundas e pela “gramática” do relato, isto é, pelas categorias lógicas e essenciais que fun-cionam idealmente em todo o relato. Não se limita à análise das palavras e das frases, mas trata também de ver a relação que existe entre estas e de aprofundar o significado global dos textos. Colocando em jogo a globalidade, a prioridade das relações e as estruturas sobre os elementos.

O complicado e esotérico da linguagem empregada neste tipo de trabalho fez com que o método tenha encontrado dificuldades para a sua expansão no campo bíblico. Não obstante, é preciso apresentar alguns ensaios meritórios.

• LEACH, E. Genesis as Myth and Other Essays. London, 1969. • GREIMAS, A.J. Du sens I. Paris 1970; Du Sens II. Paris, 1983. • BARTHES, R. La Lutte avec l’ange: analyse textuelle de Genèse

32,23-33. In: F. Bovon (ed.). Analyse structurale et exégèse biblique. Neuchâtel, 1971, 27-39.

• POLZIN, R.M. Biblical Structuralism: Method and Subjectivity in the Study of Ancient Texts. Philadelphia, 1977; Id. Moises and the Deuteronomist: A Literary Study of the Deuteronomistic History.

A Interpretação do Pentateuco

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• LACK, R. Letture strutturaliste dell’Antico Testamento. Roma, 1978. Analisa Gn 22 e Gn 37–50, entre outros textos.

• JOBLING, D. The Sense of Biblical Narrative: Three Structural Analyses in the Old Testament. Sheffield 1978 (Nm 12–13); Id. The Sens of Biblical Narrative. II: Structural Analyses in the Hebrew Bible. Sheffield, 1986 (Gn 2–3).

• GROS LOUIS, K.R.R.; ACKERMAN, J.S. (eds.). Literary Inter-pretations of Biblical Narratives, II. Nashville, 1982. Série de ensaios sobre textos bíblicos – vários do Pentateuco seguindo as pautas marca-das por R. Barthes.

• PREWIT, T.J. The Elusive Covenant: A Structural-Semiotic Reading of Genesis. Bloomington, 1990.

• JACKSON, S. Ideas of Law and Legal Administration: a Semiotic Approach. In: R.E. Clements (ed.). The World of Ancient Israel. Sociological, Anthropological and Political Perspectives. Cambridge 1989, 185-202; Id. Studies in the Semiotics of Biblical Law (JST SS 314). Sheffield, 2000.

5. Avaliação e tarefa

Depois de vários séculos dando voltas aos mesmos problemas, os exegetas ainda não chegaram a uma solução satisfatória sobre as questões apresentadas pelo Pentateuco. Isso mostra, não somente a complexidade dos temas, como também os limites dos métodos e a fragilidade das hipóteses. Nenhum méto-do consegue extrair dos textos bíblicos toda a riqueza que contêm. Nenhuma hipótese fora capaz até este momento de explicar de uma forma satisfatória a imensidão dos dados díspares do Pentateuco. Os estudos bíblicos recentes ajudaram a tomar consciência desta realidade e contribuíram para revisar os fundamentos, os critérios utilizados e as conclusões recebidas.

Apesar do desconforto que reina na exegese atual do Pentateuco, algu-mas posições vão sendo clarificadas e vão emergindo alguns pontos sólidos. Torna-se cada vez mais óbvio que se deve desprezar qualquer tipo de exclu-sivismo. É preciso evitar cair numa tendência “historicizante”, como ocorreu com os métodos histórico-críticos, assim como no excesso inverso do esque-cimento da história, característico dos novos métodos literários. Parece claro, assim mesmo, que a solução dos problemas não deve passar por uma exegese “atomizante”, nem pela concepção do Pentateuco como uma obra de arte, fru-to de um só autor.54

54. É a opinião de WHYBRAYM, R.N. em sua obra El Pentateuco (n. 27).

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Num ponto se chegou a um amplo consenso: a necessidade de começar a análise pelo texto final. O interesse em remontar aos estratos originais ou mais antigos cedeu o seu lugar ao interesse pelo texto final. Descartaram-se as fon-tes ou outras divisões preestabelecidas como ponto de partida da investigação. O estudo sincrônico deve preceder a qualquer operação diacrônica. Isso não significa que deve dar um valor absoluto ao texto final ou que se tenha de des-valorizar os primeiros estágios do texto. Mas pelo contrário: a leitura sincrônica pode e deve enriquecer-se com a diacrônica. Somente assim se poderá perceber os diferentes ecos do texto em toda a sua riqueza.

Juntamente com a maior valorização do texto final, os estudos histórico-crí-ticos recentes contribuíram para revalorizar as últimas redações, especialmente a sacerdotal e a deuteronomista.

Sobre os textos sacerdotais, a maioria dos estudos críticos coincide em afirmar a existência de um Escrito sacerdotal (P) no Pentateuco. No entanto, discutem-se questões importantes sobre a sua natureza, a sua extensão e a sua teologia. É uma fonte independente ou muito mais uma redação ou composição, na qual se integram outros materiais não sacerdotais? Que relação existe entre as seções narrativas e as legais dentro do escrito sacerdotal? Onde termina este Escrito? Qual é o centro da teologia do P? Tampouco se coloca de acordo os exegetas sobre a sua datação e a relação com a Lei de Santidade (Lv 17–26).

A presença e a extensão dos textos deuteronômico / deuteronomistas, no Tetrateuco, continua sendo objeto de discussão. Deveriam ser definidos melhor os termos “deuteronômico” e “deuteronomista” antes de aplicá-los a determina-dos textos do Tetrateuco, evitando cair em generalizações ou numa espécie de pandeuteronomismo. Neste momento praticamente ninguém defende a existên-cia de uma fonte eloísta, e a imagem que alguns têm do javista se encontra muito mais próxima dos textos deuteronomistas; seria preferível talvez distinguir no Tetrateuco duas classes de materiais: os sacerdotais, que são os que foram me-lhor definidos, e os não sacerdotais.55

Quanto à datação dos textos do Pentateuco, cada vez aumentam mais os que defendem que as primeiras obras literárias de uma certa extensão não po-dem remontar a uma época anterior ao século VIII a.C.56 e que a redação do Pentateuco é da época pós-exílica. Seguramente, antes do exílio existiram al-gumas versões mais ou menos extensas dos patriarcas, especialmente de Jacó

55. Cf. CARR, D. Reading the Fractures of Genesis. Historical and Literary Approaches, Louisville, 1996. 56. Cf. JAMIESON-DRAKE, D.W. Scribes and Schools in Monarchich Judah. A Socio-Archeological

Approach (JSOT SS 109). Sheffield, 1991; DE PURY, A. As duas lendas sobre a origem de Israel (Jacó e Moisés) e a elaboração do Pentateuco, EstBíbl 52, 1994, 96-97.

A Interpretação do Pentateuco

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e da saída do Egito, assim como também uma edição primitiva do Código da Aliança e do Deuteronômio. Mas a união (junção) de umas com as outras numa trama continuada, que abarcasse uma sucessão de épocas (desde os patriarcas, passando pela saída do Egito e o deserto, até a entrada na terra), dificilmente seria anterior ao século VI ou V a.C.57

Tanto os estudos histórico-críticos como os estudos literários recentes de-ram muito mais atenção às seções narrativas que às legais. E, no entanto, o ponto de partida e a chave para compreender a composição do Pentateuco, em seu conjunto, provavelmente está nas leis muito mais do que nas narrativas.58

Da história da investigação do Pentateuco, brotam algumas lições que não devem ser esquecidas ou desprezadas. Quatro marcaram as pautas para os pró-ximos capítulos:

1a Centralidade do texto. A Bíblia convida a ler o texto tal como ele está, sem ideias preconcebidas e sem mutilações. Somente o texto final, com toda sua pureza e integridade, pode garantir ao estudioso um ponto de partida sólido e confiável. Os passos sucessivos deverão conduzir a uma melhor compreensão deste texto e se valorizará positivamente na medida em que o desejarem. Está claro que, por maior rigor com que se aplique um método, se não conduz ao esclarecimento do texto, para nada serve.

2a Integração. Se quisermos dar uma resposta adequada aos principais pro-blemas suscitados pelo Pentateuco, convém unir forças. Na medida do possível, deve-se investigar as análises históricas e literárias, os estudos sincrônicos e os diacrônicos, buscar o que tem de complementário. Nos últimos anos, aumentou o número de exegetas da linha histórico-crítica que concordam que os estudos literá-rios podem ajudar a fertilizar o campo bíblico. Assim mesmo, entre os defensores dos estudos literários, há aqueles que começaram a sentir a necessidade de se abrir a uma dimensão histórica para resolver certos problemas apresentados pelo texto.

3a Uma leitura teológica. A polarização dos métodos históricos ou literários levou a tratar o Pentateuco como um livro de história ou como uma obra literária, deixando relegado o seu componente religioso. O Pentateuco é o resultado, não somente de uma composição literária ou de um suceder histórico, mas também de um processo espiritural e canônico. Consequentemente, uma leitura integral está pedindo que se valorize sua mensagem teológica. Além de uma dimensão histórica e estética, a palavra bíblica tem uma dimensão religiosa e ética. Mas uma leitura teológica que se aprecie deverá apoiar-se sobre pilares literários e históricos.

57. Cf. Cap. VIII, § 2. 58. Na opinião de OTTO, E. não surgirá um novo Wellhausen até que não apareça um novo de Wette (cf.

GARCÍA LÓPEZ, F. Da antiga à nova crítica literária do Pentateuco, EstBíbl 52, 1994, 17, n. 27).

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4a Questões abertas. Seria ilusório pretender conciliar todas as questões que neste momento a exegese tem colocado sobre o Pentateuco. Algumas são muito discutidas e terá que passar muito tempo antes de serem equacionadas. Não convém nos iludir e nem apresentá-las como resolvidas. O correto seria considerá-las abertas e apresentá-las da forma em que se encontram.

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A Interpretação do Pentateuco