Miguel Reale - Fontes e Modelos Do Direito

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7/25/2019 Miguel Reale - Fontes e Modelos Do Direito http://slidepdf.com/reader/full/miguel-reale-fontes-e-modelos-do-direito 1/148 FONTES E MODELOS DO DIREITO lara um novo paradigm MIGUE REAL I I  P WÊÊk  Editora 81® Saraiva

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FONTES

E MODELOSDO DIREITOlara um novo paradigm

MIGUE

REAL

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I

 P WÊÊk   Editora81® Saraiva

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Nova fa se do direito moderno

Política e direito

Fontes e modelos do direito

Questões de direito privado

Política de ontem e de hoje

Teoria tridimensional do direito

Paradigmas da cultura contemporânea

Filosofia e teoria política

0 Estado democrático de direito 

e o conflito das ideologias

Questões de direito público

O seu podai

^ J j^ S a ra ivaJur jurídico SAC

Jur 

[email protected] 

De 2S a 6ã, das 8:30 às 19:30

ISB N 9 7 8 -8 5 -02 -0 1 4 8 1-7

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MIGUEL

Filósofo, advogado, professor e poeta, Miguel Reale desem

penhava com excelência ímpar todos esses papéis.

Graduou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em

1934, ano em que publicou seu primeiro livro: 0 Estado 

moderno.  Em 1940, ao concluir o Doutorado pela mesma

instituição, formulou sua Teoria tridimensional do Direito -

obra-prima mundialmente aclamada. No ano seguinte

atingiu o mais alto degrau da carreira acadêmica com a

Cátedra de Filosofia do Direito, também na Universidade de

São Paulo. Professor por vocação, fecundou o espírito de

seus discípulos, instigando-os a refletir profundamente

sobre as intrincadas questões da seara jurídica.

Colecionou prêmios e condecorações nacionais e interna

cionais e escreveu dezenas de livros nas mais diversas

áreas: filosofia, teoria geral do direito, teoria geral do

Estado, ciência política e direito privado, além de obras

literárias que o levaram a ocupar a Cadeira n. 14 da Acade

mia Brasileira de Letras. Boa parte de seus trabalhos,

traduzidos para diversas línguas, conduziu seu pensamen

to para além das fronteiras nacionais. Miguel Reale foi,

ainda, Reitor da Universidade de São Paulo e Secretário de

Justiça do Estado de São Paulo por duas vezes.

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MIGUEIREALI

\ ~   edição

'1994

4â tiragem

2010

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EditoraSaraiva

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Editoray j p SaraivaR u a H e n r i q u e S c h o u m a n n , 2 7 0 , C e i q u e i i a C é s a r — S õ o P a u l o — S PC E P 0 5 4 1 3 - 9 0 9P A B X : ( 1 1 ) 3 6 1 3 3 0 0 0

 S A Q U R : 0 8 0 0 0 5 5 7 6 8 8D e 2*   116“ , d a s 8 : 3 0 à s 1 9 : 3 0s a r o i w a i u i @ e d i f o r o s o r a i v o . c o m . b rA t 8 S S K w w w . s a r a i v o i u r . c o m . b r

FILIAIS

A M A Z 0 N A S / R 0 N 0 Ô N I A / R 0 R A 1 M A / A C R ER u o C es ta A ze v e d o, 5 6 - C e u t aF o ne : ( 9 2 ) 3 6 3 3 4 2 2 7 - F o x : ( 9 2 ) 3 6 3 3 - 4 7 8 2 -M a n a u s

B A H I A / S E R G I P E: R i i o  g r ip i 0 D ó r e G ;2 3 - 8 r i j ío s /V Í o>í k :O T )  3 3 8 Í - 5 8 5 4 ^ 3 3 8 1 - S a í 5 : . :: F o x ; ( 7 1 ) 3 3 8 1 ^ 9 5 9 - : :

B A U R U I S À O P A U L O )R u í M o n s e nh o r C lo r o, 2 - 5 5 / 2 - 5 7 - C e n t r o' .F íi n éí ( Í 4 ) ' 3 2 3 4 - 5 f i 4 3 ; - r F o x : ( ) 4 > 3 2 3 4 - 7 4 0 1 — B o ü r u . ;

C F A R Ã / P I A U Í / M A R A H H Â OA v . F i í o m e n o G o m e s , 6 7 0 - J o c a r e c c n g aF ó n e : ( 8 5 ) 3 2 3 8 - 2 3 2 3 / 3 2 3 8 - 1 3 8 4f o x : ( 8 5 ) 3 2 3 8 : 5 3 3 1 - F or tq le zo

O I S T R I I O F E D C R A L S I A / S Í I L T r e c h o 2 t o t e 8 5 0 - S e t o r d e I r d li s í r l o e A b o s t e c i m e n t òF o ne : ( 6 1 ) 3 3 4 4 - 2 9 2 0 / 3 3 4 4 -2 9 5 1F o x : (6 1 ) 3 3 4 4 - 1 7 0 9 - B r a s í li a

G O I Á S / r O C A H T I N SA v . I n d e p e n d ê n c i a , 5 3 3 0 — S e t o rF o ne : ( 6 2 ) 3 2 2 5 - 2 8 8 2 / 3 2 1 2 - 2 8 0 6F o x : ( 6 2 ) 3 2 2 4 - 3 0 1 6 - G o i â n i o

M A T O G R O S SO D O S U t / M A T O G R O S S OR u a 1 4 d e J u l h o , 3 1 4 8 — C en tr oF o n e: ( 6 7 ) 3 3 8 2 - 3 6 8 2 - F o x : (6 7 ) 3 3 8 2 - 0 1 1 2 - C om p o G ra nd e

M I R A S G E R A ISR o o A lé m P a ra íb a , 4 4 9 - L a g oi nh o :F o n e : ( 3 1 ) 3 4 2 9 - 8 3 0 0 — F a x : ( 3 1 ) 3 4 2 9 - 8 3 1 0 — B e l o H o r i io n t e ■

P A R Á / A M A P ÁT r ov e s sa A p in o g é s , 1 8 6 - B a t i s t a C a m p o sF on e: (9 1 ) 3 2 2 2 - 9 0 3 4 / 3 2 2 4 - 9 0 3 8F a x: ( 9 1 ) 3 2 4 1 -0 4 9 9 - B e l é m

P A R A N Á / S A N T A C A T A R I N AR u a C o n s e l he i ro l o ú r í nd o , : 2 8 9 5 - P r o d p V e l hoF o n e / F a x : ( 4 1 ) 3 3 3 2 - 4 8 9 4 - C u r i ti b a ;

P E R N A M B U C O / P A R A l B A / R. G . 0 0 R O R i F / A L A G O A SR u a C o rr e d or d o B i s p o , 1 8 5 - B o a V i st oF o n e : (8 1 ) 3 4 2 1 - 4 2 4 6 - F a x : (8 1 ) 3 4 2 1 - 4 5 1 0 - R e c i fe

R I B E I R Ã O P R E T O ( S Ã O P A U L O )A v . F r a n c i s c o Ju n q u e i r a , . 1 2 5 5F o n e : ( 1 6 ) 3 6 1 0 - 5 8 4 3 — F a X ; ( í 6 ) 3 6 Í O - 8 2 8 4 - R i b e i r ã o P re to

R I O D E J A N È I R O / E S P l R I T O S A N T O : ;R u a V i sc o n d e d e S a n t a I s a b e l , 1 1 3 a 1 1 9 - V i i a Is a b elF o n e ; ( 2 1 ) 2 5 7 7 - 9 4 9 4 - F a x : ( 2 1 ) 2 5 7 7 - 8 86 7 / 2 5 7 7 - 9 5 6 5 :

R io d e Ja n e i r oR I O G R A N D E D O S U LA v . A . J . R e n n e r , 2 3 1 — F a r ra p o sF o ne /F ax : ( 5 1 ) 3 3 7 1 - 4 0 0 1 / 3 3 7 1 - 1 4 6 7 / 3 3 7 1 - 1 5 6 7 ' /Porto A legre -

S Ã O P A U T OA v . A n t á r t ic a , 9 2 - B a r r o F u nd aF o n e: PA B X ( 1 1 ) 3 6 1 6 - 3 6 6 6 - S ã o

I S B N 9 7 8 - 8 5 - 0 2 - 0 1 4 8 1 - 7

D a d o s I n t e r n a c i o n a i s d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l ic a ç ã o ( C I P )

( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , S P , B r a s i l )

R o a i s , M i g u e i

. F o n t e s e j r ió d e l o s d o d i r e i t o : p a r a u m n o v o p a r a d i g m a

: h é r m e n ê ú t i ç ò / M i g u é l R e a l e - S ã o P a u l o í S a r a i v a ,

. 1 9 9 4 . : ■

; ; 1 . D i r e i t o - F i lo s o f i a 2.  D i r e i t o - t e o r i a

' 1 . t í t u l o :

9 4 - 2 8 1 0 C 8 U - 3 4 0 . 1 2

í n d i c e p a r a c a t á l o g o s i s t e m á t i c o :

1 . F o n t e s e m o d e l o s j u r í d i c o s : F i lo s o f i ad o d i r e it o 3 4 0 . 1 2

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PRINCIPAIS OBRAS DO AUTOR

O Estado Moderno. 1935. 3 edições esg.Formação da Política Burguesa. 1935. esg.

O Capitalismo Internacional. 1935. esg.

 Atualidades de um Mundo Antigo. 1936. esg.

 Atualidades Brasileiras. 1937. esg.

Fundamentos do Direito.  1940. esg. 2. ed. Revista dos Tribu

nais, 1972.Teoria do Direito e do Estado. 1940. esg. 2. ed. 1960. esg. 3. ed.,

rev., Livr. Martins Ed., 1972. esg. 4. ed., Saraiva, 1984.

 A Doutrina de Kant no Brasil. 1949. esg.

Filosofia do Direito. 1. ed. Saraiva, 1953.16. ed. Saraiva, 1994.

Horizontes do Direito e da História. Saraiva, 1956. ed. 1977.

Nos Quadrantes do Direito Positivo. Ed. Michalany, 1960.Filosofia em São Paulo. 1962. esg. 2. ed. Ed. Grijalbo-EDUSP,

1976.

 Parlamentarismo Brasileiro. 2. ed. Saraiva, 1962.

 Pluralismo e Liberdade. Saraiva, 1963.

Imperativos da Revolução de Março. Livr. Martins Ed., 1965.

 Poemas do Amor e do Tempo. Saraiva, 1965.

Introdução e Notas aos "Cadernos de Filosofia ”, de Diogo Antonio Feijó. Ed. Grijalbo, 1967.

Revogação e Anulamento do Ato Administrativo. Forense, 1968.2. ed. 1980.

Teoria Tridimensional do Direito. Saraiva, 1968.

Revolução e Democracia. Ed. Convívio, 1969. 2. ed. 1977.

O Direito como Experiência. Saraiva, 1968.

 Direito Administrativo. Forense, 1969.

 Problemas de Nosso Tempo. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1969.

 V

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Lições Preliminares de Direito. Bushatsky, 1973.21. ed. Saraiva, 1994.

Lições Preliminares de Direito. Ed. portuguesa. Coimbra, Livr. Almedina, 1982.

Cem Anos de Ciência do Direito no Brasil. Saraiva, 1973.

Experiência e Cultura. Ed. Grijalbo-EDUSP, 1977.

 Política de Ontem e de Hoje (Introdução à Tfeoria do Estado).Saraiva, 1978.

Estudos de Filosofia e Ciência do Direito. Saraiva, 1978.

 Poemas da Noite. Ed. Soma, 1980.

O Homem e seus Horizontes. Ed. Convívio, 1980.

Questões de Direito. Sugestões Literárias, 1981.

Miguel Reale na UnB. Brasília. 1982.

 A Filosofia na Obra de Machado de Assis -Antologia Filosófica de Machado de Assis.

 Pioneira, 1982.Verdade e Conjetura. Nova Fronteira, 1983.

Obras Políticas (1“ fase —1931-1937). UnB, 1983. 3 vols.

 Direito Natural  /  Direito Positivo. Saraiva, 1984.,

Figuras da Inteligência Brasileira. Tempo Brasileiro Ed. e Univ.do Ceará, 1984.

Teoria e Prática do Direito. Saraiva, 1984.Sonetos da Verdade. Nova Fronteira, 1984.

 Por uma Constituição Brasileira. Revista dos Tribunais, 1985.

Reforma Universitária. Ed. Convívio, 1985.

O Projeto de Código Civil. Saraiva, 1986.

Liberdade e Democracia. Saraiva, 1987.

Memórias, v. 1. Destinos Cruzados. Saraiva, 1986. 2. ed. 1987.

Memórias, v. 2. A Balança e a Espada. Saraiva, 1987.

Introdução à Filosofia. Saraiva, 1988. 2. ed. 1989.

O Belo e outros Valores. Academia Brasileira de Letras, 1989.

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 Aplicações da Constituição de 1988. Forense, 1990.

Nova Fase do Direito Moderno. Saraiva, 1990.

Vida Oculta.  1990.Temas de Direito Positivo. Revista dos Tribunais, 1992.

Face Oculta de Euclides da Cunha.  1993.

Estudos de Filosofia Brasileira.  Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, Lisboa, 1994.

PRINCIPAIS OBRAS TRADUZIDAS

Filosofia del Diritto. Trad. Luigi Bagolini e G. Ricci. Torino,Giappichelli, 1956.

11 Diritto come Esperienza,  com ensaio introd. de DomenicoCoccopalmerio. Milano, GiufErè, 1973.

Teoría Tridimensional del Derecho. Trad. J.A. Sardina-Paramo.Santiago de Compostella, Imprenta Paredes, 1973. 2. ed.Universidad de Chile, Valparaiso (na coletânea "JuristasPerenes").

Fundamentos del Derecho.  Trad. Julio A. Chiappini. Buenos

 Aires, Depalma, 1976.Introducción al Derecho.  Trad. Brufau Prats. Madrid, Ed.

Pirámide, 1976. 2. ed., 1977.10. ed. 1993.

Filosofía del Derecho. Trad. Miguel Angel Herreros. Madrid,Ed. Pirámide, 1979.

Experience et Culture.  Trad. Giovanni Dell'Anna. Bordeaux,Éditions Biere, 1990.

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 A Antonio Paim Celso LaferJoão de Scantimburgo e Tércio Sampaio Ferraz Júnior

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ÍNDICE

 Prefácio............................................................................... XV

CAPÍTULO I

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

Colocação do problema básico..... ...........................................1

Correlação entre validade e eficáòia................................. .....

4 Acepção dos termos estrutura e modelo........................... .....5Espécies de modelos.......................................................... .....7

CAPÍTULO II

NOÇÃO DE FONTE DO DIREITO

Fonte do direito e poder de decidir......................................

11 Aspecto procedimental da fonte do direito....................... ...12Noção de fonte do direito .......................................................14O conteúdo da fonte do direito.......................................... ...15Numerus clausus das fontes do direito............................ ...16 Ainda a natureza procedimental da fonte do direito....... ...18

CAPÍTULO IIIFUNÇÃO DAS FONTES DO DIREITO

Historicidade da fonte do direito...................................... ...21Caráter retrospectivo da tèoria tradicional das fontes .... 23Compreensão prospectiva da fonte do direito............... ......24

O valor da liberdade e os demais valores jurídicos ......... ..26

CAPÍTULO IV 

OS MODELOS JURÍDICOS COMO CONTEÚDO DAS FONTES DO DIREITO

Compreensão do conteúdo das fontes do direito em termos de modelo ............................................................   29

XI

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O Direito como norma e situação normada......................   32Normativismo jurídico concreto........................................   34

CAPÍTULO VNATUREZA DOS MODELOS JURÍDICOS

Noção de modelo jurídico:................................................... 37Modelagem da experiência jurídica................ .................. 39Modelos da Filosofia do Direito e modelos do Direito.....   42Concreção dos modelos jurídicos.......................................   45

Modelos jurídicos e símbolos.............................................   47

CAPÍTULO VI

GÊNESE DOS MODELOS JURÍDICOS

Um problema de Política do Direito.................................   49 A decisão do poder no processo jurígeno..........................   51

Progressiva despersonalização do poder..........................   53 Absorção do poder pela regra de direito...........................   54Racionalidade e heteronomia............................................ 56

Legitimidade dos modelos jurídicos.................................   60

CAPÍTULO VII

ESPÉCIES DE MODELOS JURÍDICOSNotas prévias..................................................................... 63

Os modelos jurídicos legais............................................... 66

O modelo jurídico costumeiro ........................................... 68

Os modelos jurisdicionais.................................................. 69

Os modelos jurídicos negociais......................................... 73

CAPÍTULO VIIIDIALÉTICA DOS MODELOS JURÍDICOS

Dialética e dialela.............................................................. 77

 A dialética de complementaridade...................................   79Complementaridade na experiência jurídica...................   81

XII

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CAPÍTULO IX 

O MACROMODELO DO ORDENAMENTO JURÍDICO

Noção de ordenamento jurídico..................................... .  87Ciência do Direito e ordenamento jurídico.......................   91Complexidade do ordenameíito jurídico...........................   95

CAPÍTULO X 

MODELOS HERMENÊUTICOS DO DIREITO

Modelos prescritivos e modelos hermenêuticos...............   105

Modelos hermenêuticos do Direito de caráter metodológico ............................................................................... 108

Modelos hermenêuticos de tipo axiológico.......................   113Modelos hermenêuticos supletivos e complementares....   118

índice de autores....................................................... ......... 123

XIII

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PREFÁCIO

É cada vez mais reconhecida a necessidade de ser aplicada ao mundo do direito a teoria dos modelos, de tão granderelevância na Epistemología contemporânea, quer sob umenfoque formal ou instrumental, como se dá nos domínios daLógica Deôntica, da Semiótica e da Informática jurídicas, quersob um prisma mais amplo, levando em conta a totalidade dos

elementos factuais, axiológicos e normativos que compõem aexperiência do Direito, tal como pretendo fazer no presentelivro. Tais investigações não se excluem, mas devem, ao contrário, fecundamente se correlacionar.

Em uma de suas obras capitais, Niklas Luhmann afirmacom razão que, nos dias atuais, a pesquisa do Direito não podedeixar de ser feita sem a utilização dos conceitos de estrutura

e modelo, por sinal que fazendo honrosa referência a estudospor mim realizados, neste sentido, na década de 1968a.

É meu propósito, neste pequeno livro, oferecer uma visãoda experiência jurídica sob dois ângulos complementares, o das

 fontes do direito, concebidas como estruturas normativas, e oseu conteúdo material, apresentado sob a forma de modelos,distintos em duas categorias intimamente correlacionadas, a

 jurídico-prescritiva e a hermenêutica ou dogmática.Ponto de partida dessa pesquisa são obviamente os traba

lhos iniciais de 1968, sobretudo O Direito como Experiência, cuja tradução italiana, em 1973, auxiliou a tornar mais conhecidas as idéias nele expostas, tal como esclareço na Introduçãoà 2a edição dessa obra, que a Editora Saraiva concordou em

fazer em texto fac-similar.

 A. Cf. NIKLAS LUHMANN, Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Stuttgart,Berlim, Colônia e Mainz, 1974, pág. 50. Os meus estudos, a que ele se reporta, são O Direito como Experiência, no original português, São Paulo, 1968, ena tradução italiana, Milão, 1973, além da comunicação  Pour une Théorie des Modèles Juridiques, apresentado ao XIV Congresso de Filosofia de Viena, em 1968 (v. Akten desse Congresso, Viena, 1970, vol. 5, S. 144-151).

XV

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Desde então a teoria dos modelos jurídicos nunca deixoude ser objeto de minhas investigações, dando uma configuração nova à teoria tridimensional do direito, como resulta das

4S e 5&edições da obra com esse título, bem como de sucessivasedições de Lições Preliminares de Direito, a qual, não obstanteseu caráter propedêutico, enfeixa sinteticamente o meu pensamento jurídico, que, seja-me lícito adverti-lo, não se reduz aotridimensionalismo. A concepção do Direito como experiência ecomo um sistema de modelos jurídicos não é parte menos representativa de minhas idéias, compondo um todo unitário.

Foi essa convicção que me levou a escrever o presente livro, no qual o paradigma da teoria das estruturas e dos modelos me pareceu propício para uma exposição sintética da teoriageral do direito, que venho desenvolvendo em trabalhos avulsos, depois insertos em vários livros, como os que figuram emEstudos de Filosofia e Ciência do Direito e Nova Fase do Direito Moderno.

Chega uma hora em que sentimos necessidade de rever e

atualizar o já publicado de forma dispersa, tal como se dá comesta obra, na qual a indagação teórica se correlaciona com avivência prática do Direito em aturados anos de exercício daadvocacia. Creio que esses dois enfoques se refletem nas páginas que se vão ler.

 Além disso, sobretudo quando tantos juristas se deixamdominar pelas recentes investigações lógico-formais ou lógico-lingüísticas, com elas se contentando, por considerá-las a última palavra da Ciência do Direito, creio que não será demaisinsistir que uma teoria jurídica, que não se abra para a problemática social e política, e não tome conhecimento das exigências histórico-axiológicas, fica a meio do caminho, por mais queseja válida e essencial a contribuição haurida naqueles novoscampos da ciência.

Indispensável é, em suma, que o jurista transcenda tudo

o que tenha valor instrumental, deste tirando proveito paraaprofundar e consolidar o conhecimento da experiência jurídica na integralidade de seus elementos constitutivos, com todaa força axiológica de seu sentido ético, oferecendo, assim, algo

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de válido e próprio aos que pesquisam na Sociologia, na Antropologia ou na Política. E somente essa visão integral que legitimará o trabalho do jurista, que jamais deve olvidar a

destinação ético-política de seus conhecimentos.Num país como o nosso, então, onde se avoluma a pressãoviolenta das carências sociais e econômicas, parece-me inadmissível uma Ciência Jurídica que não leve em conta toda adramaticidade da vida comunitária e dos imperativos de seudesenvolvimento.

O AutorMarço de 1994

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CAPÍTULO I

Observações Preliminares

Colocação do problema básico

Quem tiver dedicado honrosa atenção a meus trabalhos

de Filosofia do Direito sabe que, em determinado momento demeus estudos, em meados da década de 1960, cheguei à conclusão de que era necessário proceder a uma revisão da teoria das fontes do direito, com base na teoria dos modelos jurídicos. Quer na comunicação apresentada ao Congresso Internacional de Filosofia realizado em Viena, em 19681, quer na 1“ edição de O Direito como Experiência, do mesmo ano, cheguei adeclarar que, possivelmente, com a evolução dos estudos, seria

possível a substituição da idéia de fontes pela de modelos do direito.

Ibdavia, com a evolução das pesquisas, tal como saliento naIntrodução à 2“ edição ãeO Direito como Experiência (1992), fuiaos poucos me convencendo de que entre a teoria das fontes e ados modelos do direito existe antes umarelação de complementaridade, sendo a primeira completada pela segunda. Desse

modo, cabe-nos estudar, de maneira conjunta econgruente, os

1. Cf. Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, Sâo Paulo, Saraiva, 1978,págs. 16 e segs. O original em francês consta dos Anais do referido Congresso, cit., ao qual foi enviado com vários meses de antecedência.

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 processos de instituição das normas jurídicas, dando realce aoproblema de suavalidade, o que é nuclear na teoria das fontes,para, a seguir, examinar o problema dasignificação e o daeficá

cia ouaplicação dessas normas, problemas estes que correspondem mais propriamente aos modelos do Direito nas suas duasmodalidades, a dosmodelos jurídicos e a dos modelos dogmáticos onhermenêuticos.

É claro que essa colocação do problema já decorria do abandono do antigo conceito de fonte de direito, a meu ver desdobrada indevidamente em fonte formal e fonte material, geradora de graves confusões. No meu entender, uma fonte de direito só pode ser formal, no sentido de que ela representa sempre uma estrutura normativa que processa e formaliza, conferindo-lhes validade objetiva, determinadas diretrizes de conduta (em se tratando de relações privadas) ou determinadas esferas de competência, em se tratando sobretudo de DireitoPúblico.

O que comumente se denomina fonte material diz respeito a algo que não compete propriamente à Ciência do Direitoqua tale, mas sim à Política do Direito, porquanto se refere aoexame do conjunto de fatores sociológicos, econômicos, ecológicos, psicológicos, culturais em suma, que condiciona a decisãodo poder  (e veremos que este se manifesta sob diversas formas) no ato de edição  e formalização das diversas fontes dodireito. Para o jurista o problema essencial que se lhe põe é oestudo daquilo que foi processado e formalizado, isto é, positivado numa lei, num costume, numa sentença  ou num contrato, que são as quatro fontes por excelência do Direito.

É claro que o intérprete, ao procurar alcançar o sentidodaquilo que a fonte revela, não pode deixar de atender às suas

causas e pressupostos materiais, mas só na medida em queestes possam esclarecer o conteúdo das regras jurídicas formalizadas como estatuições objetivas, isto é, dotadas de per side obrigatoriedade. Nesse sentido quem diz fonte de direitodiz fonte formal de direito. É o que não compreendem aqueles que reduzem a Ciência do Direito a um capítulo da Soei

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logia Jurídica, quando se trata de ciências correlatas, mas distintas.

Por outro lado, cumpre lembrar que as fontes do direito

não explicitam apenas normas de comportamento  mas também normas de competência, até mesmo no plano do DireitoPrivado, como, por exemplo, ao serem enunciadas as atribuições dos pais, do inventariante ou dos membros da Diretoriaou do Conselho Fiscal de uma sociedade anônima. Isto basta,aliás, para convencer-nos de que o Direito não é conduta, nemse refere apenas à conduta, como pretendeu Carlos Cossio.

Isto posto, concebendo a experiência jurídica como um processo dialético de fato, valor e norma, não podia, como não posso, conceber a regra jurídica  senão como uma integração de 

 fatos segundo valores, integração esta que, uma vez objetivizada(tomada objetiva), está também sujeita a mutações operadasem razão de supervenientes alterações verificadas no planonormativo, factual e axiológico. Não creio que seja necessário,neste estudo, reiterar o que escrevi sobre o que denominonormativismo concreto ou tridimensional,  tratado em váriasobras2.

 Assim sendo, limito-me a recordar que foi em meu livroLições Preliminares de Direito, cuja 1- edição é de 1973 - obraesta de cunho propedêutico, mas na qual exponho sinteticamente a minha Teoria Geral do Direito Positivo -, que me foidado situar de maneira mais clara a relação entre fonte e mo

delo jurídico, no sentido de que este resulta daquela como pro jeção objetiva de seu contendo. Foi, pois, nesse sentido que escrevi que as fontes produzem ou põem as normas jurídicas, entre as quais sobressaem os modelos jurídicos,  os quais porisso mesmo surgem como prescrições, “modelos prescritivos”, em razão das fontes de que promanam, as quais são sempredotadas do poder de obrigar.

2. Vide, especialmente, o exposto na 5®edição de Teoria Tridimensional do  Direito, São Paulo, Saraiva, 1994; a 2~  edição de O Direito como Experiência, São Paulo, Saraiva, 1992, especialmente Ensaio VIII, e Nova Fase do Direito Moderno, Saraiva, 1990.

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Correlação entre validade e eficácia

Parece-me necessário realçar a correlação que faço supra entre fonte de direito e validade jurídica, de um lado, e modelo

 jurídico e eficácia jurídica, de outro, devendo-se ter presenteque toda relação jurídica envolve sempre uma correlação entrevalidade eeficácia, sem a qual não se pode falar em positividade do direito. É claro que validade e eficácia nunca existem emestado puro, isto é, sem um mínimo, respectivamente, de eficácia ou de validade, porquanto, quando dizemos que uma norma jurídica é válida, tal afirmação implica admitir que elaimporta necessariamente efeitos no plano factual, pois, de outro modo, seria um enunciado inútil e vazio. Da mesma forma,quando declaramos que uma norma jurídica tem eficácia, estasó é jurídica na medida em que pressupõe a validez da normaque a insere no mundo jurídico, por não estar em contradiçãocom outras normas do sistema, sob pena de tornar-se inconsistente.

Todavia, não obstante essa correlação, a fonte refere-semais propriamente àscondições de validade dos preceitos jurídicos postos por ela, ao passo que os modelos jurídicos, comoconteúdo das fontes, representam a atualização ou projeçãodestas no espaço e no tempo sociais, no plano da eficácia, ou doprocedimento. Este assunto, que é fundamental, será apreciado após melhor estudo do conceito de fonte.

Não é demais observar que Hans Kelsen afirma ser o conteúdo  das fontes representado por “seu âmbito material devalidez”, ou, por outras palavras, que o seu conteúdo é constituído pelas distintas modalidades de normas válidas; mas, enquanto para o mestre da Teoria Pura do Direito há merareferibilidade lógica, estática e abstrata entre as fontes e seuconteúdo, no meu entender, as fontes e as normas (entendidasestas como modelos normativos) se correlacionam entre si demaneira concreta e dinâmica segundo uma dialética decomplementaridade.

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Como veremos, o que as fontes revelam como seu conteúdo tem, por assim dizer, os característicos de algo que se projeta no espaço e no tempo, como dever-ser normativo, o que ex

plica o emprego da palavra modelo.

 Acepção dos termos estrutura e modelo

Isto posto, antes de passar à análise, respectivamente,

das fontes e dos modelos do Direito, cabe esclarecer em quesentido emprego os termos estrutura e modelo, que tanta importância têm na Epistemología contemporânea, tal como tivea oportunidade de salientar, mais uma vez, sobretudo em O

 Direito como experiência, em cujas páginas o leitor encontraráas raízes do presente livro.

Trata-se de palavras empregadas tanto no plano da Físi

ca e demais ciências naturais como no da Lógica, da Matemática e das ciências humanas, possuindo em cada um desses ede outros campos de conhecimento acepções diversas, assuntoesse que, por sua relevância, será tratado ao longo do presentelivro.

Em primeiro lugar, tenha-se presente que o modelo não ésenão uma espécie do gênero estrutura, entendida esta como

“um conjunto de elementos que entre si se correlacionam e se implicam de modo a representar dado campo unitário de signi

 ficações”. Como se vê, a noção de estrutura implica a de pluralidade de elementos componentes que só adquirem plenitude designificação na medida em que eles se complementam e se completam unitariamente, donde a sua concepção como “unidadeorgânica”, , a partir do símile do organismo animal que constitui um todo diversificado e unitariamente congruente.

Do conceito de estrutura trato longamente no Capítulo VII de meu livro O Direito como Experiência, tanto do ponto devista filosófico como sociológico, com base sobretudo nosensinamentos de Parsons, Merton, Gilberto Freyre e Levi-

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Strauss, mostrando que as estruturas sociais não surgem arbitrariamente ou aleatoriamente, mas são o resultado de umaexigência de ordem conatural ao ser humano. Na sua bela obra

La Pensée Sauvage (1962), completada por outra para mim nãomenos interessante, Le Cru et le Cuit (1964), Levi-Strauss demonstra que o senso de ordem, longe de ser uma conquistaracional no plano da evolução da espécie humana, já é umaqualidade imanente no pensamento de todo ser humano, a começar pelo homem selvagem, isto é, ainda não aculturado. ODireito, assevero-o desde logo, é a máxima expressão desse

imperativo de ordem, expresso na ordenada razão de ser dasestruturas jurídicas.Pois bem, toda estrutura social é uma unitas ordinis, uma

“unidade pluridimensional ordenada de natureza intersubjetivae dinâmica”, sendo inconfundível, pois, com a estrutura fisicomatemática, à qual nada se pode acrescentar, oü da qual nadase pode subtrair sem afetá-la em sua essência. Daí as qualida

des que são inerentes às estruturas culturais, e que em meucitado livro assim resumo, considerando-as uma:а) unidade historicamente integrada, na qual os elemen

tos componentes só logram plenitude de significado referidos ao todo, cuja significação é irredutível a cadaum ou à soma daqueles elementos;

б) unidade polarizada no sentido de um valor ou idéiamatriz que atua como sua íntima força constitutiva erazão de sua forma, na qual as atividades diferençadasse correlacionam e se complementam, segundo índicesvariáveis de duração e continuidade',

c) unidade vetorial e tensional de sentido, de tal modo quea mudança do significado dos elementos componentesenvolve a do todo e vice-versa;

d) unidade de caráter funcional, como instrumento essencial de comunicação,  inseparável, por conseguinte, deseus instrumentos lingüísticos e simbólicos;

e) unidade situacional, isto é, correlacionável com outrasestruturas atuantes no mesmo contexto histórico, dando

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lugar à formação de estruturas englobantes, sem pre juízo das funções que lhe forem imanentes e próprias.

Totalidade plural, complementaridade, historicidade, 

vetorialidade, tensionalidade e durabilidade, eis aí os elementos mais relevantes discerníveis, em maior ou menor grau, nasestruturas sociais, abstração feita das peculiaridades de seusdiversos tipos, em função das distintas esferas de atividade ede pesquisa.

Ora, uma estrutura adquire a qualidade de modelo quan

do, além de representar, unidiversificadamente, dado complexo de significações, se converte em razão de ser ou ponto necessário de partida para novos juízos futuros, abrindo campo anovos cálculos (como se dá com os modelos matemáticos) ou,então, a novas valorações, como acontece no plano das ciênciashumanas, no do Direito em particular.

Poder-se-ia dizer que o modelo é uma típica estrutura 

normativa, ou seja, uma expressão de dever-ser, quer este serefira a algo que deva ser, de maneira explicativa, no plano daidealidade lógico-matemática, quer se relacione com algo quedeva ser de maneira prescritiva, como atitude ou momento devida no plano existencial. Por aí já se percebe que não é possível reduzir o dever-ser jurídico a um mero enlace lógico-proposi-cional, como o pretendeu Kelsen, na primeira fase de sua Tfeo-ria Pura do Direito, pois o dever-ser no mundo do Direito envolve e representa, sempre um momento volitivo da vida humana, com tudo o que nesta existe de intencional e funcional.

Espécies de modelos

Estas observações já nos permitem concluir que, em última análise, há três ordens fundamentais de modelo: os físicos, os matemáticos e os histórico-culturais, sendo necessário tecerbreves considerações sobre cada um deles.

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O modelo matemático é urna pura criação do pensamento,uma idealidade,  ou objeto ideal, muito embora se possa ou sedeva admitir, à luz dos ensinamentos de Piaget, sua gênese

psicológica, isto é, sua inicial vinculação a um processo de ordem psíquica que, a partir de certo instante, perde seu significado representativo de algo externo, para passar a ter significado ideativo em si e por si mesmo.

Não é o caso de, aqui, relembrar a teoria dos objetos, comopenso tê-la desenvolvido, com três objetivos fundamentais deconhecimento, os naturais (físicos e psíquicos), os ideais (lógi-

co-matemáticos) e os que expressam valores, positiva ou negativamente, como um dever-ser de conteúdo ético, estético, econômico, jurídico etc., dando nascimento aos objetos culturais, que são enquanto devem ser, ou são no sentido de algo válido3.

Bastará recordar que, partindo da observação fundamental de que os objetos naturais pertencem ao mundo do Ser (Sein), entendo que a eles não podem ser reduzidos os valores, os quais,ao contrário, constituem expressões do mundo do dever ser 

(Sollen). Por outro lado, os valores não podem ser equiparadosnem mesmo aos objetos ideais, como os lógico-matemáticos, cujodever ser de certa forma é ou se põe no plano da pura conseqüen-cialidade ideal, enquanto o valioso se distingue por permanente vinculação ao plano experiencial, exigindo que “algo venhaser” como momento de vida no plano da realidade ou das estimativas, cujo adimplemento reflui sobre a fonte axiológica ori

ginária, alterando-lhe o significado. O fato de ser possível representar esse mundo existencial e tensionál, com elementosnão raro contrapostos, graças aos atuais recursos da LógicaParaconsistente ou da Lógica não-Alética, não contradiz aasserção de que as proposições e os cálculos lógicos se desen

3. Sobre a distinção que faço entre os objetos ideais (nos quais ainda MAXSCHELER e NICOLAIHARTMANN incluíam os valores) e os valores, comotertium genus, v. meus livros Introdução à Filosofia, 3- ed., São Paulo, 1994,págs. 135 usque  145, e O Direito como Experiência,  cit., 2®ed., págs. 147usque 225, onde o leitor poderá encontrar ampla exposição sobre a naturezatanto das estruturas como dos modelos, sob os prismas filosófico, sociológicoe jurídico.

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volvem como idealidades. No domínio das ciências humanas, edo Direito em particular, tudo acontece, ao contrário, em função do que é enquanto deve ser, isto é, do que “vale para”, para

empregarmos terminologia característica de Emil Lask, tal como é próprio das ciências culturais4.

4. Sobre a aplicação da Lógica não-Alética ou da Lógica Paraconsistente noDireito, cf. NEWTON C. A. DA COSTA e LEILA PUGA, A Lógica Deôntica e a Teoria Tridimensional do Direito, Revista dos Tribunais, vol. 634, 1988,págs. 634 e segs.

Quanto à compreensão do dever ser como '‘validade para”  no pensamento de EMIL LASK, v. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., O Conceito de Sistema no Direito, São Paulo, 1976, págs. 171 e segs. e passim.

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CAPÍTULO II

Noção de Fonte do Direito

Fonte do direito e poder de decidir

E necessário dizer algo mais sobre as fontes do direito,que são sempre estruturas normativas que implicam a existência de alguém dotado de um poder de decidir sobre o seuconteúdo, o que equivale a dizer um poder de optar entre váriasvias normativas possíveis, elegendo-se aquela que é declaradaobrigatória, quer erga omnes, como ocorre nas hipóteses da fonte legal  e da consuetudinária,  quer inter partes,  como se dá nocaso da fonte jurisdicional ou na fonte negociai. Veremos que,quando a lei é omissa, a jurisdição, valendo-se da analogia, doscostumes e dos princípios gerais de direito (Lei de Introduçãoao Código Civil, Art. 4fi), firma decisões dotadas de certa generalidade, mas, mesmo quando consubstanciadas em súmulas dos Tribunais Superiores, estão sujeitas a revisão, à vista denovas razões aduzidas pelas partes, em virtude de diretrizesteóricas consagradas por novos modelos hermenêuticos.

O essencial, porém, é ter presente que, sem poder de decidir,  não se pode falar em fonte do direito, motivo pelo qual,como explico em Lições Preliminares de Direito, a doutrina, aocontrário do que sustentam alguns, não é fonte do direito, umavez que as posições teóricas, por maior que seja a força cultural

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de seus expositores, não dispõem de per si ào poder de obrigar. É a razão pela qual, como veremos, a doutrina não gera modelos jurídicos, propriamente ditos, que são sempre prescritivos,

mas sim modelos dogmáticos ou hermenêuticos, o que em nadalhe diminui a relevância, pois ela desempenha freqüentementeuma posição de vanguarda esclarecendo a significação dosmodelos jurídicos através do tempo, ou exigindo novas formasde realização do Direito graças à edição de modelos jurídicoscorrespondente aos fatos e valores supervenientes.

Consoante já resulta do exposto, sendo o  poder um elemento essencial e consubstanciai ao conceito de fonte do direi

to5, esta se diversifica em tantas modalidades ou tipos quantassão as formas do poder de decidir na experiência social. A meuver, quatro são as fontes do direito: alegai, resultante do poder estatal de legislar editando leis e seus corolários normativos; aconsuetudinária, expressão do poder social inerente à vida coletiva e revelada através de sucessivas e constantes formas decomportamento; a jurisdicional, que se vincula ao Poder Judi

ciário, expressando-se através de sentenças de vários graus eextensão; e, finalmente, a fonte negociai, ligada ao poder quetem a vontade humana de instaurar vínculos reguladores dopactuado com outrem.

 Aspecto procedimental da fonte do direito

Do exposto já se infere que, como bem adverte NorbertoBobbio, a teoria das fontes tem por objeto (e eu digo: primeiroobjeto) fixar os requisitos de fato e de direito que devem serobedecidos para que qualquer produção de normas possa serconsiderada válida. Além disso, insere-se, a meu ver, na teoriadas fontes o estudo de sua necessária correlação com a expe

5. Sobre o papel do poder na experiência jurídica, vide o meu ensaio “O poderna democracia”, in Pluralismo e Liberdade, Saraiva, 1963, págs. 207 e segs.Esse estudo foi publicado antes sob o título “Law, Power and theirscorrelations”, no livro Essays in Honor o f Roscoe Pound, 1962, págs. 238 esegs.

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riência jurídica compreendida em sua social historicidade, bemcomo a análise e a classificação das diversas formas ou processos de produção de regras jurídicas.

Destarte, uma lei somente pode ser considerada como talse ela obedece ao devido processo de sua elaboração, exigindo-se, por exemplo, que ela seja emanada pelo poder competentee sancionada e promulgada de acordo com os imperativos constitucionais. Rui Barbosa era tão cuidadoso no concernente aospressupostos de uma lei que ele exigia que ela obedecesse àtramitação prevista no Regimento Interno da Câmara dos De

putados ou do Senado Federal sob pena de carecer de validade.Donde se conclui que, preliminarmente, a teoria das fontes do direito se põe como estudo da validade do processo mediante o qual as regras de direito são postas in esse.

É claro que todas as fontes operam no quadro de validade traçado pela Constituição de cada país, e já agora nos limitespermitidos por certos valores jurídicos transnacionais, univer

salmente reconhecidos como invariantes jurídico-axiológicas, como a da Declaração Universal dos Direitos do Homem, masdeste assunto cuidaremos oportunamente.

Por ora, prefiro aduzir algo mais sobre a noção de fonte dodireito, nos limites em que situo este termo.

Divergem os autores sobre o conceito de fonte do direito.Prefiro afirmar que uma norma, para que possa ser considera

da norma jurídica e, como tal, dotada de vis compulsiva, precisa satisfazer ao conjunto de requisitos concernentes à sua elaboração, o que quer dizer que ela deve ser emanada pela fonte do direito correspondente à sua natureza e finalidade. São aconstituição e as leis de cada país que predeterminam os requisitos caracterizadores das diversas fontes do direito, quenão podem ser configuradas em abstrato, mas sim em razão de

específicas conjunturas históricas, como o demonstra a distinção fundamental entre a nomogênese jurídica que caracterizae distingue o Common Law e a que é própria do Civil Law, istoé, do Direito de tradição romanística.

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Noção de fonte do direito

O que importa é reconhecer que têm vigência, isto é, são

dotadas de validade objetiva, tão-somente aquelas normas oucláusulas normativas que obedeçam aos requisitos previstospelo ordenamento jurídico de cada país para cada tipo de fonte. Isto demonstra que há um numerus clausus de fontes do direito,  as quais não surgem ex nihilo,  mas se situam noordenamento jurídico global, segundo diversos níveis ou grausde validade, originários uns e derivados outros, todos, porém,inseridos no âmbito da validade geral traçado pela Constituição.

Na linha desse entendimento, podemos dizer que a fontedo direito implica o conjunto de pressupostos de validade quedevem ser obedecidos para que a produção de prescriçõesnormativas possa ser considerada obrigatória, projetando-sena vida de relação e regendo momentos diversos das atividades da sociedade civil e do Estado. Quando uma lei, uma sentença, um costume ou um negócio jurídico são produzidos de

acordo com os parâmetros superiores que disciplinam sua elaboração, eles adquirem juridicidade, determinando o que podee deve ser considerado “de direito” por seus destinatários.

Nessa ordem de idéias é que devemos verificar como e atéque ponto podemos aceitar a declaração de Hans Kelsen deque o conteúdo das fontes do direito é o seu “âmbito materialde validez”6, tal como já foi lembrado.

 Ao lado da colocação normativa, mas não puramente normativa, que acabo de expor, outros autores têm uma visão,por assim dizer, mais físicalista ou sociológica das fontes dodireito, dizendo que este se produz independentemente de qualquer prévio requisito normativo, obedecendo tão-somente a“causas naturais” ou a diversos centros de interesse que sópodem ser objeto de determinação à luz de uma análise de caráter sociológico. Desse modo, a teoria das fontes se transfere

para um plano metajurídico, obedecendo a uma pluralidade

6. H. KELSEN, Tkoría General dei Derechoy dei Estado, trad. de E. GarciaMáynez, México, 1949, págs. 43-45.

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imprevisível de focos de irradiação de regras, cuja juridicidadecaberia aos juristas e juizes reconhecer e aplicar segundo critérios postos por distintas ciências sociais.

Penso eu que só a primeira noção de fonte antes examinada corresponde à natureza do Direito, o qual é sempre normativo, muito embora não seja exclusivamente normativo, como osustentou Kelsen com a sua Teoria Pura do Direito, isto é, desvencilhado de tudo que não seja normativo.

O conteúdo da fonte do direitoOra, sob o prisma normativo, quando dizemos que as fon

tes produzem ou instauram diretrizes normativas obrigatórias,graças ao poder que cada tipo de fonte pressupõe, devemos entender que o produzido e instaurado não é senão o conteúdo daprópria fonte, como acontece quando uma lei é formulada se

gundo os princípios e requisitos que regem o processolegislativo. Isto ocorre porque é inseparável o conceito de fonte da idéia da obrigatoriedade das normas por ela enunciadas, eessa obrigatoriedade inexistiria se não houvesse um  poder (legislativo, costumeiro, jurisdicional e negociai) capaz de instaurar vínculos de caráter coercitivo. Quando dizemos que tantoa lei como o contrato obrigam, cada um a seu modo e segundo

diverso alcance, estamos reconhecendo que à fonte do direito éinerente um poder de decidir, sem o qual não haveria norma vigente, ou seja, posta com exclusão de qualquer outra. Não é,pois, demais acentuar que, conforme a teoria tridimensionaldo direito o salienta, a fonte de direito é uma eâtrutura normativa capacitada a instaurar normas jurídicas em função de fatos e valores, graças ao poder que lhe é inerente.

Entende-se, assim, melhor porque, concomitantementecom a decisão instauradora, inerente à fonte, esta é inseparávelde seu conteúdo, ou, como diz Kelsen, do “seu âmbito materialde validade”. Nada de extraordinário que assim seja, pois épróprio do processo nomogenético do Direito que a emanaçãodas normas se dê, uno in acto, com a declaração de seu conteú

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do (tudo aquilo que em razão do regrado deva ser havido como“de direito”) e da obrigatoriedade do que é enunciado.

 Assente esse ponto essencial, torna-se necessário esclare

cer, mais minuciosamente, o que se deva entender por conteúdo da fonte do direito, a partir da compreensão kelseniana deque não é senão seu âmbito material de validez, numa visão,porém, mais ampla, do normativo, insuscetível, repito, de serreduzido a meros enlaces lógico-formais, tal como será pormenorizado no próximo capítulo.

“Numerus clausus” das fontes do direito

 Antes, todavia, restam duas questões a analisar. Umadelas se refere à correlação existente entre o problema das fontes do direito e o princípio binado de certeza  e segurança quenecessariamente informa a ordem jurídica positiva. Há

 jusfilósofos e juristas, em geral perdidos numa vivência romântica do Direito, que apresentam, como sinal de progresso democrático, a validade das normas jurídicas independentemente da idéia de fonte do direito que, como se depreende do exposto, se acha sempre vinculada à prévia determinação da estrutura, da qual as normas promanam, bem como ao processo 

 jurigenético, ou seja, ao modo e forma de sua revelação.O entendimento dominante é o de que cada ordenamento

 jurídico - cujo valor como um “macromodelo” será oportunamente apreciado - possui um numerus clausus de fontes, detal modo que os enunciados normativos, para adquirirem validade jurídica, devem atender a determinados pressupostos, relativos uns à própria estrutura da qual eles promanam, e pertinentes outros ao processo de sua atualização.

Não me parece mereça acolhida a tese contrária, no senti

do da autônoma e espontânea vigência do ius vivens, atravésde múltiplos processos, desde um jogo aberto e espontâneo deintenções e pretensões de ampla juridicidade - em função dosinúmeros fatores operantes na vida comunitária - até a compreensão do direito como o resultado de uma chamada “razão

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comunicativa” expressa em termos de “ação comunicativa”, talcomo é recentemente defendido por Jürgen Habermas. Segundo este pensador, última e mais alta expressão da Escola de

Frankfurt, a razão comunicativa possibilitaria o medium lingüístico através do qual as interações se entrelaçam e asformas de vida se estruturam, logrando-se atingir espontaneamente a necessária correlação entre validade e eficácia, essencial ao Direito, numa conexão descentralizada de condições. Arevelação das normas jurídicas, enquanto regras obrigatórias,não resultaria de sua subordinação, deontologicamente, a man

damentos morais, ou, axiologicamente, a uma constelação devalores privilegiados, ou, ainda, empiricamente à efetividadede uma norma técnica. Tudo se resolveria, afinal, em funçãoda razão comunicativa, a qual, se não é uma fonte de normas,permite que estas se formem livremente através da vida comunitária sem o “mal do normativismo”, que, a seu ver, corre orisco de perder contato com a realidade, e com a vantagem demanter-se aberta a instância do juízo crítico aferidor, sem cujaatuante permanência não haveria real democracia.

O pensamento de Habermas plana, tudo somado, numatemática teórico-sociológica que, não obstante visar a superara tensão entre validade e eficácia do Direito, não consegue resolver in concreto como é que as normas, formuladas segundoa razão comunicativa, adquirem o mínimo de certeza  e segurança  exigido pela ordem jurídica positiva. É mérito de

Habermas focalizar o discurso do Direito à luz da tensão validade-eficácia, mas, a meu ver, ele não consegue resolver a questão nuclear da obrigatoriedade do Direito que não pode resultar de mero fluxo do ius vivens1.

Não há dúvida que as normas jurídicas (legais, consuetu-dinárias, jurisdicionais e negociais) não surgem como por encanto, pressupondo todo um complexo entrelaçamento de inte

resses e pretensões, de caráter público ou privado, mas - comopenso ter demonstrado sobretudo em O Direito como Experiên

7. Cf. JÜRGEN HABERMAS,Faktizitätund Geltung-Beiträge zur Diskurs theorie des Rechts und des democratichen Rechtsstaats, Frankfurt/M., 1992.

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cia -  é imprescindível distinguir entre “representações ou aspirações jurídicas”  e *regras de direito”  como tais: aquelas expressam apenas a força nascente do ius vivens, mas este só

adquire a virtude de obrigar ao se pôr como expressão heterônoma de uma objetiva forma de querer, só alcançada graças a sua tramitação segundo os pressupostos da respectivafonte do direito.

 Ainda a natureza procedimental da 

fonte do direito A outra questão merecedora de atenção preliminar, aliás

intimamente vinculada à que acabamos de analisar, diz respeito às condições e pressupostos que devem ser satisfeitos pelas fontes do direito em termos de processus.

Para melhor entendimento desse assunto, examinemos oque se dá com a Lei, que é a fonte do direito por excelência nosordenamentos jurídicos de tradição romanístico-justinianéia,assim dita por devermos a Justiniano a edição do Corpus Iuris Civilis. Na verdade, o Direito Romano Clássico não teve a leicomo fonte primordial, mas antes um trabalho combinado dedoutrina e jurisdição, graças à ação conjugada dos jurisconsultos- que forneciam a norma iuris - e dos pretores, que lhe conferiam validade, tudo com base na solução concreta dos casos à

medida que os fatos iam surgindo e as necessidades se configuravam, factibus ipsis dictantibus ac necessidade exigente8.

Ora, quando empregamos a palavra Lei,  para caracterizar a fonte primordial do Direito pátrio, na realidade nos referimos a todas as modalidades de revelação do Direito que compõem o processo legislativo,  designação feliz introduzida emnosso Direito Constitucional, desde a Carta de 1967.

8. Sobre essa questão, v. meu estudo “Concreção de fato, valor e norma noDireito Romano clássico”, in Horizontes do Direito e da História, 2- ed., págs.55-74. Abem ver, o povo fundador do Direito não foi o povo da lei...

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Foi prudente a Assembléia Nacional Constituinte ao preservar e consolidar esse entendimento, dedicando-lhe toda aSeção VIII do Título IV da Constituição de 1988, Arts. 59usque 

69.É claro que a análise minuciosa dessa matéria exige

monografia especial, não se compadecendo com o feitio da presente obra. Não é demais, porém, lembrar que, ex vi doArt. 59,o processo legislativo compreende a elaboração de emendas àConstituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções.

Esses são, com efeito, os processos mediante os quais se elaboram e se positivam as normas de ordem legal, isto é, a lei e asregras que a ela se equiparam.

Único defeito que vejo no Art. 59 é a referência pura esimples às resoluções, quando, na realidade, se trata exclusivamente de “resoluções de ordem legislativa”, isto é, daquelasresoluções destinadas a completar os textos legislativos, como

se dá com a Resolução do Senado Federal exigida nos casosprevistos, por exemplo, nos Itens IV e V do Art. 155 da CartaMagna.

O que sobreleva notar é que para cada forma de processolegislativo são indicados os seus pressupostos de validade, aten-dendo-se a razões de certeza e segurança.

Por força dos mesmos princípios, também os demais pro

cessos jurígenos, com base nos costumes, na jurisdição e nosnegócios jurídicos, estão cercados de iguais exigências, o que,observe-se, resulta do texto constitucional, da construção doutrinária e do lavor jurisprudencial, o que revela a amplitudeque hoje tem o problema das fontes do direito. Nesse sentido, adoutrina, embora não seja fonte do direito, tem a primordialfunção de dizer quais são as condições que as legitimam, assim

como, depois, qual o significado e alcance dos modelos jurídicos que elas elaboram, assunto a que volverei èm lugarpróprio.

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CAPITULO III

Função das Fontes do Direito

Historicidade da fonte do direito

Consoante ficou, mais de uma vez esclarecido, minha divergência em relação a Kelsen é quanto ao que se deva compreender por “âmbito material de validez” das fontes do direito. Para ele, em virtude de seu conhecido monismo normativo, o âmbito material de validade reduz-se ao  processo de explicitação do sistema de normas jurídicas, tão-somente emrazão do que nelas é declarado como válido, numa visão pura

mente lógica, estática e a-histórica, muito embora, ao depois,tenha ele reconhecido que a validade do ordenamento jurídicoseria impossível ou inconsistente sem um mínimo de eficácia.

 A meu ver, porém, a correlação entre validade e eficáciaapresenta-se sob múltiplas formas ao longo da experiência jurídica, cujo ordenamento é dinâmico, dotado de irrenunciávelhistoricidade. Poder-se-ia mesmo dizer que é só a visão do Di

reito in fieri, no seu processo de correlação entre a validade e aeficácia das regras, que nos permite compreender como se põee se desenvolve a positividade do Direito.

Isto posto, o conteúdo de uma “estrutura normativa”, comoa fonte do direito, não pode ser analisado senão na correlaçãode seus elementos constitutivos, visto como as regras, que dela

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promanam, são inseparáveis da vida social e histórica, sofrendo contínuas alterações resultantes de novos fatos e valoresemergentes depois da data de sua instauração.

Não é necessário ser tridimensionalista para reconhecer-se que a teoria das fontes do direitó - e eu estendo as mesmasconclusões à teoria dos modelos jurídicos - não pode ser elaborada apenas segundo critérios lógico-semânticos, por ser impossível fazer abstração de sua relação com a vida social e histórica, máxime quando, graças à análise da linguagem, se faz,como Bobbio, uma distinção essencial entre valor, validade eeficácia do Direito.

Nesse sentido, lembro que Enrico Paresce, após acentuarque o ordenamento não se compõe só de normas, “mas compreende a estrutura e a vida jurídica de toda uma sociedade”,afirma que “a realidade histórica reage, constantemente sobrea realidade normativa, quer através de formações espontâneasde valores juridicamente sentidos como tais pela coletividade,quer através da formulação de princípios gerais, que as maisrecentes formulações legislativas constantemente obrigam areelaborar”9.

Se analisarmos, com efeito, o conteúdo de uma fonte dedireito, podemos verificar que, às vezes, ele é formado de diretrizes normativas imutáveis, válidas para qualquer tempo ecircunstância, por consagrar-se um valor tido e havido comoinsuscetível de mudança; e, outras vezes, ao contrário, o conteúdo refere-se a eventos factuais ou a exigências axiológicas

mutáveis, importando em interpretação diversa daquela queestava inicialmente na intenção do legislador ou dos contratantes, projetando-se, desse modo, livremente, no plano da experiência jurídica concreta.

Exemplo da primeira hipótese temos nos dispositivos doCódigo Civil segundo os quais “os menores de dezesseis anos sãoabsolutamente incapazes”, ou que “aos vinte e um anos acaba amenoridade, ficando habilitado o indivíduo para todos os atosda vida civil”. Em ambos os casos, a norma legal estabelece

9. Vide E. PARESCE, verbete sobre "Fonte dei diritto”, in Enciclopédia dei  Diritto, Varese, 1968, vol. XVII, págs. 865 e seg.

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limites de idade precisos para o exercício de direitos, em razãode critérios considerados intangíveis, a salvo de abrandamentoshermenêuticos, visto como quaisquer exceções devem resultar

de disposições legais específicas. Por outras palavras, a incapacidade absoluta ou relativa, fixada por lei, só pode ser supridanas hipóteses contempladas pelas normas especiais, não bastando meras inferências lógico-normativas, por mais insistentes e fortes que sejam os pleitos no sentido da mudança.

 A maioria, porém, das leis, ao preverem e predeterminarem uma classe de comportamentos futuros, não são promul

gadas de maneira rígida ou intocável, porquanto seus enunciados comportam, por sua natureza, compreensíveis adaptaçõeshistóricas ao processo da vida comunitária, e, conforme as circunstâncias, mandamentos antes entendidos de modo estritopassam a ter significação extensiva, em virtude de ajustehermenêutico a supervenientes conjunturas.

Quer, porém, se considere imutável ou mutável o conteúdo de uma lei ou de um negócio jurídico, em função de fatos ou

valorações emergentes, parece-me que ele é sempre tridimensional: o que ocorre é que, às vezes, a enunciação normativasignifica um modelo estático, o que se dá sobretudo quando setrata de normas de forte caráter declaratorio,  tais como asatributivas de faculdade ou de esfera de competência; outrasvezes, as fontes têm como conteúdo modelos de significação variável, em virtude de alterações factuais ou axiológicas cona

turais às relações regradas.De uma ou de outra forma, podemos dizer que o conteúdo de uma fonte de direito são as regras jurídicas por ela enunciadas, a fim de serem declaradas permitidas ou proibidas determinadas formas de conduta, ou serem especificados certosâmbitos de competência, em dada conjuntura histórica.

Caráter retrospectivo da teoria tradicional das fontes

 A rigor, o conteúdo das fontes se refere principalmente aatos futuros, mas, isto não obstante, a primeira teoria científi

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ca das fontes do direito, elaborada por Savigny, ficou por demais apegada à idéia do poder em virtude do qual ela dimana,a tal ponto que, por largo tempo, prevaleceu o entendimento

de que a lei, por ser a expressão do soberano Poder Legislativo,deve ser interpretada segundo a intenção do legislador. Daí apreocupação de preservar-se a lei de interpretações capazes dedeturpá-la, sendo esta a razão do apego à antiga parêmia segundo a qual interpretatio non fit in claris. O fetichismo da lex  lata, ou seja, do Direito posto por lei, foi de tal ordem que um

 jurista de prol, tão logo começaram a aparecer os primeiroscomentários ao Código Civil de Napoleão, exclamou: “Coitado

de nosso Código”!Por tais motivos, quando se quis determinar a natureza e

os limites da interpretação e aplicação das regras enunciadaspelas fontes, o que inicialmente prevaleceu foi o caráter retros-

 pectivo da idéia de fonte. Desse modo, o conteúdo da fonte ficava vinculado ao seu processo de instauração, prevalecendo aintenção qxlq objetivo do enunciante sobre o que exa.enunciado 

objetivamente como conteúdo da fonte mesma.Lembra-nos Wolf Paul, da Universidade de Frankfurt, quequando Karl Marx freqüentou as aulas de Savigny referiu-seironicamente às suas diretrizes hermenêuticas vinculadas àproblemática da origem do direito, dizendo que essa perspectiva seria como a de um barqueiro “que parece navegar, não sobre o rio, mas sobre suas nascentes”10.

Compreensão prospectiva da fonte do direito

Pois bem, através das várias vicissitudes pelas quais passou a Hermenêutica jurídica -  que eu procurei sintetizar emNova Fase do Direito Moderno  pode-se afirmar que, no mundo contemporâneo, se tornou verdade assente que umaZei (para

facilitar a exposição, limito-me ao caso da lei, mas ela é aplicá

10. Cf. MIGUEL REALE, Direito Natural/Direito Positivo, Saraiva, 1984,pág. 43.

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vel às demais fontes), uma vez promulgada, desprende-se dapessoa do legislador, para passar a ter um valor de per si, ouseja, uma validade objetiva “per se stante”, a partir da qual

deve ocorrer o ato interpretativo e, por via de conseqüência, aaplicação das regras jurídicas.

Desse modo, muitas vezes é o caráter prospectivo das normas que prevalece, por ser mais adequado ao dever-ser própriodo Direito, mesmo porque, como bem salientou Benedetto Croce,toda norma constitui previsão de uma classe de atos futuros, eestes ocorrem segundo as vias imprevisíveis da liberdade.

Em páginas anteriores, já apreciei o problema das fontesdo direito em função dos valores da segurança e da certeza, sendo indispensável focalizá-la, agora, à luz do valor da liberdade, o que não deve causar perplexidade, porquanto, sendo oDireito, como lembra Recaséns Siches, “uma dimensão da vidahumana”, não pode deixar de vincular-se a toda a gama dasinstâncias axiológicas.

Em palavras pobres, parece-me possível antecipar o estudo de tão aliciante e gigantesca matéria dizendo que, se osimperativos de certeza e segurança põem a exigência de umnumerus clausus de fontes do direito, não obstante a renitentetentação de sua livre e incessante instauração, o valor da liberdade, sempre em oposição dialética à idéia de ordem, põe aexigência de uma ordenação jurídica aberta e flexível.  Tudo

está, porém, em situar racionalmente os limites dessa abertura e flexibilidade, a fím de que a liberdade não se converta emlicença, nem a ordem se degenere em tirania.

Não obstante repetidas crises e resistências, como as ligadas, por exemplo, à Livre Pesquisa do Direito, culminandonas reivindicações extremadas do Direito Livre, pode-se dizerque a cultura jurídica burguesa - entendida esta como a cor

respondente ao capitalismo fundado na idéia mater do interesse individual - se caracterizou por uma visão estática e retrospectiva das fontes do direito, próprias do Direito concebido comoum quadro predeterminado de direitos subjetivos sob a salvaguarda do Direito Positivo estatal.

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Daí as sucessivas crises da Ciência do Direito, ao longo denosso século, desde manifestações já reveladas a cavaleiro como anterior, terem coincidido com as sucessivas crises do siste

ma capitalista. Não há nessa asserção nenhum assentimentoao materialismo histórico, o qual apontava para uma relaçãode causalidade entre as chamadas “infra-estruturas econômicas” e as “superestruturas sociais”, entre as quais o Direito,Reconhece-se, pura e simplesmente, que o processo cultural sedesenvolve de maneira sincrónica, havendo sempre umainterdependência, harmoniosa ou conflitiva, entre todos os valores ou interesses com que se entretece a vida humana no

decurso do tempo.Feita essa ressalva, é inegável, como observou François

Gény - a quem se devem magníficas diretrizes no sentido dapossível livre pesquisa do Direito que as crises da sociedaderedundam, inevitavelmente, em crise da teoria das fontes do direito, a última das quais estamos vivendo agora, e que é umadas razões determinantes desta pequena obra.

Sob o prisma do imperativo da liberdade, que implica sempre uma exigência de pluralidade ou pluralismo11, mister é distinguir o que na cultura burguesa constitui uma estimativaconjuntural, perecível ou insustentável pela emergência denovas circunstâncias históricas, e as atitudes axiológicas querepresentam a garantia de valores que transcendem as mutações temporais havidas.

O valor da liberdade e os demais valores jurídicos

Posta a questão nesses termos, parece-me que, assim, comono plano econômico, vamos cada vez mais reconhecendo o valor atual da livre-iniciativa, muito embora num contexto de

necessária e crescente socialidade, da mesma forma a revisãoda teoria das fontes do direito deve compor em nova unidade

11. Nesse sentido, v. MIGUEL REALE,  Pluralismo e Liberdade, cit.

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dinâmica e concreta os apontados quatro valores de liberdade, ordem, certeza e segurança, reconhecendo-lhes a atualidade.

Essa tomada de posição implica desde logo uma nova ati

tude perante o que se deve entender por certeza e segurança,que muitos confundem com uma aspiração de imobilismo, asalvo de qualquer risco atribuível a mudanças tidas e havidasa priori como condenáveis. Quando o valor de liberdade é compreendido em complementaridade com o de ordem, visando auma díade praticamente configurada, eles redundam numaconcepção do Direito irredutível a um sistema cerrado de pres

crições predeterminadas e intangíveis.Uma condenável visão estática e fechada da vida jurídica- por se vincular a um ideal de Direito adrede estabelecido,como alvo a ser atingido - tem como conseqüência atribuir àsfontes do direito a função primordial de estabelecer quadrosnormativos definidos, evitando-se, sempre que possível, esquemas genéricos ou programáticos, pouco ou nada se deixando

ao livre jogo das vontades, tanto no âmbito do processo democrático quanto no mundo dos negócios.

Ora, no Estado de Direito de feitio puramente liberal — que, obedecendo ao feliz texto constitucional, eu distingo doEstado Democrático de Direito, que é “liberal-social” —muitatinta se perdeu para saber-se se as “normas programáticas”eram ou não obrigatóriás, ainda que figurassem na Constitui

ção. É óbvio que essa polêmica somente tinha sentido a partirda convicção de que o ordenamento jurídico é formado tão-somente por determinações explícitas e concretas.

Hoje em dia, por múltiplas razões, entre as quais ressaltam as relativas à crescente compreensão da sociedade em termos de comunicação e informação, tendemos cada vez mais aadmitir que o progresso do Direito se desenvolve no sentido do

predomínio das normas programáticas sobre as desde logo predeterminadas, com a condenação do totalitarismo normativo estatal. É a razão, aliás, pela qual se critica com razão a CartaMagna vigente, que, de um lado, enaltece os valores da transparência e da comunicação, e, de outro lado, se perde na obses-

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são de tudo querer prever e predeterminar, o que revela paradoxal desconfiança pelo livre jogo do processo democrático.

Tudo está, todavia, em saber encontrar a via da razoável e

plausível compatibilidade na correlação dos quatro valoressupralembrados, mesmo porque, quando eles irremediavelmente se conflitam, o resultado é a perda do valor mais alto, representado pelas idéias correlatas de justiça e eqüidade.

O certo é que a teoria das fontes não pode ser fixada apartir de uma visão retrospectiva baseada em valores de antemão definitivamente assentes - o que leva a privilegiar modelos jurídicos cerrados devendo-se, ao contrário, procurar com

por em unidade dialética e sincrónica os imperativos de ordem, da liberdade, da certeza e da segurança, como valores-meio na realização do valor-fim por excelência que é o da Justiça.

Pois bem, essa mudança de atitude diante do problemanão significa uma ruptura no processo do Direito contemporâneo, mas sim uma utilização mais aberta dos instrumentosnormativos de ação, o que nos leva a ver o conteúdo das fontes

do direito em termos de modelos jurídicos.

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CAPÍTULO IV

Os Modelos Jurídicos comoConteúdo das Fontes do Direito

Compreensão do conteúdo das fontes do direito em termos de modelo

Nunca será demais realçar o alcance do reconhecimentoda validade autônoma e objetiva das regras de direito enunciadas por qualquer de suas fontes, nem do não menos relevantereconhecimento de seu sentido prospectivo, ainda que se não

possa olvidar o valor retrospectivo dos motivos determinantesde uma fonte do direito.São essas duas qualidades inerentes às fontes (a validade 

autônoma e objetiva e o seu sentido prospectivo) que me levama afirmar que o conteúdo das fontes somente é adequado e plenamente compreendido em termos de regras ou normas de direito, quando, entre elas, se dá realce aos modelos jurídicos.

Note-se, uma vez por todas, que normas jurídicas e modelos jurídicos não são termos sinônimos, sendo estes espécies,ou melhor, especificações ou tipificações daquelas. Pode ummodelo jurídico coincidir, às vezes, com uma única norma dedireito, quando esta já surge como uma estrutura, denotando econotando, em sua formulação, uma pluridiversidade de ele

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mentos entre si interligados numa unidade lógica de sentido,mas, geralmente, o modelo jurídico resulta de uma pluralidadede normas entre si articuladas compondo um todo irredutível

às suas partes componentes.Não raro, a norma, dotada de configuração estrutural, narealidade implica especificações e complementos, como se dácom o Art. I2da Constituição de 1988, segundo o qual “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dosEstados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se emEstado Democrático de Direito”, reportando-se a seus fundamentos. Mais caracterizado, como estrutural, correlacionandoimplicitamente um complexo de normas subordinadas, é o parágrafo único do referido Art. I2, que reza: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos,ou, diretamente, nos termos desta Constituição”.

Por outro lado, a idéia de modelo jurídico contribui parauma compreensão prospectiva mesmo das regras gerais quenão se apresentam de forma estrutural, visto se situarem no

macromodelo do ordenamento jurídico.Enquanto expressam modelos jurídicos, ou se reportam aeles, as normas passam a ser captadas, com efeito, em suaplenitude, só quando o intérprete atende à dinamicidade quelhes é inerente e à totalidade dos fatores que atuam em suaaplicação ou eficácia ao longo de todo o tempo de sua vigência.Sob esse prisma particular, poder-se-ia dizer que os modelos 

 jurídicos representam uma nova linguagem expressiva do conteúdo normativo das fontes do direito, ou, por outras palavras,que o conteúdo normativo das fontes é melhor captado quandocompreendido no sentido de modelos, os quais constituem sempre estruturas postas em razão dos fins que devem ser realizados,  sendo-lhes, pois, inerente um sentido prospectivo de de- ver-ser (Sollen), tal como é próprio do Direito, em que pesem astentativas fisicalistas de reduzi-lo apenas ao que é (Sein).

Embora oportunamente volte a este assunto, não é demais adiantar que todo modelo jurídico compõe em unidade asidéias de estrutura e desenvolvimento, o que nos permite melhor compreender as integrações normativas que caracterizam

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a experiência jurídica, dando-lhes uma base científica, à luztanto da Ciência do Direito como da Sociologia Jurídica.

Não se diga que estou superestimando a natureza prospec

tiva ou fiiturizante do Direito, porquanto, numa interpretaçãoestrutural do Direito, tal como a venho expondo, notadamenteem O Direito como Experiência, Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, e na 5â edição de Teoria. Tridimensional do Direito, de 1994 - na qual foi inserto um Suplemento a meu ver essencial cabe ao intérprete atentar tanto à fonte, cuja intençãooriginária não é despicienda, como aos fatos e valores vigentes

no momento em que o conteúdo da fonte é objeto do trabalhohermenêutico.

Que se deve, em suma, entender por “âmbito material devalidade”, como conteúdo da fonte de direito? Julgo eu que esseâmbito é o variegado mundo da eficácia ou da efetividade, ouseja, o do conteúdo da fonte apreciado - não como simples enunciado lógico de dever-ser, mas como um dever-ser que se concre

tiza na experiência social, correlacionando-se com conjunturasfactuais e exigências axiológicas12.E de conseqüência, a meu ver, relevantíssima a compreen

são do conteúdo  das fontes em termos de modelos jurídicos, porquanto, a essa luz, o seu conteúdo se desprende, como vimos, da intenção originária do legislador ou dos demais agentes instauradores das normas, permitindo que estas - sem ol

vido dos motivos inicialmente determinantes de sua instauração - possam atender,  prospectivamente,  a fatos e valoressupervenientes suscetíveis de serem situados no âmbito de validez das regras em vigor tão-somente mediante seu novoentendimento hermenêutico.

 Até mesmo o pandectista Wach reconheceu que “a lei émais sábia do que o legislador”, no sentido de que ela logra

atender à solução de conflitos ou a novas linhas de interessesque o legislador, a seu tempo, no ato de promulgar a norma,

12. Essa minha colocação integralizante da hermenêutica jurídica foi bemrealçada por CHRISTIANO JOSÉ DE ANDRADE, em seu livro Hermenêutica Jurídica no Brasil, Revista dos Tribunais, Caps. 4 e 5, 1991, págs. 91-130.

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estava bem longe de prevê-los. Podemos dizer com Pontes deMiranda - cuja obra principal se liga fundamentalmente à dospandectistas, só que numa perspectiva neopositivista - que a

norma jurídica é, via de regra, dotada de certa elasticidade, detal modo que o intérprete pode adaptá-la ou adequá-la a imprevistas circunstâncias, graças a um processo hermenêuticohistórico-evolutivo e omni-compreensivo, ou, por melhor dizer,inserido concretamente na dialeticidade da experiência social.

Ora, só a compreensão do conteúdo das fontes de direitoem termos de modelo jurídico tem a virtude de torná-lo suscetível de realizar-se ou efetivar-se na plenitude de sua potencial 

validade, não somente possibilitando que a regra jurídica sejavista como algo objetivo e válido de per si (independentementeda intenção originária de quem a pôs in esse) e também que elase efetive em todo o leque de suas virtualidades, até que surjaimperiosa necessidade da revogação da norma vigente paradar lugar a novo processo normativo.

O Direito como norma e situação normada

O certo é que, enquanto possível, a norma jurídica deveser mantida, não apenas em razão do “princípio de economiade meios”, mas sobretudo porque as longas pesquisas sobre ainterpretação e a aplicação de uma lei, por exemplo, sobretudo

quando fundamental, representam um cabedal de experiênciae de conhecimentos doutrinários que deve ser preservado. Éesse espírito que dá à Ciência do Direito a qualidade de Jurisprudência, não significando a prudência mero apego ao vetusto ou superado, mas antes a consciência de promover a novidade na medida de sua real correspondência a reais anseios dacomunidade.

 À vista do exposto, permitam-me insistir, a teoria tradi

cional das fontes, ainda dominante, deixa-se guiar por umavisão retrospectiva de sua validez, enquanto se impõe considerá-la também de maneira prospectiva, numa correlação essencial

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entre validade  e eficácia,  tendo como fundamento  os valoresque a instauraram e lhe mantêm a continuidade do processo.

 A exigência trina de validade (vigência)  de eficácia 

(efetividade) e de fundamento (motivação axiológica) milita emfavor da compreensão da vida jurídica em termos de modelos 

 jurídicos,  desde a instauração da fonte normativa até a suaaplicação, passando pelo momento de interpretação, pois o atohermenêutico é o laço de comunicação ou de mediação entrevalidade e eficácia.

Se, em suma, a norma jurídica é posta, sendo declaradaobjetivamente válida,  realizando uma integração de fatos  segundo valores, no momento de interpretá-la e aplicá-la devemos percorrer esse mesmo caminho, ou seja, compreendê-lacomo uma estrutura cujo significado é dado pelos fatos que acondicionam e pelos valores que a legitimam. Não é outra senão essa a razão de ser da compreensão das fontes de direitoem termos de modelos jurídicos.

 A natureza prospectiva dos modelos jurídicos tem comoconseqüência afirmar-se que o  Direito é norma  e situação normada,  no sentido de que a regra de direito não pode sercompreendida tão-somente em razão de seus enlaces formais.

Estamos, assim, perante o delicado problema da concreção da experiência jurídica, a qual deve ser considerada em dois

momentos distintos. Em primeiro lugar, a concreção13se põecomo referência a cada modelo jurídico considerado de per si,pois ele não é mero símbolo de uma realidade situada ab extra, isto é, como algo existente no mundo exterior, como um dadooferecido ao exame do intérprete (juiz ou qualquer outroaplicador de normas, como o administrador ou o advogado) eque se apresenta para ele como um objeto em si mesmo pleno

de significação.

13. Sobre outros aspectos da concretude jurídica, v. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência,  cit., 2-  ed., e Nova Fase do Direito Moderno,  cit.,págs. 123 e segs., com referência ao pensamento de KARL ENGISCH, JOSEESSER e KARL LARENZ.

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Muito embora todo modelo jurídico suija em parte de umarepresentação mimética ou espelhada do real, uma vezobjetivizado este (tomado objetivo como signo normativo) não

pode mais ser desvinculado dos fenômenos a que se refere: osfenômenos regrados integram-se no modelo como razão de serde seu significado.

Normativismo jurídico concreto

É essa correlação entre o modelo e o que é modelado, perceptível desde o momento inicial de sua gênese, que justifica eexige a substituição de um normativismo jurídico lógico-for-mal por um normativismo jurídico concreto. Por outro lado,como os fatos e valores, que informam o conteúdo do modelo,se subordinam à emergência de novas configurações factuais eaxiológicas, como é próprio dos entes prospectivos, é funda

mental e decisivo, para sua autêntica e plena vigência e eficácia, o papel da Hermenêutica Jurídica, questão esta que, porsua relevância, será objeto de capítulo próprio.

 Ao lado, porém, dessa compreensão atômica ou individualizada de cada modelo jurídico, sujeito às peripécias às vezesimprevisíveis de sua aplicação, há que lembrar uma outramodalidade de concreção que ocorre em virtude de os modelos

 jurídicos se acharem inseridos no macromodelo do ordenamento jurídico.Muito embora também esta questão venha a ser oportu

namente analisada, convém, por motivos de ordem expositiva,adiantar que o conteúdo de um modelo jurídico não resultaapenas de novas formas de compreensão, por assim dizer interna corporis. É que o advento de outros modelos jurídicos,

sem que tal fato seja sequer previsto, incide sobre os modelos jurídicos em vigor, alternando-lhes a significação. É que oordenamento jurídico, não obstante as lacunas e a vaguidadede suas disposições, põe-se necessariamente como uma ordenação per summa capita coerente. Como veremos, um dos pro-

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blemas mais delicados é esse da consciência interna ou unidade semântica do ordenamento jurídico.

Por ora, o que deve ser realçado é, porém, o fato de que a

significação de um modelo jurídico depende de sua situação ecorrelação no todo do ordenamento, cujo horizonte de validadeé traçado pela Constituição de cada país.

Foi afirmado que a teoria tridimensional do direito nãoteria sentido porque a norma absorve o valor, mas tal assertivarevela apenas ralo conhecimento do assunto. Em verdade, oque distingue o normativismo concreto dos demais é exata

mente isto: a integração de fatos e valores na estruturanormativa, ao contrário do tridimensionalismo de GustavRadbruch ou de Julius Stone, que estudam separadamente ofato, o valor e a norma, sem conceberem esta como o momentoculminante de um processo dialético unitário.

Daí o meu conceito de norma jurídica, estabelecido desdea 1®edição de Fundamentos do Direito  (1940) como “uma estrutura integrante de fatos segundo valores”.

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CAPÍTULO V

Natureza dos Modelos Jurídicos

Noção de modelo jurídico

Consoante já notado, os modelos jurídicos  são uma dasespécies de modelos do Direito, pois nestes se incluem também

os modelos dogmáticos ou hermenêuticos, cujo conjunto formaa doutrina ou, como dizia Savigny, o Direito científico.

Embora o assunto comporte ulteriores desenvolvimentos,podemos deixar desde logo assente que a distinção essencialentre modelos hermenêuticos e modelos jurídicos é a natureza

 prescritiva destes, ou seja, a sua específica e precisa funçãoprática de reger, de maneira objetiva, atos futuros. Os modelos

hermenêuticos, ao contrário, embora referidos à praxis social,não perdem seu viés teórico e, por mais relevantes que sejamseus fundamentos, não possuem a qualidade de obrigar alguéma agir de conformidade com as suas conclusões.

Firmado esse ponto, cumpre insistir que, quando se falaem modelo,  na Epistemologia contemporânea, não se pensaem um  protótipo  ou modelo ideal,  em termos platônicos oumesmo werberianos, mas sim em uma estrutura ou esquema

que compendia sinteticamente as notas identificadoras ou distintivas de dado segmento da realidade, a fim de ter-se deleuma base segura de referência no plano científico. Nessa linha

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de pensamento, o modelo jurídico não indica um fim primordial e abstrato a ser atingido, mas sim o fim ou os fins concretos que se inserem no dever-ser  do Direito correspondente a

um dado complexo de regras objetivizadas ou formalizadas segundo os requisitos exigidos pelo ordenamento jurídico paracada modalidade de fonte do direito.

Não se deve, com efeito, esquecer que a fonte legal, porexemplo, se apresenta segundo diversos  graus de amplitude, no que se refere ao número de normas que a compõem ou àquantidade de seus destinatários; bem como segundo distintos

graus ou níveis de validade, uma vez que não se pode concebero ordenamento jurídico - que, em última análise, correspondea um macromodelo jurídico - sem uma hierarquia de normas,sendo umas subordinantes e outras subordinadas na linha desua aplicação e efetividade.

Não é demais lembrar que a hierarquia, ou a ordem desubordinação das fontes entre si - salvo quanto ao primado da

 fonte constitucional, que tem um status jurídico próprio - nãoobedece a princípios uniformes e universais, mas se vincula adistintas conjunturas histórico-sociais, conforme se depreende,como já foi notado, do confronto entre o sistema de origemromanística (ou do Civil Law,  como dizem os autores anglo-americanos), no qual predomina a fonte legislativa, e o sistema do Common Law, no qual prevalece a fonte costumeira-

 jurisprudencial para disciplina das relações privadas. Na Inglaterra, aliás, ao contrário dos Estados Unidos da América,com sua Constituição escrita, até mesmo a ordem constitucional origina-se fundamentalmente de usos e costumes, consubstanciados na praxe parlamentar e em seus statutes.

Neste ou naquele caso, porém, os modelos jurídicos representam formas ou fôrmas, permitam-me assim dizer, mas fôrmas flexíveis ou plásticas mediante as quais se ordena o con

teúdo das fontes do direito.Sendo os modelos jurídicos formas de compreensão e atua

lização do conteúdo das fontes do direito, eles são obviamentedotados da mesma força objetiva e positiva de obrigatoriedade 

 já atribuída às fontes, não se reduzindo, por conseguinte, a

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meras expressões lingüísticas, ou a simples formas técnicas deconhecimento das regras jurídicas. Estas constituem sempre oobjeto do processo hermenêutico, só que são interpretadas en

quanto elementos componentes de um modelo, cuja estruturae atualização pressupõem sempre referibilidade a  fatos  evalores.

É por essas mesmas razões que o modelo jurídico não émero modelo matemático, muito embora ele possa ser estudado em termos de Lógica deôntica, ou Lógica do dever ser. Consoante já assinalado, Newton Afonso da Costa, reconhecido internacionalmente como o principal instaurador da Lógicaparaconsistente, e sua equipe têm realizado relevantes trabalhos de formalização do Direito, levando em conta mais de umadimensão, como já foi feito com sucesso com a TeoriaTridimensional do Direito14.

Modelagem da experiência jurídica

 Ao converter o conteúdo da fonte do direito em modelos  jurídicos, temos uma estrutura que, em virtude de projetar-sehistoricamente no tempo até enquanto a fonte estiver em vigor, se vincula à experiência jurídica, obedecendo às mutaçõesfático-valorativas que nesta se operam. É por tais motivos que,louvando-me do que escrevo em Lições Preliminares de Direito 

(Cap. XV), posso afirmar que das fontes do direito resulta todauma trama ordenada de relações sociais que, em virtude dasmatrizes de que se originam, são dotadas de garantia específica, ou sanções. Opera-se, desse modo, através da história, oprocesso de “modelagem jurídica” da realidade social, em virtude de sempre diversas e renovadas qualificações valorativasdos fatos. Onde há norma há sempre sanção, isto é, uma formade garantia acrescentada à regra para assegurar o seuadimplemento, podendo haver tanto sanções penais comopremiais, porquanto não é apenas mediante a aplicação de pe~

14. Cf. nota 4, supra.

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nas que se pode obter a atualização das normas jurídicas. Oque não há são modelos jurídicos desprovidos de sanção. É arazão pela qual entendemos que os modelos de Direito, elabo

rados pela doutrina, não são “modelos jurídicos” propriamenteditos, no sentido técnico deste termo.

Pois bem, à medida que a legislação e a doutrina se desenvolvem e ordenam os fatos, vão surgindo distintos modelosnormativos, correspondentes a diversas estruturas sociais ehistóricas. No fundo, a história do Direito é a historia de seusmodelos, de seus institutos, instituições e sistema de normas,

em função das mutações sociais.O termo modelo jurídico  foi por mim proposto em meu

livro O Direito como Experiencia15, como complemento necessário à teoria das fontes de direito. O conceito de modelo, emtodas as espécies de ciências, não obstante as suas naturaisvariações, está sempre ligado à idéia de projeto, de planificação lógica e à representação simbólica e antecipada dos resul

tados a serem alcançados por meio de uma seqüência ordenada de medidas ou prescrições. Cada modelo expressa, pois, umaordenação lógica de meios a fins, constituindo, ao mesmo tempo, uma preordenação lógica, unitária e sintética de relaçõessociais. Assim acontece, por exemplo, com o “modelo arquitetônico”, ou projeto, que antecipa e condiciona a construção de umedifício. Coisa análoga ocorre com os modelos mecânicos ou os

matemáticos.Dessa exposição resulta que os modelos jurídicos não são

meras criações da mente, mas sim o resultado da ordenaçãoracional do conteúdo das normas reveladas ou formalizadaspelas fontes de direito, para atender aos característicos de validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva dessasmesmas normas.

15. Antes já o fizera em comunicação enviada ao Congresso Internacional deFilosofia realizado em Viena, em 1968 (cf. nota 1, supra).

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 A “modelagem” da experiência jurídica é feita, portanto,pelo jurista em contato direto com as relações sociais, como ofaz o sociólogo, mas enquanto este se limita a descrever e explicar as relações existentes entre os fatos, em termos de leis causais ou motivacionais, o jurista opera mediante regras ounormas produzidas segundo o processo correspondente a cadatipo de fonte que espelha a solução exigida por cada campo deinteresses ou valores. A bem ver, a compreensão de um setorda experiência jurídica pode e deve valer-se do conteúdo demais de urna fonte do direito, quando correlatas ou complementares, de modo que a configuração de um modelo jurídico implica o estudo dos distintos processos normativos que, porsua natureza ou finalidade, exijam reductio ad unum, isto é,interpretação e aplicação conjuntas. Tal fato ocorre porque oordenamento jurídico, conforme já salientado, não é um ajuntamento causal e contrastante de normas dispersas, mas, comoo próprio termo o indica, constitui-se como integração normativacujos elementos se articulam racionalmente. Se o ordenamento

 jurídico não tem a graduação lógica atribuída por Kelsen aosistema do Direito nacional e internacional, reconhece-se, ge-raímente, que, em virtude de sua subsunção à mesma ordemconstitucional, ele se constitui, tudo somado, como unidadecoerente e complementar, cujas lacunas e contradições é mis

ter superar. A unidade in fieri do ordenamento jurídico como será melhor explanado no Capítulo final deste livro, explica-se aindaem razão da ordem imanente à experiência jurídica. Sobre esteassunto, peço vênia ao leitor para fazer também remissão àsidéias por mim expostas emO Direito como Experiência eNova Fase do Direito Moderno, nos quais estudo o ordenamento ju

rídico como um processo aberto de modelos jurídicos que, tudosomado, se complementam16.

16. Vide, especialmente, o Cap. X, infra, págs. 105 e segs. deste livro, e JOÃOBAPTISTA MOREIRA, Um Estudo sobre a Teoria dos Modelos Jurídicos de Miguel Reale, São Paulo, Resenha Universitária, 1977, págs. 55 e segs.

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Modelos da Filosofia do Direito e modelos do Direito

É indispensável lembrar que, quando me refiro aos modelos jurídicos, sem os considerar meros esquemas lógicos representativos da realidade social, nem arquétipos ideais a seremalcançados, estou situando a questão no plano da Ciência doDireito, isto é, tratando dos modelos jurídicos enquanto elementos operados pelo jurista em sua faina de juizes, advogados ou administradores.

Para ilustrar meu pensamento, nada melhor do que confrontá-lo com o que o jusfilósofo italiano Enrico Di Robilantexpõe no seu interessante livro Modelli nella Filosofia dei 

 Diritto, publicado em Bolonha, em 1968, no mesmo ano em queera editada no Brasil minha citada obra O Direito como Experiência, com dois amplos ensaios dedicados ao estudo dos modelos jurídicos, os de número VII e VIII, págs. 147 usque 225. Já

antes expusera o mesmo tema em comunicação escrita para oCongresso Internacional de Filosofia de Viena, realizado nomesmo ano, denominada “Para uma teoria dos modelos jurídicos”, com texto em francês enviado meses antes17.

Objeto da monografia de Di Robilant é, como ele mesmo odeclara, à pág. 15, “tentar uma análise daquilo que de fato osfilósofos do direito realizam nas suas pesquisas”. Como se vê,

não indaga dos modelos do Direito como tais, como objetos daCiência do Direito inseridos na experiência jurídica concreta,mas sim como esquemas ou processos de pesquisas filosófico-

 jurídicas, capazes de oferecer critérios de valoração das pesquisas mesmas. O título do livro é, aliás, por si só, bem expresasivo.

 Ao contrário, desde os meus primeiros estudos o que pro

curei determinar foi como a experiência jurídica se apresenta

17. Lembro essas datas porque um comentarista italiano não vacilou emafirmar que minha tese era reflexo da de DI ROBILANT, que, como se verá,além de ter escopo completamente diverso, foi publicada posteriormente àminha citada comunicação.

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sob a forma de estruturas normativas cogentes, isto é, comomodelos jurídicos inseparáveis da realidade social do Direito.

Situada a questão no plano das indagações, o que sobrele

va no livro de Di Robilant é a compreensão do termo modelocomo “esquema cognoscitivo”. Apresenta ele quatro tipos desse esquema. Numa primeira acepção, consoante se dá na doutrina de Herbert Hart, o modelo se põe como “esquema queprocura reproduzir, nas suas linhas essenciais e de forma compacta, algo que pertence à experiência”, constituindo “tentativa de inteirar-se de uma realidade social de modo sintético”.

Observa-se, outrossim, que, “enquanto representação, o modelo deve ser fiel à realidade, sem ser sua mera reprodução” (págs.67 usque 68).

Numa segunda significação, continua o mesmo autor, apalavra modelo tem o sentido de “exemplo de”, “protótipo”, “forma exemplar”, como ocorre na linguagem corrente, e é seguidapor vários jusfilósofõs que cita, cabendo notar que, dado o seu

caráter de idealidade, nela prevalece a falta do elemento constituído pela representação da realidade. Numa terceira acepção,o termo modelo corresponderia a “norma” ou “esquema de comportamento”, o que, em última análise, equivale a “critério decomportamento”, tal como era empregado, digo eu, por Eduardo Garcia Máynez. Finalmente, teríamos o significado de modelo como “construção artificial para análise de um fenômeno

de realidade social”, tal como, segundo Di Robilant, se dariana obra de Rawls.Conclui o mencionado autor que, “entre as coisas que fa

zem os filósofos do direito, em suas atividades de investigação,há a construção de modelos, entendidos sobretudo na primeirae na quarta das significações apontadas”. Verifica-se, por conseguinte, que o problema dos modelos é por ele apresentado,

em última análise, tão-somente no plano gnoseológico da Filosofia do Direito, como esquemas mediante os quais os cultoresdesta disciplina procurariam reproduzir fielmente a estruturade um fenômeno social, mediante a seleção sintética de seuselementos caracterizadores (págs. 83 usque 89).

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Ora, não obstante a relevância desse estudo no plano daGnoseologia Jurídica, há um problema diverso e não menosrelevante, por mim focalizado, que diz respeito, não a critériosde explicação e aferição de formas de compreensão filosófico-

 jurídicas, mas sim relativamente aos modelos da Ciência doDireito, como estruturas normativas mediante as quais é possível ter uma visão científico-positiva da experiência jurídicaem seus múltiplos aspectos, desde as relações de ordem privada às de ordem pública.

É claro que, ao compreender a experiência jurídica em termos de modelos, o pesquisador se vale de seu poder criador ouinstituidor de formas compreensivas do real, mas estas nãosão concebidas como simples “elementos táticos” de compreensão, nem como “meras reproduções sintéticas e compactas doreal”: os modelos são captados e revelados na imanência mesma do processo experiencial. Trata-se, em suma, de algo de

que o pesquisador toma ciência em direto contato com a realidade jurídica, numa correlação sincrónica entre o significantee o significado. Dir-se-ia que surgem uno in actu a percepçãoda estrutura normativa da experiência jurídica e a sua representação e formulação como modelo jurídico, podendo-se lembrar a lição de Giambatista Vico de que “verum ac factum convertuntur".

 Aliás, o próprio Di Robilant reconhece que, quando se trata de modelo, a reprodução do real não se confunde com a suasimples descrição, pois “o que distingue um modelo da meradescrição é, propriamente, o fato de pôr em evidência a estrutura de um fenômeno, operando uma seleção entre os elementos que compõem o mesmo fenômeno, de modo a apresentar

dele um esquema, e o fato de ser construído em função de determinado fim, do qual deriva a sua valoração em termos deutilidade científica” (pág. 90).

Se é assim, não compreendo como possa ò modelo constituir “uma síntese e uma construção artificial (sic), no sentidode que apresenta algo que, naquela forma, não existe na reali

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dade”, nem tampouco que seja apenas “uma tentativa de enquadrar um fenômeno da realidade social em uma figura unitária, segundo categorias e qualificações que não se encontram

como tais no fenômeno reproduzido” (pág. 90).

Concreção dos modelos jurídicos

Ora, mesmo os modelos físicos não são concebidos tal comose observam na realidade natural - visto como as leis científi

cas são sempre criações da mente humana mas o cientista,por assim dizer, extrai criadoramente do real os modelos quecorrespondem, enão podem deixar de corresponder, ao realguatale.

Bem mais acentuadamente do que ocorre no mundo cultural em geral, como se dá com os modelos econômicos, lingüísticos e artísticos, no mundo jurídico constituem-se formas obrigatórias de comportamento que o espírito humano capta e expressa como estruturas ou categorias normativas, que não seconfundem com a realidade em si, mas também não podem serreveladas com abstração dela, e daquilo que, por assim dizer,nela já se encontram in nuce.

Somente desse modo os modelos jurídicos deixam de sermeros esquemas cognoscitivos, para valerem como elementos constitutivos da própria experiência jurídica, tal como é exigido pela visão concreta do Direito como experiência.

De resto, cumpre esclarecer o equívoco de afirmar-se queos modelos não correspondem à realidade, sendo uma “construção artificial”. Uma afirmação dessa natureza prende-se auma visão naturalista ou fisicalista da realidade, com olvidode tudo que nos ensina a teoria dos objetos, revelando as múltiplas formas assumidas pelo real.

Ninguém afirma que os modelos jurídicos sejam elementos componentes da realidade social, encontrando-se nesta comtodas as suas categorias e qualificações, mas nem por isso dei-

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 Yam eles de ser realidades culturáis, constituidas pelo pesquisador de conformidade com aquela construção que com a realidade se conforme de maneira objetiva e necessária. Voltarei a

este tema.De acordo com a teoria dos objetos, revigorada por Franz

Brentano e potenciada por Edmund Husserl e seus continuadores, a realidade é bem mais complexa do que a apresentadapelos que a reduzem apenas a objetos físicos ou psíquicos, istoé, aquilo que naturalmente se apresenta à sensibilidade e àpercepção.

Grande passo foi dado quando se reconheceu a “realidadedos objetos ideais” como os lógicos ou os matemáticos. Pode-sedivergir quanto à sua gênese que, segundo Piaget, se prendesempre a fenômenos psíquicos, os quais, a seu ver, em dadomomento se convertem em algo de “validade em si”, mas o que,hoje em dia, não se contesta é que tais expressões deidealidade, 

como formas em si do pensamento, ou seja, objetos ideais, sãotão “reais” como os objetos físicos e psíquicos, tanto assim quesão objetos de nossas proposições e cálculos. Tudo depende desaber de que “realidade” ou “entificação” se trata.

Outro passo relevante ocorreu quando, indo-se além domundo do Ser, ou do Sein, se reconheceu a “realidade” dos valores, das estimativas que se põem no plano do dever ser ou doSollen. Modéstia à parte, penso ter contribuído a firmar a autonomia daAxiologia ou Teoria dos Valores, quando fiz ver (embora se teime em não querer ver algo proposto no TsrceiroMundo...) que os valores não são objetos ideais (expressões domundo do Sein) mas constituem uma esfera própria de objetos, a dos objetos que devem ser, no mundo do Sollen, tirando

assim uma conclusão de certo modo implícita na distinção essencial de Kant entre o que é e o que deve ser.Pois bem, essa compreensão quádrupla dos objetos (físi

cos, psíquicos, ideais e valores) auxilia-nos a ter mais claroentendimento dos objetos culturais, como os artísticos, os econômicos, os jurídicos, os científicos etc., os quais são enquanto

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devem ser, como penso ter demonstrado com argumentos quenão teria sentido reproduzir nestas páginas, mas que constituem parte substancial de meu pensamento.

Pedindo, pois, vênia ao leitor para remetê-lo ao que escrevi alhures18, podemos concluir que os modelos jurídicos, longede serem arbitrárias ou artificiais construções da mente, surgem e se põem como realidades ou objetos culturais, estruturas normativas típicas com que o pesquisador representa e sintetiza distintos aspectos da experiência jurídica, em função dasfontes de que promanam, e em razão dos fins que visam a atingir na vida comunitária.

Modelos jurídicos e símbolos

Resta ainda examinar um aspecto de grande interesse,que é saber se os modelos jurídicos podem ser reduzidos a símbolos. Enquanto representações sintáticas de dado campo daexperiência social, os modelos jurídicos apresentam algo de simbólico, mas seria grave erro dar realce a esse aspecto em detrimento de outros bem mais relevantes, que dizem respeito àfinalidade que lhes é inerente como estruturas normativas destinadas a reger e preservar atos futuros, tendo em vista a realização dos valores pertinentes ao campo de ação por eles abrangido.

De mais a mais, nem todas as virtualidades do “símbolo”

são aplicáveis aos modelos jurídicos. O ensaísta e cientista Milton Vargas, do Instituto Brasileiro de Filosofia, com milita precisão escreve: “Em termos objetivos diz-se que o símbolo temquatro funções principais. A primeira é a função denotativa,pela qual ele refere-se diretamente à coisa; a segunda é aconotativa, pela qual alude a tudo que, de alguma forma, associa-se à coisa denotada; a terceira é a evocativa, com a qual faz

18. Sobre a Teoria dos Objetos, v. MIGUEL REALE, Introdução à Filosofia, cit., 3® ed., §§ 68 usque  77; Filosofia do Direito,  15® ed., cit., §§ 76-84, eExperiência e Cultura, São Paulo, 1977, Cap. IV, págs. 87 usque  105, Cap. VI, págs. 137 usque 150, Cap. VII, págs. 171 usque 188 e passim.

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surgir algo ausente; e a última é a emotiva, pela qual desperta, em quem o percebe, emoção quer artística, quer sentimental”19.

Ora, à vista da correlação essencial existente entre a experiência jurídica e seus distintos modelos jurídicos, jamaisestes poderiam ter mero sentido evocativo de algo ausente, comoacontece na poesia, devendo imprescindivelmente denotar econotar o campo de relações sociais das quais emerge atravésde um processo de racionalização objetiva. Donde não poderem também exercer uma função emotiva: a racionalidade, istoé, a formulação de juízos ou proposições lógicas, é inseparáveldo conceito de modelo jurídico, que é sempre um ente racional, embora não seja simples “ente de razão” ou da mente humana.

Deve-se, em suma, reconhecer que há um sentido prospectivo ou vetorial em todo modelo jurídico, pois, como vimos, esteé sempre de natureza normativa, e toda norma é emanada parareger atos ou acontecimentos futuros.

Isto posto, parece-me já poder completar a noção inicial

de modelo jurídico, apresentando-o como·“estrutura normativa de atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da ex periência social, prescrevendo a atualização racional e garantida dos valores que lhes são próprios”.

Nos termos da teoria tridimensional do Direito, pode-se,analiticamente, esclarecer que a estrutura de um modelo jurídico pressupõe:

а) dado campo de atos ou fatos da experiência social;б) uma ordenação normativa racionalmente garantida;c) o propósito de realizar valores ou impedir desvalores,

de conformidade com a natureza de cada porção de realidade objeto da investigação científica.

Como se vê, os modelos jurídicos são instrumentos de vidasegundo pressupostos e categorias que a pesquisa científicaelabora em função de cada domínio da realidade social, numa

compreensão unitária.

19. Revista de Poesia e Crítica, Ano XVII, n. 17, pág. 8.

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CAPÍTULO VI

Gênese dos Modelos Jurídicos

Um problema de Política do Direito

Para plena compreensão da natureza dos modelos jurídicos nada melhor do que o estudo de sua gênese, que contribuípara desfazer a idéia de uma construção artificial, como se setratasse de meros produtos da mente. O tecnismo jurídico temdebalde procurado reduzir o Direito a um “sistema de normastécnicas”, concebidas como simples instrumentos táticos deinstauração e salvaguarda dos objetivos que se têm em vista

realizar, atendendo a interesses éticos, económicos, políticosetc.De conformidade com o já exposto, creio que ficou esclare

cido que os modelos jurídicos, por mais que impliquem a participação criadora e ordenadora da inteligência, compondo sinteticamente em unidade estrutural elementos múltiplos e nãoraro dispersos da experiência, nunca deixam de ser momentos 

da experiencia jurídica mesma, enquanto expressões do mundo da cultura.

Não se pode, em suma, configurar os modelos jurídicoscomo lentes através das quais se observa o mundo da condutahumana, mas sim como estruturas que surgem e se elaboram

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no contexto mesmo da experiência, como objetos histórico-cul-turais que são.

É a razão pela qual a formação dos modelos jurídicos está

sujeita às variegadas vicissitudes próprias das relações de todasorte em jogo entre os indivíduos e os grupos que ora se conciliam ora se conflitam na sociedade.

Não se pode dizer que em qualquer processo legislativohaja sempre uma carga de irracionalidade, de pretensões epressões oriundas de inqualificáveis interesses, sendo maisplausível admitir-se a hipótese freqüente de leis originadas de

legítimos interesses, graças a uma tramitação parlamentarobjetiva e isenta, na qual, além de serem cumpridos os requisitos formais, tenham sido consultados e atendidos os reais interesses da coletividade. Em tal caso exemplar, o processolegislativo se desenvolveria em perfeita linearidade racional,sem sequer haver necessidade de emendas ou substitutivosapresentados ao projeto original.

Não ignoro, todavia, que essa hipótese nem sempre prevalece na vida parlamentar, onde predomina cada vez maiscontraste de interesses, alguns ideológicos e outros de clientela, quando não são fruto de reprováveis ambições pessoais oude meras vaidades.

Não cabe, por certo, à Ciência do Direito como tal o estudo

desse assunto, o qual se situa por inteiro no âmbito da Políticado Direito, denominação atual da antiga Teoria da Legislação,na qual se projetaram magníficos ensinamentos como os deBentham ou de Filangieri. A Política do Direito é uma disciplina científica que serve de mediação entre a Ciência Política ea Ciência do Direito.

Com razão se afirma que nenhum projeto ou plano políti

co se realiza plenamente se ele não se transforma em lei. Numaditadura, e sobretudo num Estado totalitário, a vontade do chefeou dos líderes políticos tem força de lei, de tal modo que não hánecessidade de uma ciência intercalada entre o poder políticoe o processo legislativo. Numa democracia, ao contrário, as leis

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são o resultado final de um processo que começa com o estudode determinado campo de interesses que esteja reclamando aformulação de modelos jurídicos adequados a seus objetivos,

provocando, em cascata, uma série de projetos de lei, um dosquais poderá ser convertido em preceito legal.

 A verificação da legitimidade dos interesses em jogo implica múltiplos estudos de ordem ética, econômica, financeira,sociológica etc., num complexo de pesquisas que constitui oobjeto da Política do Direito, ciência globalizante e sintéticapor sua própria natureza. Função da Política do Direito é aanálise de todos os elementos e fatores que justificam e legitimam a conversão em lei de certas pretensões políticas. E claroque a Política do Direito não se resume na elaboração do processo legislativo, mas este é o seu instrumento de ação por excelência.

 A decisão do poder no processo jurígeno

Nas sociedades abertas é de marcado sentido pluralista aobjetivização, ou seja, a transformação de pretensões de ordem política, na acepção mais ampla deste termo, em modelos

 jurídicos, sempre dotados de validade prescritiva. Até certo

ponto, toda pretensão política tende a acabar em proposta delei, a qual, no mais das vezes, representa o resultado de umacomposição de valores e interesses.

É o motivo pelo qual torna-se indispensável estudar asrazões e o processo mediante os quais os modelos jurídicos sãoelaborados, ao prevalecer uma determinada diretriz sobre asdemais, recebendo a aprovação e a sanção do Poder competente, federal, estadual, ou municipal.

No meu livro O Direito como Experiência dedico especialatenção a esse problema, mostrando, à luz de ilustrativas investigações de sociólogos e politicólogos, como o nascimento

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das leis pode ocorrer como resultado de um jogo de atos contraditórios e de impulsos a-racionais, tornando impossível qualquer previsão quanto à formulação e promulgação finais de

um projeto de lei.Pois bem, o homem, por sua própria natureza, não podepermanecer indefinidamente num estado de incerteza - porser a dúvida tanto um mal lógico quanto existencial e, por issomesmo, paradoxalmente, poderosa fonte instigadora na buscada verdade - mister é que, em um certo momento, uma opçãoseja feita por determinada via, e haja escolha de um projeto de

lei, em detrimento dos demais. É o momento decisivo do fiat lex, da decisão em virtude da qual uma das propostas legislativas se converte em lei.

Debalde os que se arreceiam da Górgona do Poder têmprocurado lobrigar ou conceber processos de auto-revelação doDireito como conseqüência de um processo social imanente,ora guiado por sugestivas forças intuitivas, ora por rebuscados

sortilégios da chamada “razão comunicativa”.Não obstante essas tentativas românticas de um Direito

gerado sem as impurezas do poder, geralmente associado àmargem da força bruta, prevalece o entendimento de que agênese dos modelos jurídicos não pode prescindir do poder, entendido como inevitável participação de uma decisão que põetermo à incerteza essencial ao fecho do processo nomogenético,no pressuposto de ser essa a via mais adequada aos imperativos do bem público.

Não creio que será demais reproduzir, nestas páginas, ográfico com que procuro ilustrar a gênese das normas jurídicas, valendo-me das diretrizes da teoria tridimensional do direito, apresentando os valores  como raios luminosos queincidem sobre um complexo  factual, refragindo-se em um leque de normas possíveis, uma das quais se converte em norma legal, graças à interferência opcional do Poder. Eis a figura:

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ESTRUTURA DA NOMOGÊNESE JURÍDICA 

Complexo fático

O exame dessa figura, aplicável à gênese de todo modelo jurídico, qualquer que seja a fonte de que promana, suscita

uma série de problemas, o primeiro dos quais diz respeito ànatureza da decisão do Poder (P) que interfere tão decisivamente no processo normativo.

Progressiva despersonalização do poder

Tempo já houve em que o poder se vinculava íntima eindissoluvelmente à pessoa de seu detentor, sobretudo até quando preponderou a teoria da origem divina da autoridade dosreis. Aliás, a história do poder sempre andou mesclada com ainvocação de seu valor transcendente, perdendo-se no mito ouno mistério. Tão perturbadora é a idéia da subordinação dacomunidade a uma força situada no alto, como distribuidora

de mercês e outorgadora incontestada de regras obrigatóriasde bem viver, que se compreende o apelo a algo transumano,capaz de ser invocado como fonte de sua legitimidade.

Não cabe neste pequeno livro, de finalidades jurídicas estritas, o estudo da dramaturgia complexa e sedutora do poder,

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desde suas misteriosas origens, as quais se confundem com ahistória do próprio Direito, quando as normas deste ainda nãose distinguiam das religiosas. A Antropologia jurídica revela

ra aspectos surpreendentes das fontes do direito no período arcaico. Em Lições Preliminares de Direito lembro alguns característicos do Direito arcaico, quando o poder se revestia de força mítica, fato este que projeta nas diversas tentativas delegitimação da autoridade monárquica graças à sua origemdivina. Em pleno século XVII ainda se atribuía aos reis misterioso poder de curar pelo simples toque de seus dedos20.

 A história do Direito assinala, porém, não somente a se-cularização mas também a despersonalização progressiva dopoder, a começar pela denominação mesma dos corpos legislativos, que deixaram de ser “Ordenações” manuelina ou filipina, conforme o nome do rei que a outorgava, para serem, pura esimplesmente, Ordenações, sem referência à sua fonte emana-dora, muito embora ainda se conservasse a idéia essencial da

regra do direito como uma ordem ou comando.

 Absorção do poder pela regra de direito

Um segundo momento de despersonalização do poder dá-se quando o conceito de norma se desvencilha do significado

antropomórfico de comando, ordem  ou imperativo, para passar a expressar tão-somente uma configuração transpessoal, anônima e obrigatória de certo tipo de conduta ou de competência. Por outras palavras, a regra jurídica vale èm si e de per siencapsulando e englobando em si o ato decisório do poder, ou,como dizem outros, da vontade da vida comunitária.

20. Cf. op. cit.y  págs. 143 usque 148. Cf. HENRI DÉCUGIS, Les Étapes du  Droit des Origenes à nos Hours, Paris, 1946. Admirável é a obra de MÂRCBLOCH, Os Reis Taumaturgos - O Caráter Sobrenatural do Poder Régio, trad. de Julia Mainarti, São Paulo, 1993. Sobre o Direito arcaico, v. PAULODOURADO DE GUSMÃO, Introdução ao Estudo do Direito, 16® ed., 1993,págs. 157 e segs.

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O paradoxal e impressionante é que a norma iuris  nãosurge sem a interferência do  poder, mas não subsistiría emtoda a sua objetividade e legitimidade se não “engolisse”, por

assim dizer, o poder, no ato mesmo em que este a põe in esse. Caso contrário, o poder, ao invés de ser um fator de ordem,seria de desordem: ficaria interferindo, indevida e indefinidamente, perturbando a aplicação da regra de direito. Daí a necessidade de que seu “querer” se converta em “querer da norma”. Dá-se um fenômeno equivalente ao que ocorre no nascimento de certos insetos, como o caranguejo, cuja fêmea devorao macho tão logo por ele fecundada...

Na história do processo cultural, não há, em verdade, fatomais intrigante de que esse da regra de direito que nasce graças ao poder, e somente subsiste se o dever-ser do poder  seincorpora na estrutura da norma, o que demonstra a sem-ra-zão de ser do deeisionismo que só dá valor ao ato de decidir,erradicando-o no processo em que a decisão é tomada.

Note-se que, por longo tempo, mesmo depois de constituí

do o Estado de Direito - o qual se poderia considerar sob esseângulo, o Estado no qual o Direito não se reduz às decisões dopoder - ainda se continuou, por força de inércia, a dizer que “alei deve ser interpretada segundo a intenção do legislador”.

Ora, essa parêmia só tem algum sentido logo após a promulgação da lei, quando ainda vivo o sentido do dever-ser quedeterminou a conversão do projeto de lei em lei, mas, pouco

depois, passa a não ter significação alguma, redundando numabusca impossível, absurda, da intenção de um legislador, comoo do Código de Comércio dè ,1850 ou do Código Civil de 1916...

Donde se deve concluir que o poder, no Estado de Direito,é um fato (um ato decisorio qualificado, em virtude e em razãoda competência do órgão legítimo que decide) inserido ouenucleado num complexo fáctico-axiológico, fato este que acaba subsumindo-se à norma, a que dá lugar e explica o “sentido 

de validade e eficácia”  com que a norma surge. A esse grande tema dediquei um estudo intitulado “O Po

der na Democracia” (Direito e poder e sua correlação) o qualconstitui o XIII Ensaio constante de meu livro  Pluralismo e

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Liberdade, que é de 1963. As conclusões dessa pesquisa foramaceitas por Norberto Bobbio21.

 Após aturada análise de vários aspectos do assunto - à qual

peço vênia para remeter o leitor -, concluo pela verificação da“progressiva jurisfação do poder”, ou sua “progressiva institucionalização objetiva”, com sua “despersonalização e transperso- nalização”, até se apresentar sob a forma essencial de um ato decisório objetivo e transpessoal: “em poder escolher, para outrem, escrevo eu, consiste a nota distintiva e eminente do poder”.

Nesse sentido acrescento: “Na impossibilidade de uma clas

sificação de fatores, pelo menos no estado atual das pesquisas,bastará concluir, embora a título provisório, que a análise histórica e sociológica nos mostra, se não como realidade atual, aomenos como linha de desenvolvimento potencial, que o podertende cada vez mais:

a) a ser a expressão de uma idéia de direito, quer em círculos associativos, quer no âmbito dos Estados nacio

nais ou na comunitas gentium;b) a ser cada vez mais objetivo, despersonalizado e transpessoal;

c) a ser a expressão da integração progressiva de círculossociais, com a concomitante garantia de campos autônomos de ação para os indivíduos e os grupos;

d) a ser cada vez mais fundado no consentimento dos go

vernados, como expressão das liberdades que se compõem em unidade22.

Racionalidade e heteronomia

O fato fundamental de o “dever-ser do poder” acabar sen

do absorvido pelo modelo jurídico tem duas relevantes conse-

21. Op. cit., págs. 207 usque 235. Esse trabalho foi publicado antes nos Estados Unidos da América sob o título “Law, Power and their Correlations”,inserto no volume Essays in Honor ofRoscoe Pound, cit., págs. 238 e segs.22. Op. cit., págs. 215 e 231.

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qüências. A primeira é que o processo normativo filtra, por assim dizer, as impurezas e contradições do poder, convertendo-o em um esquema impessoal e certo de comportamentos obri

gatórios, nos limites de determinadas competências, sendòdesse modo superado o arbítrio.Uma vez sancionada, com efeito, a norma jurídica - a qual,

mesmo quando não constitui um modelo jurídico, acaba, nomais das vezes, por se compor com outras normas em vigorpara incorporar-se a modelos jurídicos já existentes - cessa acompetição que marcava o conflito entre projetos normativosem contraste, para prevalecer um deles, sendo objeto de san

ção, de forma heterônoma e racional.Um dos aspectos mais notáveis da nomogênese jurídica é

exatamente esse do superamento das contradições às vezes irracionais ou a-racionais que precederam a elaboração do modelo jurídico, com o advento deste como um ente racional, quedeve ser objeto de interpretação e aplicação à luz de exigênciasda razão, sem as paixões que porventura hajam tisnado a sua

formação.Nunca será demais atentar para o imperativo de racionalidade que assinala a revelação de um modelo jurídico, comoelemento essencial do Direito, o qual não pode ser concebidocientificamente a não ser como lucidus ordo, um ordenamentologicamente coerente, não obstante suas inevitáveis lacunas econtradições, como a seu tempo será estudado.

Por outro lado, o modelo jurídico vale de per si, de confor

midade com o querer (tomado este termo em seu sentido lógico) que ele incorporou, passando a representar impessoalmente e objetivamente o poder, sem qualquer resquício de antropomorfismo.

 A validade e a eficácia do modelo jurídico são conseqüências do ato sancionatório, de tal modo que ambas, em sua correlação essencial, marcam a positividade do Direito. Positivase diz uma norma jurídica quando ela de per si possui validadee eficácia, de maneira heterônoma  e impessoal,  isto é, tão-so-mente em razão da força que lhe é própria, o que, evidentemente, não exclui que essa vis prescritiva não se subordine a

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modelos jurídicos mais amplos, no seio de ordenamento jurídico, no qual se situe como resultado da graduação da positividade 

 jurídica2'1.

Dir-se-á que, apesar da despersonalização do poder, estese faz presente no sentido volitivo da regra de direito - o quelevou Rudolf Stammler a conceber o Direito como uma “forma de querer entrelaçante"24 - mas tudo está em saber distinguir(e Stammler muito contribuiu para o esclarecimento do assunto) entre o termo “querer” em acepção psicológica e em acepçãológica.  De início, por se originar de atos volitivos, o modelo

 jurídico representa uma “forma de querer”, mas, quanto maiso tempo passa, mais ele se converte em esquema vetorial de“dever ser”. Verifica-se, em suma, uma passagem do planoexplicativo do “querer psicológico” para o plano compreensivodo “querer normativo”. Como penso ter demonstrado, em diversas passagens de meus livros, não se passa do mundo doSein ao mundo do Sollen a não ser em virtude da mediação de

um valor: no caso em apreço, o querer originário, inerente dopoder, é superado pelo valor de conteúdo do querer transferidopara o modelo.

 Visualizando essa questão sob o prisma stammleriano,poder-se-ia dizer que a valoração ética do querer, como fatopsíquico, converte-o em “querer normativo”, isto é, num enlacelógico dotado de sentido, válido de maneira heterônoma, pois a

heteronomia não significa senão a capacidade de fazer valeralgo para outrem.

Ora, a validade heterônoma dos modelos jurídicos querdizer que eles são prescritivos,  ou seja, enunciadores de algo 

 posto para outrem de modo vinculante, o que, consoante já salientei, e será melhor analisado a seu tempo, não ocorre com osmodelos jurídicos hermenêuticos, os quais não têm força para

obrigar, a não ser graças ao seu poder de convicção que se põena esfera teórica e não na jurídica.

23. Vide, sobre a matéria, o exposto, infra, nos Caps. VIII e IX.

24. Cf. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito,  cit., 15* ed., Cap. XXIII.

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Quando declaro, pois, que os modelos jurídicos são prescri- tivos, tal afirmação é feita no plano lógico-expressional, superada toda e qualquer conotação naturalista de ordem volitiva.

Toda prescrição importa uma “declaração de sentido” visandoa que seja admitido algo como jurídico ou antijurídico, o quedemonstra quanta razão assistia a Hans Kelsen ao abrir o campo do jurídico nele inserindo tanto o lícito quanto o ilícito. Penso que o termo prescrição é o que melhor atende à vis heterôno-ma dos modelos jurídicos, com a vantagem de ser aplicáveltanto no plano da Teoria Geral do Direito como no plano daLógica Deôntica25.

 Vimos que a prescrição resulta do poder decisório que sanciona uma norma jurídica, podendo esta outorgar algo  (uma

 pretensão ou uma obrigação, do mais amplo espectro, desde oDireito Público ao Privado) a. favor ou contra alguém, ou resolver-se em mera atributividade. Donde o surgimento de múltiplas situações jurídicas, como a facultas agendi e, mais amplamente, o direito subjetivo, com o correlato dever de respeitar o

direito alheio, impedir que sobrevenha algum dano a si ou aoutrem, e respeito a uma competência outorgada, com garantia de seu exercício etc.

 A prescrição dá, pois, lugar a múltiplas formas de pretensões e de exigibilidade, o que pressupõe a existência de uma

 garantia, sobranceira tanto ao direito que se pretende quantoao dever a ser cumprido. Costumo, por isso, dizer que as normas jurídicas e, por conseguinte, os modelos jurídicos são dotados de coação. São, porém, antes coercíveis, suscetíveis delegitimar a interferência coercitiva do Estado.

Por mais que se tenha prevenção contra a participaçãocoercitiva do Estado na ordem jurídica, parece-me que semcoercibilidade não se realiza o Direito como autônoma formade vida, nem ele pode ser distinto das regras morais ou consue-tudinárias. A coação virtual, conseqüência inevitável da pres

crição, é elemento ou critério distintivo da experiência jurídi-

25. Cf. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, Thoria da Norma Jurídica, Rio de Janeiro, 1978, págs. 54 e seg.

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ca, como penso ter demonstrado no Capítulo XLIV de minhaFilosofia do Direito, intitulado "Coercitividade e Coercibilidade”.

Legitimidade dos modelos jurídicos

Outra questão suscitada pelo estudo da nomogênese jurídica é a da legitimidade dos modelos jurídicos enquanto entesracionais conclusivos que pressupõem o superamento de impurezas a-racionais e até mesmo irracionais do poder.

O problema da legitimidade do Direito  tem sido objeto,ultimamente, de amplos e profundos estudos, tanto no estrangeiro como no Brasil, bastando lembrar que a esse fascinantetema foi dedicado, em grande parte, o III Congresso Brasileirode Filosofia do Direito realizado em 1988, em João Pessoa, sobos auspícios do então Governador da Paraíba, o jurista Tarcísiode Miranda Burity26.

O que desejo considerar, neste passo, é tão-somente o problema da legitimidade do Direito em razão do advento do modelo jurídico, que alguns perseveram a apresentar como umato arbitrário, desnudo de juridicidade, olvidando o concreto edenso processo fático-axiológico em cujo bojo se realiza a “opção do poder”.

Já disse e reitero que o poder é um  fato,  mas um  fato imantado de valor,  sobretudo na sociedade contemporânea,

como é próprio do Estado Democrático do Direito. Antes de fazer breves considerações sobre esse magno as

sunto, seja-me permitido esclarecer que, sendo o poder um fato,  já hoje prevalecendo sua versão como um  fato-valorado,  elenão representa, como pretendeu apressadamente alguém, uma

26. Cf. Anais do III Congresso Brasileiro de Filosofia do Direito, realizado

no Espaço Cultural de João Pessoa, de 17 a 23 de julho de 1988, em homenagem a PONTES DE MIRANDA. Sobre o tema, vide a bela coletânea deensaios organizada por JACQUES CHEVALIER, L’Idée de Legitimité, Paris, 1967; JOÃO MAURÍCIO LEITÃO ADEODATO, O Problema da Legitimidade, Rio de Janeiro, 1989, e LUIZ FERNANDO COELHO, Teoria Crítica do Direito, Porto Alegre, 1991, Cap. IX, “A legitimidade do Direito”.

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“quarta dimensão” do Direito, mas, ao contrário, compõe, a seumodo, a essencial estrutura tridimensional do Direito, a qual,por sua própria natureza, é necessariamentedialética. Dialética

do direito e dialética do poder constantemente se cruzam e seinterferem, desde o momento nomogenético, que acabamos deanalisar, até atingir, ao depois, as diversas oportunidades emque o modelo jurídico sofre o impacto do poder, ao visar este,por exemplo, preliminarmente a alterá-lo, mediante revogações parciais, culminando em sua total ab-rogação, o que tudorepresenta a vida e a morte dos modelos jurídicos.

 Volvendo, todavia, ao tema principal, o poder não se confunde com o arbítrio  em razão mesmo de sua dialeticidade,encapsulado que ele se acha por um complexo de conjunturasde ordem factual e valorativa, a começar por sua ubicação noconcernente ao problema das fontes. Em verdade, o poder nãodecide onde e como quer, mas no âmbito processual da fonte dodireito. Essa é a primeira razão de sua legitimidade. Ilegítimoé o poder - e, por via de conseqüência, o direito que dele dimana

- quando ele se põe como fonte do direito, e não apenas comomomento decisivo, sim, mas momento do processar-se de umadas fontes do direito admitidas pelo macromodelo do ordenamento jurídico.

Geralmente se olvida que o problema da legitimidade doDireito implica o das fontes de que ele provém, parecendo-meque se impõe reconhecer, como um dos imperativos éticos da

vida jurídica, o numerus clausus  das fontes do direito comotais. Onde e quando as fontes do direito surgem obedecendo àslivres e imprevistas prescrições do poder, desaparecem os valores de certeza e segurança, predominando o arbítrio, e, sob oimpério deste, não há que pensar em legitimidade do Direito.

Podem, em suma, os sociólogos e filósofos do Direito reve-lar-nos aspectos surpreendentes antes não percebidos da ex

periência jurídica, captando em profundidade sua dramáticafuncionalidade, como o faz, por exemplo, Niklas Luhmann, quetais estudos podem esclarecer-nos e prevenir sobre as eventualidades possíveis do arbítrio, mas não tocam no  punctum 

 pruriens da legitimidade se não a situam em função da proble-

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mática das fontes do direito. Essa crítica, a bem ver, não seaplica por inteiro à teoria de Luhmann, pois este, embora tratando do problema da legitimidade em termos de procedimen

to - empregado em sentido sociológico-jurídico e não em estrita acepção dogmática, de conformidade com uma ordem hierárquica de fontes - , situa a questão nos limites de três formasde procedimento, “o da eleição política, o procedimento parlamentar da legislação e o processo judicial”, que são modalidades de fontes legal e jurisdicional, a que ele acresce as estruturas contratuais a que também alude, cujo estudo nos reporta à

fonte negociai27.O relevante no estudo dos procedimentos é a demonstração de que, se o problema da legitimidade não se resolve emtermos puramente funcionais, também não se esclarece comabstração da funcionalidade do Direito, ou seja, do procedimento, que é uma das condições de sua legítima concretude.

 A legitimidade de um modelo jurídico depende, na reali

dade, tanto da fonte de que resulta como do conteúdo ético-social de sua interpretação e aplicação ao longo do tempo, conteúdo esse valorado também tanto em função do fim visadopelo modelo como por sua ubicação na totalidade do ordenamento. Somente assim o que há de inevitavelmente positivo no mundo jurídico pode harmonizar-se com os valores que no seu todocompõem a intencionalidade do justo. Isto quer dizer que o pro

blema da legitimidade só se resolve em termos de justiça comoconcreção histórica, ou como “razão histórica”, tanto assim quepode ocorrer excepcionalmente sua legitimação pelo procedimento28.

27. Cf. NIKLAS LUHMANN,Legitimação pelo Procedimento, trad. de Mariada Conceição Corte Real, Ed. Universidade de Brasília. A relevância do

 processus ou do procedimento no problema da legitimidade está, penso eu,ligada à idéia de sistema (v., infra, Cap. IX), pois, como observa HANNA ARENDT, o significado de sistema “está contido no processo como um todo,do qual a ocorrência particular deriva sem inteligibilidade” (Entre o passado e o futuro, trad. de M.W. Barbosa de Almeida, 1972, pág. 23).

28. Sobre essa visão axiológico-histórica do justo, v. MIGUEL REALE, Nova Fase do Direito Moderno, cit., págs. 37 e segs. e 65 e segs.

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CAPÍTULO VI!

Espécies de Modelos Jurídicos

Notas prévias

Já tive ocasião de observar que os modelos jurídicos não

representam todo o conteúdo das fontes do direito, pois, alémdeles, há normas jurídicas que não reúnem os característicosestruturais próprios daqueles entes jurídicos, muito emborapossam constituir-se como regras do mais amplo espectro. Alémdisso, um modelo jurídico pode ir contra submodelos.

 A lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei n. 4.657,de 4-9-1942), por exemplo, pode, no seu todo, ser considerada

um modelo jurídico, visto como é um complexo de regras diversas, correlacionadas entre si, em razão de um objetivo comum,que consiste em disciplinar diversas hipóteses de interpretação e aplicação da lei.

Normas jurídicas há, no entanto, que são meras formulações de um ou mais juízos, cada um deles válidos ou prescritivosde per si, como se dá com o Art. 39da mencionada Lei, segundo

o qual “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que nãoa conhece”, ou, de maneira mais complexa, de conformidadecom o Art. 42: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso deacordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de

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direito”. Sob certo prisma, porém, trata-se de modelos hermenêuticos revestidos de força prescritiva.

 Abem ver, numa mesma Lei, ao lado de normas jurídicas

isoladas - isto é, não estruturadas sob a forma de modelos jurídicos —outras há que o legislador, intencionalmente ou não,formula de maneira unitariamente coordenada como é própriode uma estrutura normativa destinada a operar como modelo.Nesse sentido, o Art. 6° da Lei de Introdução oferece-nos umexemplo expressivo, como se depreende de seu texto, a saber:

“Art. 6a A lei em vigor terá efeito imediato e geral,

respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e acoisa julgada.§ Ia Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado

segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.§ 2a Consideram-se adquiridos assim os direitos que

o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou con

dição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.§ 3a Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.

Examinando-se esse preceito, em necessária correlaçãocom o Art. 2a, verifica-se que o caput e seus parágrafos disciplinam, de maneira lógica unitária, toda a complexa questão da“vigência e eficácia das normas jurídicas”, desde a sua vigên

cia, a partir de sua publicação, até a sua eficácia em relação aocorpo normativo preexistente, envolvendo, em tratamento sistemático, os problemas correlatos do ato jurídico perfeito e dacoisa julgada, com distinções que se esclarecem e se completam umas em relação às outras.

Numa síntese admirável - o que não quer dizer que nãodê lugar a controvérsias, - temos, assim, um modelo jurídicoque sumaria, nos citados Arts. 2ae 6ada Lei de Introdução, oselementos essenciais que assinalam “o processo de vigência eeficácia de uma norma legal”, de um modo tal que a esse “complexo normativo” nada podemos acrescentar, nem dele subtrairalgo, sob pena de comprometer-se o seu sentido.

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Caberá à doutrina, e mais especialmente aos modeloshermenêuticos - tal como se tratará oportunamente analisaro significado dos elementos componentes do apontado modelo, a

começar pelo delicado problema de seu primeiro enunciado,inspirado na doutrina de Georges Ripert, quanto ao “efeito imediato” da lei que vem juntar-se ao ordenamento já em vigor.

Outro modelo jurídico, que se contém na Lei de Introdução, é, entre outros, o do Art. 7a, que, através de nada menos deoito parágrafos, fixa os princípios norteadores da lei da pessoa nacional ou estrangeira, estabelecendo os pressupostos a se

rem seguidos tanto no plano do Direito Civil como no do Direito Internacional Privado. A rigor, o Art. 79 se vincula aos artigos seguintes para dar nascimento a distintos modelos jurídicos no campo das relações internacionais.

 Vê-se, por conseguinte, que na legislação se encontram,ora correlacionados, ora não, modelos jurídicos e normas jurídicas comuns, estas em geral enunciativas de juízos dotados

de sentido em si pleno e concluso, não precisando ser reportados estruturalmente a outros dispositivos para determinar-seo seu teor.

Tenha-se presente que o fato de as normas jurídicas seapresentarem ou não sob a forma de modelos jurídicos  - osquais, como se verá, correspondem, no plano hermenêutico,aos tradicionalmente denominados institutos jurídicos -  nãoimporta em nenhuma distinção hierárquica eiitre eles, no sentido de serem uns primários e outros secundários.

Por sinal que, sendo os modelos jurídicos configuraçõesde normas jurídicas, aplicam-se a eles as qualificações e classificações que a Teoria Geral do Direito tem procurado estabelecer no tocante às regras de direito, distinguindo-as segundodiversos critérios ou pontos de vista29.

E a razão pela qual, neste livro, vou limitar-me a apontar

as notas que caracterizam os modelos jurídicos em confronto

29. Sobre a classificação das regras de direito, cf. o Cap. XI de minhasLições Preliminares de Direito,  cit., às págs. 117 usque  138, e respectivabibliografia.

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com as fontes de que promanam sem me referir aos modeloslógico-lingüísticos ou cibernéticos estudados pela Semiótica oupela Informática Jurídicas, com outros objetivos.

Os modelos jurídicos legais

Para atender a exigências de ordem expositiva, ao me referir à natureza procedimental da fonte de direito, já antecipeialgumas das notas distintivas do modelo legal, no Capítulo II,supra, mostrando como o quadro das “normas legais” é, hojeem dia, bem mais amplo, por abranger distintas modalidadesde regras válidas erga omnes  como expressões do  processo legislativo.

 À vista do então exposto, verifica-se que os modeloslegislativos podem resultar tanto de leis como de decretoslegislativos ou mesmo de resoluções, na acepção específica quelhe dá o texto constitucional. Quando se fala em lei, é claro que

a referência é feita também à lei por excelência, à Constituição, que nos oferta número considerável de modelos jurídicos,quer no que se refere à forma do Estado, quer no concernenteao regime de poder, estendendo-se à ordem econômica, à tributária, à educacional etc., sendo já usual o emprego do termosistema  quando fazemos alusão às normas estruturais que,nesse ponto, compõem o texto constitucional.

O que singulariza o modelo legislativo é-a validade quelhe é conferida de maneira genérica ou universal, ou seja, asua validade erga omnes.  É preciso entender bem o sentidodessa validade, a qual não se prende, como alguns julgam, àpossível multiplicidade de hipóteses configuradas pela normalegal, mas sim ao reconhecimento, nela necessariamente sempre implícito, de que deverá ela ser indistintamente aplicável

a quem quer que se situe na posição de seu destinatário. Umarazão essencial de igualdade preside a categoria da norma legal, o que resulta do princípio constitucional de que todos sãoiguais perante a lei. Poder-se-ia dizer, com propriedade, queela vale erga omnes e pro omnes.

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Por outro lado, o modelo legal ocupa, na escala dos modelos, um lugar proeminente, prevalecendo sobre os demais modelos jurídicos, desde que, ao tratar, por exemplo, do modelo

negociai, não o faça com infração do ordenamento constitucional, o qual, no seu todo, forma o horizonte paradigmático devalidade de toda e qualquer forma de modelagem jurídica daexperiência. Desde que conforme, em suma, com a Lei Magna,o modelo legal disciplina a vigência ou a eficácia dos modelos

 jurisdicional, consuetudinário e negociai, suspendendo a eficácia daqueles que não se achem em sintonia com as normas

constitucionais e as normas ordinárias que as complementam.Só nesse sentido, preservado o valor primordial da Constituição, é que se pode falar em primado hierárquico do modelolegal, por sinal que de um ponto de vista lógico e não axiológico.Sob o prisma do valor, todas as fontes se equiparam, dependendo do respectivo conteúdo, ou seja, da qualidade de seusmodelos, a sua primazia axiológica.

Parece-me importante assinalar a relevância da distinção ora feita entre anterioridade ou supremacia de uma fontede direito, em relação às outras, de um ponto de vista lógico ouaxiológico. Logicamente, isto é, sob o ângulo lógico-formal, alei é sempre a fonte preeminente no sistema jurídico, mesmoporque ela pode ser lei de ordem constitucional, mas, do pontode vista axiológico, uma fonte subordinada pode ter maior significação ética ou econômica do que a atribuída à lei à qual ela

se subordina. Isto demonstra que o estudo dos modelos jurídicos deve ser tanto no plano lógico quanto no axiológico, o querevela a riqueza de perspectivas do ordenamento jurídico.

Cabe ainda ponderar que as normas jurídicas ou valem esão desde logo eficazes de per si, isoladamente, ou, então, somente possuem validade e eficácia enquanto elementos componentes de um modelo jurídico, de conformidade com os vários

tipos que este possa assumir.É no sistema dos modelos jurídicos legais que mais se revela a sua configuração como unidades estruturalmente integrantes de diversas regras de direito. Aliás, os modelos jurídicos se compõem entre si, formando distintos campos de hierar

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quia jurídica, matéria esta que, por sua importância, será ob jetó de estudo nos Capítulos seguintes.

O modelo jurídico costumeiro

Poder-se-ia pensar que, estando as normas consuetudiná-rias vinculadas a particulares usos e costumes, não se poderiafalar em modelo costumeiro, mas esta seria uma visão apequenada e errônea da rica produção de regras de direito brotadas

diretamente da sociedade civil, como reiteradas formas de açãosocial dotadas de senso ou sentido autônomo de juridicidade,ora preenchendo as lacunas do ordenamento legal, ora abrindo-lhe novas perspectivas de desenvolvimento, sem falar noseu papel mais habitual de inferir das regras legais modalidades imprevistas de comportamento lícito.

Reconhece-se que é sobretudo no domínio do Direito Eco

nômico que os usos e costumes nos abastecem de incessantesmodelos jurídicos, às vezes como decorrência de modelos legais, completando-os ou especificando-os; outras vezes parapreencher lacunas do ordenamento legal.

 Avida econômica, com efeito, no seu incessante desenvolvimento, sobretudo em razão da livre iniciativa, dá lugar àsmais variadas formas de composição de interesses, segundomúltiplas configurações jurídicas correspondentes a distintasatividades ocorrentes habitualmente no mercado, com o aparecimento dos chamados “usos mercantis”, cuja juridicidadeninguém põe em dúvida, quer os parceiros das atividadesnegociais, quer os órgãos públicos.

 Ao contrário do que geralmente se pensa, é imenso o número de modelos jurídicos costumeiros, não só no plano dasrelações internacionais, como no tocante a usos e costumes deordem econômica, na esfera cambial e bancária. Durante muito tempo a Junta Comercial de São Paulo, obedecendo a umapraxe que vinha desde 1890, promovia o assentamento de usose costumes mercantis vigentes no Estado, chegando mesmo a

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publicar “consolidações”, como as relativas às praças da Capital e de Santos30.

 Atendendo a essas circunstâncias, os mestres de Direito

Econômico deveriam dedicar maior atenção aos modelos consue-tudinários operados nos mais diversos campos das atividades.Não é demais salientar que, às vezes, esses modelos con-

suetüdinários adquirem tamanha eficácia e importância queacabam prevalecendo sobre os modelos legais, os quais entramem eclipse, suscitando o delicado problema da derrogação dasleis pelo desuso31.

Os modelos jurisdicionais

Um dos campos mais relevantes do “mundo normativo” érepresentado pelos modelos oriundos de decisões jurisdicionais,muito embora, paradoxalmente, sejam poucos os estudos sobre o conceito de jurisdição como fonte reveladora de normas

 jurídicas.Os autores, em geral, situam o problema no plano proces

sual, a fim de determinar, primeiro, a competência do órgão jurisdidonal, e, depois, a forma segundo a qual essa competência deve atualizar-se. Penso, todavia, que antes há uma questão que se põe nas matrizes do Direito Constitucional, comoconfiguração do poder de decidir, próprio do Judiciário, em pa

ralelo e sincronia com o que se atribui ao Legislativo e ao Executivo. A jurisdição é, pois, antés de mais nada, um poder consti

tucional de explicitar normas jurídicas, e, entre elas, modelos  jurídicos. Esse poder decisório se desenvolve de duas formas

30. Nesse sentido, vide a “Consolidação dos usos e costumes de café na praçade Santos”, elaborada pela Junta Comercial do Estado de São Paulo, e pormim mandado publicar, na qualidade de Secretário da Justiça, pelo Ato n.21, no Diário Oficial do Estado, de 24 de abril de 1964.31. Sobre essa questão, v. meu ponto de vista em Lições Preliminares de 

 Direito, cit., págs. 121 e 289.

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distintas: normalmente, como exercício da jurisdição enquantorealização das normas legais adequadamente aos casos concretos, isto é, em função das peculiaridades e conjunturas pró

prias da espécie de experiência social submetida a julgamento; e, excepcionalmente, no exercício da jurisdição enquantopoder de editar criadoramente regras de direito, em havendolacuna no ordenamento.

 Vêm daí duas espécies de modelos jurídicos jurisdicionais:uns subordinados,  ou de segundo grau, na medida em queconsubstanciam aplicações iraconcreto daquilo que in abstracto se configura no modelo legal; e outros autônomos, e são os modelos jurisdicionais por excelência, cuja existência decorre dacorrelação de dois princípios jurídicos fundamentais, a saber:a) o juiz não pode deixar de sentenciar a pretexto de lacuna ouobscuridade da lei; b) quando a lei for omissa, o juiz procederácomo se fora legislador.

Há, na história do Direito pátrio, exemplos estupendos demodelos jurisdicionais que supriram as deficiências e até mes

mo a prejudicialidade de modelos legais, a fim de assegurar a justiça in concreto. Nesse sentido, lembro a decisão históricado Tribunal de Justiça de São Paulo, que concebeu a existênciade uma sociedade de fato constituída no âmbito do casamento,pelos estrangeiros que, graças ao esforço comum, haviamconstruído um patrimônio, o qual, de outra forma, seria destinado a desconhecidos parentes residentes na Itália, em detrimento do cônjuge, se fosse aplicado o antigo e infeliz preceitodo Código Civil que, num país de imigração, mandava aplicar,na sucessão, a “lei pessoal”, ou seja, da nacionalidade do de cujus... Desse modo, em corajosa correção de um modelo legaliníquo, o poder jurisdicional soube realizar a justiça in concreto, preservando os legítimos interesses e direitos do cônjugeque contribuíra, com seu trabalho e dedicação, à formação dosbens do casal.

Outro exemplo de jurisdição criadora temos com a consagração, pelo Supremo Tribunal Federal - graças sobretudo aoMinistro Pedro Lessa -, da tese, sustentada por Rui Barbosa,do emprego do habeas corpus para defesa da “posse de direitos

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■ pessoais”  violados por abuso ou desvio de poder, numa épocaem que tais direitos ainda não eram salvaguardados por mandado de segurança32. Com o advento deste, o modelo da posse

voltou ao seu leito normal, como exteriorização de algum dospoderes inerentes à propriedade.

Também pretoriano foi o modelo jurídico disciplinador dasrelações entre concubinos, dada a inexistência de disposiçõeslegais sobre a espécie, preservando os direitos de quem houvesse, por seu trabalho, contribuído para a formação de umasociedade de fato, merecedora de amparo. Desse modo, o

concubinato perdeu a sua configuração pejorativa para adquirir contornos de juridicidade, em função dos fatos e circunstâncias.

Já agora, com a “união estável”, reconhecida pela Constituição de 1988 como “entidade familiar”, o problema doconcubinato deve ser revisto, pois com ele não se confunde aquele modelo constitucional, cuja conversão em casamento deve

ser facilitada pela lei. Conforme me manifestei sobre as emendas apresentadas, no Senado Federal, ao projeto de CódigoCivil, já aprovado pela Câmara dos. Deputados, em estudo enviado ao Senador Josaphat Marinho, atual Relator Geral damatéria, entendo que a “união estável” constitui um tertium 

 genus entre o concubinato e o casamento. Por tal motivo, propus todo um sistema de normas reguladoras das relações pes

soais e patrimoniais entre os “companheiros” (denominação obviamente preferível a “concubinos”, cuja acepção é socialmente censurável) que, livres de impedimentos, venham a vivermore uxorio por certo lapso de tempo. Enquanto, porém, o legislador não cuida do assunto, teremos de valer-nos de modelos jurídicos pretorianos, até agora bem pouco definidos.

Por esse e outros motivos bem se percebe a importância

da Jurisdição na tela dos modelos jurídicos, quer pelo suprimento inevitável de lacunas legais, quer pela “determinaçãohermenêutica” dos modelos em vigor, afeiçoando-os às exigências da vida comunitária.

32. Cf. VICENTE RÁO, Posse dos Direitos Pessoais, São Paulo, s.d.

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Os modelos jurídicos negociais

 A última categoría dos modelos jurídicos, inclusive crono

logicamente no plano da doutrina, diz respeito aos que resultam do acordo das vontades, do livre e sempre aberto jogo dasiniciativas individuais.

Na usual afirmação de que “o contrato tem força de leientre as partes” já se albergava o reconhecimento de que a“autonomia da vontade” é fonte geradora de regras de direito,mas esta asserção só adquiriu plenitude de significado quando

Kelsen, ao mesmo tempo que reduzia o Direito a um sistemade normas, alargava o sentido normativo, libertando-nos definitivamente do legalismo, isto é, do incontrastado domínio dasnormas legais. Quando se opõem justos reparos ao “norma-tivismo” da Teoria Pura do Direito, é necessário, pois, ressalvar-se o benefício que a Escola de Viena representou no concernente à abertura do “sistema normativo”.

Ora, a fonte negociai é um dos canais mais relevantes darevelação do Direito, e, ao contrário dos afoitos defensores daestatização do mundo jurídico, cresce dia a dia de importância,tanto no campo interno como no internacional, o contínuo processo de solução jurídica dos conflitos de interesses individuaise coletivos mediante decisões de tipo negociai.

No Estado Democrático de Direito, nos moldes da Carta

Magna vigente, que consagra, como fundamentos da ordemeconômica, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência,  mister é atentar para a relevância dos modelosnegociais, superando-se a cediça asserção de que eles só existem porque assim o dispõe a lei. Na realidade, eles hauremsua vigência na matriz da Lei Maior, de tal modo que o legislador ordinário não tem poderes para suprimir o mundo dos con

tratos, mas tão-somente para regulá-los na medida dos imperativos da livre coexistência das múltiplas vontades autônomas concorrentes, tendo como base o bem comum, a começarpelo direito do consumidor, também ele considerado basilar naordem sócio-econômica.

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É por essa razão que a antiga e genérica garantia de “li.vre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão” (Constituição, Art. 5S, XIII) é completada pela de livre empresa, resul

tante da combinação dos dois já lembrados princípios da livreiniciativa e da livre concorrência (Art. 170 e seu precioso parágrafo único que preserva “o livre exercício de qualquer atividade econômica”).

Nesse amplo quadro constituem-se e desenvolvem-se osmodelos jurídicos negociais, que, em última análise, representam a exteriorização ou a atualização da liberdade como valor

supremo do indivíduo, tanto como cidadão quanto como produtor. E essencial essa “compreensão constitucional” dos modelos negociais, pois só ela nos fornece paradigmas aptos à consideração de sua licitude, a qual deve ser considerada em princípio existente, salvo as ofensas à “liberdade de contratar e operar” resultantes das múltiplas formas de abuso ou desvio dopoder econômico que “vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art,173, § 42).

E preciso, outrossim, ter presente que, em pé de igualdade com as demais fontes do direito, também a fonte negociai,para que sejam válidas as normas e modelos através dela emanados, deve obedecer ao seu devido processo legal, que cabe acada disciplina jurídica determinar, em consonância com assuas peculiaridades. Do ponto de vista da Teoria Geral do Di

reito, o pressuposto processual por excelência da fonte negociaidiz respeito à liberdade real de decidir de todos os que participarem da instauração do negócio jurídico, pois fonte negociai eautonomia da vontade são termos que reciprocamente se implicam.

 A bem ver, é desse princípio que resultam todos os demais, tais como o da eqüipolência ou equilíbrio das prestações

e contraprestações recíprocas, incompatível com o locupleta-mento de uns em detrimento de outros; a boa-fé nas declarações de vontade, pressuposto este que o desmedido individualismo costumava pôr entre parêntesis; a possibilidade pelo menosparcial de ser satisfeita a prestação convencionada; a revisibili-

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dade do avençado em razão de supervenientes fatores que importem em onerosidade excessiva; a exclusão de condições puramente potestativas que representem a sujeição de um ao ar

bitrário do querer de outrem.Por outro lado, os modelos negociais não podem ser constituídos em conflito com os modelos legais, o que implica o reconhecimento de que há uma hierarquia entre os modelos jurídicos, do ponto de vista lógico-sistemático, questão à qual já fizalusão e que será objeto de oportuna análise.

Sendo os modelos jurídicos negociais resultantes de um

processo, que tem como fulcro um acordo de vontades, é damaior importância, quando de sua interpretação e aplicação,atentar-se para os entendimentos preliminares, ao que os juristas itálicos denominam trattative, o que já deu livre curso àpalavra tratativa, a qual abrange toda e qualquer forma deprévia negociação reveladora do efetivo propósito dos contratantes. Constituem elas elementos hermenêuticos da maiorrelevância.

Resulta daí que a cada espécie ou tipo de modelo jurídicocorrespondem peculiares diretrizes hermenêuticas, mas este éassunto que exige tratamento autônomo.

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CAPITULO VIII

Dialética dos Modelos Jurídicos

Dialética e dialela

 Antes de tecer algumas considerações sobre como transcorrem a vida e a morte dos modelos jurídicos, procurando traçar as grandes linhas de seu desenvolvimento dialético, pare

ce-me conveniente fixar uma distinção entre duas questões quefreqüentemente se confundem.

Como lembro em Experiência e Cultura, Aristóteles foi oprimeiro pensador a distinguir entre o processo do discurso ouda argumentação (dialela) e o processo que preside o evolverou desenvolver de algo, de natureza real (como pensava ele) oude natureza ideal, como pensava Platão (dialética)33.

Como resulta dos estudos de Luis Recaséns Siches, ChaimPerelman, Theodor Vieweg e, entre nós, Tércio Sampaio FerrazJúnior, é de fundamental importância para o jurista a técnicaa ser seguida na exposição e solução dos problemas jurídicos e,mais particularmente, quando se visa a convencer a outremda veracidade ou procedência de sua tese, tal como se dá nodecurso de uma lide. São, com efeito, as regras da dialela quedirigem o discurso persuasivo na interpretação das regras ju

33. Cf. op. cit., págs. 141 e 142.

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rídicas e sua aplicação, notadamente nos atos processuais quetêm por fim o deslinde de uma causa.

Nessa hipótese - tão significativa no âmbito da Dogmáti ca

Jurídica ou Ciência Positiva do Direito Positivo - o raciocínioversa sobre algo já posto  (o Direito Positivo), quer parainterpretá-lo (Hermenêutica Jurídica) quer para dele inferiras suas conseqüências no sentido de lograr a persuasão do

 julgador.Há quem atribua à Ciência do Direito tão-somente essa

tarefa discursiva, reduzindo-o, em última análise, a uma técnica de argumentação e aplicação das normas jurídicas oriun

das das diversas fontes, a que já fiz referência, derivando, assim, para um problematicismo total e infecundo.

Desse modo, fica subentendido, com sacrifício de relevante substantia iuris, o problema originário da experiência jurídica como tal, isto é, da gênese das normas e modelos jurídicose sua evolução ou involução, em função de mutações operadasnos planos factual, normativo e axiológico,

Um dos objetivos da teoria tridimensional do Direito, inspirada por uma visão de integralidade, é demonstrar que, sobpena de incidir-se em várias formas de reducionismo, o jurista, no momento hermenêutico da compreensão das regras jurídicas, não pode fazer abstração de como elas se constituíram, aque razões de fato e a que motivos de valor visaram a atender.

Ora, não é kdialela, mas sim à dialética que cabe estudaro Direito como experiência, tanto em sua validade formal (vigência) como em sua efetividade  (situação factual) e em seu

 fundamento (em razão do valor a realizar), o que tudo compõeo processo jurídico como um todo.

 Ainda recentemente Jürgen Habermas, no livro já citado,no qual ele afronta a problemática da justiça - questão estaque, desde Kant e Hegel, não pode deixar de ser analisada porum verdadeiro filósofo - , dá ênfase aos problemas da validade

e da eficácia, à luz de seu conhecido conceito de “razão comunicativa”34, devendo a imprecisão de seus conceitos ser atribuídaao fato de não perceber que no conceito genérico de “validade”

34. Cf. JÜRGEN HABERMAS, Faktizität und Geltung, cit

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albergam-se dois conceitos distintos, essenciais ambos à visãodo jurista: o da validade do ponto de vista lógico-formal, que seindica com o termo de vigência', e o da validade segundo um

ponto de vista axiológico, isto é, em função da idéia de valor( fundamento).

Dessarte, há três ordens de problemas postos pelo Direitoenquanto experiência, ou seja, pelo Direito enquanto momentoou acontecimento experiencial da vida humana: o da eficácia, o do fundamento e o da vigência ou validade normativa.

Ora, essa espécie relevante de experiência humana, que

denominamos experiência jurídica, somente pode ser objeto depesquisa graças a um processo dialético que possa levar emconta os três aspectos supra-referidos e que, modéstia à parte,a teoria tridimensional do Direito teve o mérito de apreciarnuma visão concreta e integral da vida jurídica.

Cabe, pois, tecer breves considerações sobre a naturezada dialética, que, a meu ver, mais se coaduna com a experiên

cia jurídica.

 A dialética de complementaridade

Já tive a oportunidade de demonstrar, no Capítulo VI, quetoda gênese de modelos jurídicos se dá num processo de natu

reza axiológica, dependendo das opções do poder a prevalênciadeste ou daquele outro critério normativo, no instante em queé tomada uma decisão, a partir da qual determinada diretriz

 juríd ica é considerada vigente ou positiva, tornando-se prescritiva.

Na história da dialética sobressai o modelo de Hegel, segundo o qual tudo o que existe não é senão expressão do pro

cesso dialético da Idéia, termo este empregado pelo filósofo emsentido ao mesmo tempo lógico e axiológico (segundo ele, Ser e  Dever Ser  se identificam) para indicar o fundamentotranscendental do existente. Por outro lado, o grande pensador apresenta o desenvolvimento da Idéia como uma série sucessiva de conciliações entre opostos, tanto de contrários como de

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contraditórios, os quais se compõem em identidade, ponto departida para o superamento de novas contradições que não sesabe bem como possam, depois, emergir do que já se tomara

idêntico.Não vou, aqui, repetir a crítica que faço à teoria hegeliano-

marxista da dialética de opostos que sucessivamente se superam mediante soluções unitárias e idênticas, pedindo a atenção do leitor ao que escrevo em Experiência e Cultura35, onde penso ter demonstrado que somente a dialética de complementaridade,  com vigência crescente no pensamento

contemporâneo, logra explicar a correlação existente entre fenômenos que se sucedem no tempo, em função de elementos evalores que ora contrapostamente se polarizam, ora mutuamente se implicam, ora se ligam segundo certos esquemas ouperspectivas conjunturais, em função de variáveis circunstâncias de lugar e de tempo.

O que distingue, pois, a dialética de complementaridade é

que, nela, seus fatores (digamos assim) se mantêm distintosuns dos outros, sem se reduzirem ou se identificarem a qualquer deles, sendo múltiplas as hipóteses desse correlacio-namento ao longo do processo. Além disso, em se tratando defatos humanos que se entrecruzam, nessa conexão ou correlação pelo menos um de seus fatores é sempre representado porum valor, com conseqüências que merecem nossa atenção.

O valor, com efeito, reúne dois característicos que nos dãotanto a razão de ser de uma “realidade em processo”, quanto ada correlação posta entre os elementos que nela se distinguem,ainda quando se contrapõem. Em primeiro lugar, todo valor éexpressão de um dever ser, de algo que não teria sentido se emalgum momento não chegasse a se converter em realidade, sobpena de se reduzir a mera ilusão ou quimera: o devir  e a

historicidade, por conseguinte, são inerentes à idéia de valor,podendo-se afirmar que todo historicismo é necessariamentehistoricismo axiológico.

35. Cf. op. cit., sobretudo págs. 137 usque 140 e 162 usque 170.

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Por outro lado, a todo valor se contrapõe um desvalor, aobelo o feio, ao digno o indigno etc., de tal modo que seria impossível concretamente conceituar-se qualquer deles sem se ad

mitir a complicação com o seu contrário. Isto demonstra queonde atua um valor, aí há uma inevitável complementaridade, mesmo porque o ato de valorar não ocorre apenas entre elementos que se contrapõem, mas também entre elementos quese escalonam ou se distribuem segundo distintos critérios de valoração  que seria impossível querer predeterminar, tãoimprevisível é a experiência da liberdade, o valor matriz detodos os valores.

Donde se conclui que a dialética de complementaridade,no que tange ao mundo da cultura, onde se situa o Direito, sefunda, a um só tempo, no dever ser ou historicidade própria do valor, e na natureza binada ou complementar deste, a qual implica uma opção entre juízos distintos. Refiro-me tão-somenteao mundo da cultura, como sede da dialética de complementaridade, pois, no concernente ao mundo da natureza e dos obje

tos lógico-matemáticos, é aplicável o princípio de complementaridade, sem que se possa falar propriamente em dialética36.

Note-se, outrossim, que a dialética de complementaridadesó adquiriu notas características de maior rigor quando seuestudo foi vinculado à idéia de valor, ficando demonstrado queela se põe no plano axiológico e não no lógico-formal, apesar deser possível também sua compreensão lógica graças à versati

lidade ou pluralidade da chamada Lógica paraconsistente, aque já fiz referência37.

Complementaridade na experiência jurídica

No concernente ao mundo do Direito a aplicação da

dialética de complementaridade é transparente, visto como a

36. Nesse sentido, v. Experiência e Cultura, cit., respectivamente págs. 143usque 148 e 148 usque 150.37. Vide, supra, págs. 39 e seg. e n. 4.

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natureza trieotômica do fenômeno jurídico, comprovada em suagênese, se estende obviamente ao longo de seu processo.

Também neste ponto me escuso de tecer maiores comen

tários, pedindo vênia para reportar-me ao que longamente exponho em minha Teoria Tridimensional do Direito38, de ondeextraio a seguinte figura, mediante a qual procuro representar como se desenvolve a vigência de um modelo jurídico, cujasignificação concreta varia, até enquanto não revogado, de conformidade e em função de mutações operadas nos planosfactual, axiológico e normativo:

Esse gráfico aplica-se a uma realidade humana bem maiscomplexa do que parece à primeira vista. É que o mundo doDireito é um mundo condicionado ab initio pelos horizontes daconstitucionalidade, os quais compõem o centro de gravidadede todo o sistema. Dessarte, um modelo jurídico não adquirepositividade pelo simples fato de ter-se originado de uma deci

são do poder. Em primeiro lugar é indispensável que este sejacompetente, e que, ainda que competente, decida sobre algoque não conflite com imperativos constitucionais. Nos paísesde Constituição escrita, como é o caso do Brasil, tudo o que seenuncie em conflito com preceitos constitucionais é ipso facto refutável. A refutabilidade, que Karl Popper aponta como umcritério distintivo essencial do que é científico, tem um viés

todo seu no mundo do Direito: é, no mais das vezes, uma

38. Op. cit., pág.126. Vide, outrossim, o estudo “Dialética da experiência jurídica”, in Direito Natural /Direito Positivo, São Paulo, Saraiva, 1948, págs.50 e segs., bem como Filosofia do Direito, cit., 15® ed., págs. 562 usque 585(Cap. XXXVII).

 Processo do normativismo concreto

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refutabilidade convencional, porque baseada na validade absoluta do sistema normativo positivado originariamente ouderivadamente pelo legislador constituinte.

Sob esse prisma, o pressuposto de validade independe dopossível acerto ético-social do modelo jurídico, porquanto, pormais que ele possa ser útil ou necessário à coletividade, é umadeterminação natimorta, se refutável à luz da Carta Magna.Daí a sabedoria das Constituições, não digo enxutas, mas pelomenos sintéticas, a fim de evitar-se o bloqueio do processo democrático, que é indispensável se e quando houver sido tudode antemão resolvido. A possibilidade de instauração de novos

modelos jurídicos, em consonância com o advento de imprevistas conjunturas, é conditio sine qua non de uma democraciareal, não tornada inviável em razão de um “totalitarismonormativo”. Foi o mal da Carta de 1988, que a revisão de 1994só pôde parcialmente reparar. Donde ainda a conveniência denão se sujeitar, normalmente, a revisão constitucional a exagerado quorum, devendo a maioria absoluta ser bastante para

uma sociedade, como a de nossos dias, marcada por incessantemudança. Põe-se, aqui, aliás, um delicado problema de Política do Direito, num jogo de perspectivas, situando-se o problema democrático da estabilidade do sistema constitucional entre um mínimo de cautela e segurança, para preservação daordem normativa, e um mínimo de fidelidade à vontade e aosinteresses da comunidade, para garantir-lhes legitimidade.

Bastam essas questões para verificar-se como o sistemanormativo - a cujo estudo volverei logo mais - tem, por suanatureza, um conteúdo instável e variável, suscetível de sersomente compreendido graças à Lógica dialética, havendo grande equívoco quando se pensa que o pensamento dialético só sedesenvolve no plano filosófico, e não no âmbito positivo dasciências culturais.

 Assente, todavia, a compatibilidade entre o novo modelo

 jurídico e o sistema constitucional, surge uma outra série dequestões que exclui a possibilidade de ser ele interpretado eaplicado em sua singularidade ou atomicidade, sem referênciaaos demais modelos que integram o ordenamento jurídico. A

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significação de um fato cultural dá-se sempre no contexto datotalidade do processo, no qual ele se insere e no qual adquirepositividade.

Ora, a necessária inserção ou integração do novo modelono processo normativo como um todo pode ter a conseqüênciade, tão logo emanado pelo legislador, adquirir ele uma significação que não coincide linearmente com a que se tinha em vista alcançar, importando em conseqüências diversas das originariamente visadas, o que, como veremos, apresenta conseqüências no tocante aos “modelos hermenêuticos”  aplicáveis no

caso em estudo. Eis aí outro aspecto que revela a dialeticidadeconcreta da experiência jurídica, por mais que se queira compreendê-la reduzindo-a às retortas de um discurso pragmático, julgado bastante de per si para a sua compreensão.

Por outro lado, observando-se a figura supra-oferecida,verifica-se que uma norma, e notadamente um modelo jurídico, não conserva sempre inalterado o significado ou o sentido

com os quais começou a ter vigência, mas pode sofrer alterações semânticas, que a Hermenêutica jurídica atribui à supremacia de mudanças operadas no plano dos fatos, dos valoresou de outros processos normativos.

Nada mais necessário ao conhecimento do Direito do quea atenção dispensada à complementaridade e intercorrênciados três apontados fatores, podendo-se afirmar que, não

obstante a crescente exigência de concreção jurídica, a famíliados juristas ainda continua dividida entre os que persistemem analisar as normas jurídicas em sua pontualidade, comodados isolados e per se stantes, e os que, ao contrário, sempreas situam na integralidade do processo normativo, e, mais particularmente, no conjunto dos motivos operantes em determinada conjuntura da vida jurídica, o que a chamada “interpre

tação histórico-evolutiva estava longe de atender, por falta devisão da experiência jurídica na integralidade de seu processo.Pois bem, os novos fatos que vêm incidir sobre a vigência

de um modelo jurídico podem ocorrer em áreas aparentementealheias a qualquer implicação ou correlação com ele, havendonecessidade de cuidadoso trabalho hermenêutico para que fa-

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tos heterogêneos não sejam equívocamente ou maliciosamenteinvocados como base de uma nova interpretação. O mesmo sediga quanto à superveniência de valores e preceitos normativos

que se pretenda inserir na coimplxeação dialética de um modelo jurídico, visando a justificar a variação semântica proposta.Pelo exposto se vê que a dialética da experiência jurídica

não se desenrola de maneira unilinear ou evolutiva, no sentidode um objetivo final a ser alcançado, muito embora, como seconstatará no capítulo seguinte, haja alguns valores invariantesque poderão ser considerados alvos referenciais de um processo marcado pela pluralidade das tendências e perspectivas.

 A vigência, vista como a positividade no tempo, compõe-se, em suma, de linhas e espaços entrecortados por imprevisíveis desvios, distorções e vazios, devidos ao inesperadoapport da liberdade humana, a principal razão da gravitação do processo democrático, em geral, e da experiência jurídica em particular, de maneira plural. É que, na dinâmica social, há tantocoimplicações como contrastes e confrontos, antinomias e ana

logias, projeções axiológico-normativas contínuas e lacunas denormatividade, o que tem levado alguns a falar em ambigüidade, quando, na realidade, estamos perante um processo his-tórico-social, aberto e diversificado, segundo múltiplas variáveis e bem poucas invariantes, como se verá logo mais.

Em razão do exposto, parece-me plausível a noção dedialética de complementaridade, por mim apresentada emExperiência e Cultura, como sendo aquela na qual há uma correlação permanente e progressiva entre dois ou mais fatores,os quais não se podem compreender separados um dos outros,sendo ao mesmo tempo cada um deles irredutível aos outros,de tal modo que os elementos da trama só logram plenitude designificado na unidade concreta da relação que constituem,enquanto se correlacionam e daquela unidade participam.

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CAPITULO IX

O Macromodelo doOrdenamento Jurídico

Noção de ordenamento jurídicoNo Capítulo I deste livro, ao dar a noção de estrutura, que

é o gênero do qual o modelo é espécie, já observei que nenhumaestrutura social é uma unidade maciça e mononuclear, massim uma unitas ordinis ou “unidade de sentido”, ou seja, umacomposição de múltiplos fatores que se correlacionam em fun

ção de um ou mais motivos.Ora, a todo instante os operadores do Direito estão falando em “ordem jurídica”, “ordenamento jurídico”, ou “sistema

 jurídico”, sendo necessário analisar em que sentido e em quelimites será legítimo fazer uso dessas expressões.

 Antes de mais nada, cabe esclarecer a significação do termo “ordenamento jurídico”, sendo certo, como Ddemonstra

 Vittorio Frosini, que a palavra “ordenamento” remonta, comvárias acepções, à Idade Média, na época de Dante Alighieri,estando sempre em correlação com a palavra “ordem”.

Seria grave erro confundir o “ordenamento jurídico” coma totalidade da experiência jurídica de um povo, ou com a suaglobal evolução histórica. Somente em sentido amplíssimo e

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CAPITULO IX

O Macromodelo doOrdenamento Jurídico

Noção de ordenamento jurídico

No Capítulo I deste livro, ao dar a noção de estrutura, queé o gênero do qual ò modelo é espécie, já observei que nenhumaestrutura social é uma unidade maciça e mononuclear, massim uma unitas ordinis ou “unidade de sentido”, ou seja, umacomposição de múltiplos fatores que se correlacionam em função de um ou mais motivos.

Ora, a todo instante os operadores do Direito estão falando em “ordem jurídica”, “ordenamento jurídico”, ou “sistema

 jurídico”, sendo necessário analisar em que sentido e em quelimites será legítimo fazer uso dessas expressões.

 Antes de mais nada, cabe esclarecer a significação do termo “ordenamento jurídico”, sendo certo, como 0 demonstra

 Vittorio Frosini, que a palavra “ordenamento” remonta, com

várias acepções, à Idade Média, na época de Dante Alighieri,estando sempre em correlação com a palavra “ordem”.

Seria grave erro confundir o “ordenamento jurídico” coma totalidade da experiência jurídica de um povo, ou com a suaglobal evolução histórica. Somente em sentido amplíssimo e

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vago se poderia conceber essa experiência geral como umordenamento jurídico.

Põe-se, aqui, aliás, um problema que já foi objeto de mi-

nhas pesquisas sobre a unidade ou a pluralidade dos ordenamentos jurídicos, conforme o leitor interessado poderá verificar em meus livros Fundamentos do Direito  e Teoria do Direito e do Estado, apreciando as posições de Jellinek a Kelsen,de Hauriou a Santi Romano, e de Del Vecchio à por mim assumida39.

Em síntese, pode-se dizer que juristas há que não admi

tem senão o ordenamento jurídico estatal, ou seja, aquele cujasnormas integrantes resultam dos atos decisórios do Estado.Exemplo por excelência dessa concepção é a de Hans Kelsen,para quem o Direito se reduz a um ordenamento unitário eescalonado de normas, interligadas segundo uma subsunçãológico-formal, que se eleva desde as normas particulares atéas regras superiores, dependendo a validade do sistema

normativo global de uma norma fundamental, que, de início, ogrande mestre concebia como uma norma hipotética transcendental, no sentido kantiano deste termo, para, em livro póstumo inacabado, surgir como mera ficção de caráter empírico-pragmático40.

E claro que, segundo esse pensamento, somente compõemum ordenamento jurídico as normas que se entrelaçam e se

situam no âmbito da soberania do Estado - o qual, sob o pontode vista da imputabilidade normativa, se identificaria com opróprio Direito - sendo a-jurídicos os demais sistemas de regras, morais, econômicas, grupalistas, esportivas etc., ou seja,todo e qualquer outro conjunto de regras disciplinadoras dasdiversas formas de convivência social.

39. Cf. Teoria do Direito e do Estado, 4Sed., 1984, págs. 213 usque 326, eFundamentos do Direito, 2-  ed., 1972, no qual estudo especialmente opluralismo de MAURICE HAURIOU e SANTI ROMANO, este autor do clássico livro UOrdinamento Giuridico, Florença, 1945.

40. Sobre as três distintas fases do pensamento de KELSEN, v. MIGUELREALE, Filosofia do Direito, cit., 15®ed., Cap. XXXII, págs. 445 usque 480, eNova Fase do Direito Moderno, cit., XIII, págs. 195 usque 208.

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Já é diverso o pensamento dos partidários do pluralismo jurídico, segundo o qual a experiência jurídica seria constituída por distintos ordenamentos, dotados de igual grau de vali

dade, geralmente numa concepção institucional do Direito,como a de Maurice Hauriou ou de Santi Romano. Diversas sãoas soluções oferecidas por esses juristas para explicar a correlação entre as diversas “ordens jurídico-institucionais” e oordenamento jurídico-estatal.

Uma terceira posição é a de Del Vecchio, por mim perfilhada com algumas alterações, aceitando, de um lado, a pluralidade dos ordenamentos jurídicos como realidades sociais au

tônomas, e não apenas permitidas ou consentidas pelo Estado,e, de outro lado, reconhecendo que há uma “graduação dapositividade jurídica”, com predomínio do ordenamento jurídico-estatal, que atuaria como “lugar geométrico” dos demais sistemas de normas41.

Pois bem, no presente livro, a minha noção de macromodelo jurídico somente se aplica ao ordenamento jurídico-estatal,entendendo-se, por esta expressão, aquele conjunto de normasque constituem o conteúdo das quatro fontes do direito já analisadas, as quais, em virtude dessa vinculação direta ou indireta à soberania do Estado, no âmbito da incidência constitucional de cada povo, existem em numerus clausus.

Nesse sentido, vale a pena ter presentes as três acepçõesdo termo ordenamento, apresentadas por Vittorio Frosini, segundo três distintos modelos conceituais, a saber:

“a) em sentido ‘definitório teorético’, segundo o qualordenamento - direito,  isto é, o campo compreensivoda experiência jurídica nas relações humanas é oordenamento, como organização ou como estruturanormativa;

b) em sentido ‘definitório técnico’, segundo o qualordenamento > direito, ou seja, o ordenamento representa um modelo de experiência jurídica, que não bas

ta, porém, a enfeixá-la e a exauri-la, porque o ordena-

41. Cf. Teoria do Direito e do Estado, cit., Cap. IX, pág. 295.

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mento é somente uma componente da realidade jurídica considerada na sua complexidade;

c) em sentido definitório prático, segundo o qual or

denamento < direito, isto é, o ordenamento é um princípio interpretativo da realidade social na sua globalidade, que é delimitada mediante o direito em umcampo de revelação ao lado de outros campos diversos,como o sociológico, o econômico, o moral, o político, paracada um dos quais se pode estabelecer um ordenamento”42.

Essa precisa discriminação de significados adapta-se,notadamente na acepção b, supra, à concepção da pluralidadedos ordenamentos, com diversa graduação de positividade

 jurídica, visto prevalecer o sistema positivo estatal (o ordenamento jurídico stricto sensu), o qual não cobre toda a experiência jurídica, ou, como diz Frosini, é < (menor) que ela.

Poder-se-á pensar que, nesses termos, o ordenamento ju

rídico coincidiria com o complexo de normas abrangido pelaConstituição de cada país, mas tal concepção não procede. Narealidade a Constituição, sobretudo a de tipo liberal ou social-liberal, ao mesmo tempo que disciplina o ordenamento jurídi-co-positivo estatal, preserva outros tipos de ordenamento, de

 juridicidade não-estatal, como sistemas autônomos queconsubstanciam a expressão da liberdade e da autonomia dosindivíduos e dos grupos em múltiplas e distintas formas devida social.

Concluo, em suma, dizendo que, em sentido técnico,ordenamento jurídico é apenas aquele componente da experiência jurídica que se põe e evolui como conteúdo das fontesque diretamente se subsumem ao poder estatal, quer em razãode atos originários estatais (fontes legislativa e jurisdícional),quer derivadamente em virtude de atos, cuja autonomianormativa é reconhecida com validade jurídica própria (fontescostumeira e negociai).

42. VITTORIO FROSINI, “Ordinamento giuridico (filosofia)”, inEnciclopedia del Diritto, Várese, 1980, vol. XXX, pág. 640.

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Ciência do Direito e ordenamento jurídico

Esclarecida a acepção em que estou empregando o termo

ordenamento jurídico, não me parecem subsistentes as obje-ções que têm sido opostas à sua caracterização como macro-modelo jurídico, ou seja, uma estrutura abrangente das demais que compõem a experiência jurídica que tradicionalmente têm sido objeto da Dogmática Jurídica.

Tudo depende, é claro, do sentido atribuído à palavra estrutura, mas, neste passo, reporto-me ao já assente no Capítulo I, supra, no qual esclareci que, no mundo da cultura, toda

estrutura é uma unitas ordinis ou unidade de sentido, inconfundível com a rigidez das estruturas físico-matemáticas. A meu ver, não procede a negação do caráter estrutural

do ordenamento jurídico quando ele, ao contrário do sustentado pelo racionalismo kelseniano, não é concebido como um sistema de normas que lógica e escalonadamente se subsumamumas às outras, sem lacunas. Não há dúvida que o ordenamentonão é homogêneo nem inteiriço, podendo mesmo conter conflitos e até mesmo contradições, conflitos esses que podem sertanto de fatos e de interesses como de idéias, mas que devemser obrigatoriamente resolvidos e normativamente superadospara que a ordem jurídica subsista. No fundo, pois, prevaleceum imperativo axiológico de coerência do ordenamento comoum postulado da convivência social.

É por não levar em conta a natureza lógica e axiológica e

não apenas lógico-formal do ordenamento jurídico - no qual,como vimos, as contraposições são superadas graças a processos dialéticos e abertos de complementaridade —que Roberto

 Vernengo, apegado à noção formal de sistema que nos dá Tarskicomo “o conjunto formado por número finito de enunciados esuas conseqüências”, chega à conclusão de que, “quiçá, o caráter sistemático do direito não se dá no plano das normas, senão que a pretensão de sistematicidade se planteie somente ao

nível do conhecimento dos juristas; é dizer, a questão seria ado caráter sistemático da ciência jurídica”43.

43. ROBERTO J. VERNENGO,Curso de Teoría General del Derecho, Buenos Aires, 1985, “La noción de un sistema normativo”, págs. 293 e segs.

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 A seguir, Vernengo reconhece que um discurso científiconão pode deixar de obedecer ao princípio de não-contradição,sob pena de nele se introduzir uma falsidade, que abriría por

tas a quaisquer outras, tornando-se ele insubsistente. Mas, seassim é, não vejo como a exigência de sistematicidade possaser apenas do discurso científico, sem se estender à experiência normativa, cuja significação a Ciência Jurídica investiga.

O cientista do Direito não exclui a contradição de seu discurso porque assim o queira, abstração feita da coerência ounão das normas objeto de estudo, mas somente logra esse re

sultado porque a experiência jurídica e suas normas são, deper si mesmas, suscetíveis de sistematização. Ciência jurídicae experiência jurídica não correm paralelamente, aquela impondo a esta arbitrariamente suas categorias lógicas abstratas, visto como - conforme as teorias da concreção jurídica oudo Direito como experiência o têm demonstrado - as categorias lógicas do Direito são postas pelo pesquisador, mas emdireto e permanente contato com o processo factual-axiológico-normativo que as condiciona. O cientista do Direito não captaos fatos sociais no seu estado rústico ou tosco, mas sim emsuas formas e sentido essenciais.

 Aliás, até mesmo nas ciências físicas, as leis não representam mera cópia ou fotografia de relações naturais preexistentes, já plenamente dadas, prontas para serem captadas, porquanto os enunciados e leis científicas - consoante é

asserido pela totalidade dos epistemólogos - pressupõem a participação criadora do intellectus agens,  sendo cada vez maisposto em realce o papel da imaginação criadora na compreensão dos fenômenos em seus nexos causais. A bem ver, uma leicientífica é uma composição sintética de dados brutos  (e háquem até mesmo conteste que este termo possa ter algum sentido) e de atos nomotéticos ou reguladores da imaginação e do

pensamento44.

44. Sobre a natureza sintética e criadora do conhecimento científico, v.MIGUEL REALE, Experiência e Cultura,  cit., Cap. IV, “Da cultura comoobjetivação e positividade”, págs. 87 e segs.

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De qualquer forma, no entanto, se são alcançadas leisexplicativas dos fenômenos, é sinal de que nestes já eram imanentes os pressupostos factuais dos liames que ao depois se

estadeiam no sistema dos princípios e das leis científicas, numaunidade lógica incindível.É óbvio que, com mais razão, os mesmos pressupostos

devem ser reconhecidos em se tratando de ciências culturais,como é o caso do Direito, ainda porque, como já tive oportunidade de acentuar, referindo-me a ensinamentos de Levi-Strauss, um sentido de ordem é inerente até mesmo ao pensa

mento selvagem ou incultivado.Tal verdade se evidencia na origem mesma da Ciência doDireito, quando os jurisconsultos romanos se deram conta deque os comportamentos humanos obedecem a certa “regularidade” ou "normalidade”, sendo, por tal motivo, suscetíveis de

 previsão e de uma provisão de garantia (sanção) compondo-sea regula iuris. É que, não obstante naturais diferenças individuais, os homens em geral reagem de maneira igual ou análo

ga ao se defrontarem com acontecimentos que os favoreçam ouprejudiquem. Se não houvesse certa regularidade nos possíveis comportamentos humanos, não haveria como discipliná-los, emanando-se normas para prevê-los e estabelecendo-seconseqüências decorrentes do adimplemento delas ou da recusa de adimpli-las. É sobre esse dado humano basilar que sealicerça todo o edifício  jurídico, de tal sorte que foi a previ

sibilidade de comportamentos iguais ou análogos, dada a igualnatureza humana, que permitiu o surgimento do Direito e oseu conhecimento científico. ,

Não é demais assinalar que, mesmo sem ter sido por eleselaborada uma teoria sobre a sistematicidade das regras dedireito, os jurisconsultos romanos bem cedo intuíram e postularam a capacidade e a necessidade de uma modelagem

normativa da experiência, ipsis factibus dictantibus ac necessitate exigente,  isto é, à medida que os fatos as fossemditando e a necessidade as revelasse necessárias, o que souberam realizar com nunca assaz louvado senso de concretude,através de fórmulas simbolizadoras.

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Não olvidemos, com efeito, que os mestres romanos, apartir do rude Direito formulário, recorreram a elementos figurativos para configurar e enunciar as exigências jurídicas.

Foi assim que surgiu a regula iuris, num empenho de isomorfiaentre forma e conteúdo, sendo a imagem visual do conteúdo aforça vivificadora do preceito45.

Podemos, pois, afirmar que a exigência de não-contradi-ção entre as normas jurídicas, ao nível da Ciência do Direito,pressupõe igual exigência de não-contradição entre os fatos quecompõem a experiência jurídica, à medida que esta se torna

objetiva ou se positiva, visto como objetividade  e positividade são termos correlatos, havendo razão para designar-se como Direito Objetivo ou Direito Positivo o ordenamento jurídico, sóconsistente se e quando não contraditório, o que pressupõesucessivas correções e o superamento de conflitos pelos legisladores, pelos juizes e pelos próprios juristas através dahistória.

Há dois momentos fundamentais em que o operador doDireito pode e deve corrigir e superar conflitos e contradiçõesinevitáveis na experiência humana: um é o momentonomogenético, isto é, o instante em que o Poder opta por umasolução normativa, em detrimento de outras que poderiam estar em contradição com o sistema já positivado, ou com os objetivos que se têm em vista atingir (matéria esta mais propria

mente de Política do Direito); o segundo momento ocorre depois da norma posta, quer para verificar se ela mesma ésubsistente por não contradizer a Constituição, quer para solver possíveis conflitos entre normas do mesmo nível ou categoria, o que tudo constitui objeto da Ciência do Direito, sobretudo enquanto Dogmática Jurídica (momento culminante da Ciência do Direito) envolvendo tanto modelos jurídicos quanto modelos hermenêuticos, os quais serão estudados no Capítulo seguinte.

45. Sobre a modelagem do Direito pelos romanos, em função da experiência,v. meu estudo “Concreção de fato, valor e norma no Direito Romano Clássico”, em Horizontes do Direito e da História, cit., págs. 55 usque 74.

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Se não houvesse, repito, certa correspondência ou homología entre a experiência jurídica e a Ciência Jurídica, serianecessário dar razão a Kelsen ao conceber o ordenamento jurí

dico tão-somente como um racional e estrito sistema de normas, ficando fora da cogitação do jurista, enquanto tal, tudo oque se ponha além das proposições normativas.

Por aí se vê, aliás —e o problema merece especial atenção -, que foi um mais rigoroso conceito de ordenamento jurídico e de sua sistematicidade que nos permitiu ter uma integralcompreensão da Ciência do Direito que é formada tanto pormodelos jurídicos prescritivos como por modelos jurídicos hermenêuticos.

Complexidade do ordenamento jurídico

Cabe concluir que o superamento, no plano normativo, dosconflitos observáveis na experiência jurídica somente se dá

mediante distintas aplicações de processos dialéticos. Volto ainsistir neste plural, porquanto a experiência jurídica bem comoo ordenamento jurídico que a positiviza e a objetiviza (neologismos a que recorro para dizer que a torna positiva ou objetiva) não podem nem devem ser compreendidos como um todounitário e escalonado de normas, o que já tive ocasião de assinalar em crítica à Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen.

Para facilidade de exposição, em contraposição à pirâmide escalonada de um único sistema de normas, tal como a queHans Kelsen nos oferece, eu djria que o ordenamento jurídicoconfigura-se mais como um ecossistema complexo e variegado,que abrange uma multiplicidade de sistemas e subsistemas normativos que se escalonam uns distintos dos outros, em função de diversos campos de interesse, muito embora todos elesse situem e se insiram no âmbito do comum horizonte de vali

dade da Constituição de cada povo ( Direito Interno) ou, então,sob o horizonte de coexistência universal exigido pelacomunitas 

 gentium para sobrevivência e desenvolvimento dos povos emigualdade de direitos ( Direito Internacional).

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Pois bem, se esse amplo maerossistema ou macromodelo,que é o ordenamento jurídico, se apresenta da forma mais complexa e diversificada, isto não importa em que não haja nele

um sentido global de ordem, reconhecido como um postuladosine qua non da convivência social tal como se verifica à luzdos focos irradiadores de sua validade,  atuantes, respectivamente, no Direito Interno e no Internacional. Esse sentido geral de ordem é, com efeito, essencial para a comum eficácia dasprescrições constitucionais, num caso, e dos princípios do Direito das Gentes, no outro, pois, em ambos os campos, há direi

tos a ter direitos, que devem ser respeitados, o que seriaimpensável num mundo jurídico paradoxalmente entregue àdesordem46.

Mesmo os que mostram diversos pontos críticos na questão do sistema do direito, apontando as suas discrepâncias edissonâncias, acabam, de uma forma ou de outra, reconhecendo que a eclosão multifária de sentidos e perspectivas que ca

racteriza o ordenamento jurídico não redunda em excluir apossibilidade de visualizá-la como expressão de certa ordemgeral, sob pena de converter-se a própria Ciência Jurídica emum amontoado desconexo e arbitrário de asserções47.

Tudo depende de não se persistir num conceito puramente formal de sistema, olvidando-se seu conteúdo fundamentamente axiológico. A multiplicidade contrastante das perspecti

vas explica-se pelo conflito inevitável que a história do homemassinala, empenhados que estão indivíduos, grupos e naçõesna busca dos mais diversificados interesses. Não é dito, todavia, que essa onímoda atividade se destine inexoravelmente àdesordem, nem tampouco que assista razão a Frosini quando,no estudo supracitado, afirma que, “em última análise, cada

46. No fundo, é esse o pensamento de CELSO LAFER em. A Ruptura Ibtali- tária e a Reconstituição dos Direitos Humanos, São Paulo, 1988.47. Sobre as assintonias do sistema e a possibilidade de uma “estruturasincrónica”, à luz do conceito de LASK sobre o processo jurídico no sentido deum ‘Valor para em geral”, v. TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, O Conceito de Sistema no Direito, cit., Conclusão, págs. 166 e segs.

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ordem é relativa a uma desordem mais vasta, que a contém”,com risco de converter-se em desordem quando mais se complicar nas relações entre os elementos que a compõem...

 Ante visão tão pessimista, penso que a história nos demonstra que, no mais das vezes, os mais violentos conflitos,gerados pela desordem, tendem a se compor, como é próprio doque se desenvolve no mundo dos valores e desvalores, ocorrendo o superamento destes, quando mais não seja por uma razãode subsistência ou sobrevivência. Quando tal composição nãoé possível, dá-se a ruptura, o fato revolucionário que põe termoà vigência de um ordenamento jurídico para substituí-lo poroutro, no qual ressurge, sob outro enfoque ou paradigma, todaa série de experiências sistemáticas que, em grandes linhas,procuramos captar.

Pois bem, na permanente luta contra a desordem, a qualé de per si dispersiva e subversiva, um dos instrumentos fundamentais de defesa da paz é a ordem jurídica, da qual oordenamento jurídico estatal é expressão mais marcante, dis-

tribuindo-se em campos ou áreas normativamente circunscritas segundo finalidades diversas e mutáveis, garantidas porordens de competência.

Em mais de uma oportunidade tenho procurado demonstrar a sem-razão dos que apresentam o ordenamento jurídicocomo um conjunto irremediavelmente assimétrico e distoantede normas, quando, na realidade, elas realizam o máximo de

equilíbrio compatível com a experiência individual e coletiva.Equilíbrio dinâmico, em incessante recomposição, mas equilíbrio que, no fundo, traduz a razão de ordem que preside o processo jurídico desde sua gênese, como expressão do ato mesmode pensar via de regra ordenadamente.

Seria redundante se, neste livro, viesse a repetir tudo oque escrevi sobre o assunto, de maneira mais minuciosa em O 

 Direito como Experiência  e, sinteticamente, em Lições Preliminares de Direito.  Da 21® edição desta obra extraio algunsconceitos que põem em realce as razões de unidade doordenamento jurídico, à luz das idéias de objetividade, positivi- dade e estatalidade.

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Só há ciência, digo eu, onde há “objetivação”, ou seja, realidades independentes da pessoa do observador e irredutíveisà sua subjetividade. Daí poder-se dizer que “objetivo” e “positi

vo” são termos que se implicam.Note-se que, quándo me refiro a modelos jurídicos, afirmoque eles se positivam e se objetivam. São, por outras palavras,elementos constitutivos do Direito Positivo ou Objetivo: vigeme têm eficácia, em certo tempo, como distintas realidades culturais, coordenadas em virtude de seu comum centro referencialde garantia, que é o mandamento constitucional.

Sem precisar invadir a seara da Ifeoria do Estado, pensoque o Estado é a organização do poder, ou, por outras palavras,que é a sociedade ou a Nação organizada numa unidade depoder, com a distribuição originária e congruente das esferasde competência segundo campos distintos de autoridade.

Ora, o Direito, que vigora e tem eficácia em um território,como, por exemplo, no território brasileiro, é declarado ou re

conhecido pelo Estado, através de suas próprias fontes, ou resulta das fontes dos demais ordenamentos, sem conflito comas fontes estatais.

Desse modo, soberania e positividade do Direito são doisconceitos que se exigem reciprocamente: soberano  diz-se dopoder que, em última instância, põe ou reconhece o  Direito 

 Positivo; Direito Positivo é, por excelência, aquele que tem, paragaranti-lo, o poder soberano do Estado.

Desfazendo equívocos, ligados a superadas concepções desoberania, declaro que esta não é senão o poder originário de declarar, em última instância, a positividade do Direito, comoexponho em meu livro Teoria do Direito e do Estado.

Essas considerações, aparentemente marginais, vão permitir-nos compreender que o Direito Objetivo, como conjuntode normas e modelos jurídicos - exatamente porque se destinaa ter vigência e eficácia na universalidade de um território -,constitui, no seu todo, um sistema global, que através de umtermo italiano já integrado em nossa língua, se denominaordenamento jurídico.

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Há um “ordenamento jurídico” em cada país, formado pelas diversas fontes de direito, sob a égide do Estado, mas comosistema aberto e polivalente, subordinados ao qual formam-se

“ordenamentos menores”, com menor grau de positividade48.É essa referibilidade ao Estado como garantia global dosistema, na forma da Constituição, que assegura a unidade e anecessária coerência do ordenamento jurídico, pois, conformecélebre dito de Gerber, cada Estado é uma “unidade comum dequerer”. Daí ter afirmado que o Estado é o centro geométricoda positividade do Direito, discordando, assim, daqueles que

romanticamente dispensam o poder político, optando por tramas de mera socialidade. Por aí se vê que a unidade dinâmicado ordenamento jurídico repousa em dois pressupostos, um decaráter geral (o natural sentido de ordem inerente ao ato depensar) e outro de caráter particular, que é a comum intencionalidade de respeito à ordem jurídica pelos sujeitos de direitoque dela haurem e nela alicerçam seu próprio status.

Como se vê, no concernente ao delicado problema da “unidade do ordenamento jurídico”, longe de proclamar-lhe a ambigüidade, somente em virtude da multiplicidade empiricamente contrastante das "ordens de interesses privados e coletivos” que nele atuam, reconheço que mister é que tais conflitos sejam superados para preservação do sistema, como resultado dos dois imperativos supralembrados. Não há, em suma,

necessidade de recorrer a uma norma fundamental de globalreferibilidade (conjeturada de diversos modos, como se deu naevolução do pensamento de.Kelsen) porquanto é na naturezado próprio ser pensante que devemos buscar a razão da ordem,mesmo porque, repito, não seria possível a idéia de norma ou regra jurídica se a conduta humana de per si não fosse regulável. Como não me canso de sublinhar, se não houvesse na socie

dade tendências ou inclinações mais ou menos estáveis, condicionantes de modos de ser e de agir com relativa “regularidade” ou “normalidade”, não teria sido sequer possível a forma

48. Lições Preliminares de Direito, cit., págs. 188 e segs.

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ção do Direito, a um só tempo como experiência e como conceito, processo axiológico-fatual e ciência normativa.

Poder-se-á julgar que seja puramente acadêmico, isto é,

sem conseqüências práticas, o problema da unidade do ordenamento jurídico, mas assim não é. Quando se nega a consistência ou coexistência lógico-axiológica da ordem jurídica positiva, está-se negando, concomitantemente, a possibilidade de

 princípios gerais de direito, que, não obstante diversas configurações, sejam aplicáveis à totalidade do ordenamento. Emconexão com esses princípios de mais amplo espectro, há prin

cípios gerais de direito por assim dizer subordinados, adstritosa cada sistema do macrossistema (princípios gerais do DireitoCivil, do Direito Tributário etc.), podendo-se mesmo falar, numaprogressão cada vez mais especificadora, em princípios do Direito de Família ou da propriedade privada. Eis aí uma tramacomplexa que, no seu todo, revela a admirável riqueza das “modelagens” jurídicas expressas em não menos admirável lingua

 gem, uma das primeiras linguagens científicas constituídas nodesenrolar da história das ciências.Não creio seja necessário demonstrar a essencialidade dos

 princípios gerais de direito,  não apenas, como diretrizeshermenêuticas superiores no plano do ordenamento, mas também nas hipóteses inevitáveis de lacunas nos subsistemas quedisciplinam as diversas “faixas de normatividade” que com

põem a ordem jurídica. Ora, é tão-somente o pressuposto lógi-co-axiológico da unidade do sistema que autoriza, através dorecurso aos princípios gerais de direito, a introdução no sistema normativo vigente de uma norma que resolva e supere afalta de preceito disciplinador de espécie não previsto pelo legislador.

O mesmo se diga com referência à aplicação da analogia, 

a qual pressupõe a unidade do sistema para lançar-se mão decritérios considerados plausíveis in casu, e plausíveis porqueassemelháveis no conjunto unitário das referibilidades e incidências normativas.

Pelas mesmas razões, é a unidade lógico-axiológica doordenamento que permite distinguir nele normas primárias e

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secundárias distintas umas das outras, quer em razão da sanção, à qual é dada maior relevância por Hans Kelsen, quer emrazão de seu conteúdo, de início vago e indistinto e, ao depois,

definido e garantido, como se dá com as normas de reconhecimento a que se refere Herbert Hart49.Mais importante, a meu ver, é a distinção entre normas

de organização ou institucionais e normas de conduta, distinção esta que faço - o que nem sempre tem sido bem-compreen-dido - atendendo à relação entre as regras que criam entes ouestabelecem ordens de competência e as normas que discipli

nam o comportamento dos obrigados no âmbito ou em conseqüência do que foi previamente instituído.É que, no intrincado quadro normativo do ordenamento

 jurídico, normas há que não somente existem em função deuma multiplicidade de fins correlatos, como também adquirem mais estabilidade, ordenando-se como institutos e instituições; enquanto que outras normas têm  função instrumental, isto é, regem distintas formas de conduta no seio de cadainstituição, ou como decorrência desta, sendo tipificadas diversas “situações jurídicas” que abrangem direitos subjetivos,poderes, faculdades etc.

Desse modo, o macrossistema do ordenamento jurídicocompreende instituições, isto é, corpos normativos estáveis queordenam as atividades sociais em razão de uma idéia diretorabásica, como, por exemplo, se dá com a família, a sociedade de

fins econômicos, a propriedade privada etc., bem como diversificadas espécies de normas, com vários graus de incidência,que vão desde as especificações de cada instituição até conjuntos unitários de poderes-deveres, derivados, dos quais os contratos são exemplos primordiais. Impossível seria enumerar,neste passo, e muito menos descrever todos os elementos articulados no ordenamento jurídico, criados pela lei e pelas de-

49. Para um confronto entre as distinções de KELSEN e as de HART, vide, de NORBERTO BOBBIO, o ensaio “Norme primarie e norme secondarie”,inserto emStudi per una Tkoria Generale dei Diritto, Turim, 1970, págs. 175e segs.

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mais fontes do direito. Como sintetizar, em verdade, em poucas palavras, esse poderoso universo normativo que se escalonadesde a cúpula dos princípios até códigos, leis, regulamentos,

sentenças e contratos, cada um deles numa crescente tipificaçãoque se projeta através de crescente adequação às anfractuosidades da experiência jurídica? Como, em suma, dar, num relance, a idéia desse prodigioso mundo de regras que se projetadas culminâncias dos tratados internacionais e das constituições até simples instruções e ordens de serviço, num emaranhado de artigos, seções, parágrafos, incisos e alíneas?

E claro que, num sistema dessa natureza, ninguém de bomsenso sonhará com a linear coerência dos sistemas matemáticos, mas ninguém poderá concebê-lo desarticulado e contraditório sob pena de periclitar o próprio destino do homem. Nãoconcordo, pois, com os que concebem o ordenamento jurídicocomo um precário refúgio, admitido tão-somente por ser a maisatenuada expressão da desordem geral. Penso, ao contrário,que a unidade garantida do ordenamento jurídico é um imperativo de sobrevivência social, razão pela qual a apresento comoum postulado da razão ético-jurídica, válido ainda que não demonstrado.

De mais a mais, essa complexa e diversificada sucessãode figuras e modelos não surge nem se desenvolve por acaso,mas sim em razão de causas ou motivos subjacentes, ordenando-se de modo temporal, funcional e hierárquico, refletindo o

sentido de ordem que, como vimos, é imanente ao próprio ato de pensar.  Não há dúvida que não há como idealizar oordenamento como uma estrutura de tipo matemático, pois asua é antes uma configuração na qual se situam corposnormativos distintos que correm paralelos uns aos outros, àsvezes se implicando e outras se entrecruzando, todos porém seinfluindo reciprocamente, por se acharem todos subordinados

às mesmas razões finais de validade, a que já fiz referência,seja no plano interno, seja no plano internacional. Além disso, no seio de ordenamento, há normas sobre nor

mas, cuja importância Bobbio justamente sublinha, como seriam as que compõem a Lei de Introdução ao Código Civil, por

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sinal que aplicáveis, mutatis mutandis, a todo o ordenamento jurídico brasileiro, o que vem confirmar a unidade lógico-axiológica de seus preceitos.

É à luz desse complexo de conotações factuais, axiológicase normativas que se pode reconhecer o dever e a legitimidadede expelir do macromodelo do ordenamento jurídico todas asnormas que lhe sejam estranhas ou adversas, mas este é umassunto que já nos conduz aos problemas hermenêuticos tratados no Capítulo seguinte.

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CAPÍTULO X

Modelos Hermenêuticosdo Direito

Modelos preseritivos e modelos hermenêuticos

Estabelecida a noção geral de ordenamento jurídico comoo macromodelo normativo que circunscreve e regula a experiência jurídica direta ou indiretamente relacionada com o Estado,embora não coincidente com este, cabe ao jurista não só interpretá-lo como compreendê-lo mediante modelos científicos oudoutrinários.

Desde a formação do Direito Moderno, sobretudo a partirde Savigny, tornou-se corrente a distinção entre o Direito como“sistema de normas” (e, acrescento eu, para prevenir-nos contra o formalismo racionalista) e de “situações normadas”, deum lado, e, do outro, o Direito como doutrina ou forma de conhecimento daquele sistema: é o que o mesmo Savigny denominava Direito Científico.

 Antes de mais nada, cumpre lembrar que essa distinção

deve ser entendida cum grano salis, isto é, com o devido critério e medida, porquanto já tive oportunidade de salientar aíntima implicação que existe entre a experiência social e o

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conjunto de conceitos teóricos mediante os quais é ela captadae criadoramente objetivada em estruturas cognoscitivas.

É claro, pois, que não se estrutura nem se concebe o orde

namento jurídico sem se lançar mão de elementos teóricos, tala correlação que existe, notadamente no mundo cultural, entre a realidade subjacente e seus símbolos expressionais.

O fato é, porém, que uma vez objetivado o ordenamento jurídico, graças ao poder nomotético e ordenador do espírito,não se deve esquecer que ele surge como base e instrumento deação ou de conduta, tornando-se, por conseguinte, necessário

recebê-lo e interpretá-lo para inferir suas conseqüências práticas, na linha ou projeção de cada fonte de direito.Cada norma, elemento nuclear do ordenamento (e o que

se diz dela pode ser dito dele) põe-se como uma diretrizprescritiva de organização ou de conduta, como algo, pois, deválido e objetivamente eficaz, constituindo como que uma plataforma, a partir do qual os sujeitos de direito podem formar

suas pretensões e formular suas exigências. O direito, em sentido subjetivo, pressupõe, como é notório, o direito objetivo, oqual, concomitantemente, circunscreve e assegura a seu titular determinado campo de pretensões e exigibilidades, dada anatureza bilateral-atributiva das normas jurídicas, comolongamente exponho em minha Filosofia do Direito.

Pois bem, em virtude de ser posta pela norma jurídica

uma “situação jurídica”, as diretrizes por ela postas eestabelecidas adquirem um sentido dogmático, na acepção queeste adjetivo possui na Ciência Jurídica. Se em Teologia dogmaé uma assertiva insuscetível de discussão, nos domínios doDireito dogma é uma prescrição que, salvo vício de nulidade,não pode, in limine, deixar de ser considerada imperativa. Daía denominação de Dogmática Jurídica dada à Ciência do Di

reito no momento culminante em que ela elabora juízos a partir do sistema de normas em vigor.Pelo que foi exposto nos Capítulos anteriores, já ficamos

sabendo que essas normas prescritivas somente podem seremanadas pelas fontes de direito, e, como tais, são dotadas de

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força cogente, o que corresponde à característica de coercibi-lidade do direito.

Ora, a qualificação, por mim feita, da norma jurídica comouma proposição “bilateral atributiva”, considerando-a, outros-sim, “coercível”, são enunciados que não possuem força obrigatória. Trata-se de afirmações de ordem teórica ou científica,sendo, como tais, suscetíveis de refutação. Elas não possuem,por conseguinte, caráter prescritivo, como, ao contrário, é próprio das regras jurídicas, tanto assim que não faltam juristasque pretendem conceber o Direito desprovido de coação, e atémesmo à margem do conceito de bilateralidade.

Cumpre, por conseguinte, ter presente que, a propósito dosentido ou valor das normas jurídicas vigentes, são formuladas pelos juristas interpretações de natureza doutrinária oucientífica, destituídas de força cogente, limitando-se sua função a dizer o que os modelos jurídicos significam. Como variamos critérios e paradigmas interpretativos, as proposições e modelos hermenêuticos - que no seu todo compõem o corpo da

doutrina, ou o Direito Científico, conforme terminologia deSavigny —dependem da posição de cada exegeta, os quais sedistribuem em distintas teorias ou correntes de pensamento.

É por essa razão, pela não-prescritibilidade dos modeloshermenêuticos, que não considero a doutrina uma das fontesdo direito, o que não lhes diminui, absolutamente, a relevância, visto como é tarefa da doutrina esclarecer a significaçãodas fontes de direito, para saber, por exemplo, se elas todas se

reduzem, em última análise, à lei; se elas existem em numerus clausus; se entre elas há uma hierarquia etc.

Consoante já observei, a doutrina exerce uma função devanguarda, pois, conforme será logo mais examinado, além deela dizer o que as normas jurídicas efetivamente significam oupassam a significar ao longo de sua aplicação no tempo, cabe-lhe enunciar os princípios gerais que presidem a vigência e

eficácia das normas jurídicas, bem como conceber os modeloshermenêuticos destinados a preencher as lacunas do sistemanormativo, modelos esses convertidos em modelos prescritivosgraças ao poder constitucionalmente conferido ao juiz.

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Pois bem, os modelos de direito de caráter hermenêutico,se têm em comum um papel científico-doutrinário, distribuem-se, todavia, em diversos tipos, de conformidade com que pas

samos a verificar.

Modelos hermenêuticos do Direito de caráter metodológico

Observe-se, desde logo, que nem tudo no plano hermenêuti

co da experiência jurídica se situa na categoria de “modelohermenêutico”, pois a interpretação do Direito pode ser feitatambém em virtude de princípios e enunciados que não chegam a se revestir de característicos estruturais, sem os quaisnão há que falar em modelo.

 Além disso, que nem todos os processos metodológicos deinvestigação do Direito Objetivo constituem “modelos jurídico-hermenêuticos”, propriamente ditos, porquanto, por exemplo,

os métodos dedutivos e analógicos, de que o jurista se servepara compreensão das normas jurídicas, não diferem dos seguidos pelos demais cientistas no estudo da experiência emgeral.

Não há, em suma, um método de inferência dedutiva tipicamente jurídico tão-somente pelo fato de versar sobre matéria jurídica: sob esse prisma, a Epistemología jurídica coincide

com o esclarecido e exposto na Epistemología como teoria geral dos processos de conhecimento.Isto não obstante, há normas ou diretrizes de interpreta

ção que se constituem especificamente em razão do Direito,isto é, que se configuram como decorrência de se inserirem nosquadros do ordenamento jurídico, o qual condiciona a atitude eo processo de conhecimento do pesquisador, por sinal que emcorrelação com a estrutura histórico-cultural na qual vigora osistema e atua quem o estuda.

É dessa correlação essencial entre ato hermenêutico e estrutura do ordenamento que, em um estudo realizado significativamente em homenagem ao saudoso amigo Luis Recaséns

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Siches, em 1974, ousei falar em "hermenêutica jurídica estrutural”m.

Passo a reportar-me, com naturais atualizações, à parte

essencial desse escrito, pois dificilmente poderia expressar-memelhor. Nele me contraponho a duas orientações metodológicas,a meu ver inadmissíveis: uma voltada apenas para o momentogenético e originário das fontes do direito; uma outra empenhada em apresentar a norma jurídica tão-somente em funçãode fatos e valores supervenientes.

Compreendido o ordenamento jurídico, digo eu, como uma

totalidade orgânica em perene dinamismo, e reconhecido, sobretudo, à luz da filosofia fenomenológica, que todo produtohistórico-cultural alberga um motivo e um sentido queconsubstanciam uma intencionalidade,  cumpre reconhecer oabsurdo de uma opção entre dois sentidos que são complementares: o propósito inicial da lei deve ser analisado em necessária correlação com a sua possível adequação a valores e fatossupervenientes.

Destarte, alterada a visão da experiência normativa, quedeixou de corresponder a mera estrutura lógico-formal,  paraser entendida em termos retrospectivos de fontes e prospectivos de modelos, isto é, em razão de uma estrutura histórica concreta, o problema hermenêutico deve passar a ser resolvido,partindo-se do pressuposto de que toda norma jurídica é:

a) um modelo operacional que tipifica uma ordem de com

petência, ou disciplina uma classe de comportamentospossíveis;

b) devendo ser interpretado no conjunto do ordenamento jurídico;

c) a partir dos fatos e valores que, originariamente, o constituíram.

Cumpre ponderar, outrossim, que, à luz dessa compreen

são globalizante ou estrutural, deve o jurista procurar atender

50. Cf. o meu estudo “Para uma hermenêutica jurídica estrutural”, depoisinserto emEstudos de Filosofia e Ciência do Direito, Saraiva, 1978, págs. 72e segs.

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também às mutações e imprevistos da vida social, utilizando-se da elasticidade, inerente a todo modelo jurídico, para a suaadequada atualização, cabendo-se, outrossim, não abandonar

os valores essenciais de segurança e de certeza, que foram postos em risco pelos adeptos da Escola de Direito Livre, e, atualmente, o são por certos defensores da chamada Justiça Alternativa.

Na realidade, o processo hermenêutico, muito emboraadquira maior raio de ação, inclusive pelo reconhecimento dacriatividade do intérprete nos casos de lacunas no sistema, tema balizá-lo a estrutura ou o contexto das normas in actu. Por

mais que a interpretação possa tirar partido da elasticidade normativa, preenchendo os vazios inevitáveis do sistema, deveela sempre manter compatibilidade lógica e ética com oordenamento jurídico positivo, excluída a possibilidade, verbi 

 gratia,  de recusar-se eficácia a uma regra de Direito Positivoa pretexto de colisão com ditames de uma justiça natural ou deuma pesquisa sociológica. Não se pode, em suma, recusar efi

cácia às estruturas normativas objetivadas no processo concreto da história, sob pena de periclitar o valor da certeza jurídica, ao sabor de interpretações que refletem, não raro, posições subjetivas variáveis e incertas.

Observe-se que a compreensão estrutural do processohermenêutico é, no fundo, corolário de novo conceito de racional, quer se fale em Lógica do razoável, à maneira de Recaséns

Siches, Luigi Bagolini ou Chaim Perelman, quer se considere,consoante me parece mais plausível, que o razoável é uma dasformas do racional, podendo ser melhor compreendido comoconjetural, tal como exponho em meu livro Verdade e Conjetura.

Não se trata de voltar, evidentemente, à razão histórica absoluta, predeterminadamente englobante, nos estilos da Filosofia hegeliana, mas sim de admitir que o mundo histórico éuma totalidade de sentido, cujas objetivações intencionais, ou

cujas intencionalidades objetivadas continuam, porém, sempre na dependência das fontes individuaisoutorgadoras de sentido,  as quais continuadamente renovam o quadro das criações humanas. Assim sendo, a razão histórica, de que falo, é

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uma razão problemática e conjetural: ao historicismo lógico- unitário  de Hegel sobrevêm um historicismo axiológico-plu- ral,  cuja unidade dinâmica é dada pela referência à fonte

projetante ou instituidora de valores que é a pessoa humana.Nesse contexto, a tarefa interpretativa deixa de ser um jogo formal de esquemas e figuras, para tornar-se um empenho fundamentalmente ético, graças aos “modelos hermenêuticos” exigidos pela Ciência Jurídica em sua tarefa de modelagem ética da experiência.

É a razão pela qual peço vênia para rematar estas páginas,

recordando as seguintes diretrizes que, a meu ver, constituemnotas distintivas da que denomino interpretação estrutural:a) A interpretação das normas jurídicas tem sempre ca

ráter unitário, devendo suas diversas formas ser consideradas momentos necessários de uma unidade de com

 preensão (Unidade do processo hermenêutico).b) Tbda interpretação jurídica  é de natureza axiológica,

isto é, pressupõe a valoração objetivada nas proposições normativas (Natureza axiológica do ato interpretativo).

c)  Ibda interpretação jurídica dá-se necessariamente numcontexto, isto é, em função da estrutura global do ordenamento (Natureza integrada do ato interpretativo).

d) Nenhuma interpretação jurídica pode extrapolar a es

trutura objetiva resultante da significação unitária econgruente dos modelos jurídicos positivos (Limites ob

 jetivos do processo hermenêutico).e)  Tbda interpretação é condicionada pelas mutações his

tóricas do sistema, implicando tanto a intencionalidade originária do legislador quanto as exigências fáticas eaxiológicas supervenientes, numa compreensão global,

ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva (Natureza histórico-concreta do ato interpretativo).

 f)  A interpretação jurídica tem como pressuposto a recepção dos modelos jurídicos como entidades lógicas e axiológicas, isto é, válidos segundo exigências racionais,

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ainda que a sua gênese possa revelar a presença defatores alógicos (Natureza racional do ato interpretativo).

 g) A interpretação dos modelos jurídicos não pode obedecer a puros critérios da Lógica formal, nem se reduz auma análise lingüística, devendo desenvolver-se segundo exigências da razão histórica entendida como razãoproblemática ou conjetural (Problematicismo e razoabilidade do processo hermenêutico).

h) Sempre que for possível conciliá-lo com as normas superiores do ordenamento, deve preservar-se a existência do modelo jurídico (Natureza econômica do processo hermenêutico).

i)  Entre várias interpretações possíveis, optar por aquela que mais corresponde aos valores éticos da pessoa eda convivência social ( Destinação ética do processo interpretativo).

 j ) Compreensão da interpretação como elemento constitutivo da visão global do mundo e da vida, em cujascoordenadas se situa o quadro normativo  objeto daexegese (Globalidade de sentido do processo hermenêutico).

Eis aí dez “modelos hermenêuticos do Direito” de carátermetodológico, que não se compreendeu senão em função e emrazão da experiência jurídica.

Não me parece certo afirmar que a Hermenêutica Jurídica Estrutural, assente nessas diretrizes, corresponda à posição do método histórico-evolutivo que teve em Saleilles e emFerrara os seus máximos expoentes. Não há dúvida que essavisão histórica do Direito, importando na atualização progressiva das regras jurídicas, exerceu benéfica influência, reagindo, de um lado, contra o formalismo estático da Escola de

Exegese, e demonstrando, de outro, os exageros e os equívocosda Escola do Direito Livre, mas seus mentores não podiamlibertar-se da acanhada visão social e histórica dominante emseu tempo, sem os amplos horizontes propiciados pela compreensão do Direito em termos de experiência cultural.

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 Além disso, carecia o referido método de um paradigmaessencial, relativo à interpretação de toda norma jurídica comoum momento concretamente integrado na totalidade de signi

ficações do ordenamento jurídico, atitude gnoseológica somente possível com a nova compreensão da Sociologia e da Antropologia com base nos conceitos de estrutura e modelo. Maiscerto é, pois, reconhecer que o método histórico-evolutivo foium ponto de partida para o atual conhecimento histórico-axiológico da realidade jurídica, cuja visão integral somentese tornou possível quando a Ciência do Direito se desvinculou

da imperante aceitação da lei como a única expressão do sistema normativo. O novo paradigma normativo, que se deve aKelsen, representou uma alteração de 180° no conhecimentodo Direito e nos métodos da Hermenêutica Jurídica.

Modelos hermenêuticos de tipo axiológico

Se, como tantas vezes tenho asseverado, o valor é sempreum elemento constitutivo da experiência jurídica, poderá parecer incabível destacar uma categoria especial de modeloshermenêuticos singularizados por sua tipificação axiológica.Mais uma vez, tudo depende, porém, da maneira de situar-se oproblema, pois, se todo modelo jurídico é um ente axiológico,não é dito que em todos eles seja igual a densidade valorativa,

sendo certo, outrossim, que, em determinados casos, prevaleceprimordialmente o seu aspecto estimativo.

Pois bem, para essas normas ou modelos jurídicos, nosquais o valor se põe prioritariamente como fundamento da vigência e da eficácia, mister é que o modelo hermenêutico adquira também um predominante sentido axiológico. Poucosexemplos bastarão para demonstrá-lo.

 Ao analisarmos, no Capítulo anterior, a questão da unidade coerente do ordenamento jurídico, a conclusão a que chegamos foi a de que, mesmo na hipótese de não poder ser elademonstrada, deveria ser admitida como um postulado da razão prático-jurídica. Nessa asserção, todavia, ficaram suben-

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tendidos alguns problèmas basilares, exatamente porque elessomente poderiam ser melhor compreendidos em nível predominantemente axiológico, como agora pretendo fazê-lo.

É que esse postulado da razão prático-j uri dica legitimase com base na necessidade da sobrevivência das comunidadesinterna e internacional, o que implica a existência de uma ordem jurídica isenta a final de contradições. Abem ver, a preservação das comunidades não é senão conseqüência daqueleque podemos considerar o modelo ético-jurídico supremo, queé o valor incondicionado da pessoa humana como valor-fonte 

de todos os valores.Em verdade, se cada homem vale como um ente intangí

vel, a idéia de associação universal entre iguais, livres de conflitos e de insanáveis contradições, põe-se imperativamente,no plano interno e no internacional. Dessarte, não pode deixarde ser postulado o imperativo de pacífica e ordenada convivência, sob pena de ter-se de admitir o absurdo da tese oposta, a

do não-reconhecimento da pessoa humana como valor-fonte daconvivência e da comum e irrenunciável sobrevivência.

Como se vê, é o princípio hermenêutico do absoluto primado da pessoa humana, só concebível em razão de igual valorconferido às demais pessoas - abstração feita de diferenças deraça, língua ou religião - , que legitima eticamente o postuladqsupra-referido quanto à concepção do ordenamento jurídico

como um macromodelo, no qual não pode deixar de haversuperamento de conflitos, ainda que se parta de premissas contraditórias.

Ora, na experiência jurídica são discerníveis tambémmodelos hermenêuticos de preponderante razão axiológica,como é o caso, por exemplo, daquele que proclama: “O que nãoé juridicamente proibido é juridicamente permitido”. Eis aí

uma asserção que subentende um modelo interpretativo quepoderia ser assim formulado: “Como a liberdade éconditio sine qua non de toda e qualquer experiência axiológica, a qual pressupõe sempre a alternativa de poder-se fazer ou deixar de fazer algo, quando o ordenamento jurídico não impede a prática

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de determinado ato, este deve ser considerado juridicamentepermitido”.

Da mesma forma, a norma protetora do direito adquirido,

que a Constituição consagra, não constitui uma prescriçãoimotivada do legislador, porquanto ela, a rigor, pressupõe aaceitação de um modelo hermenêutico da experiência jurídicanos seguintes termos: “Todo direito, que alguém adquira deconformidade com as disposições vigentes na época de sua aquisição, constitui um bem ou valor jurídico insuscetível de serdesconstituído em razão de mutações operadas posteriormente”51.

Bastam esses dois exemplos para ver-se como a experiência jurídica é rica de princípios e modelos hermenêuticos que,corporificados ou não em modelos jurídicos, dão-nos o embasamento ético do Direito Positivo. Em geral, tais enunciadoshermenêuticos ligam-se, direta ou indiretamente, à existênciade determinados valores, como o da pessoa humana, da liberdade, da igualdade, da solidariedade, e, já agora, o do respeito

aos bens da natureza (valor ecológico), valores esses que podemos considerar invariantes axiológicas, as quais vão adquirindo, ao longo do processo histórico, tamanha intangibilidade quechegam a parecer inatas52.

Pelas mesmas razões podemos admitir a existência deinvariantes axiológico-jurídicas, tais como as relativas aos “direitos fundamentais do homem”, em função dos quais são cons

tituídos modelos hermenêuticos que disciplinam soberanamente a convivência social, sendo-lhes atribuída uma hierarquiavalorativa em relação aos demais.

51. Alegar-se-á que uma nova Constituição, ou uma norma constitucionalrevista, pode privar os cidadãos de determinadas regalias adquiridas, como,por exemplo, as dos funcionários que percebem vencimentos excessivos (Constituição, Art. 37, XI), mas, nesse caso excepcional, o legislador constituinte,

no uso de suas prerrogativas soberanas, faz prevalecer, in casu, o valor deigualdade ou isonomia. Há sempre um enfoque valorativo como fundamentoda correção de um direito irregularmente adquirido.52. Nesse sentido, vide meu estudo sobre “Invariantes axiológicas”, publicado na Revista Brasileira de Filosofia, fase. 167, 1992, págs. 221 e segs.

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Não se pense, todavia, que os modelos jurídicos dotadosde prevalecente sentido axiológico planem apenas nas maisaltas instâncias da vida do Direito, porque, em todos os níveis

do ordenamento jurídico, deparamo-nos com a necessidade derecorrer a regras e modelos de natureza hermenêutica pararesolver questões de ordem prática, quer em razão da obscuridade das normas de direito, quer em virtude de antinomiasentre elas, ou no caso especial de lacuna ou omissão da lei,questão que será melhor examinada na secção seguinte.

 Aliás, quando dizemos que a lei deve ser interpretada se

gundo “seu espírito”, e não apenas por aquilo que ela verbalmente enuncia, não estamos afirmando outra coisa senão queo significado real dos modelos jurídicos é o resultado de umprocesso hermenêutico, consubstanciado em proposições emodelos capazes de revelar-nos o valor ou a razão axiológicado que é preceituado.

Refiro-me ao papel da Hermenêutica Jurídica nas hipóte

ses de obscuridade ou antinomia de normas, mas o recurso aosmodelos hermenêuticos não raro se impõe para um "balanceamento de valores” entre preceitos legais ou até mesmo entre os incisos de uma mesma disposição legal, como se dá, porexemplo, quando da aplicação do Art. 170 da Constituição de1988. Este mandamento declara, concomitantemente, que sãoprincípios gerais da ordem econômica a livre concorrência e a

defesa do consumidor. Pois bem, freqüentemente o direito queo empresário tem de livremente produzir e vender entra emconflito com o direito do consumidor ao justo preço das mercadorias, a salvo de lucros abusivos, de tal modo que cabe aoadministrador e sobretudo ao juiz realizar um “balanceamentode valores in concreto”, a fim de que a norma constitucionalpossa ser aplicada com eqüidade e sem contradição.

 Além do mais, a relevância do elemento axiológico acha-se consagrada em uma série de brocardos, cujo valor não deveser desprezado só pelo fato de vários deles se terem petrificado, parecendo verdadeiros fósseis da experiência jurídica.

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Carlos Maximiliano, com o seu habitual equilíbrio, se condena grande número de parêmias que por largo tempo dominaram a praxe jurídica, emperrando o progresso do Direito,

não deixa de reconhecer a atualidade de algumas delas53. São,geralmente, adágios de conteúdo predominantemente axio-lógico, como, por exemplo, os seguintes: ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio (preservação da coerência lógica e da isonomiado sistema); non debet cui plus licet, quod minus est non licere (mais um exemplo do valor da liberdade como pressuposto daatividade lícita); poenalia sunt restringenda  (ainda uma con

seqüência do valor da liberdade, que não pode ser restringidapor sanções penais genéricas, ou melhor, sem tipicidade, mesmo porque outro adágio proclama: in dubio pro libertate);minime sunt mutanda, quae interpretationem certam semper habuerunt  (presunção do acerto do juízo de valor formuladouniformemente durante dilatados anos).

Nenhum desses e de outros adágios, todavia, tem um va

lor absoluto, pois, como adverte Carlos Maximiliano com relação à última parêmia, nem sempre o tradicionalmente obedecido merece subsistir ante o advento de novos valores revelados pelo progresso jurídico, o que vem confirmar a dialeticidade axiológiea da experiência jurídica também, e notadamente, sobo prisma hermenêutico.

E essa dialeticidade de fundo axiológico que nos alertasobre o papel da Lógica Deôntica, da Semiótica ou da Informática Jurídicas no mundo do Direito. Ninguém de conhecimentos atualizados negará, a importância dessas duas formasde investigação para esclarecer-nos sobre a validade, o sentidoe o poder de comunicação dos modelos jurídicos, bem como sobre os respectivos liames; mas, por mais que possamos serelucidados do ponto de vista lógico, semiológico, comunicativoe operacional, jamais poderemos olvidar o sentido instrumental de tais estudos, que não dispensam mas antes exigem para-

53. Cf. CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica e Aplicação do Direito,  10®ed., Rio de Janeiro, págs. 241 e segs.

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digmas axiológicos, que representam, por assim dizer, a almavivificadora das normas jurídicas54.

Modelos hermenêuticos supletivos e complementares

Já declarei que a plenitude do ordenamento jurídico constitui um postulado da razão prático-jurídica, cuja legitimidade

procurei esclarecer. No Direito pátrio, esse postulado é expressamente consagrado pelo Art. 4ada Lei de Introdução ao Código Civil que estatui: “Quando á lei for omissa, o juiz decidirá ocaso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, o que é reiterado pelo Art. 126 do Código deProcesso Civil.

É óbvio que somente se pode falar em omissão ou lacuna quando se admite que algo deveria ter sido enunciado, e não ofoi, o que revela que, no espírito de nosso ordenamento jurídico, este deve ser concebido como um sistema desprovido de vazios normativos. Se não houvesse o pressuposto da unidade doordenamento, pelo menos in fíeri, isto é, de forma tendencial-mente sistemática, só caberia reconhecer a irrelevância jurídica do caso não legalmente previsto, cabendo ao juiz tão-somente decretar a carência da ação, não por não ter esta fundamen

to em leis, mas pelo motivo específico de não ter sido a hipótese em apreço objeto de disposição expressa.

54. Sobre estudos de Lógica e de Informática Jurídicas, lembro o Colóquiorealizado em Florença, promovido por MARIO LOSANO, pelo “ConsiglioNazionale delle Ricerche”, no corrente ano de 1994, conforme a relação dascomunicações organizada por C. BARGELLINI e S. BINAZZI sob o título “IIconvegno in breve - A glance at the .Conference”, Florença, 1993, com importantes estudos, de autoria, entre outros, de LUIGI LOMBARDI

 VILLAURI, ANTONIO CAMMELLI, JOOS A. BREUKER, NEWTON A.DA COSTA e ROBERTO J. VERNENGO.

Quanto aos riscos das teorias que fazem abstração do conteúdo histórico-axiológico do Direito, vide NELSON SALDANHA, Da Teologia à Metodologia,Belo Horizonte, 1993, e Ordem e Hermenêutica, Rio de Janeiro, 1992.

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Por ser, ao contrário, pressuposta a possibilidade de en-contrar-se sempre uma solução para todo e qualquer caso, a leidetermina que o juiz não se abstenha de sentenciar a pretexto

de obscuridade ou omissão, mas antes deve procurar a soluçãoadequada, recorrendo à analogia, ao costume e aos princípiosgerais de direito. Cumpre-lhe, por conseguinte, no silêncio ouausência de um modelo jurídico tipicamente adequado à

 fattispecie, construir um modelo hermenêutico. Como o juiz temcompetência e poder para decidir, e sua decisão obriga as partes, o que surge, a bem ver, nesse contexto, é um modelo jurídico hermenêutico, como conteúdo da fonte jurisdicional.

 Analisemos o que se contém no lembrado Art. 4a, o qual, deinício, se refere à analogia, que tanto pode ser analogia legis como analogia iuris. A complementação do ordenamento jurídico mediante recurso a uma outra disposição legal análoga,com base em razões de semelhança ou identidade de fins (ubi eadem ratio, íbi eadern dispositió), é, a meu ver, sinal de que oDireito pátrio acolhe e consagra a tese da plenitude sistemática

do macromodelo do ordenamento. Parece-me, com efeito, que ainvocação da norma análoga só tem sentido a partir do reconhecimento da unidade lógico-axiológica do sistema global no qualaquela norma se insere. Sem esse pressuposto, a aplicação danorma análoga não teria legitimidade, por ser aleatória eatomísticamente invocada. Sendo ela, ao contrário, um elemento ou elo do ordenamento, passamos a estar perante umprocesso de integração de seus elementos constitutivos. Dá-se,assim, uma auto-integração “interna corporis”  do sistema.

O mesmo se diga quanto.ao recurso aos usos e costumespara superar as omissões da lei. Por sinal que essa referênciaaos costumes só se explica pelo inveterado apego aos modeloslegais, pois as normas consuetudinárias são também modelos

 jurídicos, de tal modo que, se elas disciplinam o assunto empauta, não há que falar em lacuna do ordenamento.

 A invocação da regra costumeira é mais uma forma deauto-integração do sistema geral, o que demonstra que este,na visão do legislador, já contém meios de sanar omissões, dadaa complementaridade das fontes do direito. Quando, porém,

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estas não contenham normas ou modelos adequados à espécie,não há outro remédio senão recorrer a princípios gerais.

 A esta altura, põe-se um problema que nem sempre tem

merecido a atenção dos tratadistas. É que deve haver uma ordem preferencial no que tange ao emprego de princípios gerais, os quais podem tanto ser pertinentes ao ordenamento jurídico pátrio como resultar do Direito Comparado, isto é, deum confronto entre os princípios gerais que presidem o nosso eos ordenamentos alienígenas.

Ora, o recurso às idéias gerais diretoras de macromodelos

 jurídicos de outros países só pode ocorrer em duas hipóteses: oupara reforço da interpretação dada a modelos jurídicos de nossosistema, em virtude da coincidência com o pensado alhures emcasos iguais ou análogos (casos em que o Direito Comparadoatua como modelo hermenêutico); ou, então, para preencher lacuna de nosso ordenamento, hipótese em que o Direito Comparado desempenha função deheterointegração de nosso sistema.

Sou de opinião que essa segunda hipótese de heteroin-

tegração só pode ser admitida quando impossível realizá-lagraças aos princípios gerais de nosso próprio ordenamento.Quando, em suma, há antinomia entre os nossos e os princípiosgerais vigentes em macromodelos estrangeiros, cabe a primazia àqueles, o que nem sempre tem sido obedecido por juristasque sistematicamente se encantam com doutrinas expostasalhures. Não se trata, neste ponto, de preconceito nacionalis

ta, mas sim de uma ordem de preferência hermenêutica queresulta do fato de estarmos preliminarmente subordinados àsdiretrizes que integram o nosso Direito Positivo como expressão jurídica de nossa soberania política.

Quanto à analogia iuris,  como processo da integraçãonormativa, cabe-me ponderar que, em última análise, ela seconfunde com os princípios gerais de direito, primeiro no planodo Direito pátrio, e, em seguida, sob o enfoque do Direito Comparado. Não há que pensar em analogia iuris como um tertium 

 genus entre a analogia legis e os princípios gerais de direito55.

55. Sobre os conceitos deanalogia legis eanalogia iuris, v. MIGUEL REALE,Lições Preliminares de Direito, cit., págs. 292-294.

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Importante é ressaltar a natureza da decisão mediante aqual, verificada a omissão da lei, o juiz procede à integração doordenamento jurídico. E ela, fora de dúvida, um ato compará

vel ao do legislador, razão pela qual, com muito acerto, o Art.114 do revogado Código de Processo Civil, de 18 de setembrode 1939, assim dispunha:

“Quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador”.

Infelizmente, esse corajoso preceito foi substituído pelodo Art. 127 do atual Código de Processo Civil, que, ambigua

mente, declara:“O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos

em lei”.

Nada mais temeroso e fora da realidade do que esse mandamento, pois, a todo instante, o juiz é chamado a decidir poreqüidade, sobretudo quando - conforme vimos —as disposiçõeslegais se revelam antinómicas, ou omissas, e o julgador devesuprir tais defeitos mediante a criação de modelos hermenêuticos que superem as antinomias, ou, então, proceder a umbalanceamento de bens ou valores, para realização de justiçaconcreta.

Esclarecida essa questão, a meu ver de relevância, nãoposso deixar, neste passo, de fazer referência a uma nunca assaz louvada inovação do Direito pátrio, ao ser instituído, naConstituição de 1988, o mandado de injunção, graças ao IncisoLXXI de seu Art. 5S, nos seguintes termos:

“Conceder-se-á mandado de injunção sempre que afalta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidáda-nia”.

 Abstração feita da reduzida repercussão desse mandamento, em virtude da timidez daqueles que subordinam a sua aplicação à prévia existência de lei regulamentadora do preceitoconstitucional - tese que, data maxima venia,  não considero

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plausível não há dúvida que foi dado grande passo à frente,ao ser estabelecido que, em se tratando de direitos fundamentais, a inércia do Poder Legislativo pode ser suprida pela vigi

lância dos cidadãos e pela corajosa participação do Poder Judiciário, ao tomar conhecimento e acolher o mandado de injunçãoimpetrado, sempre que for possível e necessário revestir deforça judicial cogente o modelo hermenêutico elaborado emrazão de dispositivo fundamental da Carta Magna para proteção dos direitos e liberdades por ela assegurados.

Eis aí um exemplo magnífico de modelo hermenêutico que,uma vez recepcionado pela fonte jurisdicional, passa a suprira ausência de norma regulamentadora do texto constitucional.

Por aí se vê como a doutrina, que estou expondo nestelivro, vem estabelecer uma correlação essencial e sincrónicaentre o sistema jurídico e o sistema político vigente no País,satisfazendo, assim, ao imperativo que deve ser inerente a todaautêntica teoria do Direito, que - como saliento no Prefácio -  somente é plenamente válida se e quando se harmonizar com

os valores políticos. No caso do Brasil, tais valores são os próprios do Estado Democrático de Direito, consagrado pela Carta de 1988, o qual se caracteriza, entre outros princípios, pelaexistência e pelo desenvolvimento de um ordenamento jurídico que seja cada vez mais expressão dos interesses e direitosda comunidade, visualizada esta como um todo no qual liberdade e igualdade se implicam e reciprocamente se completam,

para “bem do povo e felicidade geral da nação”, como se costumava dizer em outros tempos.

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ÍNDICE DE AUTORES

 A  ADEODATO, João Maurício - 60 ANDRADE, Cristiano José de - 31 ARENDT, Hanna - 62

BBARGELLINI, C. -118BINAZZI -1 18BOBBIO, Norberto - 101BLOCH, Marc - 54BREUKER, Joss A. - 118

CAMMELLI, Antonio -118COELHO, Luiz Fernando - 60COSTA, Newton C. A. - 9, 39, 118CHEVALIER, Jacques - 60

DDÉCUGIS, Henri-5 4

EENGISCH, Karl - 33ESSER, José - 33

F

FERRAZ JR., Tércio Sampaio - 9, 59, 96FROSINI, Vittorio - 90

GGUSMÃO, Paulo Dourado de - 54

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HHABERMAS, Jürgen - 17, 78HARTMANN, Nicolai - 8HAURIOU, Maurice - 88

KKELSEN, Hans -1 4

L

LAFER, Celso - 96LARENZ, Karl - 33LASK, Emil - 9LUHMANN, Niklas - 62

MMAXIMILIANO, Carlos -117MOREIRA, João Baptista - 41

PPARESCE, E. - 22PUGA, Leila-3 9

RÁO, Vicente - 71ROMANO, Santi - 88

SSALDANHA, Nelson -118SCHELER, Max - 8

 V  VERNENGO, Roberto J. - 91,118 VILLAURI, Luigi Lombardi - 118

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Em 1969 recebeu da Presidência da República o convite

para atualizar o Código Civil brasileiro. Desde então passou

a coordenar a equipe de juristas elaboradora do projeto

que, em 2002, viria a ser promulgado como o novo Código

Civil brasileiro. No dizer de Miguel Reale, a recompensa foi

“a oportunidade de bem servirá comunidade nacional”.

Faleceu em 2006, aos noventa e cinco anos, deixando um

legado incomensurável e uma certeza inquestionável: a de

que o esplendor de sua cultura e honestidade intelectual se

eternizou por meio de suas ações e de suas obras.