Edição 302 - de 11 a 17 de dezembro de 2008

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No norte do Estado da Bahia, uma ação judicial está prestes a desabrigar cerca de 360 famílias de agricultores de comuni- dades de fundo de pasto que estão na terra há mais de 100 anos. Fundo de pasto é um modo tra- dicional de criar, viver e fazer, no qual a gestão da terra e de outros recur- sos naturais articula ter- renos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Pág. 6 Grilagem na Bahia São Paulo, de 11 a 17 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.br Ano 6 • Número 302 Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,50 ISSN 1978-5134 Estado brasileiro extermina juventude negra e pobre Culpado. Esse foi o veredicto dado pelo Tribunal Popular ao Estado brasileiro, responsável por uma sistemática política de extermínio da juventude negra e pobre do país. O evento, realizado entre os dias 4 e 6 de dezembro na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, julgou quatro casos considerados emblemáticos A atual crise econômica impõe à esquerda esforços de interpretação; não à toa, é o tema central das análises de conjuntura. Em exposi- ção durante a II Plenária Na- cional da Consulta Popular, o economista Luiz Filgueiras debateu a natureza da crise atual, o esgotamento do ne- oliberalismo e até que ponto ela vem acompanhada de uma crise política que pode pôr em xeque a hegemonia estadunidense. Pág. 8 Neoliberalismo não serve mais ao capitalismo, diz economista O drama vivido pela lí- der camponesa Carmen Parada no massacre de Pando, na Bolívia, em 11 de setembro de 2008, “foi como uma chuva de balas saindo de todos os lados”. A chacina deixou cerca de 20 mortos e ou- tros tantos desapareci- dos. O principal acusado pelo massacre é Leopol- do Fernández, à época, governador de Pando. A União de Nações Sul- americanas (Unasul), divulgou relatório afir- mando que o mas- sacre é um crime de lesa humanidade. Pág. 9 Obra-prima de Graciliano Ramos completa 70 anos Pág. 12 AFOGANDO EM NÚMEROS O governo dos EUA destinará às empresas GM, Ford e Chrysler uma ajuda de R$ 62,5 bilhões – quase 8 vezes o valor de R$ 8 bilhões que o governo federal e o do Estado de São Paulo destinaram juntos aos bancos de montadoras; a quantia supera em 2,5 milhões de vezes os R$ 25 mil arrecadados em poucas horas com a venda de camisas 9 do Corinthians quando o clube anunciou a contratação de Ronaldo Fenômeno. de violações de direitos humanos: operações militares no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, em 2007; sistema carcerário e execuções de jovens negros na Bahia; execuções na periferia de São Paulo, em maio de 2006; e a criminalização dos movimentos sindicais, de luta pela terra, pelos direitos indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul. Págs. 2, 4 e 5 Dois anos após a “Co- muna de Oaxaca”, segue vivo neste Estado do sul mexicano a mobiliza- ção popular, sindical e indígena que em 2006 formou a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). A pauta reivindicatória, que antes tinha como ponto central a destituição do governa- dor Ulisses Ruiz Ortiz, é mais ampla agora: liber- dade aos presos políticos, punição aos responsáveis pelas 27 mortes de 2006 e revogação do Acordo pela Qualidade da Educação. Pág. 10 Com as maiores monta- doras do mundo solicitando socorro ao governo dos EUA para não quebrar, a reali- dade das filiais não poderia ser diferente. Férias coleti- vas e ameaça de demissão. Diante desse quadro, meta- lúrgicos apontam que a ma- nutenção do emprego deve ser a principal bandeira em 2009. Pela primeira vez em 5 anos, a indústria automo- bilística apresentou uma re- dução de vendas e produção nos últimos meses. Pág. 7 Metalúrgicos já sentem os impactos da crise financeira Em Oaxaca, povo continua mobilizado Sobrevivente relata massacre na Bolívia Reprodução Luciney Martins VIDAS SECAS O presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária, Plinio Arruda Sampaio, que atuou como acusador na sessão final do julgamento Paulo Magalhães Filho Fernando Pilatos/Folha Imagem

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Uma visão popular do Brasil e do mundo uma ajuda de R$ 62,5 bilhões – quase 8 vezes o valor de R$ 8 bilhões que o governo federal e o do Estado de São Paulo AFOGANDO EM NÚMEROS O governo dos EUA destinará às empresas GM, Ford e Chrysler Uma visão popular do Brasil e do mundo São Paulo, de 11 a 17 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.brAno6•Número302 destinaram juntos aos bancos de montadoras; a quantia supera em contratação de Ronaldo Fenômeno. Fernando Pilatos/Folha Imagem Paulo Magalhães Filho Luciney Martins

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No norte do Estado da Bahia, uma ação judicial está prestes a desabrigar cerca de 360 famílias de agricultores de comuni-dades de fundo de pasto que estão na terra há mais de 100 anos. Fundo de pasto é um modo tra-dicional de criar, viver e fazer, no qual a gestão da terra e de outros recur-sos naturais articula ter-renos familiares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Pág. 6

Grilagem na Bahia

São Paulo, de 11 a 17 de dezembro de 2008 www.brasildefato.com.brAno 6 • Número 302

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,50

ISSN 1978-5134

Estado brasileiro exterminajuventude negra e pobreCulpado. Esse foi o veredicto dado pelo Tribunal Popular ao Estado brasileiro, responsável por uma sistemática política de extermínio da juventude negra e pobre do país. O evento, realizado entre os dias 4 e 6 de dezembro na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, julgou quatro casos considerados emblemáticos

A atual crise econômica impõe à esquerda esforços de interpretação; não à toa, é o tema central das análises de conjuntura. Em exposi-ção durante a II Plenária Na-cional da Consulta Popular, o economista Luiz Filgueiras debateu a natureza da crise atual, o esgotamento do ne-oliberalismo e até que ponto ela vem acompanhada de uma crise política que pode pôr em xeque a hegemonia estadunidense. Pág. 8

Neoliberalismonão serve maisao capitalismo,diz economistaO drama vivido pela lí-

der camponesa Carmen Parada no massacre de Pando, na Bolívia, em 11 de setembro de 2008, “foi como uma chuva de balas saindo de todos os lados”. A chacina deixou cerca de 20 mortos e ou-tros tantos desapareci-dos. O principal acusado pelo massacre é Leopol-do Fernández, à época, governador de Pando. A União de Nações Sul-americanas (Unasul), divulgou relatório afir-mando que o mas-sacre é um crime de lesa humanidade. Pág. 9

Obra-prima de Graciliano Ramos completa 70 anos Pág. 12

AFOGANDO EM NÚMEROSO governo dos EUA destinará às empresas GM, Ford e Chrysler

uma ajuda de R$ 62,5 bilhões – quase 8 vezes o valor de

R$ 8 bilhões que o governo federal e o do Estado de São Paulo

destinaram juntos aos bancos de montadoras; a quantia supera em

2,5 milhões de vezes os R$ 25 mil arrecadados em poucas horas

com a venda de camisas 9 do Corinthians quando o clube anunciou a

contratação de Ronaldo Fenômeno.

de violações de direitos humanos: operações militares no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, em 2007; sistema carcerário e execuções de jovens negros na Bahia; execuções na periferia de São Paulo, em maio de 2006; e a criminalização dos movimentos sindicais, de luta pela terra, pelos direitos indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul. Págs. 2, 4 e 5

Dois anos após a “Co-muna de Oaxaca”, segue vivo neste Estado do sul mexicano a mobiliza-ção popular, sindical e indígena que em 2006 formou a Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). A pauta reivindicatória, que antes tinha como ponto central a destituição do governa-dor Ulisses Ruiz Ortiz, é mais ampla agora: liber-dade aos presos políticos, punição aos responsáveis pelas 27 mortes de 2006 e revogação do Acordo pela Qualidade da Educação. Pág. 10

Com as maiores monta-doras do mundo solicitando socorro ao governo dos EUA para não quebrar, a reali-dade das filiais não poderia ser diferente. Férias coleti-vas e ameaça de demissão. Diante desse quadro, meta-lúrgicos apontam que a ma-nutenção do emprego deve ser a principal bandeira em 2009. Pela primeira vez em 5 anos, a indústria automo-bilística apresentou uma re-dução de vendas e produção nos últimos meses. Pág. 7

Metalúrgicos já sentem os impactos da crise fi nanceira

Em Oaxaca,povo continua mobilizado

Sobreviventerelata massacrena Bolívia

Reprodução

Luciney Martins

VIDAS SECAS

O presidente da Associação Brasileira da Reforma Agrária, Plinio Arruda Sampaio, que atuou como acusador na sessão fi nal do julgamento

Paulo Magalhães Filho

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Para um novo pacto social

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Marcelo Netto Rodrigues, Luís Brasilino • Subeditora: Tatiana Merlino • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, Eduardo Sa-les de Lima, Igor Ojeda, Mayrá Lima, Pedro Carrano, Renato Godoy de Toledo, • Fotógrafos: Carlos Ruggi, Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper,

João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Aldo Gama, Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editor de Arte: Rodrigo Itoo • Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Elaine Andreoti • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Antonio David, César Sanson, Frederico Santana Rick, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, João Pedro Baresi, Kenarik Boujikian Felippe, Luiz Antonio Magalhães, Luiz Bassegio, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Milton Viário, Nalu Faria, Neuri Rosseto, Pedro Ivo Batista, Ricardo Gebrim, Temístocles Marcelos, Valério Arcary, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] Para anunciar: (11) 2131-0800

Extermínio

O FATO de o jornal israelense Haaretz publicar notícias sobre a possibilidade de Israel atacar o Irã é a demonstração de que o imperialismo está continu-amente projetando planos de provo-cação ou de ataques como aqueles da Geórgia à Ossetia do Sul, com bombas de fragmentação, ou como este último a Mumbai, na Índia.

O próprio general que preparou, a pedido da Casa Branca, um relatório sobre o confl ito Israel-Palestina sus-tenta que o primeiro é o responsável pela eliminação de qualquer perspecti-va política e de segurança do segundo, de acordo com o jornal Al Arabyah.

Outras fontes de informação ira-nianas falam da mudança do governo de Israel como o melhor modo para deter o Irã nuclear e lotado de mís-seis. Sem contar que, durante a for-mação do governo de Obama, podem suceder muitas coisas para imprimir uma nova direção ao imperialismo estadunidense.

Isto quer dizer que, no Irã – não obstante a calma aparente –, se obser-va uma situação de alerta contínuo. Há poucos dias, a Marinha instalou uma base militar no Mar de Omã, no porto de Jask, e reforçou o controle sobre o Estreito de Hormuz.

Receita antigaJá faz alguns anos que o imperia-

lismo colocou em marcha o 11 de setembro, para iniciar o novo plano de agressão no mundo, que se transfor-mou num pântano e voltou-se contra ele na forma de um bumerangue.

Kennedy, pouco depois de ser eleito, foi colocado à prova com o desembar-que de tropas na baía dos Porcos, em Cuba. Agora, nos mesmos moldes, um dos altos chefes dos Estados Unidos recorda o ocorrido, e espera-se um fato semelhante àquele para modelar melhor Obama.

No fi nal da Segunda Guerra Mun-dial, os Estados Unidos lançaram a bomba atômica sobre o Japão para conter o avanço da União Soviética às portas de Hannover, enquanto que, na primeira metade da Segunda Guerra, planejou o ataque japonês a Pearl Harbour, para justifi car a sua entrada na guerra.

Mas naquela época os EUA eram fortes. Hoje, a situação é totalmente diversa, e para dizer como Charles Jenks, em seu Jumping Universe, o vôo de uma borboleta na Indonésia pode provocar uma tempestade no Brasil.

A concentração de processos é de um grau tal que faz com que um ataque decisivo de Israel ao Irã repre-sente incendiar imediatamente no mí-nimo o Oriente Médio todo, incluindo até mesmo Israel.

Essa concentração não permite acor-dos isolados importantes, como aquele sobre as Colinas do Golã. Assim como nem mesmo o fi m da administração assassina de Abu Abbas pode mudar a sorte da formação de dois Estados. Algo impossível enquanto o Estado sionista não aceitar um referendo sobre a sorte da Palestina com a parti-

cipação de todos os palestinos, dentro e fora dos confi ns atuais de Israel. Isto é, que esteja posta a possibilidade da construção de uma federação socialis-ta, de colaboração entre todas as et-nias, religiões, fés, culturas ou línguas, pelo progresso do ser humano e da sociedade, como o companheiro Posa-das há anos vem propondo, ou mesmo sobre a forma de referendo proposta por Ahmadinejad.

A construção de uma federação que possa resolver as escaramuças entre o Azerbaijão e a Armênia sobre o caso de Karabakh, claro, numa perspectiva socialista – embora, no caso de Kara-bakh esteja ali o Exército dos Estados Unidos para impedir semelhante tipo de acordo acordo e solução histórica.

A tentação de ataque ao Irã é forte, e quem sabe quantas vezes estiveram a ponto de fazê-lo, mas agora é mais forte a dispersão. O ataque ao Líbano não foi uma simples prova. Fazia par-te de uma guerra estratégica, mas o Estado sionista saiu ferido e a ferida continua aberta.

EleiçõesEm Israel, haverá eleições daqui a

três meses, e os governantes – após a derrota dos planos do Grande Israel com a Guerra dos 33 dias contra o Líbano – estão completamente em crise. E se Ehud Barak decidir apertar o cerco mortal contra Gaza, é também graças à colaboração da burguesia ára-be e egípcia. A população de Gaza paga com a própria vida a causa da posição de classe dos governos árabes reuni-dos em Annapolis. Mas este massacre pode tornar-se um bumerangue contra a prepotência assassina de Israel e da-quelas burguesias.

O Exército de Israel poderia também atacar o Irã? Mas onde? Há tantos sítios nucleares no Irã bem protegidos pelos mísseis russos e também ira-nianos. E isso somente sob o aspecto militar. Na semana passada, um es-pião de Israel foi enforcado após um ano de interrogatórios, e de repente o porta-voz do governo declarou a des-coberta de uma rede de espionagem de Israel bem estruturada e com ampla penetração nos organismos estatais de informação e militares do Irã. Não é tão surpreendente a presença de espiões israelenses quanto à contra-espionagem iraniana que bloqueia, de momento, os planos imperialistas?

O outro é a provocação em Mum-bai, na Índia, com a chegada pelo mar de comandos que, ocupando os albergues e um centro hebraico, pro-vocaram mais de 160 mortes. Mas, a quem interessa? O que se propõe? Não pode ser uma cópia do atentado à sede da Amia, o centro hebraico de Buenos Aires, para o qual o máximo juiz argentino, depois deposto, acu-sou o Irã?

Os Estados Unidos estão na orla da decomposição e devem ganhar tem-po, apelando ao governo da Repúbli-ca Popular da China para serem aju-dados com o seu grande depósito de dólares, mas também aos governos das burguesias petrolíferas árabes.

Então, a pergunta que deve ser colocada não é se o Exército de Is-rael atacará o Irã, mas o que fará a máquina bélica nas condições atuais de desabamento e de desagregação quanto ao governo Obama, seja na Europa com Berlusconi e Sarkozy – que se afastam dos Estados Unidos para se salvar em plena onda de lutas e manifestações de todo tipo –, seja na esteira política geral, com russos e chineses em pleno movimento.

A questão que se coloca não se apli-ca somente ao Irã, mas ao Oriente Médio, Ásia Central e entorno, África do Norte e países da Alba, mas tam-bém aos grandes países emergentes – política, econômica e militarmente – como Índia, China e o próprio Bra-sil, com todos os desafi os de alianças econômicas, fi nanceiras, superestru-turais e militares – em nível regional e continental – que apontam para o gigante americano com pés de argila. O gigante, com Obama dentro, junto a boa parte dos aparatos que estão monitorando a política de guerra, está cada vez mais isolado. De mo-mento, as interpretações das notícias no Haaretz parecem, antes de mais nada, querer infl uenciar o processo de formação do governo Obama, em que todos os atores intervêm. E desta intervenção depende, pois, o que fará o imperialismo nesses dois meses ou logo depois. De qualquer modo, o Irã está em estado de alerta e vigilância, e a detenção da rede de espionagem israelense é a demonstração mais clara disso.

Farrokh Bavar é articulista do Brasil de Fato em Teerã, Irã.

debate Farrokh Bavar, de Teerã (Irã)

Israel pode vir a atacar o Irã?crônicaMarcelo Barros

CENA 1: o carcereiro joga o garoto, um pré-adolescente, na solitária. Al-gum tempo depois, “alguém” ateará fogo ao seu corpo. Os outros garotos internados, ao verem a fumaça sain-do pela janelinha da sela, começam a gritar, em desespero. O carcereiro atende, mas, por alguma razão miste-riosa, “não consegue” achar a chave. O garoto morre torrado. Isso não aconteceu em alguma prisão da Ale-manha nazista, nem em Israel, Iraque ou Guantánamo. Aconteceu em São Paulo, na antiga Febem, em 2003. Ninguém jamais foi punido.

Cena 2: a polícia militar invade um morro do Rio de Janeiro, com o suposto objetivo de caçar narcotrafi -cantes. Porta um mandado de busca coletivo, que lhe autoriza a entrar em qualquer barraco situado naquela área. Independente das habituais atrocidades cometidas pela polícia em “missões” desse tipo – que incluem o assassinato de perigosos bandidos de oito anos de idade e o uso do sinistro “caveirão”, um tanque blindado inspi-rado nos veículos utilizados pelo exér-cito israelense para reprimir a popu-lação palestina –, o próprio mandado coletivo é uma aberração jurídica.

Ele elimina o direito constitucional à inviolabilidade do lar e coloca todos sob suspeita, simplesmente por re-sidirem em determinada região. Os favelados são coletivamente punidos, apenas por serem favelados. Caso re-sidissem nos Jardins de São Paulo ou na Zona Sul do Rio de Janeiro, suas chances seriam infi nitamente maiores de verem os seus direitos minima-mente respeitados.

Histórias assim poderiam ser re-produzidas numa lista quase infi nita de ignomínias e tragédias, como se comprovou ao longo de três longos, infi nitos dias, entre 4 e 6 de dezem-bro, nas sessões do Tribunal Popular que julgou os crimes praticados pelo Estado brasileiro. Mães de vítimas inocentes colocaram para fora o seu grito de revolta, jovens relataram os crimes praticados pelos homens de farda, trabalhadores mostraram em seus próprios corpos os sinais da violência autorizada por governado-res e coronéis.

Ao fi nal dos trabalhos, impôs-se uma constatação terrível, da qual

devem ser extraídas todas as conse-qüências, por mais que a consciência resista a admitir o horror: está em curso no Brasil uma política delibera-da de extermínio da população pobre, de trabalhadores jovens e honestos cujo imperdoável crime é portar a “cor errada” de pele, viver no “lado errado” das grandes cidades e ter uma baixa ou quase inexistente capa-cidade de consumo. Trata-se de uma população que, aos olhos das elites, é excessiva (existem milhões e milhões de desempregados), onerosa (pois consomem e demandam serviços públicos, se é que exista algo que re-almente mereça esse nome no Brasil), ameaçadora (que outro sentimento a Casa Grande poderia nutrir em rela-ção à Senzala?).

A política de extermínio é calculada. Trata-se de uma guerra implacável, diária, permanente, sem tréguas. Os números não enganam: são 50 mil mortes por ano, mais de 100 por dia, segundos dados ofi ciais, como resulta-do de tiroteios e confrontos violentos com a polícia. A ONU considera que

um país está em guerra civil quando o número de mortos por violência atin-ge a cifra anual de 15 mil.

Quando se considera que há uma política deliberada de extermínio, a extrema violência policial ganha novo signifi cado. Ela não é gratuita, nem é provocada por meros impulsos de sa-dismo (embora, obviamente, não falte esse componente). Trata-se, muito mais, de uma prática voltada para a desmoralização do “inimigo” (no caso, os milhões de jovens e trabalhadores pobres), para o alastramento do clima do terror, para gerar a sensação de im-potência diante da força bruta. “Para que, afi nal, servem as leis?”, pergunta, perplexa, uma jovem quilombola de Ubatuba (SP). Sua angustiada pergun-ta resume, dramaticamente, o quadro criado pela tática terrorista das elites: as vítimas não têm a quem recorrer. A lei, as instituições não servem co-mo proteção do arbítrio, da punição coletiva, do assassinato em massa. Sobram o terror e o desamparo.

Mas nem nisso as elites brasileiras são originais ou criativas. Os sucessi-

vos governos da Colômbia, em parti-cular o atual, encabeçado por Álvaro Uribe, há décadas pratica política se-melhante, sob o pretexto de combater o narcotráfi co. Na Colômbia foram criadas empresas de saneamento público (sic), destinadas a tirar os “desechables” (o lixo humano, os pobres, os pedintes, os camponeses e indígenas expulsos do campo pelo latifúndio e pela guerra civil) das ruas das grandes cidades.

A política de extermínio tornou-se, no Brasil, uma política de Estado– esta foi, provavelmente, a prin-cipal conclusão do tribunal. Não há como separar a administração pública da violência policial genera-lizada. A maneira encontrada pelas elites para lidar com o desemprego, a pobreza, a demanda de serviços públicos foi criminalizar os desem-pregados, a juventude e os traba-lhadores pobres e os movimentos sociais que os representam. Exa-tamente por isso, a única maneira efetiva de acabar com a violência é destruir esse Estado repressor e as elites que o criaram.

A guerra não cessará até que caiam todos os generais do inimigo.

de 11 a 17 de dezembro de 20082

editorial

Gama AS ESTATÍSTICAS apontam Goiânia como uma das cidades com maior índice de violências e crimes de morte no Brasil. Somente neste ano, já se somam mais de 400 pessoas mortas pela violência nossa de cada dia.

É bom saber que a sociedade civil começa a reagir, e entidades e parlamentares marcaram para o dia 10 de dezembro um evento es-pecial pela superação da violência. De fato, neste dia, há 60 anos, (1948), a Assembléia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) adotou e proclamou solenemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Foi um acontecimento histórico da maior impor-tância que se inscreve na categoria dos eventos que inauguram novas fases da história. Pela primeira vez, a concepção de vida internacio-nal ia além do estrito campo da relação entre governos. O objeto da declaração é a sociedade civil e os direitos de toda pessoa humana, enquanto tal.

O contexto desta conquista foi o após guerra. A sociedade interna-cional estava tão chocada com as atrocidades cometidas pelo nazismo que se exigia uma nova ordem internacional, assentada em princípios como a paz, a cooperação e a auto-determinação dos povos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é como um pacto social. Ao proclamar os direitos inalienáveis e básicos de todo ser humano, quer garantir uma base de civilização a partir da qual as pessoas e povos possam conviver sem precisar ter medo uns dos ou-tros. O texto contém 30 artigos e um preâmbulo que fundamenta a natureza do documento. Recolhe contribuições do passado, como os princípios norteadores da independência dos Estados Unidos (1776) e da Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão, aprovada no pro-cesso da Revolução Francesa.

Os direitos humanos não são elementos estáticos e defi nitivos. A base é imutável e universal, já que diz respeito à sacralidade da vida e à dignidade irredutível de toda pessoa humana. Os direitos concretos são elementos de conquista gradual e permanente das sociedades e das pessoas. Falamos de direitos civis e políticos quando se tratam de questões que o Estado não pode fazer com nenhum(a) cidadão(ã). Não pode censurar o direito de expressão, não pode proibir que as pessoas se organizem em grupos e organizações sociais. Não pode im-pedir o direito dos cidadãos circularem livremente no país e no mun-do. Conforme a mesma legislação, o Estado não pode prender alguém sem ordem judicial. Isso faz parte dos direitos civis de qualquer pes-soa. Mesmo alguém que, por comportamentos anti-sociais, não age de acordo com esta dignidade e não respeita a dignidade dos outros, deve ser punido, mas não pode ter seus direitos de pessoa humana desrespeitados. Se policiais ou autoridades, sob o pretexto de se tratar de bandidos, desrespeitam os direitos à pessoa, cometem um crime maior contra a integridade da sociedade humana do que o delito pelo qual a pessoa culpada foi presa e punida.

O simples fato da lei internacional tornar obrigatório o respeito aos direitos fundamentais de qualquer pessoa, pobre ou rica, branca ou negra, torna ilegais todas as ditaduras, revela a iniqüidade de qualquer tipo de tortura e mostra que é impossível uma verdadeira civilização sem respeito às liberdades individuais e à dignidade hu-mana. No entanto, a defesa dos direitos civis e políticos se tornam su-perfi cial e improdutiva sem a garantia dos direitos econômicos, sociais e culturais, tanto das pessoas individuais como das comunida-des (direitos coletivos).

Goiânia começa a se organizar contra a violência que a assola. Mas as estatísticas que apontam Goiânia como uma das capitais mais vio-lentas do Brasil também mostram que é a capital com maior índice de desigualdade social do país. Enquanto em bairros como o Setor Bueno a média de ganho por família chega a dez salários mínimos (a média), nas periferias, a maioria das famílias não consegue nem atingir o salário mínimo, obrigatório por lei. Essa violência estrutural não justifi ca nem legitima as violências do cotidiano, mas, se os verea-dores e as pessoas de boa vontade querem enfrentar a violência das ruas, precisam se comprometer com a luta para diminuir essa iniqüidade social.

A pobreza, em si mesma, é conseqüência e expressão de uma sociedade que desrespeita vários ou todos os preceitos dos Direitos Universais proclamados pela ONU. Essa injustiça básica e estrutural não é inevitável. Basta vontade política dos governos e atuação decidi-da da sociedade civil para estabelecermos uma cidade mais justa.

A defesa dos direitos fundamentais de todo ser vivo expressa a fé na sacralidade de toda pessoa, da humanidade inteira e até de todos os seres vivos. O ser humano pertence ao universo como elemento in-trínseco e parte consciente da natureza. Por isso, os direitos humanos não podem existir desligados dos direitos da terra, da água, do ar e de todos os seres vivos.

Marcelo Barros é monge beneditino e escritor. Tem 30 livros publicados, dos quais o romance indigenista: A Noite do Maracá (Goiás – Rede da Paz).

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de 11 a 17 de dezembro de 2008 3

brasil

Michelle Amaralda Redação

A CORTE Interamericana de Direitos Humanos da Organi-zação de Estados Americanos (OEA) realizou nos dias 03 e 04 uma audiência única, na Cidade do México, do processo de jul-gamento do Estado brasileiro por permitir interceptações te-lefônicas ilegais em duas linhas do Movimento dos Trabalhado-res Sem Terra (MST) em 1999, no Paraná. As testemunhas fo-ram ouvidas durante os dois dias de audiência e o veredic-to sairá em aproximadamente seis meses.

De acordo com as organiza-ções sociais peticionárias no processo – MST, Comissão Pas-toral da Terra (CPT), Justiça Global, Rede Nacional de Ad-vogados Populares (Renap) e Terra Direitos – a denúncia foi apresentada à OEA devido à de-mora do governo brasileiro em conduzir o caso e punir os cul-pados.

As interceptações telefônicas foram feitas em duas linhas uti-lizadas por lideranças do MST, no ano de 1999, e o caso chegou à OEA em dezembro de 2000, após os acusados terem sido ab-solvidos pela Justiça brasileira, em ações penal e administrati-va movidas pelas vítimas.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou uma audiência com os peticionários e os representan-tes do governo em novembro de 2001, e em março de 2007 emitiu recomendações ao Es-tado brasileiro sobre como de-veria conduzir o processo. No entanto, as recomendações não foram seguidas, e o caso foi le-vado pela OEA à Corte, instân-cia maior do orgão.

Os peticionários da ação de-fendem que houve a violação de direitos à honra, à dignidade e à liberdade de associação, pre-vistos na Convenção America-

na de Direitos Humanos, assi-nada pelo Brasil em 1992. São apontados como culpados o major da Polícia Militar Waldir Copetti Neves, a juíza Elisabeth Karther, o coronel e então che-fe da polícia Valdemar Krests-chmer, o sargento Valdecir Pe-reira da Silva e o secretário de segurança pública do governo Jaime Lerner, Candido Manoel Martins de Oliveira.

IlegalidadeO governo brasileiro justifi ca

que as escutas foram feitas pa-ra investigar suposto desvio de dinheiro de um programa social e a morte de um integrante do movimento. No entanto, Cami-lo da Silva, membro da coorde-nação nacional do setor de Di-reitos Humanos do MST, afi r-ma que os reais motivos dos grampos foram políticos. “Na verdade, o objetivo da inter-ceptação era justamente a per-seguição às lideranças do Movi-mento Sem Terra”, declara.

O pedido de interceptação foi feito pelo major da Polícia Mili-tar, Waldir Copetti Neves, na ci-dade de Querência do Norte, e concedido pela juíza da comar-ca de Loanda, Elisabeth Kar-ther. Tanto o pedido como a au-torização se referiam à inter-ceptação de uma linha telefô-nica do movimento, porém, a escuta foi estendida para mais uma linha. De acordo com a lei, a interceptação pode ser fei-ta por no máximo dois períodos

de 15 dias, neste caso os gram-pos foram feitos por 49 dias.

A Secretaria de Seguran-ça Pública do Paraná chegou a divulgar trechos das gravações – que chegaram a ser veicula-das por uma emissora de tele-visão em nível nacional –, e as usou para processar lideranças do MST. Segundo as organiza-ções sociais peticionárias do ca-so, as gravações foram manipu-ladas pelo secretário de segu-rança pública.

De acordo com a advogada da organização não-governa-mental Justiça Global Renata Lira, a ilegalidade da ação co-meça no fato de o pedido de in-terceptação ter sido feita pe-la Polícia Militar, quando esta

não tem competência de inves-tigação; e por ter sido autoriza-da sem a justifi cativa necessá-ria pela juíza.

Sem fundamento“Para pedir uma intercepta-

ção telefônica, tem que ser uma autoridade competente para is-so, que pela lei são os policiais civis ou federais, não o policial militar. Uma segunda ilegalida-de foi que ela [a juíza] não fun-damentou o pedido. Ela conce-deu sem dizer o porquê estava concedendo uma interceptação pedida de forma ilegal. Apenas escreveu ‘defi ro’ e assinou. Ela fez um despacho, quando na verdade a lei das interceptações determina que as intercepta-ções só podem ocorrer em casos de gravidade, para investigação de homicídios e seqüestros. E que a concessão desse pedido tenha que ser muito bem fun-damentada, o que também não aconteceu”, explica Lira.

Em relação à absolvição dada pela justiça brasileira aos cul-pados pelas interceptações ile-gais e o modo como o governo brasileiro conduziu o caso, não cumprindo as recomendações da OEA, Renata Lira afi rma tra-tar-se de uma postura que visa garantir a integridade do siste-ma político brasileiro em detri-mento da violação sofrida pelos trabalhadores. “É uma decisão corporativista. É o que a gente observa: um pedido de um po-licial militar com a concessão

de uma juíza e o corporativismo não permitiram que eles fos-sem devidamente responsabili-zados pela ilegalidade da ação”, protesta.

Criminalização Para a advogada da Justiça Global, a conduta da juíza foi totalmente ilegal e inconstitu-cional. “A gente entende que teve uma razão política muito forte e uma intenção muito grande de criminalizar os mo-vimentos sociais”, alega.

Gisele Cassano, assessora ju-rídica da organização não-go-vernamental Terra de Direitos, relata que, na época das inter-ceptações, os movimentos so-ciais viviam uma intensa perse-guição. “O momento era de cri-minalização e violência aos mo-vimentos sociais, com despejos violentos, prisões ilegais de tra-balhadores e mortes de militan-tes”, descreve.

Camilo da Silva alega que os envolvidos no caso possuem um histórico de perseguição aos trabalhadores rurais e que as interceptações se somam a um cenário de criminalização dos movimentos sociais vivido no Estado na época. “Nesse perío-do, e principalmente a partir de 1997, o governo do Paraná, nu-ma política orquestrada com o governo Fernando Henrique, defl agrou a guerra de perse-guição aos movimentos sociais e especialmente nesse caso, ao MST”, denuncia.

ExpectativasO integrante do MST ressal-

ta a importância do julgamentodo Estado brasileiro pela Cor-te Interamericana para que seperceba que o governo não temcumprido o seu papel em rela-ção à garantia dos direitos hu-manos no país.

“Não são muitos casos des-sa natureza que chegam à Cor-te Interamericana de DireitosHumanos, mas com certezaé simbólico ter chegado des-se, tratando de direitos hu-manos em relação aos movi-mentos sociais. E deve contri-buir, em tese pelo menos, pa-ra que o Estado brasileiro per-ceba que não está fazendo suaparte, que não está cumprindoos tratados. E que, se continu-ar não cumprindo aquilo quese positiva na legislação, essalei vai se tornar letra morta ede nada vai adiantar dizer queé um Estado democrático, umEstado que respeita os direitoshumanos, e que não os cum-pre”, explica Camilo da Silva.

Renata Lira conta que o fato de o caso ter ido à Corte é mui-to importante, porque expõe o Estado brasileiro à comunida-de internacional e exige que ele se defenda.

“É nesse momento que o Es-tado se abre, se mostra para to-da a comunidade internacio-nal, sobretudo para um tribu-nal internacional de direitos humanos e tem que apresen-tar a sua defesa. Para além de um resultado que a gente ve-nha a ter, positivo ou negativo, já é uma grande vitória. E ocor-rendo uma sentença favorável a gente vai, enfi m, pressionar o governo brasileiro para que ele cumpra com todas as determi-nações que a Corte Interameri-cana fi zer”, afi rma.

A advogada acredita que a responsabilização do Estadobrasileiro diante de uma Cor-te internacional poderá con-tribuir para que as ilegalida-des nas interceptações telefô-nicas, atualmente investigadaspela Comissão Parlamentar deInquérito (CPI) das Intercep-tações Telefônicas, acabem, eque o governo conduza a con-cessão de autorização para asescutas de acordo com o queestabelece a lei.

“A gente espera que o gover-no brasileiro adote a postu-ra de conceder interceptaçõesquando estas sejam estrita-mente necessárias, respeitan-do a dignidade e a integrida-de moral das pessoas que es-tão sendo interceptadas”, afi r-ma a advogada.

Brasil responde em Corte Internacional por violação de direitos humanosDH País é julgado por ter permitido interceptações telefônicas ilegais em duas linhas do MST em 1999, e por não ter punido nenhum dos culpados

Os peticionários da ação defendem que houve a violação de direitos à honra, à dignidade e à liberdade de associação, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada pelo Brasil em 1992

Joka Madruga

Militantes do MST ocupam fazenda no Paraná onde havia trabalho escravo; movimento foi perseguido pelo governo Lerner

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de 11 a 17 de dezembro de 20086

brasil

Prioridade umPolíticos de todos os partidos

usam a retórica de que o povo bra-sileiro precisa urgentemente de escolaridade, mas o investimento em educação continua aquém das necessidades. Segundo o IBGE, além dos milhões de analfabetos que nunca pisaram numa escola, existem no mínimo 30 milhões de analfabetos funcionais no Brasil, gente com menos de quatros anos de ensino fundamental. Qual o fu-turo desses brasileiros?

Mais desempregoO Sindicato dos Trabalhadores

da Construção Civil de São Paulo registrou o aumento das demis-sões desde a segunda quinzena de outubro: calcula que mais de 100 mil trabalhadores – perto de 5% da categoria no município – devem perder o emprego neste fi nal de ano. O “socorro” do governo para asempresas não resolve a questão da baixa renda e da inadimplência no setor. É a crise!

Resgate necessárioNa tentativa de reparar os estra-

gos feitos pelo neoliberalismo aos direitos dos aposentados, o Senado aprovou três projetos de lei fun-damentais para quem depende da aposentadoria: um que acaba com o fator previdenciário, outro que recompõe as perdas e um terceiro que assegura o reajuste dos bene-fícios igual ao do salário mínimo. Agora a decisão está na consciência dos deputados federais.

Barbárie consentidaO Tribunal Popular realizado

na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, de 4 a 6 de de-zembro, comprovou, com base no depoimento de testemunhas e apresentação de inúmeros casos ocorridos nos últimos anos, que o Estado Brasileiro executa uma política de extermínio de jovens pobres e negros nas favelas e periferias do Brasil. Pior, a omis-são das autoridades e da mídia é escandalosa.

Controle perigosoSob o pretexto de proteger as

reservas e os povos indígenas, o governo federal deve baixar decreto que dá ao Ministério da Defesa e ao Ministério da Justiça o controle das ONGs que atuam na Amazônia. Dom Tomás Balduíno, do CIMI, acha que essa fi scalização deveria ser exercida por um conselho cons-tituído por entidades dos índios e da sociedade, com conhecimento da cultura indígena.

Esquema proteladorCassados pelo Tribunal Supe-

rior Eleitoral por abuso de poder econômico nas eleições de 2006, o governador e o vice-governador da Paraíba, respectivamente do PSDB e do DEM, continuam no pleno exercício de seus cargos, embora a cassação tenha sido decisiva. A tolerância do TSE com os recursos da defesa protelam o caso indefi -nidamente. Mais uma pizza assada pelo Judiciário.

Massacre provocadoA comissão internacional que

apurou o assassinato de 20 cam-poneses em Pando, na Bolívia, em setembro passado, chegou à con-clusão de que “os agressores dos camponeses o fi zeram em forma organizada e respondiam a uma cadeia de comando muito bem defi nida, contando inclusive com funcionários e bens do governo de-partamental a serviço da empreita-da criminosa”. Desmente a versão de confl ito generalizado.

Jogo casadoPara conseguir a obra de uma

usina hidrelétrica no Equador, a Construtora Odebrecht levou junto o fi nanciamento do BNDES. Como a obra foi malfeita, deu prejuízo para o Equador e a empresa se negou a pagar a multa prevista no contrato, o governo daquele país decidiu suspender o pagamento ao BNDES até que a Justiça decida a questão. Quem envolveu o dinhei-ro público brasileiro nessa armadi-lha foi a Odebrecht.

Dinheiro fácilNa sentença em que condenou

o banqueiro Daniel Dantas e seus cupinchas Humberto Braz e Hugo Chicaroni, o juiz Fausto Martin De Sanctis lembra que os réus estão tão preparados para ações crimi-nosas que nenhum deles solicitou a restituição de quase R$ 1 milhão apreendido pela Polícia Federal no fl agrante de tentativa de suborno. Está sobrando grana. É mole?

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Paulo A. Magalhães Fº e Pedro Diamantino

de Salvador (Bahia)

UMA AÇÃO judicial está prestes a desabrigar cerca de 360 famílias de agricultores que estão na terra há mais de 100 anos. Esta é a si-tuação das comunidade de fundo de pasto Riacho Grande, Salina da Brinca, Jurema e Melancia, em Ca-sa Nova, região de Sobradinho, no norte baiano.

Fundo de pasto é um modo tradi-cional de criar, viver e fazer no qual a gestão da terra e de outros recur-sos naturais articula terrenos fami-liares e áreas de uso comum, onde se criam caprinos e ovinos à solta e em pastagem nativa. Desenvolvido ao longo de gerações entre os povos e comunidades tradicionais nas caa-tingas e cerrados nordestinos, cons-titui um patrimônio cultural do po-vo brasileiro.

Existem cerca de 300 associações de fundos de pasto na Bahia, totali-zando 20 mil famílias, e mais de 100 mil sertanejos. Até o momento, fo-ram regularizadas cerca de 60 áreas. As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças so-ciais e políticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noção de “combate às secas” pela “convivência com o semi-árido”.

A ação vem sendo acompanha-da pela Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais do Esta-do da Bahia (AATR), entidade que presta assessoria jurídica popular a organizações e movimentos popu-lares, trabalhadores rurais, indíge-nas e quilombolas, além de traba-lhar com formação e educação jurí-dica popular.

Uma longa história“Tudo começou na época da bar-

ragem de Sobradinho, já foram ti-rando a gente de lá e botando pra fo-ra, depois veio essa empresa Cama-ragibe, foi uma briga danada, agora já querem mexer com a gente de no-vo”, relata Luciano Neto, presidente da Associação de Produtores Rurais de Areia Grande.

Em 1973, se iniciou a constru-ção da Barragem de Sobradinho, o maior lago artifi cial do planeta, que, segundo dados do MAB (Mo-vimento dos Atingidos por Bar-ragens), expulsou mais de 70 mil camponeses de cidades como Re-manso, Casa Nova, Sento Sé e Pi-

de Salvador

No sertão, uma das áreas de me-nor IDH do mundo, as populações locais sofrem os impactos dos gran-des projetos, voltados para os inte-resses do agro e do hidronegócio. Se a barragem de Sobradinho expul-sou milhares de camponeses de su-as terras, a transposição do Rio São Francisco promete ainda mais, pas-sando por cima de comunidades ri-beirinhas, quilombolas e dos índios Tumbalalá, Tuxá, Truká, Pankararu, Pipipan, Kambiwá, Anacé, Xocó e Kariri-xocó. O Canal do Sertão, mais uma Parceria Público-Privada, terá 500 quilômetros de extensão e le-vará água do lago de Sobradinho ao Sertão do Araripe, em Pernambuco.

Todos estes projetos caminham no sentido de privatização das águas nos locais onde ela é mais necessária para a sobrevivência da população. A poucos quilômetros do rio São Francisco, a população passa fome e sede por falta de uma política integrada de infra-estru-tura básica (água, energia e sane-amento) e alternativas de geração de renda. Cerca de 70% dos açudes públicos do Nordeste não estão dis-poníveis para o povo.

O governo, através de programas como o BahiaBio, aliado ao grande capital, prefere criar estruturas pa-ra a produção de agrocombustíveis através de cana, mamona, dendê e pinhão-manso, e de fruticultura pa-ra o mercado externo.

Com o aquecimento do mercado de terras da região, o agronegócio age no sentido de expulsar popula-ções locais para a instalação de gran-des empreendimentos, com subsí-dios governamentais e produção de monocultura para exportação.

As comunidades da região de Ria-cho Grande vivem dias de tensão, mas não pretendem arredar o pé de sua terra. “Saindo daqui, onde é que nós vamos viver? Vamos trazer nossos fi lhos pra fi car sem emprego nas periferias das cidades? Meu avô chegou aqui solteiro e morreu com 80 anos, meu pai nasceu e se criou aqui. Nós temos mais de 140 anos nessa área”, protesta Jeová.

Desassistidos pelo Estado, que só mostra seu lado repressor, não ofe-recendo condições básicas de saú-

Agrocombustíveis bebem a água do sertãode, educação e saneamento básico, os camponeses vivem basicamen-te do criatório de bodes e ovelhas, do plantio de feijão e mandioca e da produção de mel “Oropa”.

O sentimento geral é de revolta, quase sufocando a esperança. Zaca-rias da Costa, da Associação de Ria-cho Grande, desabafa: “Não temos perspectivas de sair daqui pra lu-gar nenhum. A gente não desanima porque nasceu na luta e quer mor-rer lutando. Se for necessário, va-mos derramar o sangue aqui, por-que aqui é a nossa vida”.

O Estado da Bahia, por meio de sua Procuradoria Geral do Estado em Juazeiro, ingressou no dia 21 de novembro com uma Ação Dis-criminatória de Terras Públicas na Vara da Fazenda Pública em Casa Nova. A ação representa um obstá-culo ao cumprimento de nova de-cisão judicial que pretendia reti-rar mais uma vez as comunidades de seus territórios. Há um com-promisso do Estado da Bahia em, após arrecadar as áreas para o pa-trimônio público, cedê-las às famí-lias e, com isso, o patrimônio cul-tural, ambiental e socioeconômico que elas representam será defi ni-tivamente resguardado de outros atentados. (PAMF e PD)

lão Arcado. As comunidades de Riacho Grande e cercanias resisti-ram bravamente, mantendo-se fi r-mes nas terras remanescentes, re-jeitando proposta de colonização do regime ditatorial e migrar para as agrovilas instaladas em Serra do Ramalho/BA, para onde foram ou-tras tantas famílias que tiveram su-as casas e terras inundadas.

Após a migração forçada e o res-tabelecimento das plantações e do criatório, outra bomba: a Agroin-dustrial Camaragibe S.A. adquiriu em 1979 as terras ocupadas pelas comunidades, mediante “compra de títulos de posses” passados à em-presa por políticos e membros das oligarquias regionais, que exerciam forte infl uência sobre os cartórios locais. A Camaragibe foi uma das grandes empresas envolvidas com o “escândalo da mandioca”, em que latifundiários nordestinos forjavam perdas de safras para não quitar os empréstimos e continuar a receber incentivos ligados ao Pro-álcool, du-rante o regime militar.

A injeção de capital para produ-ção de álcool a partir da mandio-ca no sertão do rio São Francisco foi um projeto desastroso para a economia popular, que aqueceu o mercado de terras e promoveu ex-

pulsão forçada de enorme contin-gente populacional, causando da-nos ambientais e superexploração do trabalho rural.

As tentativas da empresa, de em-purrar os moradores para fora de sua suposta propriedade com tra-tores e caminhões, esbarraram em uma sólida resistência, que arti-culou aliados e conseguiu atrair a atenção da opinião pública nacio-nal, até a conquista de uma vitória na Justiça por parte dos moradores. A Camaragibe SA se instalou em terras vizinhas mas terminou por ir à bancarrota, deixando uma dívi-da de mais de R$ 40 milhões com o Banco do Brasil.

Grilagem e pistolagem Em 2004, os empresários Alberto

Martins Pires Matos e Carlos Nisan Lima Silva, em uma negociação efe-tuada com o Banco do Brasil em No-va Iguaçu (RJ), compraram do ban-co as dívidas da Camaragibe, esti-madas em R$ 40 milhões, pela ba-gatela de R$ 639 mil.

Alberto, diretor geral do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgo-to da Prefeitura de Juazeiro), seria sócio da Qualitycal Indústria e Co-mércio Ltda. e diretor da Sane En-genharia Ltda., envolvida em es-cândalo no município de Uauá, e foi condenado pelo Tribunal de Con-tas da União e Tribunal de Con-tas dos Municípios (TCM) da Bahia em 2004, por acumular o salário de servidor federal e o de secretário de obras do município de Juazeiro (BA) durante dois anos.

Carlos é especulador imobiliário e intermediário na compra de mamo-na na região de Jacobina, Miranga-ba e Irecê para produção de “biodie-sel”. Suspeita-se que os dois sejam meros “laranjas” da própria Cama-ragibe ou de outra empresa ligada à produção de agrocombustível. Com a transação, que privatizou uma dí-vida com o Estado, puderam nego-ciar com a empresa a quitação de suas dívidas através de algumas su-postas propriedades, entre elas as fazendas Lajes, Baixa do Umbuzei-ro, Cacimba do Meio, Curralinho e Urecê, todas em Casa Nova. Essas

terras são contínuas e formam um território compartilhado por qua-tro comunidades de fundo de pas-to: Salina da Brinca, Jurema, Ria-cho Grande e Melancia.

Dia de terrorEm 6 de março, as comunida-

des tiveram um dia de terror. Às 5h da manhã, policiais civis e mili-tares, acompanhados de um ofi cial de Justiça, cumpriram a reintegra-ção de posse de forma violenta e ar-bitrária, destruindo casas, chiquei-ros e currais, milhares de metros de cercados, confi scando carros e do-cumentos, submetendo cidadãos a constrangimentos e a situações de cárcere privado.

Também exigiram a retirada ime-diata de cerca de 3 mil caixas de col-méias de abelhas instaladas no local há mais de cinco anos pelos apicul-tores das comunidades. Os possei-ros, juntos, produzem cerca de 30 mil litros de puro mel da caatinga, em projeto de R$ 72 mil fi nanciado pelo Banco do Nordeste. A área, ri-ca em mata nativa, é essencial para a criação à solta de mais de 13 mil ca-beças de caprinos e ovinos, perten-centes aos posseiros.

Com a persistência característi-ca do povo nordestino, as comuni-dades se mobilizaram para retomar suas terras e impedir a destruição de seu meio de subsistência, reocupan-do a área poucos dias depois.

O pior, entretanto, ainda estava por vir. Jeová da Silva, presiden-te da Associação dos Produtores de Jurema, relata o ocorrido em 17 de março: “Estávamos todos pre-sentes, chegaram os capangas en-capuzados atirando na gente, ba-tendo, queimando as pessoas, me-nino, velho, mulher... Teve criança que quebrou o braço na confusão, uma mulher chegou a abortar o fi -lho de sete meses”. Quatro crian-ças fi caram reféns da milícia, usa-das como escudo humano para coi-bir a reação dos camponeses. A po-lícia, longe de proteger os morado-res, demonstrou intimidade e com-placência com os pistoleiros.

“Registramos várias queixas na delegacia, mas a polícia nunca foi lá tomar uma providência. No dia 17 de março, a gente fez contato com a polícia, eles chegaram duas ho-ras depois e simplesmente cumpri-mentaram os encapuzados, depois passaram a noite lá batendo papo com eles”, denuncia Valério da Ro-cha, da Associação de Pedra Fria. Os camponeses continuam recebendo constantes ameaças por parte dos pistoleiros e temem pela vida.

As comunidades de fundo de pasto integram um conjunto de forças sociais e políticas que visam instituir um novo paradigma e olhar sobre o contexto regional, substituindo a noção de “combate às secas” pela “convivência com o semi-árido”

Grilagem de terra ameaça fundos de pasto na BahiaCOMUNIDADES Cerca de 360 famílias de agricultores que estão na terra há mais de 100 anos podem ser expulsos

Existem cerca de 300 asso-ciações de fundos de pasto na Bahia, totalizando 20 mil famí-lias e mais de 100 mil sertanejos. Até o momento, foram regulari-zadas cerca de 60 áreas

Quanto

Camponeses protestam contra ação judicial

Paulo Magalhães Filho

Paulo Magalhães Filho

Comunidades lutam contra o agro e o hidronegócio

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de 11 a 17 de dezembro de 2008 7

brasil

da Redação

Na análise de membros do movimento sindical, o país vivia um momento propício para as lutas tra-balhistas até alguns meses atrás. Boa parte das cate-gorias alcançou aumentos salariais signifi cativos, aci-ma da infl ação. Pela pri-meira vez em uma déca-da, as reivindicações dei-xavam de ser defensivas e apontavam para mais con-quistas por parte dos tra-balhadores, como o au-mento salarial e a partici-pação nos lucros e resulta-dos das empresas.

Agora, com a crise fi nan-ceira internacional, o si-nal parece ter se invertido mais uma vez. Dirigentes metalúrgicos ouvidos pela reportagem, de duas cor-rentes distintas ideologi-camente do sindicalismo, apontam a manutenção do emprego como a priorida-de dos operários no próxi-mo período.

A Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT) prepara uma campanha nacional pela preservação dos postos de trabalho, que deve ser lan-çada ainda neste ano. “Nos-sa intenção é criar uma

da Redação

Mesmo admitindo que o fi -nal de 2008 dá indícios de um ano seguinte complicado, o di-rigente metalúrgico Carlos Al-berto Grana, da CNM-CUT, afi rma estar otimista em rela-ção à retomada da produção automobilística em 2009.

Grana considera que os ga-nhos extraordinários do último período devem ser fundamen-tais para diminuir os impac-tos da crise no setor automo-tivo e de metalurgia em geral. “A nossa visão é otimista por-que o mercado interno é bas-tante promissor. Acho que a partir de março ou abril, o ce-nário pode ser normal, até por-que o crescimento nos últimos anos foi muito acima do nor-mal”, considera.

Para o metalúrgico, o ano de 2008, mesmo com a desa-celeração do último trimestre, apresenta um resultado “espe-tacular”. “No último trimestre, o setor sofreu os impactos da crise internacional, com a di-minuição da oferta de crédito e de facilidades para o consumi-dor”, constata.

Outro fator que alimenta o otimismo do dirigente sindi-cal é a sinalização do gover-

Renato Godoy de Toledo da Redação

APÓS TER devastado o setor imobiliário dos EUA, quebra-do dois dos maiores bancos do mundo e derrubado os índices das principais Bolsas de Valo-res, a crise internacional ame-aça seriamente empresas trans-nacionais do setor automotivo com ativos que superam o Pro-duto Interno Bruto (PIB) até de países médios.

Sendo a nova bola da vez, corporações como a General Motors (GM) e a Chrysler so-licitam ao governo dos EUA uma ajuda fi nanceira de 35 bi-lhões de dólares. O presiden-te eleito Barack Obama pres-sionou George W. Bush para que um auxílio bilionário se-ja liberado ainda na atual ges-tão, que se encerra em 20 de janeiro de 2009. Agora, o go-verno, que até então era en-tusiasta da “mão invisível” do mercado, cogita até controlar parte das ações de GM, Chrys-ler e Ford, como contrapartida ao socorro de cerca de 25 bi-lhões de dólares que deve ser concedido nos próximos me-ses. As montadoras já têm os seus planos de “reestrutura-ção”, sobretudo nas matrizes. A GM dos EUA admite que po-de demitir 32 mil funcionários até 2012.

No Brasil, tal como no mun-do, os agentes mais atingidos pela crise devem ser os tra-balhadores do setor automo-tivo-metalúrgico. No último semestre, a venda e a produ-ção de automóveis apresentou uma desaceleração. É o pri-meiro indício de refl uxo que o setor apresenta desde 2003. De lá para cá, as vendas e a produção apresentaram um crescimento considerado vi-goroso (cerca de 6% ao ano), impulsionado pela expansão do crédito e pelo razoável ci-clo de crescimento econômi-co no período. Com essa per-formance, o setor automotivo passou a representar 24% da economia brasileira.

Nesse período, as montado-ras auferiram lucros recordes,

agenda em defesa do em-prego. Todos os analistasestão afi rmando, e nós, porexperiência em outras cri-ses, também sabemos queteremos um período difí-cil no primeiro semestreno ano que vem. Então, va-mos apresentar propostaspara atravessar esse deser-to”, afi rma Carlos AlbertoGrana, dirigente da CNM,que preferiu não adiantar oconteúdo das propostas.

A CNM-CUT represen-ta cerca de 1 milhão detrabalhadores e inclui emsua base o ABC paulista,principal pólo automotivodo país.

EstabilidadeA Conlutas dirige o sin-

dicato dos metalúrgicos deSão José dos Campos (SP),importante pólo paulistaque conta com funcioná-rios de GM e Embraer. Lu-ís Carlos Prates, dirigentedo sindicato, aponta que osmetalúrgicos da Conlutasadotarão um lema: “Demi-tiu, parou!”. Eles ainda de-vem exigir do governo fe-deral um compromisso pe-la estabilidade no empre-go. “O governo deve impe-dir que os recursos conce-didos por ele às empresassejam utilizados para de-missões”, pontua. (RGT)

no dos EUA de que irá liberar cerca de 25 bilhões de dólares para GM, Ford e Chrysler. Pa-ra ele, esse choque fi nancei-ro nas empresas trará impac-tos positivos no setor correla-to brasileiro. “Considero como excelente essa atitude do novo governo dos EUA. A queda da indústria automobilística não é um problema do setor privado, é um problema para a arreca-dação de tributos no país. Es-peramos que essa medida ve-nha o mais rápido possível, até porque os EUA importam mui-tos equipamentos do Brasil e as indústrias dos EUA têm muito investimento aqui. As medidas

serão muito bem recebidas no Brasil”, crê.

Situação favorávelQuestionado sobre a possi-

bilidade de o governo brasilei-ro realizar uma operação se-melhante à do estadunidense, Grana afi rma que não há ne-cessidade, já que a indústria automobilística brasileira tem um acúmulo dos últimos anos. “A situação brasileira é infi ni-tamente diferente da dos EUA. Acredito que, com a ampliação do crédito, a situação se nor-maliza. Mas em 2009 o cresci-mento será menor do que o dos últimos 5 anos”, prevê.

sempre proporcionais às re-messas de lucro enviadas pelas fi liais às matrizes.

Mau indícioO fato de as férias coleti-

vas das montadoras terem si-do antecipadas e concedidas a um número maior de tra-balhadores é o primeiro indí-cio de que o ano de 2009 se-rá repleto de turbulências pa-ra os metalúrgicos. Esse expe-diente utilizado pelas empre-sas visa reduzir a produção, entendendo que a crise é refl e-xo de uma superprodução dos últimos anos. Ou seja, turbi-nadas pelo crescimento mun-dial, a indústria automobilísti-ca produziu muito mais do que a real demanda.

Na análise de Luís Carlos Pra-tes, o Mancha, funcionário da GM e secretário-geral do Sin-dicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos (SP), fi liado à Conlutas, as empresas do setor não têm o direito de se queixar da crise, já que vêm de um perí-odo de alta lucratividade.

“Nos últimos três anos, es-sas companhias acumularam grandes lucros, remeteram-

nos para as matrizes e fi zeram reestruturações. Ou seja, redu-ziram salários ou demitiram e contrataram funcionários com salários mais baixos. Ago-ra querem descarregar o pre-ço da crise nas costas dos tra-balhadores. [Em São José dos

Campos] boa parte já está em férias coletivas há dois meses e há uma possibilidade concreta de demissões, que vai variar de acordo com a redução do mer-cado”, diz Mancha.

A GM de São José dos Cam-pos conta com cerca de 9 mil

trabalhadores, dos quais 2 mil já estão em férias coletivas. A partir de 22 de dezembro, to-dos os funcionários deste pó-lo estarão sem trabalhar. O re-torno está previsto para 25 de janeiro. Nas três principais fá-bricas da GM no Brasil – São

O governo [dos EUA], que até então era entusiasta da “mão invisível” do mercado, cogita até controlar parte das ações de GM, Chrysler e Ford, como contrapartida ao socorro de cerca de 25 bilhões de dólares que deve ser concedido nos próximos meses

Férias coletivas e demissões já assombram metalúrgicos no BrasilCRISE ECONÔMICA Motivadas pela crise das matrizes, montadoras já reduzem a produção de automóveis no país

José dos Campos, São Cae-tano do Sul (SP) e Gravataí(RS) –, chega a quase 15 milo número de operários em re-cesso compulsório.

“O principal problema das fé-rias coletivas é que elas desor-ganizam a vida do trabalha-dor. Não se pode planejar na-da. Com isso, no ano que vem, a maioria não poderá tirar fé-rias”, explica o metalúrgico.

SocorrosMancha, tal como os mem-

bros da Conlutas, é crítico fer-renho dos empréstimos con-cedidos por governos às mon-tadoras. No Brasil, o governofederal e o do Estado de SãoPaulo destinaram R$ 8 bilhões(R$ 4 bi de cada) para os ban-cos das montadoras, alegan-do que a quantia estimulariaa oferta do crédito, mantendoo padrão de consumo dos últi-mos anos e a oferta de empre-gos na indústria.

O presidente da Confedera-ção Nacional dos Metalúrgi-cos da CUT (CNM-CUT), Car-los Alberto Grana, afi rma que o auxílio brasileiro é diferen-te do que vem sendo arquiteta-do nos EUA. “Não é uma inje-ção direto nas montadoras co-mo nos EUA. Aqui no Brasil, a situação é muito diferente. Pe-lo ciclo de crescimento virtuo-so nos últimos anos, diria que o país se encontra numa situa-ção privilegiada. Aqui as mon-tadoras não estão pedindo in-vestimento direto do governo. O que precisamos é ampliar a linha de crédito e reconquistar a confi ança do consumidor, pa-ra o mercado voltar à normali-dade. E isso tem sido feito com esses R$ 8 bilhões destinados”, explica o dirigente.

Para Mancha, a intervenção do governo tem um outro sen-tido. “Não podemos deixar queisso aconteça. Esse recurso queas montadoras receberam po-de ser utilizado para arcar comas demissões e para remeter àsmatrizes. Defendemos que elesreduzam a jornada de traba-lho para garantir a estabilidadeno emprego, já que tiveram lu-cros exorbitantes nos últimosanos”, afi rma.

Conlutas e CUT têm manutenção do emprego como prioridade

Dirigente cutista vê 2009 com otimismoAcúmulo dos últimos anos deve reduzir impactos da crise

O governo federal e o de São Paulo aportaram R$ 8 bilhões para os bancos das montadoras, a fi m de esti-mular o crédito (leia matéria acima). Como contrapartida a esse auxílio, o cutista defen-de que o governo tenha um papel incisivo na fi scalização e cobrança das montadoras.

“É importante o governo acompanhar o desdobramento dessa medida. Ele deve obser-var o comportamento das ven-das e da produção no ano que vem. Qualquer medida que o governo adote deve ter como contrapartida a manutenção do emprego”, defende. (RGT)

Linha de montagem da GM: governo dos EUA promete ajuda de 25 bilhões de dólares para o setor

Reprodução

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Mercado brasileiro tende a se normalizar a partir de março

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de 11 a 17 de dezembro de 20088

brasil

Luiz Filgueiras é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Uni-camp) e professor da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA). É autor, junto com Reinaldo Gonçalves, do livro A Economia Política do Go-verno Lula. Também escre-veu História do Plano Real: Fundamentos, Imapactos e Contradições.

Quem é

Dafne Melode Guararema (SP)

POUCOS MESES após o início da crise fi nanceira mundial, as dúvidas ainda são muitas, mas algumas certezas já aparecem. Dentre elas, a de que nenhum país fi cará “blindado”, dado o próprio estágio do atual capita-lismo fi nanceiro e globalizado. Se também havia dúvidas se a crise chegaria ao capital produ-tivo, os recentes cortes na pro-dução e demissões (ver maté-ria na página 7) evidenciam que, ao contrário de outras cri-ses localizadas que pipocaram nas décadas de 1980/90 – co-mo a de Nova York (1987), Ásia (1997) e Brasil (1999) –, não será fácil conter os estragos.

O fato é que, para o conjun-to dos movimentos sociais e organizações de esquerda do país, a crise é o novíssimo e mais importante elemento a ser levado em conta nas análi-ses de conjuntura. Nesse espí-rito, esse foi o tema do primei-ro dia da II Plenária Nacio-nal da Consulta Popular, que ocorreu entre os dias 8 e 12 de dezembro, na Escola Nacional Florestan Fernandes, em Gua-rarema, interior de São Paulo. O economista Luiz Filgueiras participou da análise, junta-mente com João Pedro Stedi-le, da direção nacional do Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Leia abaixo os principais trechos da exposição de Luiz Filguei-ras, nos quais comenta a natu-reza da crise, a (in)viabilidade do neoliberalismo e se, jun-to com a crise econômica, o mundo também poderá assis-tir a quebra da hegemonia po-lítica estadunidense.

Be-á-báTodas as crises são, ao mes-

mo tempo, iguais e diferentes entre si. Iguais porque as cau-sas mais gerais são sempre as mesmas, aquelas que Marx descreve n’O Capital. O capi-tal é uma riqueza que só tem sentido, só sobrevive, se au-mentar continuamente, e as-sim deve ser. Essa valorização permanente é empurrada pela concorrência intercapitalista; a valorização vem da mais-va-lia, mas cada capitalista faz is-so empurrado pela concorrên-cia. O capitalista é funcionário do capital, não tem escolha: ou ele valoriza capital ou dei-xa de ser capitalista. Esse pro-cesso leva ao desenvolvimen-to das forças produtivas, ao aumento da produtividade do trabalho, o que leva ao proces-so de concentração de capitais na mão de poucos, e há então a centralização de capitais, ou seja, grupos maiores que en-golem os menores. No decor-rer disso, é gerada uma mas-sa de recursos que não conse-gue mais se valorizar na esfe-ra produtiva e vai se valorizar na esfera fi nanceira das ações, dos papéis, dos títulos. E es-sa massa fi nanceira tende a se descolar da esfera produtiva (ver tabela). Essa é uma ten-dência do capitalismo.

A raiz da crisePara se ter idéia do desco-

lamento da esfera produtiva em relação à fi nanceira, o va-lor dos ativos fi nanceiros (pa-péis, títulos públicos, depósi-tos, aplicações) em 1980 era de 12 trilhões de dólares. O PIB mundial, ou seja, tudo que foi produzido no mundo durante o mesmo ano, foi 10,1 trilhões de dólares. Em 2008, a rique-za fi nanceira foi de 167 trilhões de dólares e o PIB mundial, 48 trilhões de dólares. Não estão aí somados os derivativos, o

Crise: doença e remédio do capitalismoCONJUNTURA Para o economista Luiz Filgueiras, a crise aponta o esgotamento do neoliberalismo e pode abalar hegemonia política estadunidense

que piora fantasticamente es-ses números. Então, as pesso-as têm 167 trilhões de dólares nas mãos, mas, materialmen-te, essa riqueza não existe, ela é só de 48 trilhões. Esse des-colamento está na raiz da cri-se mundial. Isso não foi apenas pela tendência geral do capita-lismo, que é a de fazer isso, mas foi impulsionado por decisões políticas de desregulamenta-ção fi nanceira de governos e instituições multilaterais.

DesempregoO processo de superacumu-

lação do capital advém do fa-to de que o capitalismo tende a ultrapassar seus próprios li-mites e então entra em cri-se. Ela é a doença e o remé-dio ao mesmo tempo, pois ex-plicita que o processo de acu-mulação não tem condição de continuar. Então, é necessário desvalorizar capital e riqueza, o que é a crise: as ações caem, os preços caem. E, ao desva-lorizar capital, desvaloriza a força de trabalho, o que gera desemprego. Aí está a desgra-ça maior da classe trabalhado-ra: quando a crise chega na es-trutura produtiva e esse setor começa a desempregar. Todas as crises têm mais ou menos essa lógica.

Sujeito da criseA crise historicamente, no

dia-a-dia, foi construída por sujeitos econômicos e polí-ticos que tomam decisões e, portanto, produzem essa si-tuação. Podem depois elabo-rar a solução também. São os fundos institucionais de inves-timentos. Quem são? Fundos mútuos, fundos de pensão e as grandes seguradoras.

Esses atores, que têm o mes-mo comportamento, arreca-dam um volume gigantesco de recursos e as atitudes de-les podem levar o mercado fi -nanceiro para um lado ou ou-tro. Exemplo: o petróleo esta-va a 140 dólares e está a 40 dó-lares o barril. Por quê? Antes, os fundos estavam especulan-do com o petróleo, mas como a crise mostra que vai se acen-tuar e a demanda de petróleo vai cair, eles saem vendendo seus papéis no mercado futu-ro do petróleo e o preço desa-ba. Outro exemplo: o fundo do George Soros, um dos maio-res especuladores do mundo, quebrou a Inglaterra em 1992 ao especular contra a libra-es-terlina, e o governo inglês te-ve que desvalorizá-la. Então, imagina a força desses fundos. Desestabilizou a Inglaterra.

Os governos de países de-senvolvidos, os EUA em parti-cular, são os segundos sujeitos fundamentais no processo. Em seguida, organismos multilate-rais – Fundo Monetário Inter-nacional, Organização Mundial do Comércio, Banco Mundial –

que atuaram sistematicamente no processo de fi nanceirização.

NeoliberalismoO tempo do neoliberalismo

passou, mas não porque foi der-rotado. Não o derrotamos. Pas-sou porque não serve mais ao capital. Não há saída para a cri-se do capitalismo dentro das políticas e doutrina neoliberais. Assim como o keynesianismo foi a saída para o pós-Segun-da Guerra e depois se esgotou, o neoliberalismo – a saída des-de a década de 1970 – se esgo-ta agora também. Isso não sig-nifi ca que voltaremos ao keyne-sianismo. Não sei o que aconte-cerá, mas o neoliberalismo não tem resposta a dar. É importan-te pensar sobre isso para que a esquerda não bata em um ini-migo que jaz morto.

Não podemos confundir o aprofundamento da crise e a violência que pode vir em ci-ma dos trabalhadores com uma radicalização do neoli-beralismo. A crise em qual-quer circunstância é destruti-

va, desemprega e leva à misé-ria segmentos da classe traba-lhadora. Essa crise vai se aba-ter sobre a classe do mun-do todo, mas o discurso para a saída dela, pelas classes do-minantes, não é pelo neolibe-ralismo, porque não há o que responder. Deve haver alguma concertação no sistema mone-tário e fi nanceiro internacio-nal, o que deixou de existir nos anos de 1970, quando o acordo de Bretton-Woods, de 1944, se extingue e há a desregulamen-tação do capital fi nanceiro que desemboca nessa crise que ve-mos agora.

Morte natural?Uma questão, que parece

uma pergunta retórica, mas na minha opinião é importan-te de ser feita é se essa crise, dada sua gravidade, pode ser o fi m do capitalismo. Mesmo dentro da tradição marxista, já houve discussões teóricas e políticas, no século 20, que enxergava dentro da dinâmi-ca do próprio capitalismo sua

autodestruição, a chamada te-oria do colapso. Essa leitura é fruto de uma leitura economi-cista de O Capital e do marxis-mo, reproduzida contempora-neamente por um autor ale-mão chamado Roberto Kurz, que tem um livro chamado O Colapso da Modernização. Ele enxerga lá na frente o fi m do capitalismo pela falta de consumo, por superprodução, superacumulação. Essa dis-cussão sobre crises econômi-cas e fi m do capitalismo é mui-to antiga e é bom descartar lo-go de saída como uma postu-ra equivocada e economicista, porque a luta política é o que defi ne dentro de uma crise do sistema capitalista qual é a sa-ída da crise. A de 1929-33 de-sembocou no fascismo e na-zismo em toda Europa, a es-querda derrotada e a Segunda Guerra Mundial.

Hegemonia estadunidenseOutra pergunta é se está co-

locada em questão a hegemo-nia dos Estados Unidos, en-tendendo hegemonia não ape-nas como dominação, força militar, mas direção política, moral, cultural e ideológica. O que levanto é que, nos últimos anos, já há um desgaste siste-mático, que se acentua nos oi-to anos de George W. Bush. Ele é evidente na medida em que os EUA trilham uma po-lítica unilateral que desprezou instituições internacionais – em particular a ONU. Invadi-ram o Iraque, não assinaram o Protocolo de Kyoto. Deixaram de ter uma política de direção mundial, não ouvindo seus aliados na Europa na hora das decisões. Só olharam o pró-prio umbigo; se interesses in-ternacionais eram contrários aos estadunidenses, tomavam o caminho deles e pronto.

Do ponto de vista moral, o desgaste é ainda maior, devi-do à grande mentira que foi a invasão do Iraque. O Bush es-ta semana pediu desculpas – de forma cínica – na televisão, afi rmando que foi um equí-voco a história das armas de destruição em massa. A base Guantánamo também contri-bui para esgarçar o Império do ponto de vista moral. Cultural-mente, o modo de vida estadu-nidense não pode se generali-zar mundialmente, pois é invi-ável e mesmo lá esse modo de vida está abalado.

EUA endividadoNos últimos anos, a hege-

monia econômica já apresen-tava estar em processo de des-gaste, com a dívida pública au-mentando muito. Os EUA são o país que mais deve no mun-do. Quem fi nancia os EUA é a China, a Rússia, a Coréia, o Brasil. Financia por quê? Por-que o saldo das exportações dos países da periferia vão pa-

ra os EUA. Esse dinheiro entranos países e retorna aos EUApor meio da compra de títu-los da dívida estadunidense,e assim fi nanciam a dívida pú-blica desse país. É uma ciran-da. Nossa reserva de 200 bi-lhões de dólares está toda láem títulos da dívida america-na. A reserva chinesa de 1 tri-lhão e tanto está toda lá tam-bém. Ou seja, os países da pe-riferia fi nanciam o defi cit pú-blico e externo dos EUA. Ha-via também, antes da crise, aperda de valor do dólar. Com oinício da crise, esse quadro seesgarça mais e coloca em pers-pectiva a ideologia do neolibe-ralismo. A dominação e vio-lência permanecem, já que asForças Armadas estaduniden-ses são imbatíveis.

Barack ObamaNa minha opinião, agora,

eles têm almejado a recons-trução dessa hegemonia, oque vai gerar uma mudançade comportamento. Aí, a elei-ção do Barack Obama encaixacomo uma luva. O John Mc-Cain não tinha nada a dizersobre os problemas que o ca-pitalismo enfrenta hoje. A vi-tória do Partido Democrata,nas condições em que se deu,é fundamental para a tentativade reconstrução política dessahegemonia, no sentido de ne-gociar com a Europa, recom-por a imagem dos EUA dentroda ONU, assinar o Protocolode Kyoto e comandar a defe-sa da luta pelo meio ambien-te no mundo. Já há sinais des-se caminho, uma tentativa deum multilateralismo.

Os interesses dos EUA jánão podem mais ser susten-tados da maneira como estavasendo feita nos últimos anos.Por isso, a reconstrução dessahegemonia passa pela eleiçãodo Obama. Ele é do establish-ment, que ninguém se iluda.Fez a eleição mais cara da his-tória estadunidense, ganhoumais dinheiro das empresastransnacionais e do capital fi -nanceiro que o outro candida-to e se fortaleceu na medidaem que a crise se aprofundou.Ele é o cara certo na hora certapara os EUA.

Se eles vão conseguir recons-truir essa hegemonia da formacomo estão pensando, é umaoutra história, porque não sãoos únicos atores, há a Europa,a América Latina, os proble-mas internos. A luta de classese antiimperialista é que vai de-fi nir como isso vai acontecer.O fato é que a hegemonia es-tadunidense está combalida etem necessidade de se reorga-nizar. Barack Obama e o Par-tido Democrata são os sujeitosdesse processo.

Brasil Na crise de 1929-1933, hou-

ve uma mudança no padrão dedesenvolvimento capitalista noBrasil. Éramos um país agrárioexportador centrado nas oli-garquias rurais, principalmen-te os cafeicultores de São Pau-lo. Como o comércio interna-cional se fechou, o Brasil, comseu Bonaparte, o Getúlio Var-gas, fez uma passagem do mo-delo agrário-exportador pa-ra uma economia de substitui-ções de importações.

Não acredito que a partir deiniciativas próprias da classedominante teremos uma mu-dança de modelo econômi-co no Brasil, como em 1930.Lá, foi por iniciativa de par-cela da classe dominante não-hegemônica que apontou ou-tro modelo. Hoje acho que is-so não ocorre porque o nívelde articulação entre as classesdominantes brasileiras com ocapital internacional é mui-to grande.

1980 1990 2000 2008

Ativos fi nanceiros (AF) 12 43 94 167

PIB mundial (PM) 10,1 21,5 31,7 48,3

AF/PM 1,2 2 3 3,5

Descolamento da esfera produtiva e fi nanceira

Fonte: McKinsey Global Institute, Janeiro de 2008.

Placa em pontenos EUA avisa que há esperança para crises e que as consequências para quem pula são trágicas

A. Altusken

Desolado, operador da bolsa de valores cobre o rosto com as mãos

Rogério Cassimiro/Folha Imagem

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américa latina

ANÁLISE

Antonio Peredo Leigue

Os referendos dirimidor e aprovatório da nova Constitui-ção Política do Estado boliviano acontecerão no dia 25 de janei-ro. Oportunamente, como ocor-re sempre nesses casos, um ins-tituto de pesquisa útil para es-sas ocasiões publica uma son-dagem que, em resumo, diz que o voto estará dividido.

Não o diz em tais termos, mas a conclusão é óbvia: não impor-ta que o “sim” se imponha por votação majoritária, a questão é que a metade do país estará con-tra. Que oportuno é esse institu-to! É que, desde os dias seguin-tes ao consenso conquistado no Congresso Nacional, em outu-bro, a oposição formada pelos governadores direitistas (Ru-bén Costas, Mario Cossío, Savi-na Cuellar e Ernesto Suárez) co-meçou a organizar a campanha pelo “não” à nova Constituição.

Fernanda ChavesCorrespondente do Brasil

de Fato em La Paz (Bolívia)

“FOI COMO uma chuva de ba-las saindo de todos os lados”. Assim, Carmen Parada, de 42 anos, defi ne o massacre ocor-rido em El Porvenir, Pando, no dia 11 de setembro de 2008. Carmen é uma das sobreviven-tes da chacina que deixou cer-ca de 20 mortos e outros tan-tos desaparecidos, um crime defi nido como de lesa-huma-nidade pelo relatório divulga-do pela União de Nações Sul-americanas (Unasul) no dia 3. O principal acusado pelo mas-sacre é Leopoldo Fernández, à época, governador de Pando pelo Podemos (Poder Demo-crático Social, maior partido de oposição ao governo Evo Mora-les Ayma).

Carmen é dirigente da Fe-deração Única de Trabalhado-res Campesinos de Pando e vi-ve numa comunidade chamada Lago Victoria, na fronteira com o Brasil. Desde que Leopol-do foi preso em La Paz, ela es-tá acampada em frente ao pre-sídio San Pedro, na zona central da capital boliviana.

Com ela, estão familiares de vítimas e outros sobreviventes do massacre, que dividem três barracas do tipo iglu e uma um pouco mais comprida, constru-ída com lona azul e madeira. Em lugar de colchões, sacos de areia e cobertores de fl anela – insufi cientes para enfrentar o frio de 4,5 graus que tem feito em La Paz.

Pela pazA chacina de Pando foi diri-

gida contra um grupo de 1800 pessoas que participariam de uma assembléia de trabalha-dores na capital Cobija, cujos pontos de pauta eram Paz, Ter-ra e Nova Constituição. “Pedi-mos paz porque já não se po-dia viver em Pando. Havia mui-ta hostilidade contra os campo-neses. Amanheciam campone-ses mortos, amanheciam cam-poneses feridos quase todos os dias. Também discutiríamos o que fazer para retomar a sede do Inra [Instituto Nacional de Reforma Agrária], ocupada por eles duas semanas antes. Além disso, estava em pauta o refe-

Têm todo o direito. Têm tam-bém a possibilidade de manipu-lar as pesquisas, como já o fi ze-ram. Até podem tapar o sol com a peneira, se é isso que querem.

Mentiras e perigosClaro que a realidade é distin-

ta à peneira, à pesquisa e à cam-panha. É distinta à propagan-da. Diferente da desinformação mediática. Mas existem coisas que podem fazer estrago. Es-querdistas do tipo “me oponho ao que seja que estejam discu-tindo” têm se dedicado a fazer questionamentos comparativos entre o texto aprovado em Oru-ro e o acordado no Congresso.

Todos eles, sem exceção, con-cluem que o MAS claudicou em seus princípios – supondo-se que eles os tenham – e se ven-deu à partidocracia para seguir governando em seu proveito. Obviamente, a direita está re-gojizada e aproveita muito bem esse debate. Inclusive, o está

patrocinando sem dissimulação de nenhum tipo.

É importante advertir que al-guns cidadãos honestos se dei-xam levar por esse questiona-mento e até chegam às mesmas

conclusões. Mas o tema prin-cipal não é quantos artigos fo-ram mudados ou quantas pa-lavras e frases foram introdu-zidas ou retiradas. A verdadeira questão é: manteve-se a estru-

tura básica e se conseguiu viabi-lizar sua aprovação em referen-do nacional.

O que farão os do “não”?Com todos esses apoios, e

com as mentiras das quais eles mesmos se convencem, a opo-sição se lança a uma batalha contraditória e estranha, pa-ra dizer pouco. Apostam no “não”, sabendo que a nova Constituição será aprovada. Jogam no “placê”, como se diz nas corridas de cavalo.

Ou seja, sair em segundo lu-gar e, a partir de tal posição, manejar o discurso que conven-ça uns e outros de que eles têm presença e domínio sobre a me-tade (e, se possível, algo mais) do território nacional, uma vez que não podem pretender con-vencer o grosso da população.

Calculam que o “sim” terá en-tre 55% e 65%. Conseqüente-mente, o “não” terá entre 35% e 45%. Se repetem; há anos se repetem sem o menor rubor. O que é pior: terminam equivoca-dos e, desde o fundo de seu fra-casso, reagem com violência. Claro que agora já sabem que não são impunes e que devem pagar por seus delitos.

A realidade, que se saberá em 25 de janeiro, é que o “sim” obterá 80% da votação. Eles não alcançarão sequer os 20% restantes se forem computados os votos brancos, nulos e des-considerados.

Pergunta à oposiçãoMas eles gostam desses jo-

gos. Até o dia da eleição, es-tarão convencidos de que po-dem conseguir as altas cifras

que os institutos de pesquisalhes prometem. Pois os pagampara que o fogo de suas expec-tativas não se apague. Após oreferendo, ruminarão seu fra-casso durante alguns dias e,depois, voltarão aos prepara-tivos golpistas que lhes restamcomo via de escape.

É válido fazer-lhes a pergun-ta desde já: senhores governa-dores, senadores, deputados e prefeitos que farão campanha e votarão pelo “não”: se o “sim” ganhar, os senhores permane-cerão em seus cargos?

IncoerênciaPorque terão que ser coeren-

tes. Votar pelo “não” e, mui-to mais, fazer campanha nesse sentido, signifi ca declarar que não querem a nova Constitui-ção, que preferem seguir com a atual. Isso supõe aceitar que o governador é um representante do presidente, e não uma auto-ridade eleita. Que o regime au-tonômico não existe. Que per-deram suas cadeiras parlamen-tares, pois não representam mais seus concidadãos.

Do mesmo modo, se traba-lham contra a nova Constitui-ção e votam pelo “não”, seria uma falta de valor civil que de-pois se acomodem às circuns-tâncias e reclamem o direito a participar na discussão e apro-vação das leis que regulam a Carta Magna.

O triste é que assim o farão. (Prensa Latina - www.prensa-latina.cu)

Antonio Peredo Leigue é senador pelo MAS (Movimiento

Al Socialismo).

Irá embora quem disser não?É válido fazer-lhes a pergunta desde já: senhores governadores, senadores, deputados e prefeitos que farão campanha e votarão pelo “não” à nova Constituição: se o “sim” ganhar, os senhores permanecerão em seus cargos?

rendo sobre o novo texto cons-titucional, o qual apoiamos”, lembra Carmen.

A convocação pública decla-rava o caráter pacífi co do en-contro, ao qual se uniram crian-ças, idosos e mulheres grávidas. No meio do caminho, o grupo passou a ser seguido por cerca de 200 pessoas armadas com revólveres, escopetas e gás la-crimogêneo. Em sua maioria, funcionários do departamento de Pando e do Comitê Cívico lo-cal. Segundo Carmen, eles gri-tavam palavras racistas como “camponeses fedidos, fi lhos da puta, fi lhos de cachorras”.

Os trabalhadores recuaram, mas continuaram a ser segui-dos por aproximadamente seis quilômetros, até que os jovens decidiram parar de fugir. “Até quando seremos humilhados? Se voltarmos, vamos morrer de qualquer jeito. Somos homens, somos bolivianos. Sabemos que vamos morrer, mas vamos en-frentar essa gente. Temos que fazer com que Pando volte a vi-ver em paz”, recorda Carmen. O confl ito deixou um morto de ca-da lado e atraiu as forças poli-ciais locais, acusadas de serem compradas pelo esquema de Leopoldo Fernández.

AtrocidadesApós uma breve negociação e

quando o último carro da polí-cia deixou o local, veio a sarai-

vada de balas, gases e pedras. Carmen correu para um bar-ranco enquanto ouvia o sibi-lar dos tiros que quase a acer-taram.

Tropeçou quando já chegava ao rio e lá ajudou a atravessar, em cima de um pedaço de pau, as companheiras que não sa-biam nadar. Quando fi nalmen-te chegou ao outro lado do rio e se escondeu num lugar segu-ro, pôde ver uma série de atro-cidades: “crianças foram estu-pradas, idosos tiveram orelhas e línguas arrancadas. Mataram uma mulher e abriram sua bar-riga. Arrancaram a criança e gritaram: ‘fi lho de puta’”.

Há quase três meses moran-do em frente ao presídio San Pedro, sentindo o frio das ruas, Carmen já recolheu milhares de assinaturas pedindo a condena-ção a 30 anos de prisão sem in-dulto de Leopoldo Fernández e os demais responsáveis pe-la matança de Pando. Sua dis-posição para a luta refl ete o es-pírito combativo da dirigen-te sindical, mas reafi rma tam-bém o processo de conscienti-zação política que se desenvol-ve na Bolívia: “Antes nos dei-xávamos manipular pelos par-tidos como MNR [Movimiento Nacionalista Revolucionario], aceitávamos um quilo de açú-car por voto. Os camponeses já não são mais como antigamen-te”, conclui.

de La Paz (Bolívia)

De acordo com o Observatório do Racis-mo da Universidad de la Cordillera, de La Paz, o massacre ocorrido em El Porvenir, no departamento de Pando, teve forte moti-vação racista. As manifestações preconcei-tuosas foram exacerbadas após a eleição de Evo Morales Ayma, quando o grupo econô-mico e político que sempre esteve no gover-no foi destituído e se refugiou na região co-nhecida como meia-lua (Beni, Pando, San-ta Cruz e Tarija), de onde passou a articular as campanhas oposicionistas.

Segundo a socióloga Carla Espósito, houve três momentos marcantes do racismo: janei-ro de 2006, em Santa Cruz; maio de 2007, em Sucre – quando camponeses foram agredidos e humilhados em praça pública; e setembro de 2008, em Pando. “Aqui houve um ‘salto qua-litativo’. Das outras vezes despiram pessoas no meio da rua, fi zeram-nas ajoelhar e pedir perdão e as golpearam com tacos de beisebol. Agora, em Pando, partiram para a execução fí-sica. Eliminam os índios porque eles obstacu-lizam seu conceito de progresso”, afi rma.

Os pesquisadores do Observatório do Ra-cismo chamam a atenção para o processo de construção do inimigo realizado pelas forças

Carmen, 42 anos: sobreviventeMASSACRE DE PANDO Líder camponesa relata sua experiência do dia 11 de setembro de 2008, quando testemunhou chacina de cerca de 20 manifestantes pró-Evo em departamento então controlado por oposição

da direita, sobretudo a imprensa. “Os meios de comunicação manejam em seu léxico pa-lavras racistas, incitam o ódio, transmitem mensagens de medo”, diz Carla. O alvo é o ín-dio, principalmente da parte ocidental do pa-ís, com um tipo físico bem defi nido – o colla – e, mais ainda, pertencente ao MAS (Movi-miento Al Socialismo, partido no governo).

DesumanizaçãoComo resultado, há uma desumanização do

indígena. “Se você conversa com as pessoas que praticam atos de violência, eles não mos-tram sentimento de culpa, se justifi cam. Di-zem: ‘fi z isso por meus fi lhos; guardei as rou-pas com sangue para mostrar a eles que lutei por eles’”, ressalta Carla.

Martin Gabriel Torrico Zas, também inte-grante do Observatório, cita um caso verifi ca-do várias vezes durante a pesquisa: “Conversa-mos com um senhor, de traços indígenas oci-dentais, que nos disse com menosprezo: ‘es-se colla é do MAS’. De fato era um imigrante, mas não tinha posição política”, exemplifi ca.

“As manifestações de racismo são siste-máticas. Desde as caricaturas, os colunistas de jornais, rádios, tevês, as palavras de or-dem... estão em todo lugar”, conclui o soció-logo Eduardo Paz, coordenador do Observa-tório do Racismo. (FC)

Racismo, o instrumento da oposição Direita boliviana, concentrada nas regiões orientais do país, trabalha a construção do inimigo com base na questão étnica

Carmen Parada pede condenação para os assassinos de Pando; cartaz ao lado também pede justiça e mostra Leopoldo Fernández atrás das grades

Fotos: Fernanda Chaves

: Igor Ojeda

Marcha pela aprovação da lei do referendo

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américa latina

de Oaxaca

O caso da morte de Bradley Roland Will, repórter-cine-grafi sta estadunidense do Centro de Mídia Independente de Nova York, em 26 de outubro de 2006 continua irresoluto. Pior, a justiça oaxaquenha deteve em outubro deste ano Ju-an Manuel Martínez Moreno, militante da APPO, acusando-o te ter realizado os dois disparos que o mataram. Os advo-gados de Moreno denunciam que seu cliente está sendo per-seguido por agentes do Ministério Público Federal.

A ofensiva da Procuradoria Geral da República mexicana também atinge nove ativistas do movimento popular de Oa-xaca, que estão sendo processados por acobertarem o supos-to assassino. No próximo dia 15, será realizada audiência e desde então a justiça local terá um mês para dar seu parecer.

A declaração da CCIODH manifesta sua preocupação pelo rumo que estão tomando as investigações: “É especialmente grave que o caso regresse ao fórum comum do Estado de Oa-xaca e, sobretudo, que se dissimule a presença de funcioná-rios armados e policiais nas provas dos fatos, os quais apon-tavam, entre outros, a quem os estava gravando, o falecido Brad Will”. O relatório também expressa que estes movimen-tos da justiça indicam a intenção de “seguir estigmatizando e criminalizando os movimentos sociais mais do que assumir as conseqüências que signifi cariam acabar com a situação de impunidade imperante nas instituições mexicanas”. (BT)

Bruno Terribasde Oaxaca (México)

PASSADOS DOIS anos do que se chamou de “A Comuna de Oaxaca”, segue vivo neste Esta-do do sul mexicano a mobiliza-ção popular, sindical e indígena que em 2006 formou a Assem-bléia Popular dos Povos de Oa-xaca (APPO). A última “mega-marcha”, organizada pelo mo-vimento em 25 de novembro, reuniu mais de 100 mil pesso-as na capital para relembrar os dois anos da brutal repressão da Polícia Federal Preventiva.

Converso com alguns presen-tes sobre minha surpresa em re-lação à multidão que respondeu à convocatória e logo me situ-am sobre a amplitude da parti-cipação que já foi vista por aqui: “Reunimos algumas vezes mais de 1 milhão; outra vez, 800 mil; noutra, 500 mil...”. Estamos tratando de um território com população de 3,5 milhões.

A pauta reivindicatória, que antes tinha como ponto cen-tral a destituição do governa-dor Ulisses Ruiz Ortiz, do Par-tido Revolucionário Institucio-nal (PRI) é mais ampla ago-ra: liberdade aos presos políti-cos remanescentes da APPO e de organizações indígenas, pu-nição aos responsáveis pelas 27

Oaxaca: contra a repressão do Estado, mobilização popularMÉXICO Após dois anos do levante, a luta dos povos deste Estado mexicano continua com uma pauta mais ampla

mortes de 2006 e revogação do Acordo pela Qualidade da Edu-cação (ACE).

O sindicato estadual de pro-fessores do Estado (Sessão 22 do Sindicato Nacional dos Tra-balhadores da Educação), como já fi zeram os de Morelos, Guer-

rero e Michoacán, prepara pa-ra 2009 mobilizações contra o projeto educacional do governo federal, considerado um ataque privatizante ao ensino.

O despertar de consciência do movimento que levantou mi-lhares de barricadas e tomou 13 estações de rádio e um canal de

televisão permanece. “Até 14 de junho de 2006 [desalojamen-to policial violento de um plan-tão magisterial no centro da ci-dade], o povo tinha inconformi-dade, mas estava calado. Agora, temos coragem para levantar nossa voz”, explica a professora Maria del Carmen Altamirano Vásquez, que esteve na marcha-caminhada até a Cidade do Mé-xico e foi uma das participantes da greve de fome na capital me-xicana em 2006.

E, de fato, em duas semanas por aqui: megamarcha, mani-festação pela não-transferência de presos políticos a penitenci-árias de segurança máxima, ato em solidariedade a um proces-sado pela morte de Brad Will, marcha contra a repressão so-bre manifestantes secundaris-tas em Michoacan, fechamento de rua em protesto à tentativa de criminalização de espaço po-lítico-cultural na capital, reali-zação de grupo de discussão aos domingos na praça central.

Além disso, outro movimen-to importante foi o da criação de mais de 20 rádios comuni-tárias ou livres (pela internet) após 2006. “As nossas formas distintas de ver o mundo têm que ser escutadas, nossas rá-dios são uma forma de resgatar nossa identidade, nossas lín-guas, nossos costumes”, afi rma

Adán López Santiago, coorde-nador da Rádio Zaachila. “Não somos contra as novas tecno-logias, mas consideramos que elas devem servir às comunida-des e fortalecer os processos or-ganizativos que nos permitam transformar nossa realidade de exclusão e margilização”, afi r-ma a declaração deste ano da Assembléia de Rádios Livres e Comunitárias.

A APPO, enquanto articula-ção de movimentos sociais de vários tipos, tem como próxi-ma tarefa a organização de seu segundo congresso. As reuniões estaduais de conselheiros vêm preparando o encontro, previs-to para fevereiro de 2008.

Segue a repressão

A repressão governamental ainda está presente no Estado. É nítida a presença ostensiva de corpos policiais municipais, es-taduais e de militares nas ruas da capital e nas rodovias. Mu-nidos de armamentos pesados, como fuzis e escopetas, cons-tantemente param os transeun-tes para averiguação.

O pesquisador do Instituto de Investigações Sociológicas da Universidade Autônoma Beni-to Juarez de Oaxaca (IES-UAB-JO) esclarece que “há um caso típico de autoritarismo subna-cional. Não só não se expres-sou qualquer mudança em ní-

vel nacional como se aprofun-daram os traços do velho regi-me autoritário”.

Segundo ele, depois da elei-ção de Vicente Fox, em 2000, houve um relaxamento do con-trole presidencial sobre os go-vernadores, o que permitiu que estes atuassem sem freios nem contrapesos. “Tudo isso é ex-presso no governadorismo au-toritário: se funda mais no ter-ror do que no consenso; o atrai mais a repressão e a vingança do que a justiça; o recurso da força do que o diálogo, a conci-liação e o acordo.”

A violência do governo e de seus capangas é percebida por militantes da APPO. As de-núncias de violação de direitos são freqüentes. Muitos têm re-cebido ameaças por telefone e mensagens de texto via celu-lar, o que faz com que alguns não possam caminhar sozinhos pela cidade. Ainda há ativistas que não retornaram a Oaxaca depois de 2006. O governo es-tadual é acusado por organiza-ções populares de fi nanciar gru-pos paramilitares que promo-vem ataques contra comunida-des indígenas em razão de con-fl itos por limites de terras.

O informe da Comissão Ci-vil Internacional de Observa-ção pelos Direitos Humanos (CCIODH) de 25 de novembro declara que “não se há produzi-

do processos contra funcioná-rios públicos como autores ma-teriais e intelectuais das graves violações aos direitos humanos ocorridas no confl ito de Oaxaca, e a desproteção das pessoas afe-tadas é manifesta”.

Presos políticosO movimento contabiliza

dois presos políticos em função do levante de 2006, além de ou-tros de organizações sociais das comunidades indígenas de San Agustin Loxicha, Santiago Xa-nica e San Pedro Yosotato.

“Nós, indígenas, somos um estorvo para o Estado. Por is-so, não lhe custa mandar ma-tar os nossos irmãos ou mandá-los para os cárceres para deter o nosso processo organizativo”, denuncia comunicado emitido em outubro por três encarcera-dos na penitenciária de San Pe-dro Pochutla. Eles são integran-tes do Comitê de Defesa dos Di-reitos Indígenas (CODECI) e fo-ram condenados a quatro anos de prisão por supostamente te-rem organizado uma embosca-da contra a entrada da polícia em sua comunidade em 2004.

No último dia 27 de novem-bro, diversas entidades inte-grantes da APPO denunciaram que Pedro Castillo Aragón e Vic-tor Hugo Martínez foram remo-vidos do presídio de Santa Ma-ria Ixcotel pela manhã, a mando do governo estadual, e que du-rante todo o dia os torturaram física e psicologicamente, além de deixar os parentes sem notí-cias sobre seus paradeiros. Com a falta de informações e a sus-peita de que eles seriam trans-feridos para um presídio de se-gurança máxima fora do Esta-do, movimentos sociais e ativis-tas realizaram um protesto que exigia a permanência dos pre-sos e a sua apresentação em bo-as condições.

Imperialismo

Segunda entidade federativa com menor índice de desenvol-vimento do México – somente à frente de Chiapas – de acor-do com o PNUD/ONU 2006-2007, Oaxaca não pode ser con-siderado um Estado pobre. “Es-tamos localizados em uma re-gião rica em biodiversidade e recursos naturais importantes”, explica Felipa Zaragoza, das Or-ganizações Índias pelos Direi-tos Humanos em Oaxaca (OI-DHO). Por este motivo, denun-cia, multiplicam-se os planos governamentais que impõem projetos empresariais em áre-as habitadas por povos indíge-nas, causando impactos sociais e ambientais sem consultar as comunidades afetadas.

O maior deles é o Plano Pue-bla-Panamá, agora denomina-do Projeto de Integração e De-senvolvimento da Mesoaméri-ca, que em Oaxaca contempla diversos projetos. Um dos mais importantes é o Corredor Tran-sístmico. A obra consiste na construção de uma rodovia de 300 km que pretende ligar os porto de Coatzacoalcos, em Ve-racruz (Golfo do México, ocea-no Atlântico) e Salina Cruz, em Oaxaca (Pacífi co), sendo uma opção ao Canal do Panamá.

Impunidade no caso Brad Will

O despertar de consciência do movimento que levantou milhares de barricadas e tomou 13 estações de rádio e um canal de televisão permanece após dois anos do que se chamou de “A Comuna de Oaxaca”

Marcha organizada pela APPO reuniu mais de 100 mil na capital de Oaxaca

Bruno Terribas

Marchela Marchuli

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70 anosde 11 a 17 de dezembro de 200812

cultura

Rafael Villas Bôas e Gustavo Arnt de Brasília (DF)

ENTRE OS dias 3 e 5 de de-zembro, pesquisadores de no-ve universidades públicas bra-sileiras e do CEFET de Minas Gerais reuniram-se na Univer-sidade de Brasília, a convite do grupo de pesquisa Literatura e Modernidade Periférica, para participar do colóquio “Graci-liano Ramos – Os setenta fôle-gos de um livro: o senso históri-co de Vidas Secas”.

Durante os três dias do evento, foram debatidos a atu-alidade de Vidas Secas na di-mensão histórica da vida bra-sileira; a temática da relação entre rural e urbano na re-presentação estética e política da nação, presente na obra de Graciliano Ramos; e o sentido da obra do escritor para o con-junto da literatura brasileira.

De acordo com o professor Hermenegildo Bastos, coor-denador do grupo Literatura e Modernidade Periférica, “o co-lóquio propiciou discussões muito atuais sobre literatura brasileira e sobre o país”.

Tendo como ponto de partida a obra de Graciliano Ramos, os conferencistas, debatedores e o público presente retomaram o debate (que sempre corre o ris-co de ser neutralizado pela aca-demia e pela indústria cultural) sobre arte e sociedade. O debate foi também sobre o papel da crí-tica no mundo de hoje.

Sacudir a poeiraOs anos 30 do século passa-

do nos legaram o conhecimento do país e dos seus impasses. Na atualidade, a forma mais con-sistente de ser contemporâneo é evitar que o passado seja so-terrado pela poeira do tempo. O tempo não é uma entidade ape-nas cronológica, mas sobretudo uma função da ideologia domi-nante. Ler e discutir Gracilia-no Ramos hoje é ainda pensar o Brasil e o mundo. A cachor-ra Baleia de Vidas Secas é uma metáfora da morte da natureza e do homem.

Escrito em 1938, o livro in-tegra o ciclo do romance regio-nalista do Nordeste – produção responsável por um conjunto fundamental de fi gurações so-

bre a experiência brasileira – expressando com absoluta ori-ginalidade a consciência dilace-rada de nosso atraso, conforme sugeriu Antonio Candido, em contraponto à consciência ame-na do atraso, que transformava nosso fardo histórico em pro-messa redentora da grande na-ção em formação, cujo projeto, hoje sabemos, não vingou.

Atualidade do livroPara Mario Frungillo, pro-

fessor de Teoria Literária da Unicamp, “todo grande livro que trata de problemas huma-nos, mesmo quando esses fo-ram superados, mantém seu interesse para a humanidade. Quando um grande romance trata de problemas ainda não superados, a questão é mais candente. O mundo abordado em Vidas Secas ainda não mu-dou, essencialmente, e isso faz com que a atualidade seja mais forte, porque, além do interes-se humano, há uma consciên-cia inquietante de que ainda não caminhamos adiante”.

Segundo Elizabeth Ramos, professora do Departamen-to de Línguas Germânicas da Universidade Federal da Bahia e neta de Graciliano Ramos, “enquanto houver injustiça so-cial, criança passando fome, trabalhadores sendo explora-dos etc., Vidas Secas será uma obra atual, pois ela foi constru-ída baseada nessa realidade de exclusão e opressão”. Além dis-so, ela ressalta que, em termos de texto, a linguagem da escas-sez, traço marcante da obra, contribui para sua recepção nos dias de hoje.

Vigência da práxisAna Paula Pacheco, professo-

ra de Teoria Literária da Uni-versidade de São Paulo, ressalta uma concepção da literatura e da crítica literária como formas de conhecimento da realidade social. “A idéia da imanência da obra nesse sentido não se opõe à idéia de práxis, se ela nos faz ver melhor, como forma, aquilo que não enxergamos no dia-a-dia. A literatura nos faz ver me-lhor não porque ela seja o terre-no do excepcional (mesmo o ex-cepcional nela é historicamente confi gurado), e sim porque con-fi gura as contradições sociais de modo mais claro.

Para a professora, “a crítica li-terária, ao entender que as con-tradições na literatura são for-ma em sentido forte, isto é, são sedimentações de conteúdos sociais, é uma tentativa de co-locar-se para fora da ideologia, sempre dominante. Porque na forma, para usar uma defi nição clássica, as contradições sociais estão equacionadas, porém não resolvidas. Essa maneira de en-tender a função da crítica lite-rária é oposta a outras corren-tes (novas e velhas modas) que enfatizam a imanência da obra como ‘pura autonomia’, que a fi zesse fl anar, sem peso, para além ou para aquém do chão histórico em que vivemos”.

Assim, para desfazer um lugar comum, Ana Paula ressalta que a crítica que entende a literatura como oposta à realidade social (porque esta seria muito banal para as “alturas” do literário) é uma crítica que não se interes-sa pela vida, uma vez que aqui-lo que nos diz respeito é sempre socialmente determinado – seja a própria (não-) constituição da subjetividade, seja a (não-) for-mação do nosso país, seja a his-tória local dos ditos universais, ou a história e as especifi cidades locais no quadro pós-nações.

Impacto da crise Para Belmira Magalhães,

professora de Literatura Bra-sileira da Universidade Fede-ral de Alagoas, a crise sistêmi-ca pode descortinar dois pano-ramas para a produção literá-ria contemporânea: “De um la-do, a crise pode trazer a pos-sibilidade de uma literatura mais crítica, menos colada na realidade, dado o agudizamen-to das contradições. Por outro lado, pode trazer também uma vertente de produção mais fo-cada em alguns problemas, sem necessariamente estabe-lecer conexões com aspectos mais gerais”.

Quanto ao trabalho da críti-ca literária, pondera que ela se apresenta no momento poste-rior ao infl uxo da possível nova produção. Mas, além disso, re-fl etindo sobre a discussão afl o-rada por ocasião do centenário de Machado de Assis, Belmira avalia que é também tarefa da crítica rediscutir e socializar o legado crítico dos grandes no-mes da literatura brasileira.

LITERATURA Conexões entre vida social e forma literária são debatidas por meio da obra de Graciliano Ramos

de Brasília

Vinte e cinco anos demarcam o interva-lo entre o lançamento do romance Vidas Se-cas, de Graciliano Ramos, em 1938, e a versão adaptada para o cinema por Nelson Pereira dos Santos, de 1963. A adaptação da obra lite-rária para a versão cinematográfi ca suscitou refl exões como a seguinte: existiria o movi-mento do Cinema Novo sem o ciclo do roman-ce regionalista do Nordeste?

Visto com os olhos do contexto atual, o in-cômodo crítico do fi lme reside no fato de sua força signifi car a reminiscência de um projeto de país forjado pelos de baixo, que foi destruí-do pela ditadura militar antes mesmo que pu-desse amadurecer.

O fi lme confronta o padrão hegemônico de representação da realidade por organi-zar formalmente uma fi guração da experi-ência brasileira em que não é a natureza do sertão o algoz do povo sertanejo, e sim a ex-ploração do homem pelo homem. O som do carro de boi, a luz do sol estourada, as lon-

Vidas Secas,

25 anos depois do livro veio o fi lmegas seqüências de planos gerais, que permi-tem que o telespectador refl ita sobre a po-sição do homem no meio, entre outras op-ções formais, fazem com que o conjunto da obra atualize, em chave cinematográfi ca, no contexto dos anos de confrontação de clas-ses que anteciparam o golpe de 1964, a for-ça anti-sistêmica da percepção da consciên-cia dilacerada do atraso. Pelo registro do fi l-me, afi nado com o impasse de nosso projeto de país, algo se desmorona, antes mesmo de ter se consolidado.

Ao comentar a relação entre o romance Vi-das Secas e o fi lme homônimo, Elizabeth Ra-mos, que interpreta o fi lme como uma tradu-ção do livro, destaca os méritos do diretor e de sua equipe em recriar, de forma autônoma, o complexo universo apresentado por Gracilia-no no livro: “Nelson recria o romance como nova arte, ao mesmo tempo em que resguar-da a aura da anterioridade”. A professora des-taca ainda a importância das traduções do ro-mance para outras línguas, o que ela vê como uma forma de expandir a obra de Graciliano Ramos. (RVB e GA)

de Brasília

O objetivo do debate sobre o confl i-to modernizador, de acordo com Izabel Brunacci, professora do CEFET de Mi-nas Gerais, foi discutir a produção lite-rária no âmbito da relação entre o rural e o urbano no Brasil sob o signo do “pro-gresso” capitalista.

“Como se trata de uma relação con-fl ituosa, isso faz com que a literatura se situe perigosamente no fogo cruzado desse confl ito. É nessa perspectiva que a obra de Graciliano Ramos, pela pecu-liaridade de modulação dos pontos de vista dos narradores que a constituem, desvela para os leitores questões ainda não resolvidas do processo de forma-ção da sociedade brasileira, pelas nar-rativas de personagens como Paulo Ho-nório, em São Bernardo; Luís da Silva, em Angústia; e João Valério, em Cae-tés. Três perspectivas diferentes, den-tro da estrutura de consciência de per-sonagens pertencentes, todos eles, à classe dominante”, afi rma.

Brunacci, que publicou recentemen-te o livro Graciliano Ramos: um escri-tor personagem (Belo Horizonte: Au-têntica, 2008), pondera que “em Vidas Secas, o processo se inverte: Graciliano coloca em movimento no texto literário toda a problemática do projeto de nação imposto pela burguesia brasileira, por uma perspectiva que tenta, ao máximo, localizar-se na consciência do homem marginalizado por esse processo”.

“Daí a autenticidade da relação que se estabelece entre o narrador desse romance e os personagens: trata-se de uma negação do paternalismo tão fre-qüente nas narrativas do romance de 1930, para dar lugar a um processo de compartilhamento do discurso literário, em um movimento permanente de iden-tifi cação e de distanciamento entre nar-rador e personagem, que, dialeticamen-te, coloca diante do leitor os dilemas – até hoje não resolvidos – do nosso pro-cesso de modernização capitalista”, diz.

Estado NovoCoube nessa discussão também o ques-

tionamento das razões que levaram Gra-ciliano Ramos a trabalhar em instituições do Estado Novo, em plena era getulista, publicando crônicas em revistas do De-partamento de Imprensa e Propaganda.

Se para uns isso pode signifi car o in-telectual cooptado por forças políticas, para outros coloca as determinações da conjuntura política da época como cru-ciais para a atuação da esquerda organi-zada, que tinha de se posicionar em re-lação à luta entre o governo Vargas e as forças populares, de um lado, e o latifún-dio e o liberalismo udenista, de outro.

“De qualquer forma, esses questiona-mentos abriram para nosso grupo nova frente de discussão sobre as formas de cooptação e de resistência – ou não – dos intelectuais aos apelos do capitalis-mo”, avalia Brunacci, que também inte-gra o grupo Literatura e Modernidade Periférica. (RVB e GA)

O rural e o urbano na representação estética e política da nação

de Brasília

Norteado pela perspectiva da práxis e ciente do valor crítico da literatura, o grupo Literatura e Modernidade Periférica empenha-se em estabelecer parceria com movimentos sociais.

Segundo Ana Laura Corrêa, pro-fessora da UnB e integrante do grupo, essa parceria de setores da universidade com os movimentos sociais deve ser entendida em qua-dro histórico e crítico, isto é, não se trata simplesmente de uma inicia-tiva desses setores em direção ao campo das lutas sociais com o in-tuito de levar o conhecimento for-mal a uma parte do povo brasileiro que não teve acesso a ele, mas, an-tes, de um processo posto em mo-vimento pela força das demandas sociais no país em favor do cum-primento de um direito inaliená-vel de todo brasileiro.

“Para um grupo de pesquisa cujo objeto é a literatura, a força da de-manda social por esse direito exige o reconhecimento de que a gran-de riqueza da literatura é dar a ver o que a ideologia escamoteia: as contradições de uma sociedade em que domina o modo de produ-ção capitalista. A essa riqueza, to-do homem tem direito, e nela se baseia a força da demanda com a qual todos, assumindo ou não o desafi o de suportar as fortes con-tradições que vêm a reboque nes-

se processo, temos que lidar”, diz Ana Laura.

Nesse sentido, de acordo com ela, as parcerias entre o grupo e o movimento social se estabelecem concretamente pela realização de cursos de formação da Via Cam-pesina, principalmente do MST: “Pela participação no curso de Le-tras da UFPA, para a formação dos estudantes dos assentamentos do Pará que ali atuarão como profes-sores e pesquisadores; pela discus-são acerca da produção do conhe-

cimento e da pesquisa no campo, nos cursos básicos e seminários promovidos pela Escola Nacional Florestan Fernandes; e, ainda, pe-la composição do corpo docente do curso de Licenciatura em Edu-cação do Campo da Universidade de Brasília, campus de Planaltina, que está já em sua segunda turma, e no qual o grupo está inserido no eixo de Linguagens, que, na pers-pectiva da formação por áreas, en-globa literatura, teatro, música e artes plásticas”. (RVB e GA)

O trabalho para além da academia

Parceria viabiliza a realização de cursos de formação

Reprodução

Rafael Villas Bôas