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    Opo Lacaniana onlinenova srie 1 A construo do caso clnico

    Opo Lacaniana online nova srie

    Ano 1 Nmero 1 Maro 2010 ISSN 2177-2673

    A construo do caso clnico1

    Carlo Vigan

    Mesmo aqueles que no so do campo tm uma ideia do

    campo Psi como de um labirinto inexplicvel de signos,

    escolas e doutrinas. A distino entre psiclogo,

    psiquiatra e psicanalista pode causar arrepios se entrarmos

    nas teorias sobre apsique ou sobre os nomes das doenas

    (neurose, psicose, borderline, distrbios bipolares,

    depresso, pnico, distrbios de ansiedade, etc.). Apesar

    disso, no devemos achar que no temos mais nada o que

    fazer, lamentando o tempo em que havia o manicmio! Inicia-

    se um tempo em que o debate clnico aberto e sem esoterismotorna-se possvel. A discusso dos casos que, h dois anos,

    comeou a ser praticada por todos os operadores2 da Sade

    Mental de trs ASL3 em Ravenna, vem se revelando alm de um

    potente instrumento de formao, tambm um modo de avaliar

    e, portanto, de melhorar a qualidade clnica do trabalho.

    Nesse cenrio, houve uma mudana histrica e cultural

    realizada atravs do movimento antipsiquitrico dos anos 70

    que varreu as ideologias que dominavam o campo Psi e o

    transformavam em uma infinita guerra de religies.

    De um lado, havia a ideologia positivista que

    acreditava em uma causalidade natural, de tipo cientfico,

    da doena mental. De outro, aquela que pensava a doena

    como um distrbio da produo de sentido (hermenutica). O

    resultado concreto era que ningum falava de clnica, da

    experincia do doente, do seu caso e, assim, o discurso

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    girava em torno de questes epistemolgicas, como se a

    sade mental estivesse nas mos de filsofos e de mdicos

    de segunda categoria, sem uma clara competncia

    profissional.

    Atualmente, dois dos maiores protagonistas do campo

    Psi fizeram escolhas inovadoras. A psiquiatria adotou um

    sistema de classificao a-terica de doenas, o DSM, e a

    psicanlise, na sua ponta mais avanada, encontrou uma

    forma estrutural que substitui a transmisso esotrica por

    uma srie de conceitos conectados logicamente. Pode-se

    dizer que o dualismo mente-corpo, que se prestava s mais

    diversas interpretaes, foi substitudo por uma equao

    mente = corpo, na qual o sinal da equao a clnica, o

    caso clnico. Pode-se ler assim: mente sintoma do corpo. A

    guerra sobre a causa passa a ser substituda pela

    construo do caso.

    A construo do caso clnico uma construo

    democrtica na qual cada um dos protagonistas do caso4 (os

    operadores, os familiares, as instituies) traz a suacontribuio, de uma forma que parecer paradoxal somente

    quele que est doente de tecnocracia e de modelos

    cibernticos. Na realidade, trata-se de juntar as

    narrativas dos protagonistas dessa rede social e de

    encontrar o seu ponto cego, encontrar aquilo que eles no

    viram, cegos pelo seu saber e pelo medo da ignorncia. Este

    ponto comum, a falta de saber, o lugar do sujeito e da

    doena que o acometeu. A construo do caso consiste,

    portanto, em um movimento dialtico em que as partes se

    invertem: a rede social coloca-se em posio discente e o

    paciente na posio de docente. Naturalmente, o que o

    paciente deve ensinar no passa por sua conscincia e no

    pode ser dito em uma fala direta, mas mediante nossa escuta

    das particularidades, das coincidncias que foram

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    escandidas de sua histria, do enigma de seus atos falhos,

    recadas, ausncias, etc.

    Aquiles e a tartaruga5

    No campo da sade mental, o conflito no se concentra

    mais na doutrina e na melhor tcnica a adotar, mas continua

    presente de acordo com a civilizao em que vivemos:

    sociedade do consumo e do mercado global. Portanto, para

    realizar o nosso debate clnico devemos nos inserir, apenas

    estrategicamente, na corrente da poltica contempornea

    totalmente centrada na reduo de custos.

    Pelo modo como vem sendo formulada a demanda social

    hoje, pode-se entender que o que est em jogo no so mais

    a durao e a eficcia do tratamento, mas seus semblantes

    culturais. Atravs da discusso de um caso pretendo mostrar

    como se apresenta hoje o conflito sobre o estilo da

    avaliao e sobre a cultura que define sua utilidade. Ahiptese que avanamos que fique evidente, de agora em

    diante, como a forma contempornea da avaliao vem sendo

    sustentada pela inteno de neutralizar a varivel

    transferncia. O passo seguinte ser breve: se mantido o

    dever de excluir a transferncia dos fatores avaliveis da

    terapia, ento os tratamentos que excluem a priori a

    transferncia tero uma vantagem prejudicial.

    A motivao parece elementar: a avaliao deve, por

    princpio metodolgico, tornar no influenciveis os

    fatores subjetivos e, portanto, neutraliz-los com

    corretivos do tipo duplo cego. A terapia avaliada como

    um frmaco e, na ausncia de uma teoria adequada sobre a

    transferncia na clnica, privilegiam-se os casos nos quais

    a transferncia desconsiderada e, portanto, deixada

    funcionar demodo selvagem.

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    H quase dez anos, com alguns colegas lacanianos,

    criamos um laboratrio de pesquisa na Escola de

    Especializao em Psiquiatria da Universidade de Milo

    onde, com a participao dos estudantes e dos operadores

    dos servios pblicos, colocamos em pauta um mtodo de

    construo do caso clnico com o propsito de demonstrar

    que possvel uma avaliao que compreenda a transferncia

    como eixo da clnica. Vou expor brevemente um dos ltimos

    dos quase trinta casos discutidos.

    O mtodo que seguimos consiste em discutir um caso

    apresentado a cada vez, por escrito, por um dos

    participantes. A construo deve responder a uma tabela que

    compreende trs partes: 1. A narrativa (do sujeito, da

    famlia, da instituio); 2. As escanses dos tratamentos;

    3. O cotejamento entre o diagnstico do DSM e o

    psicanaltico. A avaliao realizada aps a discusso do

    caso e consiste na compilao de dois quadros: 1. A sinopse

    da histria concreta do sujeito (escanses da posio no

    discurso, acontecimentos, gastos financeiros); 2. Oprognstico dos possveis projetos de vida, com as

    hipteses correspondentes aos mesmos itens. O princpio o

    de confrontar as posies subjetivas nas passagens de

    discurso realizadas na histria do sujeito com os

    acontecimentos ocorridos no perodo de tratamento sob

    transferncia, de onde se extraem as inferncias

    hipotetizveis.

    O caso de Elle6

    Elle tem 21 anos. A me, uma professora, sofrera de

    depresso ps-parto, reativada, em seguida, por algumas

    caractersticas irritantes do desenvolvimento de Elle.

    Elle anda aos 16 meses, comea a falar muito tarde e o faz

    em terceira pessoa. O controle dos esfncteres obtido

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    por volta dos 4 anos. Nessa idade, o comportamento

    dificilmente controlvel de Elle mobiliza a me a lev-la a

    um psiquiatra, que faz o diagnstico de distrbio de

    personalidade borderline e a v periodicamente por dois

    anos. Elle tem problemas de socializao: no tem amigos,

    extravagante e muito habilidosa em irritar os outros. Obtm

    resultados escolares brilhantes com o apoio de um professor

    encarregado de seus estudos. Quando tem 8 anos de idade, os

    pais se separam. Aos 13 anos, manifesta a inteno de se

    suicidar, tem comportamentos de tipo anorxico e, por isso,

    encaminhada a um psicoterapeuta, cujo tratamento

    interromper depois de aproximadamente dois anos. Nessa

    ocasio, Elle quer estar sempre na companhia da me com

    contnuos pedidos de beijos e abraos, entre outras

    extravagncias. Aos 16 anos, sua me se dirige, ento,

    psiquiatria e obtm uma internao de dois meses, saindo da

    internao com terapia farmacolgica. Desde ento, o

    perodo de sua permanncia em casa se alternava com a

    internao em setor psiquitrico com frequncia cada vezmaior. A escolaridade se interrompe no ltimo ano do ensino

    mdio.

    Decide-se pelo encaminhamento para a Residncia

    Teraputica7 quando Elle tem 20 anos que, concordando em

    morar ali, diz: vocs me parecem pessoas certas. Elle

    repete com monotonia dois pedidos: lambidinha e

    sussuros; em geral, todos se empenham a falar com Elle em

    voz baixa, mas a lambidinha, por sua vez, considerada

    patolgica. Os operadores lhe propem dois encontros por

    semana com o psiclogo de orientao lacaniana que nos

    expe o caso. O psiclogo descongela rapidamente esses dois

    significantes estereotipados atravs de um chiste (Witz) do

    tipo: mas quem me disse que voc se lavou nos ltimos

    vinte dias? ou quer sussurros e faz um vozerio que se

    ouve em toda a Residncia Teraputica!. So duas letras de

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    gozo, funes sintomticas sem sentido que, naquele

    momento, comearam a entrar em uma cadeia metonmica.

    Lambidinha se liga imagem de uma cadela que lambe os seus

    filhotes, e sussurros a palavra que pensou quando o pai,

    gritando com a me, saiu de casa. Depois de ter sonhado com

    a sepultura dos quatro avs, mesmo sabendo que todos esto

    vivos, Elle diz que o sussurro poderia ser tambm o que vem

    depois da lambidinha. Da partem as fantasias sexuais

    referidas ao corpo da me e elaborao delirante da

    necessidade de mandar embora o atual companheiro da me:

    um porco, como o meu pai. Poderiam ser as fantasias de um

    menino de 4 anos, como Hans, as dessa menina, cujo

    comportamento insuportvel obtm como resposta do Outro o

    veredicto psiquitrico ao invs da escuta do analista? Mas

    devemos considerar os fatos: a menina tem agora 21 anos. O

    seu comportamento torna-se adequado, o tom de humor

    estvel, frequenta com interesse diversos grupos e

    desenvolve um trabalho remunerado. Elle agradece ao

    psiclogo por t-lo encontrado e lhe diz que agora no hmais o ela deve como compromisso exigido para sua sade.

    Agora pode associar livremente, ainda que sob a forma de

    delrio e, dentro das paredes da Residncia Teraputica,

    pode comear a se ocupar de si.

    A avaliao

    O relato desse tratamento, que dura cerca de quatro

    meses, testemunhacomo os efeitos teraputicos no somente

    rpidos, mas tambm de estrutura diferente em relao

    queles que foram obtidos com os tratamentos anteriores

    (cognitivistas e farmacolgicos) produzem uma estabilizao

    que, emcertas condies, pode-se manter e consolidar. No

    entanto, os contatos realizados com os Servios que fizeram

    o encaminhamento prevem um retorno ao estilo de tratamento

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    anterior. Somente uma necessidade clnica teria produzido

    uma descontinuidade em relao aos sistemas de avaliao em

    voga. Como avaliar esta contradio dos avaliadores?

    Para inserir a transferncia como fator da terapia,

    necessrio remover da perspectiva da avaliao a referncia

    a qualquer ideia de cura para considerar, unicamente, o

    dado concreto do lao social e, consequentemente, do custo

    financeiro. inacreditvel como o moralismo

    comportamentalista resiste ao algoritmo, decisivamente mais

    laico, do discurso como lao social.

    Em outros termos, o caso de Elle, como todos os outros

    casos nos quais um ato analtico inserido entre os

    tratamentos cognitivo-comportamentais que produzem uma

    histria de cronicizao, demonstra que o efeito

    teraputico de uma escuta analtica rpido. Mas ele exige

    a abertura de um projeto de estabilizao que d

    prosseguimento clnica sob transferncia e no rigidez

    de um ideal de cura. Elle poder manter seu bom

    comportamento e continuar sua existncia de psictica forado desencadeamento, graas suplncia fornecida por uma

    escuta analtica, por um modesto subsdio econmico, por um

    alojamento protegido, etc8. Nisso, o ato analtico se ope

    cura rpida obtida com as internaes em setor

    psiquitrico e s intervenes cognitivistas, que se

    revelam de durao sempre mais breve.

    A distino entre os discursos que o sujeito

    atravessou e o lugar9 que neles ocupou permite resolver o

    paradoxo temporal dos efeitos teraputicos: o seu

    interlocutor, o Outro da avaliao, aquele que no sai do

    paradoxo para permanecer ancorado em um modelo moral da

    cura, ao preo de um maior custo social. Na histria

    concreta, a ideia balintiana de estabelecer um focus se

    choca com a Babel dos protocolos dos quais um sujeito foi

    feito objeto: do asas de Aquiles a um paciente, que, no

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    entanto, sempre para no trecho anterior meta prescrita,

    deixando o avaliador no embarao de ter que entregar a

    vitria tartaruga da cronicizao.

    Pode-se sair disso graas a estrutura lacaniana do

    sujeito e, em particular, a sua capacidade de antecipar um

    dado que vem se revelando fundamental na cincia biolgica,

    na neurocincia e na gentica: o princpio da plasticidade.

    A ideia dos processos completamente reversveis e,

    portanto, a definio do objetivo teraputico como

    restitutio ad integrum estavam ligadas teoria da clnica

    antiga que fazia dos rgos a sede da funo constante e,

    portanto, da sua alterao/restituio. Hoje isso foi

    superado, os rgos podem ser tambm transplantados, a

    doena nesse perodo mudou de sede, tornou-se sistmica,

    interessa os sistemas transversais de conexo e comunicao

    entre rgos. Doenas auto-imunes, tumores, leucemias e

    quadros circulatrios so distrbios da informao,

    portanto, da funo do cdigo. A novidade freudiana a de

    pensar o sujeito no como uma informao, como osignificado de um significante qualquer, mas como efeito

    de um corte particular na cadeia dos significantes. Por

    isso, na interseo de corpo biolgico e corpo social, o

    sujeito corte contingente, xito dos remanejamentos

    internos aos dois sistemas simblicos como resposta do

    real; e o tempo dessa resposta no obedecer nunca, por

    estrutura, ao modo preditivo da cientificidade do

    experimento.

    Para concluir, devemos nos perguntar o que impede o

    Estado de aceitar uma cultura da clnica sob transferncia,

    o que o provoca a privilegiar as intervenes Aquiles

    que, na histria clnica concreta, regularmente conduzem a

    uma cronicidade-tartaruga muito custosa, porque violenta o

    sujeito e provoca a passagem ao ato. Para responder no

    basta dizer que a cultura atual financia um cientificismo

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    sociolgico na avaliao sanitria por nada querer saber da

    cura como impossvel. Isso s uma vantagem secundria.

    Existe a primria, de estrutura, que ligada mais-

    valia em que se asseguram as terapias Aquiles por meios

    ideolgicos.

    Traduo: Daniela Costa Bursztyn1Artigo extrado das publicaes: VIGAN, C. (2005). La costruzione

    del caso clnico. In: Frammenti. AUSL di Ravenna, ano 14, (1) eVIGAN, C. (2009). Psichiatria non psichiatria. Roma:EditoraBorla,captulo 15.2 N.T.: O termo operatori caracterstico da reforma psiquitricaitaliana e designa a funo dos profissionais inseridos nos serviosde sade mental.3 N.T.: Azienda Sanitaria Locale, servio pblico italiano deassistncia em sade.4N.T.: O autor assinala a palavra caso, em latim cadere, cair;sair

    de uma regulao simblica e, portanto, encontro direto com o real.5 N.T.: Referncia ao Paradoxo de Zeno relatado sob a forma de umacorrida entre Aquiles, heri grego, e uma tartaruga.6 N.A.: Caso apresentado por M. Borreani em 09/04/2005, na SeoClnica de Gnova.7 N.T.: No texto em italiano, a estrutura Comunit Terapeuticadesigna uma modalidade de servio substitutivo em sade mental que seaproxima do formato dos servios Residenciais Teraputicos, embora no

    tenha uma equivalncia direta com nenhum servio brasileiro da rede deassistncia em sade mental.8 N.A.: Para expor uma ordem de medida, nas atuais condiesorganizativas na Itlia, o tratamento de Elle custou, a partir dosseus 16 anos, uma mdia de 6.500 euros por ms. No ano em que estevena Residncia Teraputica: cerca de 4.000 euros por ms. Futuramente,a perspectiva de projeto teraputico coerente com a anlise podeprever 2.000 euros por ms, enquanto o retorno para casa sem projetorecolocaria esse tratamento em condies pr-residenciais.9 N.T.: O emprego da palavra lugar faz referncia disposio dosquatro elementos nos discursos teorizados por Lacan, J. (1992[1969-70]). O seminrio, livro 17: o avesso da psicanlise. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed.