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ISSN 2176-1396 ESCREVER NA ESCOLA: UMA ANÁLISE DE PRODUÇÕES TEXTUAIS PARA ALÉM DA DIMENSÃO GRAMATICAL Michelle Mariana Germani 1 - UNESP Natália dos Santos Henschel 2 - UNESP Ana Luzia Videira Parisotto 3 - UNESP Grupo de Trabalho Cultura, Currículo e Saberes Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Muitas pesquisas científicas relatam que os estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental têm avançado na escolaridade com muitas deficiências na escrita. Este trabalho teve o objetivo de analisar as produções textuais de alunos de quinto ano tendo por base as competências avaliadas nas redações do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), com ênfase nos recursos de coesão e coerência, além de identificarmos outros problemas encontrados nas produções textuais de alunos que estão concluindo o Ensino Fundamental I. As abordagens teóricas que amparam as reflexões convergem para que a correção da produção textual não fique somente na dimensão gramatical, com respaldo de Antunes (2005), Massini-Cagliari (2001), Koch (2008), além de Costa Val et al. (2009). Os conceitos de coesão referencial e coesão sequencial foram explorados para a análise dos textos. A pesquisa realizada é de base qualitativa, com enfoque descritivo-analítico. Nesse sentido, foram analisadas produções textuais do ano de 2014 de uma sala de aula com 14 alunos do 5º ano do Ensino Fundamental da rede pública (ensino municipal) de Promissão/SP. Tais produções consistiam em “cartas do leitor” redigidas a partir de uma atividade desenvolvida em sala com uma reportagem do jornal Tribuna do Ceará. Os resultados apontam que, embora os problemas de registro sejam frequentes, a maioria dos alunos não domina recursos coesivos, apresentando graves problemas de coesão e coerência na escrita, muitas vezes ignorados pelos professores. Ainda, a adoção de modelos prontos por parte dos 1 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) Londrina/PR (2005). Especialista em Docência no Ensino Técnico e Superior pelo Centro Universitário Toledo (UniToledo) Araçatuba/SP (2014). Mestranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP-FCT) Presidente Prudente/SP (2015). Membro do Grupo de Pesquisa “Formação de Professores e Práticas de Ensino na Educação Básica e Superior”. E-mail: [email protected].. 2 Graduada em Pedagogia (2014) e Mestranda em Educação (2015) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP-FCT) Presidente Prudente/SP. Membro do Grupo de Pesquisa “Formação de Professores e Práticas de Ensino na Educação Básica e Superior”. E-mail: [email protected]. 3 Graduada (1990), Mestre (1999) e Doutora (2004) em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Professora Assistente e Pesquisadora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-FCT), campus de Presidente Prudente. Atua no Departamento de Educação e no Programa de Pós-graduação em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa “Formação de Professores e Práticas de Ensino na Educação Básica e Superior” – GP FPPEEBS (UNESP-FCT). E-mail: [email protected].

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ISSN 2176-1396

ESCREVER NA ESCOLA: UMA ANÁLISE DE PRODUÇÕES

TEXTUAIS PARA ALÉM DA DIMENSÃO GRAMATICAL

Michelle Mariana Germani1 - UNESP

Natália dos Santos Henschel2 - UNESP

Ana Luzia Videira Parisotto3 - UNESP

Grupo de Trabalho – Cultura, Currículo e Saberes

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Muitas pesquisas científicas relatam que os estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental têm

avançado na escolaridade com muitas deficiências na escrita. Este trabalho teve o objetivo de

analisar as produções textuais de alunos de quinto ano tendo por base as competências

avaliadas nas redações do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado

de São Paulo), com ênfase nos recursos de coesão e coerência, além de identificarmos outros

problemas encontrados nas produções textuais de alunos que estão concluindo o Ensino

Fundamental I. As abordagens teóricas que amparam as reflexões convergem para que a

correção da produção textual não fique somente na dimensão gramatical, com respaldo de

Antunes (2005), Massini-Cagliari (2001), Koch (2008), além de Costa Val et al. (2009). Os

conceitos de coesão referencial e coesão sequencial foram explorados para a análise dos

textos. A pesquisa realizada é de base qualitativa, com enfoque descritivo-analítico. Nesse

sentido, foram analisadas produções textuais do ano de 2014 de uma sala de aula com 14

alunos do 5º ano do Ensino Fundamental da rede pública (ensino municipal) de Promissão/SP.

Tais produções consistiam em “cartas do leitor” redigidas a partir de uma atividade

desenvolvida em sala com uma reportagem do jornal Tribuna do Ceará. Os resultados

apontam que, embora os problemas de registro sejam frequentes, a maioria dos alunos não

domina recursos coesivos, apresentando graves problemas de coesão e coerência na escrita,

muitas vezes ignorados pelos professores. Ainda, a adoção de modelos prontos por parte dos

1 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) – Londrina/PR (2005). Especialista em

Docência no Ensino Técnico e Superior pelo Centro Universitário Toledo (UniToledo) – Araçatuba/SP (2014).

Mestranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” (UNESP-FCT) – Presidente

Prudente/SP (2015). Membro do Grupo de Pesquisa “Formação de Professores e Práticas de Ensino na Educação

Básica e Superior”. E-mail: [email protected].. 2 Graduada em Pedagogia (2014) e Mestranda em Educação (2015) pela Universidade Estadual Paulista “Júlio

Mesquita Filho” (UNESP-FCT) – Presidente Prudente/SP. Membro do Grupo de Pesquisa “Formação de

Professores e Práticas de Ensino na Educação Básica e Superior”. E-mail: [email protected]. 3 Graduada (1990), Mestre (1999) e Doutora (2004) em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de

Mesquita Filho (UNESP). Professora Assistente e Pesquisadora da Universidade Estadual Paulista Júlio de

Mesquita Filho (UNESP-FCT), campus de Presidente Prudente. Atua no Departamento de Educação e no

Programa de Pós-graduação em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa “Formação de Professores e Práticas de

Ensino na Educação Básica e Superior” – GP FPPEEBS (UNESP-FCT). E-mail: [email protected].

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alunos compromete a qualidade dos textos produzidos, fazendo com que muitos se apeguem

em demasia à estrutura, preocupem-se com a gramática, esquecendo-se da importância do uso

efetivo da língua na produção de uma redação coesa e coerente.

Palavras-chave: Ensino de Língua Portuguesa. Produção Textual. Coesão e Coerência.

Introdução

Este trabalho surgiu de inquietações advindas de estudos realizados na disciplina

“Produção Textual e Formação Docente” no programa de pós-graduação em Educação na

Universidade Estadual “Júlio Mesquita Filho”, no campus de Presidente Prudente (UNESP-

FCT), no segundo semestre do ano de 2014. As inúmeras leituras e discussões realizadas em

referida disciplina mostravam uma grande deficiência no que tange à escrita dos alunos.

Por outro lado, verificamos que, no momento das correções das produções textuais, a

maioria dos professores se atém a realizar uma mera correção gramatical, priorizando a

ortografia, pouco importando se o que fora escrito tinha sentido ou se o conteúdo

argumentado apresentava progressão.

Diante deste quadro, surgiram-nos as seguintes questões: como os alunos do 5º ano do

Ensino Fundamental estão utilizando os recursos coesivos? Quais os principais problemas de

coesão/coerência encontrados nas produções textuais de alunos que estão concluindo o Ensino

Fundamental I?

Nesta perspectiva, nossos objetivos consistiram em investigar as produções textuais do

5º ano do Ensino Fundamental, com ênfase nos recursos coesivos, identificando as principais

dificuldades de coesão/coerência apresentadas pelos estudantes, ainda que outros problemas

fossem identificados e frequentes. A escolha não foi aleatória e se deve ao fato de esses

alunos se encontrarem no final do ciclo relativo ao Ensino Fundamental.

Referencial Teórico

Comunicar-se é uma necessidade inata do ser humano. Saber atuar verbalmente com

sucesso é indispensável ao convívio social. Porém, o que verificamos nas salas de aulas são

oportunidades de redação restritas e pouco reflexivas, o que tem causado impactos e

consequências negativas no ensino de Língua Portuguesa.

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Tudo se reduz a um exercício mecânico de pôr no papel não importa o quê; faça ou

não sentido, tenha ou não relevância o que se diz. Esse aspecto é mais grave quando

se constata que a preocupação com a revisão do que foi escrito se limita a corrigir

pontos de sua superfície linguística, como ortografia, concordância verbal, crases e

outras questões gramaticais. (ANTUNES, 2005, p. 27)

Nesse âmbito, a coesão e a coerência, tão necessárias para possibilitar a continuidade e

a unidade do texto, muitas vezes são deixadas de lado, em detrimento de correções que

priorizam a normal culta e correta grafia.

Aliás, coesão é “essa propriedade pela qual se cria e se sinaliza toda espécie de

ligação, de laço, que dá ao texto unidade de sentido ou unidade temática” (ANTUNES, 2005,

p. 47). Para Costa Val et al. (2009, p. 109), a coesão “diz respeito à inter-relação entre os

elementos linguísticos no plano textual, abrangendo as relações entre frases e entre partes ou

sequências do texto”.

Massini-Cagliari (2001, p. 37) diferencia que “a coerência é um fenômeno diretamente

ligado à interlocução, enquanto que a coesão encontra-se no nível formal do texto,

estabelecendo diversas relações semânticas entre os seus elementos”. Acresce que “a

coerência é também vista como uma continuidade de sentidos perceptível no texto,

possibilitando a criação de um mundo textual de acordo com o conhecimento de mundo

registrado na memória” (2001, p. 38).

Ressalte-se que os alunos já trazem para a escola uma bagagem de conhecimento de

mecanismos de coesão. O papel da escola é auxiliar nessa transposição da linguagem oral para

a escrita. Já os problemas de coerência costumam ser poucos e, geralmente, relacionados ao

conhecimento de mundo e fatores associados ao momento de sua produção (MASSINI-

CAGLIARI, 2001, p. 81-82).

Portanto, quando falamos em coesão e coerência, é comum nos depararmos com

dúvidas e incertezas: “falta coesão exatamente onde? Falta que tipo de recurso? Se um texto

não tem coesão é porque lhe está faltando o quê?” (ANTUNES, 2005, p. 16). Para buscarmos

essas respostas, é preciso termos por base as duas grandes modalidades de mecanismos de

coesão textual, de acordo com Koch (2008): coesão referencial e coesão sequencial.

Chama-se de coesão referencial “aquela em que um componente da superfície do

texto faz remissão a outro(a) elemento(s) do universo textual” (KOCH, 2008, p. 30).

Já a coesão sequencial diz respeito a

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procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos

do texto (enunciados, partes de enunciados, parágrafos e mesmo sequências textuais

maiores), diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmáticas, à medida que faz o

texto progredir. (KOCH, 2008, p. 49)

Levando-se em conta que “há necessidade de um tratamento com a linguagem que não

apenas contemple a gramática, mas sua relação com o uso efetivo da língua” (BUINA, 2008,

p. 3), verificamos uma função articuladora e coesiva de vários recursos gramaticais, conforme

exemplifica Antunes (2005, p. 167-168):

a) os diferentes pronomes (pessoais, demonstrativos, possessivos, indefinidos,

relativos);

b) a elipse (de termos, de expressões e até de segmentos maiores);

c) os numerais (seja numa sequência temporal seja na sequência das referências

feitas);

d) os artigos (a escolha, na sequência do texto, entre um artigo indefinido ou um

definido interfere bastante na identificação dos referentes textuais);

e) os diferentes tipos de conectores, incluindo aí preposições, conjunções, advérbios

e respectivas locuções.

Ou seja, os recursos gramaticais cumprem outras funções que, apenas, regular ou

controlar o uso da norma-padrão.

A coesão textual também pode ser sinalizada por tempos e aspectos verbais, os quais

situam as informações textuais com relação ao momento da produção do texto do

texto (antes, o pretérito; durante, o presente; posterior, o futuro) e, na narrativa,

marcam a importância dessas informações (os fatos integrantes do eixo narrativo,

em primeiro plano, no pretérito perfeito; os eventos secundários e os relativos à

ambiência e às circunstâncias, em segundo plano, no imperfeito). (COSTA VAL et

al., 2009, p. 110)

São essas as concepções em que nos pautaremos para todas as análises feitas neste

trabalho.

Metodologia

Para a produção deste relato, utilizamos a abordagem qualitativa que procura explicar

em profundidade as características e os significados das informações obtidas (OLIVEIRA,

2007). Neste caso, optamos pelo enfoque descritivo-analítico, pois, conforme Martins (2008,

p. 56), “o mérito principal de uma descrição não é sempre sua exatidão ou seus pormenores,

mas a capacidade que ela possa ter de criar uma reprodução tão clara quanto possível para o

leitor da descrição”.

Para esta pesquisa, nosso objeto de análise foram as produções textuais de uma sala de

aula com 14 alunos do 5º ano do Ensino Fundamental da rede pública (ensino municipal) do

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turno vespertino da cidade de Promissão/SP, com idade entre 10 e 12 anos. Foram

disponibilizadas 12 produções textuais do ano de 2014 (avaliações diagnósticas), visto que

dois alunos faltaram no dia da aplicação da atividade. O trabalho desenvolvido pela

professora consistiu na apresentação do gênero textual “reportagem”, e a partir desta, foi

trabalhado o gênero textual “carta do leitor”. Assim, a partir da reportagem “Honestidade:

criança devolve dinheiro que achou em livro”, veiculada pelo jornal da Tribuna do Ceará, os

alunos redigiram individualmente uma carta do leitor.

As produções textuais foram observadas com enfoque em uma das competências

avaliadas pela prova do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de

São Paulo), ou seja, nossa análise se ateve à coesão textual e à coerência. A prova do

SARESP é uma avaliação aplicada pela Secretaria do Estado de São Paulo para verificação

diagnóstica da escolaridade básica paulista, servindo de parâmetro aos gestores para

intervenções visando melhorias na qualidade do ensino. São avaliados os alunos do 2º, 3º, 5º,

7º e 9º anos do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio. As questões abordam

Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Humanas, Ciências da Natureza e Redação.

No tocante à correção das redações, são analisadas as seguintes competências,

segundo o Relatório Pedagógico do SARESP (2011, p. 232): tema (adequação discursiva),

gênero, coesão/coerência, registro (convenções e normas do sistema da escrita, verificando

gramática, ortografia, concordância, paragrafação, pontuação, acentuação etc.) e proposição

(elaboração de proposta de intervenção para o problema abordado, demonstrando um

posicionamento crítico e reflexivo, competência esta avaliada apenas no Ensino Médio).

A ênfase de nossa abordagem é quanto aos recursos coesivos, relatando os problemas

típicos, casos extremos e até mesmo os problemas atípicos na organização do texto de forma

lógica.

Figura 1 – Reportagem apresentada na proposta de produção textual

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Fonte: Jornal Tribuna do Ceará – Disponível em:

<http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/fortaleza/honestidade-crianca-devolve-dinheiro-que-achou-

em-livro/>. Acesso em: 03 mar. 2015.

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Resultados e Discussão

Os resultados apontam para problemas recorrentes em duas das competências

analisadas: problemas de registro e de coesão/coerência. Teceremos breves considerações

sobre todos os quatro critérios avaliados no Ensino Fundamental, porém nosso enfoque maior

será com relação aos recursos coesivos, muitas vezes esquecidos ou desprezados pelo

professor nas correções corriqueiras ainda apegadas somente à gramática.

Adequação Temática

Todas as cartas do leitor analisadas demonstravam tema adequado à proposta. Os

alunos discorreram sem dificuldades sobre a reportagem que relatava a devolução do dinheiro

encontrado em um livro por uma estudante de Fortaleza/CE.

Domínio do Gênero Textual

Na perspectiva bakhtiniana, sabemos que “todo gênero textual é marcado por sua

esfera de atuação que promove modos específicos de combinar, indissoluvelmente, conteúdo

temático, propósito comunicativo, estilo e composição” (KOCH, ELIAS, 2007, p. 107).

Quanto ao gênero textual “carta do leitor”, todos os alunos seguiram basicamente a

estrutura padrão, não havendo nenhuma estrutura atípica. Vale ressaltar aqui as características

e função desse gênero:

As cartas ao leitor são consideradas um gênero textual de uma perspectiva

funcional-interativa, que circula no contexto jornalista, em seção fixa de revistas e

jornais, denominada comumente de cartas, cartas a leitores, carta do leitor, cartas a

redação entre outras que reservando a correspondência dos leitores em gêneros

textuais. Ou seja, é um texto utilizado em situação de contato imediato entre

remetente e destinatário, que não se conhece (o leitor e a equipe da revista),

atendendo a diversos propósitos comunicativos entre eles podemos citar: opinião,

agradecimento, solicitação, elogios, entre outros. (GUIMARÃES, LUIZ, AQUINO,

2010, p. 2)

Ainda, segundo Santhiago (2005, p. 6-7), o gênero “carta do leitor” pode ser

subdividido em três grupos, distintos entre si pelo objetivo: direito de resposta, carta-opinião e

carta-manifestação. Inegavelmente que todas as produções textuais analisadas se enquadram

no grupo de carta-opinião, conforme demonstra Medeiros (2009, p. 62):

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[...] classificada como carta-opinião, os leitores se dirigem de forma clara e direta à

revista ou ao jornal e devem fazer uma breve contextualização ao longo da

argumentação como referência ao texto (autor e título) ou matéria referida, assim, a

reação do leitor seja de aprovação ou desaprovação é propositalmente explícita. O

autor se manifesta de formas diversas: elogios, sugestões, correções, solicitações,

críticas direcionadas a alguma matéria ou posicionamento do meio de comunicação,

mas não à publicação em sua totalidade e outros casos.

Nas produções analisadas, todos os alunos fizeram elogios à atitude da menina que na

reportagem devolveu o dinheiro encontrado dentro de um livro. Portanto, todos redigiram

uma carta do leitor do grupo carta-opinião, elogiando a conduta da garota que agiu com

honestidade.

Todavia, importante ressaltar que as cartas produzidas denunciam terem sido

elaboradas a partir de cópia de um modelo engessado, ainda que as crianças investigadas não

façam uso da cartilha. O problema desse tipo de produção textual é que as crianças que

escrevem a partir de um “único modelo de escrita, construirão uma concepção de “texto

único” que combina com esse modelo único” (MASSINI-CAGLIARI, 2001, p. 65).

Logo, foi possível constatar entre as produções analisadas que a proposta foi uma

espécie de roteiro. Houve aqueles que, para cumpri-la completamente, comprometerem o

sentido do conteúdo (COSTA VAL et al., 2009, p. 73). Evidente, desta forma, que muitos

alunos sacrificaram o sentido do texto, tornando-o cíclico e repetitivo, em função da adoção

de um modelo pré-pronto.

Ainda, seguindo o roteiro que tiveram como modelo, todos os alunos se identificaram

em suas produções textuais. Para nossas análises, omitimos seus nomes, bem como o da

escola. Optamos, então, por usar somente as iniciais para evitar quaisquer julgamentos ou

comentários posteriores.

Problemas de Registro

No que tange ao registro, vários problemas foram identificados nas produções textuais

da sala: falta de acentuação, troca do acento agudo pelo circunflexo, falta de pontuação

(ausência do uso da vírgula e do ponto final), dificuldades de paragrafação, problemas de

concordância, uso de letra maiúscula no meio da frase, iniciação de frases com letra

minúscula, nomes próprios com letra minúscula, traçado estranho da letra (não cortar o “t”),

além de vários erros ortográficos (achace, agio, de vouve, denho, dervaveria, devouver, dieiro,

dinigem, dineiro, dinhero, dinlheiro, ecola, ensula, entereçante, ese, faseria, fes, fose, mointo,

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muinto, novembo, novenbo, novenbro, nuvembro, onestidade, onesto, reportaguem,

reportgem, serta, serto, tribona, tunbem).

As dificuldades ortográficas encontradas dão margem para vários questionamentos, os

quais também são motivo de inquietação para Morais (2002, p. 17): “O que é ortografia (e em

que ela difere da escrita alfabética)? Para que serve escrever ortograficamente? Por que a

escola deve promover um ensino sistemático que leve o aluno a refletir sobre a escrita correta

das palavras?”

Em que pese os inúmeros problemas identificados, os quais dão margem para extensa

análise com relação às dificuldades ortográficas regulares e irregulares, conforme analisa

Morais (2002), não vamos adentrar nessa abordagem.

Os problemas de falta de pontuação também foram recorrentes, e comprometem o

texto, segundo Costa Val et al. (2009, p. 50):

[...] a ausência de uma marca formal, na medida em que não fornece ao leitor uma

pista necessária, pode acarretar uma dificuldade para o trabalho de compreensão do

conteúdo, porque, na falta de indicação do autor, ou o leitor se apoia em elementos

do contexto ou vê-se obrigado a testar algumas possibilidades de segmentação, que

podem ou não corresponder à intenção de quem escreveu.

A seguir, apresentaremos os dados relativos ao nosso principal objeto de análise, ou

seja, os dados relativos aos recursos de coesão e coerência.

Problemas de Coesão/Coerência

Pela análise das produções textuais dos alunos, é possível observar alguns problemas

relacionados à coesão e à coerência textuais. Veja-se:

Quadro 1 – Redação A

Promissão, 05 de novembro de 2014

Caro editor do Jornal “Tribona do ceará”

eu li a reportgem “Honestidade: criança de vouve

dinheiro que achou em livro” e Ela foi Honesta

Eu, A. G. F. L., tenho 10 anos, estudo no

Colégio X. em promissão.

Penso que a menina . fez serto devouver o dinheiro

ao dono e isso é a Honestidade.

Até logo

A.

Fonte: redação diagnóstica de 2014 do 5º ano de uma

Escola Municipal de Ensino Fundamental de

Promissão/SP.

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É possível identificarmos que a produção textual anteriormente apresentada traz

alguns mecanismos de coesão, embora muito mal explorados. A coesão referencial se faz

mais presente, enquanto a coesão sequencial, basicamente se resume ao encadeamento por

conexão pelo uso do conectivo de adição “e”.

Logo após o cabeçalho, o primeiro parágrafo do texto apresenta dois principais

elementos de referência envolvidos nos processos de coesão: “a reportagem” e “criança”. Na

terceira linha, utilizou-se o mecanismo de coesão de substituição por pronome (no caso, ela).

O pronome “ela” concorda em gênero e número com os dois sintagmas nominais mais

próximos (“a reportagem” e “criança”). Para saber qual dos termos o pronome substitui, é

preciso ler toda a sentença e observar as interpretações “a reportagem foi honesta” e “a

criança foi honesta”, sendo a segunda a adequada, de acordo com o contexto. Portanto, o

único elemento de referência possível que concorda com “ela” é “criança”.

Assim, podemos dizer que a Redação A apresenta um problema de violação da

máxima do antecedente de Clark e Havilland (1977, p. 4), citada por Kato (1985, p. 49):

“Máxima do antecedente: Procure construir seu enunciado de forma que o seu ouvinte tenha

apenas um antecedente possível para uma dada informação e que este seja o antecedente

pretendido.” Conforme explica Massini-Cagliari (2001, p. 67), esse tipo de lapso no uso de

mecanismos coesivos não incomoda tanto os leitores por causa do conhecimento prévio de

mundo.

Outro mecanismo de coesão referencial utilizado na Redação A é a elipse (substituição

por zero), já que em vários pontos da produção é omitido o pronome “eu”.

O último parágrafo traz como forma remissiva referencial a substituição lexical de

“criança” por “menina”, possibilitando que saibamos mais sobre a pessoa em questão (a

criança que devolveu o dinheiro é do sexo feminino). Ainda, “isso” retoma a ideia de

“devolver o dinheiro ao dono”, evitando repetições.

Além de apresentar recursos coesivos que poderiam ser explorados com mais

eficiência, a produção textual traz elementos que demonstram falta de coerência. Segundo a

reportagem trabalhada, a aluna de Fortaleza entregou o dinheiro ao professor de História,

sendo que posteriormente a escola descobriu quem era o dono. Logo, o texto se mostra fraco,

solto, pois seu produtor se limitou a abreviar a contextualização afirmando que a menina

devolveu o dinheiro ao dono, o que não ocorreu de imediato.

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Em que pese os problemas identificados na Redação A, há produções textuais em que

os mecanismos de coesão e coerência textuais são menos explorados ainda, comprometendo a

contextualização. É o caso da Redação B:

Quadro 2 – Redação B

Promissão, 05 de novembro de 2014

Caro editor do jornal “Tribuna do Ceara”,

eu li a reportagem Honestidade: criança.

devolve dinheiro que achou em livro e eu achei muinto

bom.

Eu, G. H. A. S., tenho 12 anos, estudo

no Colégio X. em Promissão.

Penso que a menina foi muinto onesto ela fes mointo bem

Porque ela não pela dinigem dieiro porque ela devolve o dinheiro do dono

porque qualquer dineiro ela devolve para o dono

Até logo

G.

Fonte: redação diagnóstica de 2014 do 5º ano de uma Escola Municipal de

Ensino Fundamental de Promissão/SP.

O texto acima é um clássico exemplo de quem levou muito a sério o modelo que fora

apresentado. É um exemplo de desempenho insuficiente na utilização do sistema escrito.

Segundo Massini-Cagliari (2001, p. 73), “para essa criança, o texto escrito não tem muita

vinculação com “significados” ou com a reprodução da estrutura da língua que fala”. Por isso,

escreve coisas como “a menina foi muinto onesto”, “ela não pela dinigem dieiro”.

Houve uso excessivo no último parágrafo de encadeamento por conexão sequencial

em razão da repetição do conectivo de causalidade “porque”, o qual apareceu três vezes na

mesma sentença. Trata-se, sem dúvida alguma, de “repetições não funcionais, isto é, que não

têm uma função reconhecível ou não respondem a um propósito discursivo qualquer”

(ANTUNES, 2005, p. 82).

No tocante à coerência, o aluno também apresentou dificuldades para contextualizar a

reportagem lida, como na Redação A, limitando-se a escrever que a menina devolveu o

dinheiro para o dono.

Observemos a Redação C:

Quadro 3 – Redação C

Promissão, 05 de nuvembro de 2014

.Caro editor do jornal “Tribuna do Cearà”

eu li a reportagem “Honestidade: Criança devolve

(continuação)

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dinheiro que acho em livro” e achei a

reportagem muito legal

.Eu J. N. E., tenho 10

anos, estudo no Colégio X. em Promissão.

.Penso que a menina teve uma atitude linda em devolver o dinheiro

eu faria a mesma coisa eu acho

lindo esse tipo de atitude ela foi super

honesta uma boa cidadã da cidade do

Ceará.

x

Até logo

x

J.

Fonte: redação diagnóstica de 2014 do 5ºano de uma Escola Municipal de

Ensino Fundamental de Promissão/SP.

Podemos constatar que o aluno possui dificuldade em fazer uso da coesão referencial

por elipse no último parágrafo, já que repete, numa mesma linha, duas vezes o pronome “eu”.

Nos parágrafos anteriores, o uso da elipse foi regular provavelmente em virtude do uso de um

modelo pré-moldado de carta do leitor pelos estudantes.

Conforme já constatado na Redação A, verificamos na Redação C um problema de

violação da máxima de antecedente no último parágrafo (“ela foi super honesta”). O pronome

“ela” estaria substituindo o termo “menina” ou “atitude”? Lendo toda a sentença e partindo do

nosso conhecimento de mundo, percebemos que “ela” substituiu “menina”.

Ainda seguindo as considerações da Redação A, o aluno utilizou a forma remissiva

referencial de substituição lexical por de “criança” por “menina” e “cidadã”, evitando um

texto repetitivo e pobre.

Um problema de coerência aparece no final do texto, quando o aluno, mesmo tendo

contato com a origem da reportagem, menciona o Estado do Ceará em lugar de mencionar a

cidade citada na reportagem.

Já a Redação D, ainda que a primeira vista assuste pelos erros de ortografia, pontuação

e falta de paragrafação, traz o uso intencional do recurso coesivo da repetição:

Quadro 4 – Redação D

Promissão, 05 de novembro de 2014

x

Caro editor do Jornal “Tribuna do Ceará”,

eu li a reportagem “honestidade: Criança devolve

dinhero que achou em livro” e eu gostei

muito.

E J. V. L. S. tenho 10 anos e estudo no

Colégio X. em Promissão

(continuação)

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penso que a menina agio muito certo com

essa atitude muito nobre e eu estou tunbem

muitos admiram esse ato de onestidade

Até logo

J. V. L.

Fonte: redação diagnóstica de 2014 do 5º ano de

uma Escola Municipal de Ensino Fundamental de

Promissão/SP.

Logo, nesta produção textual (Redação D), o aluno fez um uso interessante da coesão

sequencial pela repetição do termo “muito”. É preciso quebrar paradigmas quanto a esse

recurso coesivo, segundo ensina Antunes (2005, p. 71):

Em geral, e por falta de um conhecimento mais consistente, a repetição tem sido

vista apenas como uma característica da oralidade informal, da conversa familiar,

espontânea e descontraída. Assim, costuma-se pensar que repetir palavras é coisa da

conversação coloquial, uma concessão que se faz, uma vez que “a fala tudo

permite”. Os resultados de várias pesquisas põem abaixo essa visão e mostram que,

em textos escritos formais, como editorais de jornais, por exemplo, a repetição de

palavras é um recurso generalizado, incontestável e funcional.

Sendo a produção uma carta do leitor ao jornal Tribuna do Ceará, podemos facilmente

constatar, a partir da explicação de Antunes, que a repetição do aluno teve como intuito

marcar ênfase (“gostei muito”, “muito certo”, “muito nobre”, “muitos admiram”). O uso desse

recurso coesivo reforçou a ideia de que a atitude da menina que encontrou o dinheiro e o

entregou ao professor é rara. Aliás, “não se repete uma palavra simplesmente por repeti-la,

sem um propósito discursivo qualquer, ou por uma questão de inabilidade, apenas”

(ANTUNES, 2005, p. 83). Ainda:

Merece cuidado, portanto, a recomendação abusivamente generalizada de não

repetir palavras, como merece atenção ainda a observação muito simplista de que a

repetição de palavras é indício de pobreza vocabular.

Ou seja, a repetição não é aquele ponto negativo, aquela mancha inevitável acima de

tudo, capaz de deixar os textos em condições de baixa qualidade. Evidentemente,

como qualquer outro recurso, a repetição merece o cuidado da utilização

equilibrada, uma vez que o conteúdo de um texto não pode reduzir-se a um mesmo

sem fim, que não avança e, circularmente, não sai do lugar. (ANTUNES, 2005, p.

81)

É perceptível que o aluno fez o uso correto da coesão referencial por elipse.

Todavia, a penúltima sentença é bastante vaga e incoerente: “penso que a menina agiu

muito certo com essa atitude muito nobre e eu estou também”. O aluno estaria também o quê?

O raciocínio ficou incompleto.

Na Redação E, é possível verificarmos uma falta de progressão textual:

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Quadro 5 – Redação E

Promissão de novembro de 2014

Caro editor do jornal “Tribuna do Ceará”,

eu li a reportagem “Honestidade: Criança

devolve dinheiro que achou em livro” e

lindo.

Eu A. M. C. R.,

tenho 11 anos, estudo no Colégio X.

em Promissão.

Penso que a menina É muita Honesta

E é lindo fazer isso. Um menino

da classe dela falou para ela

gastar o dinheiro mas foi muito

Honesta E devolveu o dinheiro.

Até logo

x

A. M.

Fonte: redação diagnóstica de 2014 do 5º ano

de uma Escola Municipal de Ensino

Fundamental de Promissão/SP.

Tanto no primeiro como no último parágrafo, o aluno ressalta que a atitude da menina

é linda. Ainda no último parágrafo, fala duas vezes que a garota é muito honesta. Embora o

texto seja coerente, denuncia uma dificuldade do estudante para incorporar em seu texto

informações que o faça progredir. Desobedeceu-se, portanto, à segunda metarregra de

coerência ditada por Charolles e explicada por Antunes (2001, p. 183):

[...] ela estipula que um texto, para ser coerente, não deve repetir indefinidamente

(ou circulamente) o mesmo conteúdo. Ou seja, um texto coerente exige progressão

semântica. O ato de comunicar supõe, em geral, “qualquer coisa nova a ser dita, a

ser acrescentada”. Por outras palavras: a produção de um texto coerente supõe

equilíbrio entre continuidade temática e progressão semântica.

De acordo com Koch (1989), Koch e Travaglia (1989, 1990), e Marcuschi (1983),

todos citados por Massini-Cagliari (2005, p. 37), um texto pode ser coerente sem ser coeso ou

coeso sem ser coerente, embora o mais normal e desejável seja um texto coeso e coerente,

conforme a Redação F:

Quadro 6 – Redação F

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Promissão, 05 de novembro de 2014

Prezado editor do jornal “Tribuna do Ceará”,

eu li a reportagem “Honestidade: Criança devolve dinheiro

que achou em livro” e achei está notícia legal.

Eu, G. M. C. O.,

tenho 10 anos, estudo no Colégio X. em Promissão.

Penso que a menina teve um ato muito honesto

pois muita gente no lugar dela pegaria o dinheiro, eu

no lugar dela teria feito a mesma coisa, pois alguém

poderia estar doente, precisando desse dinheiro.

Até logo

G.

Fonte: redação diagnóstica de 2014 do 5º ano de uma Escola

Municipal de Ensino Fundamental de Promissão/SP.

Nesta produção textual, há correto uso da coesão referencial e sequencial, além do

conteúdo ser coerente. A fluência do texto faz ressaltar a subjetividade do aluno, além das

informações se relacionarem de maneira lógica, pertinente e convincente. A forma como o

aluno utilizou a substituição dos referentes (“criança”, “menina” e “dela”) e o uso da elipse (Ø

antes dos verbos “achei”, “estudo”, “penso”) demonstra essa riqueza de recursos coesivos.

O uso de encadeamento por conexão sequencial em razão da repetição do conectivo de

conclusão “pois” foi um recurso correto para o estudante finalizar o raciocínio expresso no

primeiro segmento da carta do leitor, no qual abordou a reportagem.

Não há problemas de coerência; ao contrário: o aluno justifica que teria a mesma

atitude da menina da reportagem em razão do dinheiro poder ser de alguém doente. A

argumentação é, portanto, mais forte que nas demais redações analisadas.

Considerações Finais

A escola, além de sua função de alfabetizar, possui a responsabilidade de formar

cidadãos críticos e reflexivos, capazes de participar de maneira atuante na sociedade. Para

isso, necessita formar pessoas aptas a se expressar corretamente pela linguagem oral e/ou

escrita. Afinal, o dizer e o escrever são formas de intervenção no mundo.

O ensino tradicional, arraigado apenas à análise da dimensão gramatical, faz com que

muitos textos com perfeita grafia e sem nenhum sentido ou encadeamento sejam julgados

como bons, ao passo que textos com erros ortográficos e absolutamente coesos e coerentes

sejam tidos como fracos.

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Não queremos, de forma alguma, pregar um desapego à gramática. O que buscamos é

uma visão mais relativizada, analisando o texto em todas as suas dimensões (discursiva,

semântica e gramatical). Do contrário, estaríamos limitando a análise da produção textual de

um aluno ao focarmos em apenas uma dimensão.

Mais do que nos atermos à diferenciação entre coesão e coerência, ensinar a escrever

deve estar ligado ao uso da língua; ou seja, o texto deve funcionar como uma peça

comunicativa. Nesse tocante, restou evidente que o uso de um modelo pré-pronto e engessado

salva a estrutura, mas compromete o texto. Isso porque muitos alunos acabam por desprezar

seus conhecimentos de coesão para obedecer a uma sequência de frases.

A leitura frequente e o contato com diferentes gêneros textuais possibilita que os

alunos se apropriem dos mecanismos coesivos próprios da escrita, já que há recursos coesivos

que são típicos da linguagem oral e os que são inerentes à linguagem escrita.

Após as análises, chegamos à mesma conclusão de Antunes (2005, p. 169): “Não se

pode fazer texto algum sem gramática. Mas faz sentido também a certeza de que não se faz

texto algum apenas com gramática.”

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